teologia para leigos

24 de junho de 2012

ESCOMBROS POLÍTICOS...

Não se pode tomar banho duas vezes
nas águas da mesma Europa


A Europa alemã - Parménides contra Heráclito


 A inocência, uma vez perdida, não se recupera. O idealismo não se fabrica.O sonho da cidadania europeia foi brutalmente aniquilado. A presunção de má-fé conduz inevitavelmente à desagregação.   
Lembrem-se. Angela Merkel proclamou há apenas dois anos que cada país da zona euro só poderia contar consigo mesmo para reequilibrar as suas finanças no rescaldo da recessão de 2009: nada de "bail-outs", nada de intervenções do BCE, nada de união fiscal e, além disso, nem pensar em pedir ajuda ao FMI. Em suma, cada um por si.

É inquestionável que a actuação errática do governo do mais poderoso país europeu, acossado pela xenofobia dos tablóides domésticos e pela intransigência do Tribunal Constitucional alemão, foi determinante no agravamento da presente crise.

Pelo caminho, não hesitou em subverter o funcionamento das instituições europeias. Tratados, procedimentos, regras de salutar convivência, vontade dos povos, soberania dos estados-membros, simples normas de boa educação, tudo isso foi posto de parte. A Alemanha é hoje um camião TIR a circular pelas auto-estradas europeias na noite escura, de luzes apagadas e fora da mão. Para cúmulo, Merkel adormece com frequência ao volante.

O resultado da imposição alemã foi mergulhar a Europa num estado generalizado de excepção. O combate aos vícios da indisciplina e da preguiça das raças católicas (Irlanda incluída) justifica e exige todas as punições, forçando-as, se necessário, a morrer acima das suas possibilidades. É preciso governar para alemão ver. Mas a estratégia revelou-se tão absurda que até em Berlim já há quem desconfie que não se pode ir ao bolso a um homem nu.

Fracassada a doutrina da "austeridade expansionista", a mais recente lengalenga é a compatibilização do crescimento com a austeridade. Infelizmente, acrescentam, não se pode decretar o crescimento. E que tal se se começasse por remover as políticas que o inibem, tais como o pacto orçamental, a contenção da procura interna nos países com baixos níveis de desemprego e as proibições de o BCE emprestar directamente aos estados e recapitalizar os bancos em dificuldades?

Dados os elevadíssimos níveis de endividamento públicos e privados, só há duas alternativas para reactivar a procura e relançar o crescimento: ou se espera vinte anos até que se complete a desalavancagem; ou se desvaloriza as dívidas e se imprime dinheiro para recapitalizar os bancos.

Embora, nas palavras de Martin Wolf,
o pânico se tenha transformado, nas presentes circunstâncias de inacção europeia, na única reacção racional perante o progressivo afundamento da zona euro, há ainda quem acredite que o que tem de ser feito acabará por ser feito, uma vez esgotado o repertório de políticas insensatas.

Esta esperança afigura-se infundada, visto que um rearranjo racional da zona euro exigirá sempre profundas transformações políticas, que esbarrarão, em última análise, na oposição do tribunal constitucional alemão. A única moeda única que ele alguma vez reconhecerá será o euro do Reno.

Mas há um problema ainda mais grave do que esse. Fala-se muito em reconquistar a confiança dos mercados, mas o que irremediavelmente se destruiu na Europa foi a confiança dos cidadãos.

Sabemos hoje de ciência certa que a Alemanha, além de só cumprir os tratados e as leis da União Europeia quando lhe convém, tem ainda o poder de espezinhar as constituições dos estados-membros, de derrubar governos eleitos, de se sobrepor aos governos legítimos, de impor as políticas que mais lhe agradam, de forçar a ruptura dos contratos implícitos e explícitos entre os estados e os seus cidadãos. Como pode alguém confiar num parceiro assim?

A inocência, uma vez perdida, não se recupera. O idealismo não se fabrica. O sonho da cidadania europeia foi brutalmente aniquilado. A presunção de má-fé conduz inevitavelmente à desagregação. Liquidada a confiança nas elites europeias, está, de facto, bloqueado o caminho para o aprofundamento da união política.

Não se pode tomar banho duas vezes nas águas do mesmo rio, pois que o rio, entretanto, já não é o mesmo. O que se fez pode eventualmente ser desfeito, mas sempre deixará marcas. Espíritos obtusos, enfronhados no dogma, lentos a reagir, atolados na pasmaceira, adeptos de Parménides contra Heráclito, têm grande dificuldade em entender isto. "Verstehen sie mich wenn ich langsam spreche?"


João Pinto e Castro
“Jornal de Negócios”, 18 Junho 2012

[Director-geral da Ology e docente universitário]