teologia para leigos

24 de junho de 2012

IMPULSO ... PARA BAIXO


Três notas sobre um impulso

 

CLICAR SOBRE O GRÁFICO - Evolução do desemprego em Portugal

 


1. O recentemente anunciado «Impulso Jovem» (abusivamente definido como «Plano estratégico de iniciativas à empregabilidade jovem e de apoio às PME») não passa de uma indisfarçável ficção, destinada a mascarar o aumento vertiginoso do desemprego entre os jovens, que atingiu os 36,6% em Portugal no passado mês de Abril (distanciando-se assim, ainda mais, da taxa média de desemprego, que ascendeu aos 15,2% no mesmo mês). A medida assenta essencialmente em estágios de curta duração (seis meses), com bolsas que oscilam entre 419€ (para jovens com ensino secundário incompleto) e 943€ (doutorados). Como bem sublinha Eugénio Rosa, de criação efectiva e sustentável de emprego este «plano estratégico» nada contém, significando apenas - neste sentido - a tentativa de criar uma almofada (intrinsecamente volátil) para atenuar o agravamento previsto do desemprego nos próximos meses.

2. Para lá da ficção, há contudo um objectivo muito realista que este impulso contém. Trata-se de uma medida que reforça claramente a linha de incremento da competitividade através dos baixos salários (e que é acentuada pelos apoios às empresas aderentes, igualmente previstos no plano, em matéria de pagamentos à Segurança Social, por exemplo). Ou seja, trata-se de uma estratégia que estimula, ainda mais, a lógica medíocre das empresas que apenas conseguem tornar-se competitivas pelo esmagamento do «factor trabalho», para retomar a cínica expressão de Cavaco Silva.
Contudo, esta investida vai ainda mais longe: nada no «plano» acautela a possibilidade de as empresas poderem proceder a despedimentos dos seus actuais trabalhadores (facilitados pelas recentes alterações ao Código do Trabalho), beneficiando assim - através da contratação dos jovens estagiários - de relevantes reduções de encargos com mão-de-obra (e fixando novos parâmetros salariais, mais baixos).

3. Ao ser financiado através de fundos estruturais (FSE e FEDER), a partir de uma reprogramação do QREN, o «plano estratégico» consagra ainda uma monumental perversão, consentida e incentivada pela própria Comissão Europeia. Como sublinha João Galamba (via facebook), «o objectivo é simples: reprogramar verbas do QREN (investimento modernizador) e usá-las para subsidiar baixos salários (investimento no regresso ao passado)». De facto, basta lembrar que aquela que é a finalidade central dos apoios comunitários aponta para o incremento da competitividade do país através da inovação, diferenciação e modernização da sua estrutura produtiva. Ou seja, justamente o contrário do que o «Impulso Jovem» preconiza.


Adenda: Um processo de reprogramação de verbas comunitárias pressupõe, naturalmente, a transferência de financiamento de umas medidas para outras. Seria por isso muito interessante conhecer o que vai deixar de ser financiado para sustentar este retrógrado «impulso». Não custa pensar, por exemplo, que uma parte do financiamento dos 344 milhões de euros deste plano provenha dos recentes cortes nos apoios aos doutoramentos efectuados no estrangeiro, que podem estimar-se em cerca de 90 milhões de euros (valor que se obtém multiplicando a redução do apoio relativa ao pagamento de propinas - 7.500€ - pelo número actual de doutorandos no estrangeiro - cerca de 12 mil).

Blog “Ladrões de Bicicletas”, 15 Junho 2012


ESCOMBROS POLÍTICOS...

Não se pode tomar banho duas vezes
nas águas da mesma Europa


A Europa alemã - Parménides contra Heráclito


 A inocência, uma vez perdida, não se recupera. O idealismo não se fabrica.O sonho da cidadania europeia foi brutalmente aniquilado. A presunção de má-fé conduz inevitavelmente à desagregação.   
Lembrem-se. Angela Merkel proclamou há apenas dois anos que cada país da zona euro só poderia contar consigo mesmo para reequilibrar as suas finanças no rescaldo da recessão de 2009: nada de "bail-outs", nada de intervenções do BCE, nada de união fiscal e, além disso, nem pensar em pedir ajuda ao FMI. Em suma, cada um por si.

