Reino de Judá no séc. IX a.e.c. (in Francisco Martins©)
O IMPÉRIO NEOASSÍRIO
“Ao longo deste
capítulo e também já em capítulos anteriores, referimo-nos repetidas vezes ao
império assírio ou neo-assírio. Sem outra pretensão que a de ajudar o leitor a
contextualizar estas referências, oferece-se aqui uma breve síntese histórica
da ascensão e queda daquele que é frequentemente considerado o primeiro império
mundial da História.
No século XIV a.e.c., a
cidade-estado de Assur, que já tinha
então uma longa História (remontava à primeira
metade do terceiro milénio a.e.c.), conseguiu impor-se como a
capital de um vasto território que chegou a incluir a Babilónia, ao sul. Dois
séculos depois, contudo, esta primeira tentativa de expansão territorial e
domínio imperial (o império médio-assírio) tinha colapsado. A partir do reinado
de Adad-Narari II (c. 912-891), começa um lento processo de ressurgimento que
inclui a recuperação de territórios perdidos e a conquista de novas terras. Com
Assurnasirpal II (c. 884-859 a.e.c.) e o seu filho Salmanasar III (c. 859-824
a.e.c.), a Assíria torna-se outra vez uma superpotência político-militar. O
verdadeiro apogeu imperial, todavia, só começa a vislumbrar-se com
Tiglat-Falasar III (c. 745-727 a.e.c.); na prática, manifesta-se plenamente nos
reinados de Sargão II (c. 722-705 a.e.c.) e Senaqueribe
(c. 705-681 a.e.c.). Deste zénite até ao colapso e queda definitivos foram
precisas apenas poucas décadas: Assurbanipal (c. 669-631 a.e.c.) é comumente
considerado o último grande rei do império, ainda que a então capital, Nínive, só tenha sido capturada e destruída em 612 a.e.c.
Como já se disse no
capítulo IV (de «A Bíblia tinha mesmo razão?» por Francisco Martins, Temas
& Debates 2023) o império neo-assírio foi capaz de impor a sua hegemonia em
grande parte graças a uma impressionante máquina
de guerra. O exército assírio foi o primeiro exército regular
(”profissional”) da História e o paradigma de uma nova forma de combater. Os
Assírios foram ainda os primeiros a usar armas de ferro, que eram superiores em
qualidade e resistência às armas de bronze utilizadas pelos seus inimigos. Desenvolveram
igualmente novos engenhos, armas e técnicas de cerco, que lhes permitiram
“semear o terror” e forçar a rendição das cidades sitiadas ou, em caso de
necessidade, submetê-las pela força. Finalmente, os reis e oficiais assírios
recorriam também frequentemente a técnicas de guerra psicológica, a mais eficaz
das quais a ameaça, frequentemente concretizada, de deportações
em massa.
À incomparável
supremacia militar juntava-se uma agressiva
ideologia da conquista mundial. O rei assírio gozava, de acordo com
a ideologia oficial, de um poder absoluto,
que lhe tinha sido confiado pela divindade tutelar do império, o deus Assur.
Por esta razão, cabia-lhe, entre outras coisas, trazer ordem e “paz” ao caos
que reinava fora do coração do império, o território à volta da cidade de
Assur. A conquista dos territórios estrangeiros e a sua anexação eram, por
isso, um imperativo “civilizador” de origem
divina, ao serviço do qual o exército assírio podia cometer todo o
género de atrocidades.”
In Francisco
Martins, «A Bíblia tinha mesmo razão?», Ed. Temas & Debates 2023, 243-244
©
DO DEUS «UNO» AO DEUS «ÚNICO»
As origens do
monoteísmo bíblico no começo da “Época Persa”
1.DA MORTE DE JOSIAS À DESTRUIÇÃO DE JERUSALÉM
Após a morte de Josias no ano de 609
a.e.c., os babilónios tomam rapidamente controlo do Próximo Oriente, ao mesmo
tempo que os egípcios lhes procuram fazer frente. O rei que sucedeu a Josias,
seu filho Joacaz, acaba destituído pelo faraó Necao. Necao substitui Joacaz
pelo seu irmão Eliaquim e
muda-lhe o nome próprio para Joaquim
(609-598), nome yahvista (que
quer dizer «Yhwh seja erguido ao alto»). Tal mudança de nome leva a supor que o
faraó reconhece Yhwh como o deus nacional de Judá. Mais tarde, Joaquim
converte-se em vassalo de Nabucodonosor II no ano de 605 a.e.c., quando este
vence o exército egípcio em Carquemis. O rei babilónio, que nesse momento controla a Síria-Palestina, mantém
Joaquim no seu cargo, provavelmente para que, pelo menos, em Judá esteja
garantida a estabilidade política. Tudo leva a crer que, durante algum tempo,
Joaquim foi leal a Nabucodonosor (cf. a História de Daniel em Dn 1,1-21). Porém, no ano de 601 a.e.c., este último sai derrotado numa campanha
contra o Egipto, razão porque Joaquim se vê forçado a pedir o apoio do Egipto.
Sem pestanejar, a Babilónia avança sobre Joaquim e assegura-lhe a vitória sobre
os egípcios. Segundo a descrição que consta do segundo livro dos Reis, «O rei
do Egipto nunca mais saiu fora do seu país, porque o rei da Babilónia se
apoderara de todas as possessões do rei do Egipto, desde a torrente do Egipto
até ao Eufrates.» (2 Reis 24,7). Nabucodonosor sitia Jerusalém para punir
Joaquim, mas Joaquim morre durante o cerco. Seu filho Jeconias, que reinou
apenas três meses, submete-se em 597 a.e.c. e assim evita a destruição de
Jerusalém. Mesmo assim, os babilónios decidem-se por uma deportação em larga
escala de toda a cidade de Jerusalém. O rei é desterrado conjuntamente com a
elite da corte: altos funcionários, clero e
artesãos. Esta primeira deportação foi a mais importante. Os babilónios
designam Sedecias (Matanias?[1]),
outro filho de Josias e tio do rei exilado. Manteve o título de rei ou foi
considerado um governador? Os escritores do livro de Ezequiel parecem ver em Joaquim
aquele que foi o último rei legítimo.
Durante o reinado de Sedecias (597-586), uma revolta na Babilónia e outros problemas diminuíram a
presença babilónica no Oriente Próximo. O rei egípcio Psaméticho II (595-589; filho de Necao II)
provavelmente encorajou uma rebelião na qual Sedecias participou. O livro de Jeremias,37-43 narra os últimos dias de Jerusalém, e
apresenta uma fação anti-babilónica na corte de Jerusalém, enquanto o profeta
prega a submissão aos babilónios, o que lhe vale o epíteto de traidor. Sedecias
parece hesitante [Jr 38,19: «O rei Sedecias disse a Jeremias: “Tenho
medo dos judeus que se passaram para o lado dos caldeus; temo que me entreguem
nas mãos deles e me maltratem.”»], mas no final está ao lado daqueles que
defendem a revolta, o que provoca uma reação imediata dos babilónios e a
destruição do templo, da cidade e dos muros de Jerusalém em 587 a.e.c..
