Como funciona o banco
mais secreto do mundo
A polícia italiana
interceptou o seguinte telefonema, em finais de 2008:
− [Diego Anemone] Don Eva,
desculpe se o incomodo, mas estou aflito (…) Tem aí algum?
− [padre Evaldo
Biasini] Dinheiro?
− [DA] Sim.
− [EB] Só tenho 10 aqui
em Albano…
− [DA] Ah, nada aqui?
− [EB] Em Roma poderei
dar-te (…) Deixa ver…
Quem estava a ser
escutado era Diego Anemone, um empresário da construção civil, suspeito de
envolvimento num esquema de corrupção. Biasini era o tesoureiro da Congregação dos Missionários do Preciosíssimo Sangue.
Quando as autoridades fizeram buscas ao escritório do padre, descobriram
documentos que revelavam um número surpreendente: 57. Biasini
geria 57 contas; 13 delas abertas no Instituto para as Obras da Religião (IOR),
o ultra-secreto braço financeiro da Santa Sé, também conhecido como Banco do
Vaticano. Por essas 13 contas passaram milhões de euros que os
investigadores acreditam ter sido usados para subornar altos funcionários
italianos, incluindo membros do Governo, em troca da concessão de obras
públicas. O processo judicial ainda decorre. O padre multibanco, como lhe
chamam vários envolvidos no caso, não é acusado.
A trama funcionava
de forma eficaz: vários “correios” do empresário entregavam envelopes cheios de
dinheiro ao padre, sem papéis, recibos nem outros registos. Biasini
depositava-os, em nome da sua congregação, numa conta do banco da
Santa Sé. Também sem necessidade de qualquer justificação, uma vez que os
depósitos feitos no Banco do Vaticano têm uma origem
presumida: doações de fiéis. Dessa conta, o dinheiro era
transferido para outras que o banco tem em várias instituições financeiras
estrangeiras, muitas em Itália, onde poderia ser levantado normalmente pelas
pessoas autorizadas pelo Vaticano.
Neste caso, as
autoridades conseguiram apanhar o rasto a dois cheques debitados no banco Intesa
Sanpaolo alegadamente destinados a Anemoni. Só em 2009, desta conta número
800 foram levantados mais
de 139 milhões de euros em dinheiro – mais de meio milhão de euros
por cada dia útil do ano. No âmbito deste processo, a Santa Sé justificou-se assim
ao Banco Central Italiano: “Muitos movimentos envolvem levantamentos em dinheiro
porque estão relacionados com países subdesenvolvidos onde as transacções em
dinheiro (sempre com fins estritamente religiosos) estão largamente
difundidas.”
Tal como este caso,
dezenas de outros foram descobertos recentemente. Os últimos meses,
particularmente, têm revelado vários padres apanhados a usar contas no Banco do
Vaticano para depositar fundos de origem alegadamente duvidosa (tráfico de
droga e outras operações mafiosas) e com fins ilegais (subornos, fuga fiscal,
lavagem de dinheiro). Muitos tornaram-se conhecidos com a recente divulgação de
documentos secretos e correspondência privada para Bento XVI – alguns começaram
a aparecer na imprensa italiana em Janeiro, outros foram publicados no livro Sua Santitá, Le
Carte Segrete di Benedetto XVI (‘Sua Santidade, as cartas secretas de Bento
XVI’), que saiu no mês passado e rapidamente se tornou um sucesso de
vendas.
Na sequência destas
fugas de informação, no dia 23 de Maio a polícia encontrou centenas de
documentos privados de Bento XVI em casa do seu mordomo. Paolo Gabriele está detido desde então. Segundo
várias fontes eclesiásticas citadas pela imprensa italiana, por trás deste
escândalo estará uma luta entre cardeais pela sucessão papal – e parece
evidente que os documentos passados aos jornalistas visam debilitar o
secretário de Estado e número dois de Ratzinger,
Tarcisio Bertone.