É inquestionável que a actuação errática do governo do mais poderoso país europeu, acossado pela xenofobia dos tablóides domésticos e pela intransigência do Tribunal Constitucional alemão, foi determinante no agravamento da presente crise.

Pelo caminho, não hesitou em subverter o funcionamento das instituições europeias. Tratados, procedimentos, regras de salutar convivência, vontade dos povos, soberania dos estados-membros, simples normas de boa educação, tudo isso foi posto de parte. A Alemanha é hoje um camião TIR a circular pelas auto-estradas europeias na noite escura, de luzes apagadas e fora da mão. Para cúmulo, Merkel adormece com frequência ao volante.

O resultado da imposição alemã foi mergulhar a Europa num estado generalizado de excepção. O combate aos vícios da indisciplina e da preguiça das raças católicas (Irlanda incluída) justifica e exige todas as punições, forçando-as, se necessário, a morrer acima das suas possibilidades. É preciso governar para alemão ver. Mas a estratégia revelou-se tão absurda que até em Berlim já há quem desconfie que não se pode ir ao bolso a um homem nu.

Fracassada a doutrina da "austeridade expansionista", a mais recente lengalenga é a compatibilização do crescimento com a austeridade. Infelizmente, acrescentam, não se pode decretar o crescimento. E que tal se se começasse por remover as políticas que o inibem, tais como o pacto orçamental, a contenção da procura interna nos países com baixos níveis de desemprego e as proibições de o BCE emprestar directamente aos estados e recapitalizar os bancos em dificuldades?

Dados os elevadíssimos níveis de endividamento públicos e privados, só há duas alternativas para reactivar a procura e relançar o crescimento: ou se espera vinte anos até que se complete a desalavancagem; ou se desvaloriza as dívidas e se imprime dinheiro para recapitalizar os bancos.

Embora, nas palavras de Martin Wolf,
o pânico se tenha transformado, nas presentes circunstâncias de inacção europeia, na única reacção racional perante o progressivo afundamento da zona euro, há ainda quem acredite que o que tem de ser feito acabará por ser feito, uma vez esgotado o repertório de políticas insensatas.

Esta esperança afigura-se infundada, visto que um rearranjo racional da zona euro exigirá sempre profundas transformações políticas, que esbarrarão, em última análise, na oposição do tribunal constitucional alemão. A única moeda única que ele alguma vez reconhecerá será o euro do Reno.

Mas há um problema ainda mais grave do que esse. Fala-se muito em reconquistar a confiança dos mercados, mas o que irremediavelmente se destruiu na Europa foi a confiança dos cidadãos.

Sabemos hoje de ciência certa que a Alemanha, além de só cumprir os tratados e as leis da União Europeia quando lhe convém, tem ainda o poder de espezinhar as constituições dos estados-membros, de derrubar governos eleitos, de se sobrepor aos governos legítimos, de impor as políticas que mais lhe agradam, de forçar a ruptura dos contratos implícitos e explícitos entre os estados e os seus cidadãos. Como pode alguém confiar num parceiro assim?

A inocência, uma vez perdida, não se recupera. O idealismo não se fabrica. O sonho da cidadania europeia foi brutalmente aniquilado. A presunção de má-fé conduz inevitavelmente à desagregação. Liquidada a confiança nas elites europeias, está, de facto, bloqueado o caminho para o aprofundamento da união política.

Não se pode tomar banho duas vezes nas águas do mesmo rio, pois que o rio, entretanto, já não é o mesmo. O que se fez pode eventualmente ser desfeito, mas sempre deixará marcas. Espíritos obtusos, enfronhados no dogma, lentos a reagir, atolados na pasmaceira, adeptos de Parménides contra Heráclito, têm grande dificuldade em entender isto. "Verstehen sie mich wenn ich langsam spreche?"