Jerusalém não é a única cidade destruída, já que os babilónios arrasam outros
centros judaicos. Em consequência destes acontecimentos, ocorre uma segunda
deportação. Os babilónios ergueram a pequena cidade de Mispá como o novo centro administrativo no território de Benjamim, muito menos
destruído do que o de Judá, e aí instalaram
como governador Godolias, membro da família Safânida (neto de Shaphan).
A situação demográfica em Judá é de
difícil avaliação. De acordo com Oded Lipschits, a população baixa de cerca de
100 mil a 40 mil habitantes devido a mortes, deportações e movimentos de fuga,
enquanto Benjamin parece menos afetado[2].
Não sabemos se os babilónios deram um nome específico ao antigo reino de Judá.
É claro que uma parte de Judá, especialmente o Sul, foi invadida por tribos Árabes
e edomitas. O governador Godolias foi assassinado muito cedo por um partido anti-babilónico
e, em represália, os babilónios organizaram uma terceira deportação no ano 582.
Os textos bíblicos que relatam estes últimos dias de Judá, a saber, 2 Re 24‒25 e Jr 37‒44 e 52, não coincidem quanto à dimensão
das deportações.
2Reis 24−25: número de
deportados
597 a.e.c. cap.24,14: 10 mil cap.24,16: 8 mil
587 a.e.c. «o resto da população»
582 a.e.c. ?
Jeremias 52: número de
deportados
597 a.e.c. cap.52,28: 3.023 deportados
587 a.e.c. cap.52,29: 832 deportados
582 a.e.c. cap.52,30: 745 deportados
Os números no final do livro de
Jeremias parecem mais precisos do que os dos capítulos 24-25 do segundo livro
de Reis, mas são bastante baixos, o que não corresponde ao aparente declínio da
taxa populacional em Judá. Uma possível explicação para a diferença entre o
segundo livro dos Reis e o de Jeremias seria considerar que os números dados
por este último dizem respeito apenas aos chefes de família. Se forem
multiplicados por 5 ou 6, chegamos a valores comparáveis aos números redondos
de 2 Reis 24 no que diz respeito à primeira deportação.
Embora alguns textos bíblicos dêem a
impressão de que o país estava vazio durante o chamado período de exílio babilónico[3],
a vida continuou em Judá e especialmente em Benjamim. A importância de Benjamim
e Mispá pode ter levado ao renascimento de
algumas tradições relativas a Saúl, um nativo de Benjamim, que alguns gostariam de favorecer em detrimento da
continuidade da linha davídica[4].
Sabemos muito pouco sobre a vida das pessoas que ficaram no país. As fontes
babilónicas não falam sobre isso. É plausível
que os babilónios tenham nomeado outro governador após o assassinato de Godolias.
Quanto aos textos bíblicos (com algumas exceções), quando narram o essencial
fazem-no a partir da perspetiva dos exilados na Babilónia[5],
a elite, que se considerava o "verdadeiro Israel". Assim,
especialmente no Livro de Ezequiel, encontramos polémicas virulentas
contra aqueles que permaneceram na terra, que são considerados como tendo sido
‘rejeitados’ por Yhwh: segundo os editores do
livro, Yhwh deixara o seu país para acompanhar os exilados na Babilónia.
Ao contrário dos assírios, os babilónios permitiram que os exilados se
reagrupassem de acordo com a sua origem. É certo que altos funcionários também
foram empregados em tarefas administrativas. Os textos bíblicos mencionam uma
série de lugares habitados por deportados de Judá: Tel Aviv, às margens do
Chebar (Ez 3,15), provavelmente no centro da Babilónia, não muito longe de
Nipur; Tel Meiach, Tel Jarsa, Querubim-Adam e Imer (Esdras 2,59); Kasifyah
(Esdras 8,17). Fora destes textos e infelizmente para nós, estes topónimos são
desconhecidos. Flávio Josefo evoca a cidade de Nearda[6]
(também atestada no Talmud), ou seja, Tel Nihar, situada na margem esquerda do Eufrates, ao norte de Sippar, sede de uma
famosa academia no século III da era cristã. Uma tabuleta cuneiforme babilónica
da coleção Moussaieff (se autêntica[7]),
datada do início do período persa, contém um contrato para a venda de animais
no qual pessoas com nomes Yahwistas são citadas. Além disso, este contrato
teria sido celebrado em uma cidade chamada "Ai-Yahûdû" ("a
[nova] Judá") "no 24º ano de Dario, rei da Babilónia, rei das terras[8]".
Este nome corresponde ao que surge numa crónica babilónica para designar
Jerusalém. Trata-se, portanto, de uma "nova Jerusalém" fundada pelos
exilados de Judá na Babilónia, cuja identificação ainda não é possível, mas que
mostra a importância e a folga financeira e económica da Golah[9]
babilónica.
2.CRISE IDEOLÓGICA E LITERATURA DE CRISE
Os acontecimentos dos anos 597 e
587/586 a.e.c. produziram, sem dúvida alguma, uma
enorme crise de identidade colectiva da Judeia. Dada a importância
das destruições e das movimentações de população, esta crise foi bem real. Isso
não significa que a destruição de Jerusalém não tenha afetado mais as elites
deportadas do que as populações rurais e pobres que permaneceram no país[10].
As elites, e especialmente os oficiais reais[11],
tinham sido afastados da fonte do seu poder. De um modo mais geral, após os
acontecimentos de 597/587, os pilares tradicionais que sustentavam a coerência
ideológica e política de um Estado monárquico no Médio Oriente desmoronaram-se.
O rei tinha sido deportado, o templo tinha sido destruído e a integridade
geográfica de Judá tinha sido pulverizada por deportações e emigrações
voluntárias.
Era inteiramente lógico que se explicasse
a nova situação como resultado de uma vitória dos deuses babilónicos, mais
poderosos, sobre a divindade nacional, Yhwh, que assim saíra derrotada; ou,
então, explicar a situação lançando mão da seguinte narrativa: tudo o que
aconteceu foi fruto de Yhwh ter abandonado o seu povo!
Dentro da aristocracia, diferentes
grupos tentaram superar a crise elaborando ideologias que deram sentido à queda
de Judá. Podemos apresentá-los de acordo com um modelo proposto por Armin
Steil. Este sociólogo, influenciado por Max Weber, analisou as crises
semânticas ligadas à Revolução Francesa[12].
No entanto, o seu modelo também pode ser aplicado às reações diante da queda de
Jerusalém que encontramos na Bíblia Hebraica. Steil
distingue três tipos de atitude perante uma crise: a do profeta,
a do sacerdote e a do mandarim. A
atitude profética procura ver, na crise, o início de uma nova era; os
seus defensores são gente marginal, porém, capaz de comunicar as suas
convicções. A postura dos representantes conservadores das estruturas sociais desmoronadas
corresponde à atitude sacerdotal,
cuja forma de superar a crise é apelar às origens sagradas da sociedade, origens
por Deus concedidas, e ignorar a nova realidade acabada de chegar. Quanto à
postura dos mandarins, ela exprime a
opção predileta dos altos funcionários que procuram compreender a nova situação
bem como a forma de se adaptarem a ela de modo a poderem conservar os seus
velhos privilégios. Os «mandarins» procuram explicações para o ocorrido num
sistema histórico que lhes dê as razões que estão por trás do desmoronamento
das antigas estruturas sociais. Podemos resumir as três atitudes no Quadro
seguinte:
Três tipos de atitude perante uma crise
Estas três atitudes estão presentes
na Bíblia hebraica e nas interpretações que ela oferece para a destruição de
Jerusalém. Costuma-se afirmar que essas reações passaram a escrito durante o
período chamado de exílio (587-539[13]).