Como quase todos os
altos prelados da Santa Sé, Bertone tem,
garantem várias fontes, conta pessoal no
Banco do Vaticano. E é claro para os especialistas em assuntos
religiosos que a falta de transparência do banco só permanece porque a Cúria
(ou alguém lá bem colocado) quer. Em vários processos que chegaram a tribunal,
os acusados (mafiosos, traficantes, políticos,
empresários) que usaram contas
no Banco do Vaticano para lavar fundos provenientes ou destinados a
actividades ilegais revelaram o que
ganha a igreja em ser conivente com estes crimes: muito dinheiro. Os religiosos
envolvidos nos esquemas ficam com parte do montante branqueado, para si ou para
as suas instituições.
“Não nos toca a nós investigar a origem
do dinheiro”, afirmou em 2005 um
bispo mexicano a propósito de um escândalo que ficou conhecido como “narcoesmolas”.
“Não é por a origem do dinheiro ser má que o devemos queimar. Há é que
transformá-lo em dinheiro bom (…). Já conheci casos em que se purificou”, declarou Ramón
Godínez.
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Matteo Messina Denaro |
O mais recente
escândalo envolve o chefe da Cosa Nostra.
Em Maio, procuradores italianos da brigada antimáfia pediram ao Banco do
Vaticano que revelasse detalhes da conta do padre Ninni Treppiedi, pároco de
36 anos que liderava a paróquia mais rica da
Sicília. Além de várias transacções imobiliárias suspeitas, entre 2007 e
2009 a conta de D. Ninni movimentou quase 1 milhão de euros, que as autoridades
acreditam corresponder ao branqueamento
de dinheiro de Matteo Messina Denaro. O mafioso, com paradeiro
desconhecido desde 1993, é um dos 10 criminosos mais procurados pelo FBI. As
questões da polícia italiana (e os indícios apresentados) foram suficientes
para que a
Santa Sé suspendesse o padre e o bispo de quem ele dependia, mas não
para que entregasse
os registos bancários à Justiça.
O Banco do Vaticano é dos mais
secretos e obscuros do mundo. Como pertence a uma cidade-Estado independente, não pode ser
alvo de auditorias externas. E também não é auditado internamente.
Os seus funcionários ou dirigentes não podem ser detidos nem sequer
interrogados fora da Santa Sé. Os seus responsáveis já afirmaram em mais de uma
ocasião que, de
10 em 10 anos, destroem todos os registos do banco. E nunca publicam os
resultados anuais da instituição. Tudo o que se passa dentro do
banco é oculto. Calcular, por exemplo, quanto será o seu activo é um mero
exercício de adivinhação, mas alguns banqueiros internacionais fazem uma
estimativa: 5 mil milhões de euros.
Quando entidades
internacionais (normalmente italianas, as mais atentas às pouco claras
transacções do Banco do Vaticano) desconfiam de que uma operação viola as
normas antibranqueamento de capitais, só podem fazer uma coisa: enviar uma
carta rogatória a pedir explicações sobre a origem, o destino e o titular do
dinheiro transaccionado. Esses pedidos ficam invariavelmente sem resposta. O
banco do Papa funciona como um autêntico offshore no coração de Itália – e da
Europa.
O Instituto para as
Obras da Religião (IOR) foi criado por Pio XII em 1942 para gerir o dinheiro da
Igreja Católica numa altura em que a II Grande Guerra diminuía as garantias
dadas pelos bancos europeus. O seu objectivo é guardar e administrar “bens que
se destinam, pelo menos parcial ou futuramente, a obras religiosas”. De acordo
com os seus estatutos, os depositantes podem ser “entidades e pessoas da Santa
Sé e do Estado da Cidade do Vaticano”. Mas há excepções, garante o jornalista Gianluigi Nuzzi no livro Vaticano S.A.:
basta ser suficientemente “bem relacionado com a nomenclatura do Vaticano” para
conseguir abrir uma conta. E depois fazer uma de duas coisas: entregar um
envelope fechado com um testamento que indique o destino religioso a dar ao
dinheiro que estiver depositado no momento da morte do titular; ou aceitar que
o banco fixe uma percentagem sobre os lucros que ficará reservada a obras de
caridade.
Compensa: os juros concedidos são altíssimos, entre os 4 e os 12% líquidos, porque o
banco não paga impostos; e há total
discrição nas operações e até em relação a quem as faz. Muitas contas são
absolutamente confidenciais, mesmo dentro da instituição: nos documentos
internos têm apenas um número e nenhum nome associado. Nem o presidente
consegue saber quem está por trás delas. Recentemente, o líder do banco, o italiano Gotti Tedeschi, amigo pessoal
do Papa, exigiu saber os nomes de todos os depositantes misteriosos.