João Pinto e Castro
“Jornal de Negócios”, 18 Junho 2012

[Director-geral da Ology e docente universitário]

VATICANO, DINHEIRO E NEGÓCIOS OBSCUROS

Como funciona o banco mais secreto do mundo




A polícia italiana interceptou o seguinte telefonema, em finais de 2008:

− [Diego Anemone] Don Eva, desculpe se o incomodo, mas estou aflito (…) Tem aí algum?
− [padre Evaldo Biasini] Dinheiro?
− [DA] Sim.
− [EB] Só tenho 10 aqui em Albano
− [DA] Ah, nada aqui?
− [EB] Em Roma poderei dar-te (…) Deixa ver


Quem estava a ser escutado era Diego Anemone, um empresário da construção civil, suspeito de envolvimento num esquema de corrupção. Biasini era o tesoureiro da Congregação dos Missionários do Preciosíssimo Sangue. Quando as autoridades fizeram buscas ao escritório do padre, descobriram documentos que revelavam um número surpreendente: 57. Biasini geria 57 contas; 13 delas abertas no Instituto para as Obras da Religião (IOR), o ultra-secreto braço financeiro da Santa Sé, também conhecido como Banco do Vaticano. Por essas 13 contas passaram milhões de euros que os investigadores acreditam ter sido usados para subornar altos funcionários italianos, incluindo membros do Governo, em troca da concessão de obras públicas. O processo judicial ainda decorre. O padre multibanco, como lhe chamam vários envolvidos no caso, não é acusado.

A trama funcionava de forma eficaz: vários “correios” do empresário entregavam envelopes cheios de dinheiro ao padre, sem papéis, recibos nem outros registos. Biasini depositava-os, em nome da sua congregação, numa conta do banco da Santa Sé. Também sem necessidade de qualquer justificação, uma vez que os depósitos feitos no Banco do Vaticano têm uma origem presumida: doações de fiéis. Dessa conta, o dinheiro era transferido para outras que o banco tem em várias instituições financeiras estrangeiras, muitas em Itália, onde poderia ser levantado normalmente pelas pessoas autorizadas pelo Vaticano.

Neste caso, as autoridades conseguiram apanhar o rasto a dois cheques debitados no banco Intesa Sanpaolo alegadamente destinados a Anemoni. Só em 2009, desta conta número 800 foram levantados mais de 139 milhões de euros em dinheiro – mais de meio milhão de euros por cada dia útil do ano. No âmbito deste processo, a Santa Sé justificou-se assim ao Banco Central Italiano: “Muitos movimentos envolvem levantamentos em dinheiro porque estão relacionados com países subdesenvolvidos onde as transacções em dinheiro (sempre com fins estritamente religiosos) estão largamente difundidas.”

Tal como este caso, dezenas de outros foram descobertos recentemente. Os últimos meses, particularmente, têm revelado vários padres apanhados a usar contas no Banco do Vaticano para depositar fundos de origem alegadamente duvidosa (tráfico de droga e outras operações mafiosas) e com fins ilegais (subornos, fuga fiscal, lavagem de dinheiro). Muitos tornaram-se conhecidos com a recente divulgação de documentos secretos e correspondência privada para Bento XVI – alguns começaram a aparecer na imprensa italiana em Janeiro, outros foram publicados no livro Sua Santitá, Le Carte Segrete di Benedetto XVI (‘Sua Santidade, as cartas secretas de Bento XVI’), que saiu no mês passado e rapidamente se tornou um sucesso de vendas.

Na sequência destas fugas de informação, no dia 23 de Maio a polícia encontrou centenas de documentos privados de Bento XVI em casa do seu mordomo. Paolo Gabriele está detido desde então. Segundo várias fontes eclesiásticas citadas pela imprensa italiana, por trás deste escândalo estará uma luta entre cardeais pela sucessão papal – e parece evidente que os documentos passados aos jornalistas visam debilitar o secretário de Estado e número dois de Ratzinger, Tarcisio Bertone.

Como quase todos os altos prelados da Santa Sé, Bertone tem, garantem várias fontes, conta pessoal no Banco do Vaticano. E é claro para os especialistas em assuntos religiosos que a falta de transparência do banco só permanece porque a Cúria (ou alguém lá bem colocado) quer. Em vários processos que chegaram a tribunal, os acusados (mafiosos, traficantes, políticos, empresários) que usaram contas no Banco do Vaticano para lavar fundos provenientes ou destinados a actividades ilegais revelaram o que ganha a igreja em ser conivente com estes crimes: muito dinheiro. Os religiosos envolvidos nos esquemas ficam com parte do montante branqueado, para si ou para as suas instituições.

“Não nos toca a nós investigar a origem do dinheiro”, afirmou em 2005 um bispo mexicano a propósito de um escândalo que ficou conhecido como “narcoesmolas”. “Não é por a origem do dinheiro ser má que o devemos queimar. Há é que transformá-lo em dinheiro bom (…). Já conheci casos em que se purificou”, declarou Ramón Godínez.