Talvez seja mais lógico pensar que esses textos datam da Era Persa, quando as
condições socioeconómicas eram mais estáveis.
Em 539 a.e.c., Ciro II (559-529),
apoiado pelo clero de Marduk (o principal deus do panteão babilónico) e
insatisfeito com a política religiosa de Nabonido, conquistou a Babilónia e ampliou seu império, que se caracterizou por
uma certa tolerância para com as populações submetidas. Os exilados são
autorizados a regressar ao seu país, bem como a restaurar e praticar cultos
locais. Um número significativo de textos bíblicos, tentando explicar a
destruição de Jerusalém e o papel de Yhwh nesta catástrofe, provavelmente viram
a luz do dia entre os intelectuais judeus da "golah" babilónica.
Extensão geográfica do Império Persa
3.«A HISTÓRIA DEUTERONOMISTA»: O CAMINHO QUE LEVARÁ AO
MONOTEÍSMO
O equivalente bíblico da postura
«mandarim» ‒ perante a crise ‒ é a “Escola Deuteronomista”. Os seus
membros são descendentes dos escribas e de outros funcionários da corte de
Judá, cujos antecessores acompanharam ou mesmo realizaram a reforma de Josias. Trata-se
de um grupo fanático que está obcecado com o fim da monarquia e com a
deportação das elites de Judá, que tenta explicar o exílio construindo uma
história de Yhwh e do seu povo desde os primórdios, sob Moisés, até à
destruição de Jerusalém e à deportação da aristocracia: é a história que a
Bíblia Hebraica narra desde o Livro do Deuteronómio até ao segundo livro dos
Reis[14].
Para isso, os deuteronomistas
reelaboram os antigos pergaminhos da era assíria e, assim, constroem uma
história coerente, dividida em diferentes períodos (Moisés, a conquista do país
sob Josué, o tempo dos Juízes ‒ líderes carismáticos anteriores à
realeza ‒ o advento da monarquia, o tempo dos dois reinos, a história
de Judá desde a queda de Samaria até à queda de Jerusalém). Trata-se de
apresentar todos os acontecimentos negativos ‒ a divisão da realeza em dois reinos,
Judá e Israel, ou as invasões assírias e babilónicas ‒ como consequências “lógicas” da desobediência do povo e dos
seus líderes à vontade de Yhwh. Ou seja, a vontade de Yhwh é expressa
precisamente no livro do Deuteronómio, que recorda a “aliança”[15]
ou o tratado original entre Yhwh e Israel. Foi o próprio Yhwh que provocou a
invasão babilónica com o fim de punir Judá por ter adorado outras divindades (2 Reis 24:3.20). Os deuteronomistas tentam, assim, contrariar a ideia de
que Marduk e os outros deuses babilónicos teriam derrotado Yhwh. Assim, a “história
deuteronomista” constitui a primeira tentativa de escrever uma história
completa de Israel e Judá, do início ao fim.
Na Antiguidade há outros exemplos de
ligação de uma situação de crise com a historiografia. Por exemplo, no século V
a.e.c. Tucídides escreve a «História da Guerra do Peloponeso» para “aqueles que
desejam um conhecimento preciso do passado, a fim de ajudá-los a interpretar o
futuro” (1.22). Heródoto também compõe a sua «História» para explicar as razões
das guerras persas e seus dramas[16].
Obviamente, a história deuteronomista não é uma obra de historiografia ou de História
no sentido moderno do termo, como Leopold von Ranke apontou no século XIX (“aquilo
que realmente aconteceu”[17]);
porém, não deixa de ser uma tentativa de
construir o passado para explicar o presente.
O exílio e a deportação são o tema
global desta história, que liga as várias tradições e períodos até chegar ao
fim da monarquia, à destruição de Jerusalém e à perda do país; estes
acontecimentos, segundo os deuteronomistas, são o resultado da ira de Yhwh
contra o seu povo e os seus líderes. Judá e Jerusalém não podem escapar ao
ataque babilónico porque é o próprio Yhwh que enviou este exército com o
propósito de aniquilar Judá e Jerusalém:
«Yhwh mandou contra Joaquim as tropas
dos caldeus, dos sírios, dos moabitas e dos amonitas; enviou-os contra Judá
para o destruir, conforme Ele anunciara pela boca dos profetas, seus servos.
[…] Assim aconteceu a Jerusalém e a
Judá, porque o SENHOR, irritado, queria afastá-los da sua presença.» (2Reis
2.20)
Com esta afirmação, os autores da
história deuteronomista queriam mostrar que a
queda de Jerusalém não significava que os deuses babilónicos tinham derrotado o
deus nacional de Judá. Os eventos de 697 e 587 só poderiam ser
explicados se fosse a ira de Yhwh o agente do colapso de Judá. Se Yhwh tinha
usado o rei da Babilónia e seus deuses, isso também significava que ele os
controlava, que eles eram seus instrumentos. Ou seja, esta ideia abre caminho para as reivindicações
manifestamente “monoteístas” que
se encontram nos retoques finais do texto da história deuteronomista.
Numerosos textos do livro do
Deuteronómio convidam os seus destinatários a «não se deixarem levar por outros
deuses». Nesses textos, a perspectiva é claramente monolátrica: na verdade
nunca negam a existência de «outros deuses», apenas se proíbe, aos israelitas,
que sigam na peugada desses deuses, uma alusão a procissões que eram
encabeçadas por estátuas divinas. Em textos mais recentes, acrescentados
durante o período persa,
insiste-se que Yhwh é o único deus e não há outros deuses ao seu lado: «Reconhece,
agora, e medita no teu coração que que
só Yhwh é Deus, tanto no alto do céu como em baixo, sobre a terra, e que não há
outro." (Dt 4, 39).
Mas se Yhwh
não é apenas a divindade tutelar de Israel, mas também o único “Deus
verdadeiro”, como explicar que ele mantém uma relação privilegiada
com Israel? Para os deuteronomistas, a resposta está na ideia de escolha: Yhwh
escolheu Israel como seu povo particular no meio de todas as nações. Nos
últimos textos monoteístas do livro de Deuteronómio, a alegação de que Yhwh
criou os céus e a terra está geralmente ligada à reivindicação da eleição de
Israel[18]:
«Ao SENHOR, teu Deus, pertencem os
céus e os céus dos céus, a terra e tudo o que nela existe. No entanto, foi só a teus pais que Yhwh se apegou com amor. Elegeu a
sua descendência, que sois vós, dentre todos os povos, como ainda
hoje. Circuncidai, portanto, a impureza do vosso coração[19]
e não endureçais mais a vossa cerviz, porque Yhwh, vosso Deus, é o Deus dos
deuses e o Senhor dos senhores, o Deus supremo, poderoso e temível, que não faz
distinção de pessoas nem aceita presentes. Ele
faz justiça ao órfão e à viúva, ama o estrangeiro e dá-lhe pão e vestuário.
Amarás o estrangeiro, porque foste estrangeiro na terra do Egipto.»