Com isso, abriu uma guerra dentro da instituição e acabou demitido no fim de
Maio, depois de apenas dois anos e meio em funções. Nos últimos meses, começou a
recear ser assassinado e contratou segurança pessoal.
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[in Revista SÁBADO, Nº 425] |
No livro Vaticano S.A., editado em Portugal pela Presença, Gianluigi Nuzzi explica que as contas encriptadas começaram em 1987
com 001-3-14774-C, aberta com 494.400.000 liras (cerca de 500 euros nos dias de
hoje) depositadas em dinheiro a uma taxa de juro de 9% ao ano. A operação foi
feita pelo prelado do Instituto para as Obras da Religião (IOR), monsenhor
Donato de Bonis, e a conta estava em nome da “Fondazione Cardinale
Francis Spellman” – uma fundação que simplesmente não existia. Duas pessoas
estavam autorizadas a movimentar o dinheiro: uma era De Bonis, a outra Giulio
Andreotti, primeiro-ministro italiano. Cinco anos depois, a conta da
fundação imaginária continha 26 biliões de
liras (mais de 26 milhões de euros), carregadas para o banco pelo
próprio prelado em malas cheias de notas. De uma só vez, chegou a ser depositado,
em dinheiro vivo, o que hoje corresponde a mais de 500 mil euros.
Em 1994, o sistema
de codificação interno avançou ainda mais: o titular da conta já era apenas
referido como “Omissis”,
termo que escondia a identidade de Andreotti; De Bonis tinha o nome de código “Roma”.
Durante a sua
prelatura, De Bonis chegou mesmo a transferir o correspondente a milhares de
euros de uma conta com o dinheiro que os fiéis doam para a celebração de missas
santíssimas, para uma outra em nome de “IOR
Beneficenza”, que o monsenhor movimentava, fazendo grandes
levantamentos em dinheiro para uso próprio.
Chegando a operar
sobre 17 contas, De Bonis criou o verdadeiro “paraíso
fiscal” em que o banco se transformou até hoje, explica Gianluiggi
Nuzzi, e onde “as somas entregues para beneficiência por católicos ricos são,
por vezes, desviadas para contas pessoais”.
Nem sequer é certo
que estas contas clandestinas entrem no balanço que todos os anos é feito, em
Março, quando os lucros do banco são comunicados ao Papa, para que deles
disponha como entender. O valor é um segredo guardado por um grupo
muito restrito de pessoas dentro da Santa Sé e nunca foi oficialmente revelado.
Mas havia um número impressionante no arquivo do monsenhor Renato Dardozzi, uma
das figuras mais importantes da gestão financeira da Igreja até ao fim dos anos
90, ao qual Nuzzi teve acesso. Numa carta para João Paulo II, o então
presidente do banco, Angelo Caloia, informava-o de quanto colocava
à sua disposição nesse ano de 1994: 72,5 biliões de liras, cerca de 72 milhões de
euros a preços de hoje.
Encostada ao
palácio apostólico, com vista para a janela do quarto do Papa, a torre Nicolau
V, que na Idade Média serviu de calabouços e hoje é a sede do banco,
tem paredes que chegam aos nove metros de espessura e uma entrada sem qualquer
identificação. Lá dentro, é necessário passar por um detector de metais e
alguns degraus antes de chegar a um balcão semicircular, atrás do qual se
sentam alguns dos cerca de 130 funcionários que tratam das mais de 40 mil
contas abertas no banco.
Todos os depósitos
são feitos por transferência, em dinheiro ou barras de ouro. Ao contrário do
que normalmente acontece nos bancos, o do Vaticano não se preocupa com as
disposições internacionais antibranqueamento de capitais que recomendam a
investigação de qualquer transacção superior a 15 mil euros.