Matteo Messina Denaro


O mais recente escândalo envolve o chefe da Cosa Nostra. Em Maio, procuradores italianos da brigada antimáfia pediram ao Banco do Vaticano que revelasse detalhes da conta do padre Ninni Treppiedi, pároco de 36 anos que liderava a paróquia mais rica da Sicília. Além de várias transacções imobiliárias suspeitas, entre 2007 e 2009 a conta de D. Ninni movimentou quase 1 milhão de euros, que as autoridades acreditam corresponder ao branqueamento de dinheiro de Matteo Messina Denaro. O mafioso, com paradeiro desconhecido desde 1993, é um dos 10 criminosos mais procurados pelo FBI. As questões da polícia italiana (e os indícios apresentados) foram suficientes para que a Santa Sé suspendesse o padre e o bispo de quem ele dependia, mas não para que entregasse os registos bancários à Justiça.

O Banco do Vaticano é dos mais secretos e obscuros do mundo. Como pertence a uma cidade-Estado independente, não pode ser alvo de auditorias externas. E também não é auditado internamente. Os seus funcionários ou dirigentes não podem ser detidos nem sequer interrogados fora da Santa Sé. Os seus responsáveis já afirmaram em mais de uma ocasião que, de 10 em 10 anos, destroem todos os registos do banco. E nunca publicam os resultados anuais da instituição. Tudo o que se passa dentro do banco é oculto. Calcular, por exemplo, quanto será o seu activo é um mero exercício de adivinhação, mas alguns banqueiros internacionais fazem uma estimativa: 5 mil milhões de euros.

Quando entidades internacionais (normalmente italianas, as mais atentas às pouco claras transacções do Banco do Vaticano) desconfiam de que uma operação viola as normas antibranqueamento de capitais, só podem fazer uma coisa: enviar uma carta rogatória a pedir explicações sobre a origem, o destino e o titular do dinheiro transaccionado. Esses pedidos ficam invariavelmente sem resposta. O banco do Papa funciona como um autêntico offshore no coração de Itália – e da Europa.

O Instituto para as Obras da Religião (IOR) foi criado por Pio XII em 1942 para gerir o dinheiro da Igreja Católica numa altura em que a II Grande Guerra diminuía as garantias dadas pelos bancos europeus. O seu objectivo é guardar e administrar “bens que se destinam, pelo menos parcial ou futuramente, a obras religiosas”. De acordo com os seus estatutos, os depositantes podem ser “entidades e pessoas da Santa Sé e do Estado da Cidade do Vaticano”. Mas há excepções, garante o jornalista Gianluigi Nuzzi no livro Vaticano S.A.: basta ser suficientemente “bem relacionado com a nomenclatura do Vaticano” para conseguir abrir uma conta. E depois fazer uma de duas coisas: entregar um envelope fechado com um testamento que indique o destino religioso a dar ao dinheiro que estiver depositado no momento da morte do titular; ou aceitar que o banco fixe uma percentagem sobre os lucros que ficará reservada a obras de caridade.

Compensa: os juros concedidos são altíssimos, entre os 4 e os 12% líquidos, porque o banco não paga impostos; e há total discrição nas operações e até em relação a quem as faz. Muitas contas são absolutamente confidenciais, mesmo dentro da instituição: nos documentos internos têm apenas um número e nenhum nome associado. Nem o presidente consegue saber quem está por trás delas. Recentemente, o líder do banco, o italiano Gotti Tedeschi, amigo pessoal do Papa, exigiu saber os nomes de todos os depositantes misteriosos. Com isso, abriu uma guerra dentro da instituição e acabou demitido no fim de Maio, depois de apenas dois anos e meio em funções. Nos últimos meses, começou a recear ser assassinado e contratou segurança pessoal.