(Dt 10,14-19)
Assim, para os deuteronomistas, Yhwh
é certamente o deus que reina sobre todos os povos, mas mantém uma relação
especial com Israel. Esta é uma maneira notável
de manter a antiga ideia de Yhwh como um deus nacional ou tutelar, afirmando
que ele é o único deus verdadeiro.
4.O MONOTEÍSMO DO DEUTEROISAÍAS
A reflexão monoteísta mais exaustiva da Bíblia Hebraica está reunida na segunda parte do livro de Isaías (capítulos 40-55), conhecido como Deuteroisaías. Trata-se de uma coleção de oráculos anónimos cuja escrita se estende pelo menos por dois séculos[20] e cujo núcleo é constituído por um texto de propaganda que celebra a chegada do rei persa Ciro II à Babilónia em 539 a.e.c. Este núcleo do Deuteroisaías foi fortemente inspirado no "cilindro de Ciro", no qual o rei persa é ‘venerado’ (pelo clero de Marduk) como o eleito de Marduk para governar os povos e restaurar a paz[21]. O “cilindro de Ciro” diz que Marduk tomou Ciro pela mão para o guiar e o levar a fazer aquilo que o deus Marduk quisesse, enquanto que, em Isaías 45,1, podemos ler: «Ciro, a quem eu peguei pela mão direita»; Marduk escolhe um nome para Ciro, ou seja, «nomeia-o», ao passo que, em Isaías 45,3, Yhwh chama-o pelo seu nome próprio. O cilindro diz que Marduk «submeteu aos seus pés o país de Guti e as tropas de Medes»; Isaías 45 afirma que Yhwh escolheu Ciro «para submeter as nações a ele». Segundo o cilindro, Marduk «sempre fez com que fosse alimentado com justiça e retidão»; Yhwh diz de Ciro: «Ele é o meu pastor» (Is 44, 28). O cilindro diz que Marduk marchou incessantemente ao seu lado, enquanto Yhwh promete a Ciro: «Eu mesmo marcharei diante de vós» (Is 45, 2). O cilindro insiste em que Ciro conduza sem falta as populações exiladas: «Reunirei todo o vosso povo e trá-lo-ei para dentro», o que corresponde ao discurso de Yhwh sobre o rei persa: «Ele devolverá os meus deportados às suas localidades» (Is 45, 13: «Ele reconstruirá a minha cidade e libertará os meus desterrados, sem nada exigir como recompensa ou suborno.»). O autor deste texto dá sinais de grande universalismo ao apresentar Ciro como o messias de Yhwh, ao mesmo tempo que se inspira na propaganda do rei persa, que por sua vez retoma a ideologia assírio-babilónica.
Outros textos de Deuteroisaías vão
mais longe e propõem ‒ é um caso bastante raro, talvez
único, na Bíblia Hebraica ‒ uma “demonstração teórica” do
monoteísmo. Nos primeiros capítulos da coletânea, os povos e os seus deuses são
convocados diante de Yhwh para admitir que não há Deus além dele: «para que
reconheçam, de leste a oeste, que não há nada além de mim. Eu sou Yhwh e não há
outro» (Is 45, 6). As outras divindades são quimeras, «madeira para queimar»
(Is 44, 15). O autor ironiza o comércio de estátuas de divindades, que só serve
para enriquecer os artesãos: «Aqueles que fazem ídolos são todos inúteis, as
figuras que esculpem não servem de nada... Quem já fez um deus sem perseguir
sobretudo o lucro?» (Is 44,9-10) Esta demonstração da unidade de Yhwh, que
Deuteroisaías geralmente identifica com “El”[22],
é apresentada como uma espécie de revolução teológica. A manifestação de Yhwh
como o único Deus de todos os povos e do universo equivale a uma nova
revelação:
«Eis o que diz Yhwh, aquele que vos
liberta, o Santo de Israel: “Por vossa causa, mandei uma expedição à Babilónia,
fiz cair os ferrolhos dos cárceres, e os caldeus lamentam-se em altos brados.
Eu sou Yhwh, o vosso Deus Santo, o criador de Israel, o vosso rei.” Assim fala Yhwh,
que outrora abriu um caminho através do mar, uma estrada nas torrentes das
águas; que pôs em campanha carros e cavalos, tropa de soldados e chefes; caíram
para nunca mais se levantarem, extinguiram-se como um pavio que se apaga: ”Não
vos lembreis dos acontecimentos de outrora, não penseis mais no passado, pois
vou realizar algo de novo, que já está a aparecer: não o notais? Vou abrir um
caminho no deserto, e fazer correr rios na estepe. Glorificar-me-ão os animais
selvagens, os chacais e as avestruzes, porque hei-de fazer brotar água no
deserto e rios na terra árida, para dar de beber ao meu povo, o meu eleito, o
povo que Eu formei para mim, e assim hão-de proclamar os meus louvores.”»
(Isaías 43,14-20)
A exortação a abandonar as memórias
funestas dos primeiros acontecimentos pode ser lida como uma crítica ao
discurso deuteronomista, obcecado com a destruição de Jerusalém e com o exílio[23].
Para o autor desta passagem, essa página já havia sido virada, e Yhwh irá
manifestar seu poder pondo em movimento um “novo Êxodo” enviando (através do
rei Ciro) os deportados da Babilónia[24].
O monoteísmo de Deuteroisaías insiste, como o discurso do Deuteronómio, que o
único Deus tem uma relação especial com Israel. Mas, tal como já expressado em Isaías 40-55, procura também resolver dois problemas importantes colocados
pela afirmação de um único deus: a questão das funções
«femininas» do divino e a da origem do mal.
5.A INTEGRAÇÃO OU A ELIMINAÇÃO DO FEMININO NO
DISCURSO MONOTEÍSTA
O surgimento do monoteísmo é acompanhado pelo
desaparecimento da deusa, que os partidários da reforma de Josias já haviam querido
banir do culto oficial de Jerusalém. Essa eliminação da deusa pode estar
refletida numa visão do profeta Zacarias (Zc 5,5-11)[25]. Nela,
o profeta vê uma mulher chamada “ris'ãh” (“impiedade”)[26],
encerrada num alqueire [caixote de madeira, de origem árabe, que tanto podia
ter capacidade para conter 13 como 22 litros de cereal], que duas mulheres
aladas tiram da terra e levam para a Babilónia, onde ela terá um santuário e
permanecerá imóvel em seu pedestal. Esta visão pode ser entendida como uma
metáfora para a supressão do culto à deusa
Asherá (ou Acherá) de Judá, que a partir de então só pode ter um
espaço entre os povos pagãos[27].
No entanto, esse desaparecimento da
deusa levanta o problema da gestão do feminino nessa “nova” religião monoteísta
que é o judaísmo nascente. Por um lado, Yhwh torna-se o único Deus
transcendente e, por outro, mantém os seus títulos masculinos, como “senhor”,
“rei”, “mestre”, etc. Não é por acaso que no Deutero-Isaías, que é o que
expressa mais claramente a ideia monoteísta, existem inúmeras imagens femininas
aplicadas a Yhwh. É assim que ele responde, pela boca do profeta, ao medo de
ter esquecido o seu povo: «Pode uma mulher esquecer-se do seu filho?