Como só tem um
balcão, para fazer circular os seus fundos e conseguir estar presente em quase
todo o mundo o banco acaba por abrir contas noutras instituições financeiras. É
a partir dessas contas que pode realizar várias operações, já com cheques e
cartões de débito. E sempre com o mesmo titular: o próprio Instituto para as
Obras da Religião. Todas as transacções
são, por isso, feitas em nome da Santa Sé,
independentemente de quem seja o verdadeiro dono do dinheiro. Quando
as polícias estrangeiras procuram saber quem são os titulares das contas, o
Vaticano não responde. É por isso que a cidade-Estado não consta de nenhuma
lista de países fiáveis no que toca à luta contra o branqueamento de capitais.
E pela primeira vez, em Março deste ano, os Estados Unidos classificaram-na
como “potencialmente
vulnerável” à lavagem de dinheiro, no Relatório Anual de Estratégia
de Controlo Internacional de Narcóticos.
Com o objectivo de limpar
a imagem do seu banco (o Papa é o único dono da instituição), em Dezembro de
2010 Bento XVI emitiu uma norma para a prevenção e combate às actividades
financeiras ilegais e criou a Autoridade de Informação Financeira (AIF) da
Santa Sé, uma espécie de banco central, cujo papel é supervisionar as
actividades do Instituto para as Obras da Religião e garantir a sua
transparência. A nova lei entrou em vigor em Abril de 2011, mas em Janeiro deste
ano uma outra norma, impulsionada pelo secretário de Estado Tarcisio
Bertone, retirou os poderes de inspecção ao presidente da AIF, o cardeal
Attilio Nicora, e atribuiu-os a si próprio.
Essa decisão, tal
como os últimos escândalos, deverá ser fatal para o grande objectivo pessoal do
Papa: colocar o Vaticano na lista de países que o Conselho da Europa considera
de confiança a nível financeiro. O resultado da próxima avaliação será
conhecido nos primeiros dias de Julho, mas ninguém acredita que seja positivo.
O facto de, em
Março, um dos maiores bancos de investimento norte-americano ter simplesmente
encerrado a conta que o Vaticano tinha aberto no seu balcão de Milão não deverá
ajudar. O JP Morgan considerou
sistematicamente insuficientes as explicações dadas sobre as elevadas e
rapidíssimas transferências de dinheiro. No fim de cada dia útil, a
conta da Santa Sé deveria ser esvaziada e o montante total transferido para a
Alemanha. O que acontecia aí não se sabe. Mas sabe-se que, no ano e meio em que esteve
operacional, passaram pela conta número 1365 de Milão 1,5 mil milhões de
euros.
Mais difícil ainda
de explicar é a ligação do Vaticano às Ilhas Caimão. Na estrutura da Igreja Católica,
as ilhas sempre estiveram integradas na diocese de Kingston, a capital da
vizinha Jamaica. Mas no ano 2000 isso mudou. O Vaticano decidiu isolar este
reconhecido paraíso fiscal e decretá-lo missão sui iuris, ou seja, independente.
As ilhas ficaram sob controlo directo da Santa Sé, respondendo exclusivamente a
um cardeal: Adam
Joseph Maida, um dos membros da Comissão de Supervisão do Banco do
Vaticano.
Isabel Lacerda
‘Sábado’,
Nº 425 – 21 a 27 de Junho de 2012, pp. 34-41.
As actividades da
Santa Sé dão lucro – depois de três anos em prejuízo,
em 2010 o Vaticano voltou a ter saldo positivo. (…) em 2010 o Vaticano teve um lucro de 9,9
milhões de euros. Dos fiéis de todo o mundo foram 53 milhões
de euros. Com a venda
dos bilhetes, a administração do Estado da Cidade do Vaticano arrecadou
21 milhões
de euros. Valiosíssimas propriedades da Igreja são avaliadas pelo mesmo valor: 1 euro.
Até a Basílica de São Pedro aparece a valer isso.
O que se sabe – Tem contas
encriptadas com nomes de código ou apenas números. Oferece taxas de juro que podem ir até aos 12%.
Permite transferências e levantamentos avultados sem levantar questões. Nunca é
auditada interna ou externamente.
O que não se sabe
– Como descobrir quem são os titulares das contas mais secretas. Que fim têm
os milhões de euros que muitos religiosos levantam em dinheiro. Qual o seu
activo ou o seu lucro anual. Porque destrói todos os registos de 10 em 10 anos. [Isabel
Lacerda, ‘Sábado’, Nº 425 – 21 a 27 de Junho de 2012]