[in Revista SÁBADO, Nº 425]


No livro Vaticano S.A., editado em Portugal pela Presença, Gianluigi Nuzzi explica que as contas encriptadas começaram em 1987 com 001-3-14774-C, aberta com 494.400.000 liras (cerca de 500 euros nos dias de hoje) depositadas em dinheiro a uma taxa de juro de 9% ao ano. A operação foi feita pelo prelado do Instituto para as Obras da Religião (IOR), monsenhor Donato de Bonis, e a conta estava em nome da “Fondazione Cardinale Francis Spellman” – uma fundação que simplesmente não existia. Duas pessoas estavam autorizadas a movimentar o dinheiro: uma era De Bonis, a outra Giulio Andreotti, primeiro-ministro italiano. Cinco anos depois, a conta da fundação imaginária continha 26 biliões de liras (mais de 26 milhões de euros), carregadas para o banco pelo próprio prelado em malas cheias de notas. De uma só vez, chegou a ser depositado, em dinheiro vivo, o que hoje corresponde a mais de 500 mil euros.

Em 1994, o sistema de codificação interno avançou ainda mais: o titular da conta já era apenas referido como “Omissis”, termo que escondia a identidade de Andreotti; De Bonis tinha o nome de código “Roma”.

Durante a sua prelatura, De Bonis chegou mesmo a transferir o correspondente a milhares de euros de uma conta com o dinheiro que os fiéis doam para a celebração de missas santíssimas, para uma outra em nome de “IOR Beneficenza”, que o monsenhor movimentava, fazendo grandes levantamentos em dinheiro para uso próprio.

Chegando a operar sobre 17 contas, De Bonis criou o verdadeiro “paraíso fiscal” em que o banco se transformou até hoje, explica Gianluiggi Nuzzi, e onde “as somas entregues para beneficiência por católicos ricos são, por vezes, desviadas para contas pessoais”.

Nem sequer é certo que estas contas clandestinas entrem no balanço que todos os anos é feito, em Março, quando os lucros do banco são comunicados ao Papa, para que deles disponha como entender. O valor é um segredo guardado por um grupo muito restrito de pessoas dentro da Santa Sé e nunca foi oficialmente revelado. Mas havia um número impressionante no arquivo do monsenhor Renato Dardozzi, uma das figuras mais importantes da gestão financeira da Igreja até ao fim dos anos 90, ao qual Nuzzi teve acesso. Numa carta para João Paulo II, o então presidente do banco, Angelo Caloia, informava-o de quanto colocava à sua disposição nesse ano de 1994: 72,5 biliões de liras, cerca de 72 milhões de euros a preços de hoje.

Encostada ao palácio apostólico, com vista para a janela do quarto do Papa, a torre Nicolau V, que na Idade Média serviu de calabouços e hoje é a sede do banco, tem paredes que chegam aos nove metros de espessura e uma entrada sem qualquer identificação. Lá dentro, é necessário passar por um detector de metais e alguns degraus antes de chegar a um balcão semicircular, atrás do qual se sentam alguns dos cerca de 130 funcionários que tratam das mais de 40 mil contas abertas no banco.

Todos os depósitos são feitos por transferência, em dinheiro ou barras de ouro. Ao contrário do que normalmente acontece nos bancos, o do Vaticano não se preocupa com as disposições internacionais antibranqueamento de capitais que recomendam a investigação de qualquer transacção superior a 15 mil euros.

Como só tem um balcão, para fazer circular os seus fundos e conseguir estar presente em quase todo o mundo o banco acaba por abrir contas noutras instituições financeiras. É a partir dessas contas que pode realizar várias operações, já com cheques e cartões de débito. E sempre com o mesmo titular: o próprio Instituto para as Obras da Religião. Todas as transacções são, por isso, feitas em nome da Santa Sé, independentemente de quem seja o verdadeiro dono do dinheiro. Quando as polícias estrangeiras procuram saber quem são os titulares das contas, o Vaticano não responde. É por isso que a cidade-Estado não consta de nenhuma lista de países fiáveis no que toca à luta contra o branqueamento de capitais. E pela primeira vez, em Março deste ano, os Estados Unidos classificaram-na como “potencialmente vulnerável” à lavagem de dinheiro, no Relatório Anual de Estratégia de Controlo Internacional de Narcóticos.





Com o objectivo de limpar a imagem do seu banco (o Papa é o único dono da instituição), em Dezembro de 2010 Bento XVI emitiu uma norma para a prevenção e combate às actividades financeiras ilegais e criou a Autoridade de Informação Financeira (AIF) da Santa Sé, uma espécie de banco central, cujo papel é supervisionar as actividades do Instituto para as Obras da Religião e garantir a sua transparência. A nova lei entrou em vigor em Abril de 2011, mas em Janeiro deste ano uma outra norma, impulsionada pelo secretário de Estado Tarcisio Bertone, retirou os poderes de inspecção ao presidente da AIF, o cardeal Attilio Nicora, e atribuiu-os a si próprio.