Não mostrará ela ternura para com o filho de seu ventre? Porque, mesmo que se
esqueçam, Eu não vos esquecerei» (Is 49, 15). A atitude de Yhwh em relação ao
povo judeu é aqui comparada ao amor de uma mãe para com os seus filhos. Da
mesma forma, em Isaías 44,24 e 46,3, Yhwh é apresentado como aquele que formou
Israel no ventre de sua mãe. Em Is 42,14 a metáfora do parto também está
presente. Neste versículo, o exílio do povo de Judá é explicado pelo facto de
que Yhwh permaneceu inativo. Porém, tudo isso é passado e, agora, Yhwh
prepara-se para agir: «Como uma mulher em trabalho de parto, vou soprar,
respirar e inspirar ao mesmo tempo». O regresso da comunidade exilada ao seu
país é apresentado como um novo nascimento, e Yhwh aqui assemelha-se à deusa
mãe, que cria algo novo com as dores do parto. No entanto, no versículo
anterior (42,13) este mesmo Yhwh aparece como um guerreiro que persegue os seus
inimigos. Temos, então, a passagem de um deus guerreiro, masculino, para um
deus materno que dá à luz o seu povo. Um passo comparável é encontrado no poema
inserido no final de Deuteronómio, capítulo 32, que vem de um autor
contemporâneo de Deutero-Isaías; neste poema, Yhwh aparece primeiro como um
pai: «Não é seu pai, aquele que lhe deu a vida?» (v. 6). Mas imediatamente
encontramos esta acusação: «Esqueceste-te do Deus que te deu à luz[28]»
(v. 18). Assim, Yhwh aparece tanto como pai como mãe de Israel.
Nos últimos capítulos do livro de Oseias,
que foram reelaborados ou quiçá redigidos na transição do século VI para o
século V a.e.c., observa-se igualmente a integração do feminino em Yhwh[29].
O capítulo 11, por exemplo, pega nas funções e representações de Ishtar e
integra-as num discurso sobre Yhwh[30].
Nos versículos 3-4, Yhwh é claramente apresentado como uma mãe carinhosa: «3Eu
ensinava Efraim a andar, trazia-o nos meus braços, mas não reconheceram que era
Eu quem cuidava deles. 4Segurava-os com laços humanos, com laços de
amor, fui para eles como os que levantam uma criancinha contra o seu rosto;
inclinei-me para ele para lhe dar de comer.» É Yhwh quem ensina Efraim (ou
seja, Israel) a andar, levanta-o até ao rosto como a um bebé, protege-o e
alimenta-o. Em 14,9 Yhwh é comparado a uma árvore fértil ("Sou como um cipreste perene, e de mim vêm todos os frutos"),
símbolo da deusa Asherah. O início
deste versículo pode ter-se, acidentalmente ou mesmo intencionalmente, tornado
obscuro; de acordo com Julius Wellhausen, a versão inicial desta passagem teria
começado com esta declaração de Yhwh: «Eu sou a sua 'Anat' e a sua 'Asherah'[31]».
Se esta conjectura for verdadeira, teríamos aqui outra indicação da vontade de
integrar as funções das deusas no próprio Yhwh.
O documento sacerdotal, que
abordaremos muito brevemente, abre com o relato da criação do mundo, dos
animais e dos seres humanos por parte de Deus. Quando pensa em criar o ser
humano, diz que quer criá-lo à sua “imagem”. E a execução desta decisão é
contada da seguinte forma: «Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à
imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher» (Gn 1,27). O fato de o ser humano
à imagem de Deus ser homem e mulher pode refletir o fato de que a ideia
tradicional do casal divino (Yhwh e Asherah) é retomada e transferida para o
casal humano ou que o próprio Deus contém em si as funções masculina e feminina[32].
Outra forma de compensar o
desaparecimento da deusa opera-se através da personificação do conceito de
Sabedoria (hokmah), facto que se observa a partir do final da época
persa e sobretudo na época helenística[33].
No capítulo 8 do livro dos Provérbios, a própria Sabedoria toma a palavra
e apresenta-se como uma deusa que se encontra junto a Yhwh ainda antes da
criação do mundo:
«22Yhwh criou-me, como
primícias das suas obras, desde o princípio, antes que criasse coisa alguma. 23Desde
a eternidade fui formada, desde as origens, antes dos primórdios da terra. 24Ainda
não havia os abismos e eu já tinha sido concebida; ainda as fontes das águas
não tinham brotado; […] 30 Eu estava com Ele como arquitecto, e era o seu encanto, todos
os dias, brincando continuamente em sua presença; 31brincava sobre a
superfície da Terra, e as minhas delícias é estar junto dos seres humanos.»
(Pr. 8,22-31)
A Sabedoria surge aqui como uma filha
de Yhwh, por ele criada a fim de que o acompanhe enquanto ele cria o universo
e, de certo modo, faça de mediadora entre Yhwh e os homens. Ou seja, a deusa
não havia desaparecido e eis que regressa sob outras roupagens.[34]
6.O MONOTEÍSMO DIANTE DO PROBLEMA DO
MAL
Numa concepção politeísta, em que a
sorte do universo depende da actuação de uma multidão de deuses, a irrupção do
mal e do sofrimento poderá ser atribuída a deuses ou a demónios maléficos, os
quais os humanos terão de apaziguar ou deles se protegerem com amuletos ou
outros meios. Numa concepção politeísta admite-se que os deuses são
imprevisíveis e que as suas ações em relação aos humanos podem ser desastrosas,
sem que estes tenham necessariamente cometido uma falta contra eles. Porém, a
partir do momento em que exista apenas um deus, a questão da origem e da
razão do mal é colocada com veemência. Vejamos como os textos bíblicos oferecem
respostas as mais diversas.
Em alguns textos, diz-se que o mal e
o sofrimento são punições divinas dirigidas contra aqueles que cometeram actos
repreensíveis. Essa “teologia da retribuição” é, no entanto, com muita frequência
questionada. Assim, o livro de Jó mostra que o protagonista, ao contrário do
que afirmam os seus amigos, não merece aquele destino. Mesmo assim, o autor não
dá uma resposta para a origem do mal que Yhwh envia contra Jó[35].
Da mesma forma, o relato da criação com que abre o Livro do Génesis apresenta
as trevas, a desordem e o abismo como símbolos do mal ou do caos primordial,
não criados por Deus, mas “domados” por Ele, na medida em que Ele os integra na
Criação. Esses textos, portanto, concedem uma certa autonomia ao mal, sem
desenvolver um sistema teológico dualista.
O Deutero-Isaías, por outro lado,
propõe uma solução radical e afirma que o próprio
Deus é quem cria o mal[36]:
“5Eu sou Yhwh e não há outro, não
existe outro deus além de mim. Concedo-te a insígnia do poder, embora tu[37] não me
conheças. 6Assim saberão, do Oriente ao Ocidente, que não há outro
fora de mim. Eu é que sou Yhwh. Não há outro. 7Formo a luz e crio as
trevas, faço o bem (šālōm[38]) e mando a
infelicidade (ra’). Eu sou Yhwh, que faço todas estas coisas.” (Isaías 45,5-7)
Este texto é provavelmente o
único texto em toda a Bíblia hebraica[39] que diz taxativamente que Deus
não só criou o “šālōm”, mas também o seu contrário, o mal ou o caos. Para o Deutero-Isaías, o qual no
modelo de A. Steil é o que mais se aproxima da atitude profética, procura
insistir no facto de que todos os poderes, mesmo que nefastos, têm a sua origem
em Yhwh e sob o seu controlo eles se encontram. Na medida em que existe apenas
um Deus, e fora dele nada existe (v. 5), não há nada que possa escapar a este
Deus. Seja como for, no contexto dos escritos bíblicos esta afirmação
manter-se-á à margem, não será a grande questão central dos escritos bíblicos.
7.O MONOTEÍSMO DOS CÍRCULOS SACERDOTAIS
A terceira forma de «reacção à crise»
− de acordo com o modelo de A. Steil − é a do tipo “sacerdotal”. Essa atitude corresponde à chamada
escrita ou ‘tradição sacerdotal’, um conjunto de escritos redigidos nos
círculos sacerdotais na Babilónia ou em Jerusalém, no início da Época Persa. A ‘teologia
sacerdotal’ [“P”=Priester-Codex] é composta por textos que hoje em dia se
encontram incorporados nos livros do Génesis, Êxodo e na primeira parte do
Levítico, sendo possível reconstruí-los com bastante facilidade.
Para os
círculos sacerdotais, a única coisa que conta é o
tempo das origens (a origem do
mundo, o tempo dos patriarcas e o tempo de Moisés). Ao
contrário da História Deuteronomista [D], a escrita Sacerdotal [P] não está
interessada na história da monarquia ou na perda do país. Para ele,
tudo já fora dado, tudo fora estabelecido desde o início: a proibição do
consumo de sangue (decreto real estabelecido após o Dilúvio), a circuncisão
(ritual ordenado a Abraão), a Páscoa (na época do êxodo do Egipto), bem como as
leis rituais e sacrificiais e tudo mais foi apresentado ao povo no deserto por
meio de Moisés. A primeira edição deste escrito sacerdotal, que foi
posteriormente ampliada, terminava provavelmente com o ritual do Yom Kippur (o “Dia da Expiação”), que se encontra no capítulo 16 do livro de Levítico[40] e que insiste na possibilidade de purificar regularmente o santuário e a comunidade através
do sumo sacerdote. No extremo oposto do discurso deuteronomista − que insiste na segregação estrita entre o povo de Yhwh e os
outros povos − o ambiente sacerdotal apresenta um discurso monoteísta inclusivo, que busca
definir o lugar e o papel de Israel e Yhwh entre todos os povos, e o de seus
respectivos deuses. Para esse fim, os círculos sacerdotais desenvolvem, lançando
mão de nomes divinos, “três círculos” ou três estádios da manifestação de Yhwh[41].
Nos relatos sacerdotais das origens
do mundo e da humanidade, assim como no do Dilúvio, Yhwh revela-se a toda a
humanidade como «elohim». Esta palavra pode ser traduzida como “(um) deus”,
“(uns) deuses” ou como “Deus”. Provavelmente, os círculos sacerdotais foram os
primeiros a usar esse termo «'elohim» no sentido de “(apenas) Deus”[42],
como é evidente no relato da criação no primeiro capítulo de Génesis. Este nome
pode ser usado tanto no singular quanto no plural. De certa forma, todos os
deuses podem ser manifestações do único deus. Para o meio sacerdotal, isso
significa que todos os povos que adoram um deus criador, sem saber, adoram o
deus que mais tarde se manifestará a Israel sob o nome de Yhwh.
Aos patriarcas e aos seus
descendentes, Yhwh revela-se – segundo a
escola sacerdotal – como «El Shaday». O círculo sacerdotal utiliza este nome
para explicar que o deus que se revelou a Abraão foi, por conseguinte, conhecido
também por Ismael, o primeiro filho de Abraão e antepassado dos edomitas. Ao
recorrerem a «El Shaday», os redactores sacerdotais utilizam um nome arcaico,
mas que à época continuava a ser venerado como nome divino na Arábia[43].
Somente a Moisés, e através dele a Israel, é
que será revelado sob o nome de «Yhwh». Este será um privilégio exclusivo de
Israel, que assim poderá render a esse deus o culto adequado. Contudo, Israel
não deverá «aproveitar-se» deste conhecimento, pelo que daí derivou a proibição de se pronunciar o nome de Yhwh,
proibição que passará a ser mandatária na segunda parte da época persa.
Essa representação sacerdotal também
pressupõe que os povos vizinhos de Israel e relacionados com “Israel” por meio
de Abraão e Jacó, ou seja, as tribos árabes (por meio de Ismael), os moabitas,
os amonitas (por meio de Loth) e os edomitas (por meio de Esaú), estão mais
próximos de Israel do que as nações distantes[44].
De acordo com o relato sacerdotal,
todas as instituições de culto e todos os rituais são concedidos aos Patriarcas
e a Israel antes da organização política de Israel, o que significa que não
há necessidade de um país ou realeza para se adorar Yhwh de maneira adequada.
Essa não-conexão forçosa, quer do culto de Yhwh com as instituições políticas,
quer de um vínculo com o país, de alguma forma prepara a ideia de uma separação entre o âmbito religioso e o âmbito
político.
Estas instituições dizem respeito, de
modo distinto, a diversas etapas da humanidade: a proibição do sangue
depois do Dilúvio deve ser aplicada, segundo o “círculo sacerdotal”, a toda a
humanidade, pois toda a humanidade está sob a autoridade de “Elohim”; a circuncisão
deve ser aplicada (e aplica-se) a todos os descendentes de Abraão que veneram
“El Shaday”. Finalmente, a Páscoa, os rituais de sacrifício e as prescrições
dietéticas, bem como o “yom Kippur” (Dia da Expiação) são ritos específicos pelos quais Israel
adora ‘o Deus único’, que se revelou, por meio de Moisés, sob o nome de Yhwh.
Ou seja, no começo da Época Persa
vemos elaborar-se diferentes discursos que redefinem a veneração a “Yhwh
como deus único”, ao mesmo tempo que esses discursos reforçam a especificidade
da relação de Yhwh com Israel. Impõe-se, então, investigar a questão das
possíveis influências persas nesta redefinição do deus Yhwh.
8.AS INFLUÊNCIAS PERSAS SOBRE O
MONOTEÍSMO BÍBLICO
É muito difícil ter uma ideia clara
do sistema religioso adotado pelos governantes aqueménidas[45]. A isso se acrescenta o problema da
datação e origem de Zoroastro, bem como da sua "mensagem" original. A
reconstrução da história da composição do Avesta, o livro sagrado do mazdeísmo
− e do zoroastrismo que lhe sucedeu − e cujo manuscrito mais antigo data do século XIII, é em
muitos aspectos uma reminiscência dos problemas encontrados pelos exegetas
da Bíblia hebraica. Hoje em dia parece improvável que houvesse um corpus
mazdeano escrito no período aqueménida, embora a maioria dos investigadores
pareça confiante de que os "Gathas" (ditos de Zoroastro) possam ser
rastreados até ao início do primeiro milénio aC. Inclusivamente, se seguirmos
os "minimalistas" que se vão afastando da tradição segundo a qual
Zoroastro teria vivido 258 anos antes de Alexandre, isso não colocaria em
questão a existência de alguma forma de mazdeísmo no período aqueménida. O
mazdeísmo está claramente atestado no âmbito da religião real oficial desde
Dario (521-486), que na inscrição de Behistun legitima a sua realeza pela
vontade e apoio de Ahura Mazda; e na inscrição de Elvend onde o denomina de
"o grande deus que criou esta terra aqui, que criou o céu lá, que criou o
homem, que criou a felicidade para o homem"[46].