Essa decisão, tal como os últimos escândalos, deverá ser fatal para o grande objectivo pessoal do Papa: colocar o Vaticano na lista de países que o Conselho da Europa considera de confiança a nível financeiro. O resultado da próxima avaliação será conhecido nos primeiros dias de Julho, mas ninguém acredita que seja positivo.

O facto de, em Março, um dos maiores bancos de investimento norte-americano ter simplesmente encerrado a conta que o Vaticano tinha aberto no seu balcão de Milão não deverá ajudar. O JP Morgan considerou sistematicamente insuficientes as explicações dadas sobre as elevadas e rapidíssimas transferências de dinheiro. No fim de cada dia útil, a conta da Santa Sé deveria ser esvaziada e o montante total transferido para a Alemanha. O que acontecia aí não se sabe. Mas sabe-se que, no ano e meio em que esteve operacional, passaram pela conta número 1365 de Milão 1,5 mil milhões de euros.

Mais difícil ainda de explicar é a ligação do Vaticano às Ilhas Caimão. Na estrutura da Igreja Católica, as ilhas sempre estiveram integradas na diocese de Kingston, a capital da vizinha Jamaica. Mas no ano 2000 isso mudou. O Vaticano decidiu isolar este reconhecido paraíso fiscal e decretá-lo missão sui iuris, ou seja, independente. As ilhas ficaram sob controlo directo da Santa Sé, respondendo exclusivamente a um cardeal: Adam Joseph Maida, um dos membros da Comissão de Supervisão do Banco do Vaticano.

Isabel Lacerda
‘Sábado’, Nº 425 – 21 a 27 de Junho de 2012, pp. 34-41.





As actividades da Santa Sé dão lucro – depois de três anos em prejuízo, em 2010 o Vaticano voltou a ter saldo positivo. (…) em 2010 o Vaticano teve um lucro de 9,9 milhões de euros. Dos fiéis de todo o mundo foram 53 milhões de euros. Com a venda dos bilhetes, a administração do Estado da Cidade do Vaticano arrecadou 21 milhões de euros. Valiosíssimas propriedades da Igreja são avaliadas pelo mesmo valor: 1 euro. Até a Basílica de São Pedro aparece a valer isso.

O que se sabe – Tem contas encriptadas com nomes de código ou apenas números. Oferece taxas de juro que podem ir até aos 12%. Permite transferências e levantamentos avultados sem levantar questões. Nunca é auditada interna ou externamente.

O que não se sabe – Como descobrir quem são os titulares das contas mais secretas. Que fim têm os milhões de euros que muitos religiosos levantam em dinheiro. Qual o seu activo ou o seu lucro anual. Porque destrói todos os registos de 10 em 10 anos. [Isabel Lacerda, ‘Sábado’, Nº 425 – 21 a 27 de Junho de 2012]

20 de junho de 2012

NEGOCIAR IMPLICA CONDIÇÕES





«Quando duas partes negoceiam, a interacção entre elas comporta um benefício mútuo em potência e uma dimensão de conflito. (...) Por isso, quando a negociação conduz a um acordo (...), consegue-se um benefício para ambos e resolve-se um potencial conflito. (...) Contudo, a negociação só faz sentido se ambas as partes tiverem algum poder para negociar. E o que é que determina esse poder? A resposta simples é: a disponibilidade para traçar "uma linha na areia" e a vontade resoluta de abandonar as negociações caso essa linha seja transposta. (...) Se uma das partes não conseguir definir de antemão as circunstâncias em que prefere rejeitar a oferta do outro, (...) as negociações são inúteis. O partido que não consegue imaginar-se a dizer "não", deve desistir da negociação e, simplesmente, optar por suplicar ao outro lado, apelando à sua bondade, generosidade e, em casos desesperados como o da Grécia, ao sentido de misericórdia.»

Excerto do texto que Yanis Varoufakis escreveu há três dias atrás e que estabelecia, de modo muito claro, o que esteve em jogo nas eleições gregas de ontem. A escolha entre um partido (
Syriza), que prometia negociar um novo quadro, radicalmente diferente, de condições de assistência financeira; e dois partidos (Nova Democracia e PASOK), para os quais qualquer simulacro de acordo com a troika seguramente servirá.