No entanto, junto com Ahura Mazda, "todos os outros deuses que
existem" são mencionados. Também parece que os soberanos persas permitiram
que os súbditos do seu império venerassem as divindades locais. Portanto, faz
sentido interrogar-nos se devemos falar de monoteísmo quando nos referimos a uma
tal constelação, a menos que queiramos postular que o mazdeísmo dos persas
constituía uma espécie de monoteísmo sincretista
ou inclusivo, que considerava as outras divindades como
manifestações locais de Ahura Mazda. Por outro lado, não há dúvidas que os
autores dos livros de Esdras e Neemias insistem num vínculo forte e positivo
entre o Império Persa e os seus protagonistas, por exemplo, entre o governador
Neemias e o escriba e sacerdote Esdras. Neemias é apresentado como um oficial
real em Susa (Neemias 1, 1), a capital do Império Aqueménida, e
como copeiro, o que implica um alto estatuto social[47];
quanto a Esdras, escriba e sacerdote na Babilónia, ele é reconhecido, pela
autoridade real, pelo seu desempenho. Segundo o capítulo 7 do livro de Esdras, Esdras vai a Jerusalém para proclamar ali uma lei que é
tanto a do "Deus do céu" (v. 12) quanto a "lei do rei" (v.
26). Nesse contexto, pouco importa saber se esses dois personagens
são históricos ou fictícios[48];
simbolizam de uma forma ou de outra a ideia de uma
estreita colaboração entre as autoridades judaicas e persas. Por
outro lado, nenhum texto na Bíblia hebraica
assume uma posição abertamente crítica em relação a um governante aqueménida.
Nos livros de Esdras e Neemias, os reis persas aparecem como instrumentos de
Yhwh, como soberanos sábios que permitem e encorajam a restauração do culto yahvista
em Jerusalém. Podemos dizer, portanto, que o judaísmo nascente da era persa
aceitou a ideia de uma "translatio imperio" (como se diria na
Idade Média para falar de uma transferência de poder) em benefício dos reis
aqueménidas[49].
A questão referente à hipotética ‘influência
directa sobre o judaísmo nascente’ é mais difícil de resolver. Por exemplo,
constatamos que em numerosos salmos da época persa, mas também em outros textos,
Yhwh é apresentado a presidir à Assembleia celeste revelando uma superioridade
clara sobre todos os outros deuses, os quais são relegados para a categoria de
«anjos» ou «santos» (Salmo 89,6;
103,20).
Vermos que o antigo panteão se mantém poderá ser explicado, pelo menos em
parte, por uma dupla influência persa: Yhwh
surge sob a imagem do grande rei persa, o qual, na verdade, é o
único rei verdadeiro que exerce domínio sobre todos os reis de todos os outros
povos[50]; só
que, deste modo, Yhwh acaba por corresponder igualmente a Ahura Mazda, o qual,
pelo menos depois da reforma de Zoroastro, tem a sua sede, enquanto Deus único
e verdadeiro, soberanamente estabelecido no lugar mais alto do panteão
tradicional.
Por outro lado, é unanimemente reconhecido que
a figura de Satanás como membro de uma corte celestial não está atestada nos
textos bíblicos, antes pertence à era persa. Vemos isto, de facto, no prólogo
do Livro de Job, onde Yhwh aparece no céu rodeado dos seus ministros, entre os
quais há um «satanás», um «adversário»[51], o que
faz recordar os agentes secretos dos reis persas. No prólogo do livro de Jó, a
figura de Satanás foi introduzida para que não tenhamos que acusar Yhwh de ter
derramado sobre Jó, sem motivo aparente, todo o tipo de infortúnios[52].
A mesma tendência para autonomizar o mal pode ser percebida na
reescrita que é feita, nos livros das Crónicas, de uma história mais antiga
apresentada nos livros de Samuel[53]. Retrata
um censo realizado por Davi que provoca punição divina, o que leva à descoberta,
por parte de Davi, do local do futuro templo[54]. O
relato mais antigo de 2 Samuel 24,
começa assim: «A cólera de Yhwh voltou a inflamar-se de novo contra Israel e excitou David contra eles». É
o próprio YHWH, então, que provoca uma ação pela qual milhares de homens terão
de morrer, já que Davi será punido com uma praga. Em 1 Crónicas 21, a mesma história começa da seguinte forma:
«Salém voltou-se contra Israel e instou Davi a fazer o recenseamento de
Israel». É difícil dizer se Satanás é entendido aqui como o oponente negativo
de Yhwh ou, melhor, como uma espécie de hipóstase da ira divina. A insistência
em Satanás como protagonista do mal leva, no entanto, a um dualismo, onde o mal
aparece virtualmente tão poderoso quanto o Deus criador do bem. E podemos
perguntar, de fato, se o seu surgimento é influenciado pelo dualismo persa que
se observa no confronto entre Ahura Mazda e Angra Mainyu (Ariman). Nos textos
da Bíblia hebraica, esse dualismo não se desenvolve; por outro lado, aparece
cada vez mais em certas correntes do judaísmo dos períodos helenístico e romano[55], e não
é impossível que nessas correntes apocalípticas uma forte influência iraniana
possa ser detectada[56].
Também é possível detectar outras
influências persas no judaísmo à medida que se desenvolveu a partir dos séculos
VI ou V a.e.c. É o caso, por exemplo, de um texto como o do livro de Malaquias,
que apresenta Yhwh à imagem do grande rei persa: «Pois de leste a oeste é o meu
nome grande entre as nações. Em toda parte é oferecida ao meu nome uma oferta
de incenso, bem como uma oferta pura, pois grande é o meu nome entre as nações,
diz Yhwh dos exércitos» (Malaquias, 1,11). Yhwh é o deus universal, a quem
todos os povos apresentam oferendas. A substituição de sacrifícios de animais
por sacrifícios de incenso também pode refletir uma influência persa, uma vez
que o mazdeísmo prefere sacrifícios de vegetais a sacrifícios sangrentos[57].
Em suma, é muito provável que tenha
havido influências persas na elaboração do monoteísmo yahvista no contexto do
judaísmo nascente, embora nem sempre sejam tão fáceis de provar quanto alguns o
afirmam.
9.RESISTÊNCIA
AO MONOTEÍSMO
Na era helenística, o discurso
monoteísta tornou-se cada vez mais a marca identificadora do judaísmo. Essa
religião monoteísta intriga os intelectuais gregos e romanos e também seduz uma
parte da aristocracia do Império Romano. No entanto, a ideia monoteísta não se
impõe desde o início. O exemplo mais óbvio é encontrado na comunidade judaica de Elefantina, uma ilha
localizada no Nilo, no sul do Egito, em frente a Syene (Assuão). Em documentos desta comunidade, junto com a veneração de Yhwh,
aparece a veneração a uma deusa chamada Anat. Por exemplo, num juramento
feito a respeito de um jumento propriedade de duas pessoas e vendido por uma
delas, diz-se: "Juro que Menacre, filho de Salum … ele emprestou
Meshullan, filho de Natã [ ... ] para o santuário e para 'Anat-Yahô"[58].