Justamente porque estes dois partidos (que, face aos resultados eleitorais obtidos, é quase certo acabarão por se coligar), sempre estiveram determinados «em não traçar nenhuma linha na areia», como bem sublinha Varoufakis. Isto é, distantes de qualquer espírito, genuíno e determinado, de negociação.

Circunscritos - por subserviente decisão própria - às míseras e ilusórias migalhas que a súplica lhes puder render.

Nuno Serra
18:VI:2012



QUE FEDERALISMO EUROPEU?


Uma saída federalista?





Os comentadores das televisões já não sabem o que dizer. A ajuda aos bancos espanhóis está decidida e, mesmo assim, os mercados financeiros estão a desfazer-se da dívida pública espanhola fazendo subir as taxas de juros implícitas para níveis históricos. Pior ainda, têm a dívida pública de Itália sob mira. Não é verdade que há poucas semanas se pretendia travar o contágio da crise às grandes economias europeias através de um Mecanismo Europeu de Estabilidade com uma grande dotação financeira? Admitia-se que a simples existência desse Mecanismo seria dissuasora da especulação dos mercados. Afinal não foi.

O que é que está a falhar? A resposta é simples: a UE está nas mãos dos mercados financeiros e estes ainda não estão convencidos da bondade das políticas. Repare-se que, no caso espanhol, os mercados estão a dizer que o resgate dos bancos significa um enorme acréscimo na dívida pública espanhola. Mais, num contexto de austeridade reforçada e sob tutela alemã, a recessão aprofundar-se-á. O crédito malparado vai crescer e só fará piorar a situação dos bancos. Ou seja, o montante necessário para evitar a falência dos bancos tenderá a subir. Por outro lado, a recessão também agrava o défice público cujo financiamento nos mercados, a taxas exorbitantes, vai desencadear um efeito bola de neve na dívida acumulada. A verdade é que a dívida pública espanhola é insustentável e por isso, mais adiante, virá um outro resgate para evitar a bancarrota do Estado Espanhol.

Admitindo que na Alemanha ainda há dinheiro e vontade política para liderar o financiamento de Espanha (bancos e Estado), e para dar continuidade ao financiamento da Irlanda e de Portugal, já a perspectiva de que a Itália vem a seguir faz do actual momento a hora da verdade da UE. Neste quadro, o resultado das eleições na Grécia será o detonador de uma sequência de decisões que serão tomadas à revelia dos cidadãos.

Muitos comentadores entendem que, perante o descalabro da zona euro e os prejuízos que teria de suportar, a Alemanha acabará por aceitar a mutualização da dívida pública do clube da moeda única contra a imposição de um controlo férreo das políticas económicas. Porém, esta solução não é tão simples como a têm apresentado à opinião pública. Há duas opções: 1) mutualizam-se as dívidas até 60% do PIB dos respectivos países, mas nesse caso a dívida restante, a cargo dos países em dificuldade, é dificilmente sustentável num clima de permanente austeridade; 2) mutualizam-se as dívidas acima de 60% do PIB dos respectivos países, o que elimina as dificuldades do presente mas cria um modelo que incentiva o desleixo orçamental.

Uma vez tomada a decisão, o recurso à mutualização da dívida poria termo, pelo menos no imediato, à pressão dos mercados financeiros sobre os países em dificuldades. Mas aqui surge uma outra dificuldade. Anular a pressão dos mercados financeiros desagrada profundamente à Alemanha. Sabendo que a eficácia das regras de contenção orçamental seria sempre baixa, a Alemanha apenas abdicou da sua moeda na condição de a Europa se integrar plenamente nos mercados financeiros mundiais.

Seriam estes a impor a normalização das políticas económicas nacionais como hoje o vemos com clareza. Por isso, se vier a aceitar as euro-obrigações, a Alemanha exigirá um controlo total da política económica dos restantes países que, em situações de crise, se tornará num verdadeiro protectorado. Há quem chame a isto federalismo orçamental, mais um passo para um federalismo europeu sem nação, sem Estado, sem escolha dos cidadãos.

 Era bom que alguém explicasse isto aos portugueses.

Jorge Bateira, economista.