De acordo com Pierre Grelot, Anat, uma deusa conhecida em Ugarit
como o amparo (“waller”) de Baal, seria idêntica à deusa 'Atti, que
também aparece em alguns dos documentos de Elefantina e que P. Grelot
identifica como a "Rainha do Céu".
Numa lista de ‘pagamentos de actos cultuais’
constata-se que existe uma tríade divina:
«O dinheiro que chegou hoje às mãos de Yedonyah, filho de Gamaryah, no mês de
Pamenotep[59]: um total
de 31 kars[60] e 8
siclos; para Yahô 12 kars
e 6 siclos; para 'Asim-Bet'el 7
kars; para 'Anat-Bet'el 12 kars»[61].
Ou seja, dentro da colónia judaica eram adorados Yahô (Yhwh) e Bet
'eI, provavelmente uma divindade dos arameus de Syene; esses dois deuses
faziam parte de uma tríade divina na qual a deusa Anat aparece
como a “waller” de Yahô e, aparentemente, 'Asim-Bet'el seria o filho.
Apesar dessa veneração pouco ortodoxa
de Yhwh, os líderes dessa colónia mantiveram contatos epistolares com as
autoridades de Jerusalém e da Samaria, que de alguma forma parecem aceitar essa
comunidade, provavelmente por ser uma comunidade
economicamente abastada. Em 407 a.e.c, após a destruição do templo
judaico de Elefantina pelo clero egípcio com a colaboração do sátrapa persa, os
responsáveis escreveram ao governador persa da província de Yehud (Judéia)
pedindo permissão para reconstruir o seu santuário[62].
Não é certo que o templo tenha sido reconstruído, uma vez que a documentação
sobre esta comunidade pára por volta de 399 aC[63].
No entanto, isso mostra que até ao final do século V ainda era possível
praticar um culto sacrificial fora de Jerusalém e venerar Yhwh na companhia de
outras divindades.
Ou seja, o politeísmo não desaparece
de imediato e facilmente. Como recorda Pierre Grelot, «o monoteísmo é difícil
de ser concebido»[64].
Por outro lado, a própria expressão “monoteísmo” é um conceito moderno. A
Bíblia hebraica não conhece o termo «monoteísmo» nem o seu oposto «politeísmo».
Este último parece surgir pela primeira vez no século I da nossa era comum em Fílon de Alexandria, o qual opõe a mensagem bíblica à “doxa
polutheia” dos gregos[65].
Quanto à expressão ‘monoteísmo’, parece tratar-se de um neologismo do século
XVII. Os deístas falavam de «monoteísmo» para designar a religião universal da
humanidade. Thomas More e outros aplicaram esta expressão ao
cristianismo para o distinguir de outras crenças da Antiguidade e para o
defender da crítica judaica segundo a qual o cristianismo não respeitava o
mandamento da exclusividade de Deus[66].
Enquanto os “deístas” utilizam o conceito num sentido inclusivo, os campeões
das “Religiões Reveladas” atribuem-lhe a ‘função de excluir’ (a fé
monoteísta permite distinguir as religiões bíblicas das outras).
Depois do nascimento dessa expressão
constata-se, então, uma dupla compreensão da ‘coisa monoteísta’: a ‘exclusiva’
e a ‘inclusiva’. Estas duas tendências também se encontram no discurso sobre
Yhwh. Como já vimos atrás, a escola deuteronomista desenvolve um discurso segregacionista, ao passo que a escola
sacerdotal preconiza um tipo de monoteísmo
inclusivo.
10.UM MONOTEÍSMO ANTERIOR À BÍBLIA?
Podemos falar de monoteísmo antes da Bíblia? As religiões
mesopotâmicas produziram grandes épicos que influenciaram muito os autores
bíblicos, o que mostra que as fronteiras entre monoteísmo e politeísmo são
permeáveis: na Epopeia de Gilgamesh, os relatos da criação e do dilúvio
serviram de modelo para os autores bíblicos, que pegaram nesses grandes temas e
os reinterpretaram numa perspectiva monoteísta.
Para citar apenas um exemplo, nos
relatos mesopotâmicos do dilúvio, que nos chegam desde os tempos sumérios
(terceiro milénio aC), os papéis são divididos: os deuses "maus"
decidem exterminar a humanidade, enquanto um deus "bom", amigo dos
homens, avisa o seu eleito da catástrofe que está para vir e, assim, permite
que a humanidade sobreviva. No livro do Génesis, Yhwh, o deus de Israel, e
desde então o Deus único, assume os dois papéis: decide aniquilar a humanidade,
salvando Noé e a sua família. Deste modo, o Deus único integra os lados
obscuros e incompreensíveis da vida. Contudo,
tal experiência não é estranha aos politeísmos assírios e babilónios.
De fato, há vários textos em que um indivíduo se queixa de ter sido abandonado
pelo seu deus tutelar ou de ser perseguido por ele, antecipando e prefigurando
o livro de Jó[67].
Embora a cultura mesopotâmica seja
marcada por um politeísmo muito elaborado, notamos, no entanto, certas
tendências para um "henoteísmo", um apego mais especial a um único
deus, sem negar a existência de outras divindades. Nabucodonosor I (1125-1104
a.e.c.) deseja fazer do deus Marduk, a princípio o deus tutelar da cidade da
Babilónia, o deus central do panteão babilónico. Quanto a Nabonido (556-539), ele quer fazer do deus da
lua, Sin, o principal deus do Império Babilónico. Este último episódio não
deixa de lembrar a reforma cultual empreendida pelo faraó Akhenaton (Amenhotep IV, 1353-1337), que é frequentemente
apresentado como o primeiro monoteísta da humanidade. No sexto ano de seu
reinado, o faraó deixa Tebas e funda uma nova capital, Akhenaton (Tel EI-Amarna), consagrada exclusivamente à veneração de Aton, o disco solar. O rei põe em marcha um grande empreendimento iconoclasta
que visa, antes de tudo, apagar qualquer vestígio de Amon, deus de Tebas e
principal divindade do panteão egípcio até então, mas também o vestígio dos
outros deuses. O hino a Aton[68]
mostra uma espécie de monoteísmo cósmico, que prefigura o deísmo de alguns
representantes do Iluminismo: Aton-a-luz é o único Deus, que "cria milhões
de formas (os raios do sol), permanecendo em sua unidade". A nova religião
continua a ser poderosamente marcada pela ideologia real: Akhenaton é filho de Aton e o único que conhece o Deus.
Outros textos e representações dão mesmo a impressão de que o casal real, conjuntamente
com Aton, formou uma “trindade divina”, semelhante à que existia nos
panteões tradicionais.
Com frequência, houve quem tentasse
fazer da revolução de Akhenaton, que logo foi apagada pelos seus sucessores, a
origem do monoteísmo bíblico, fazendo de Moisés um discípulo do faraó
iconoclasta ou identificando os dois personagens. Acontece que o monoteísmo
bíblico manifesta-se de maneiras muito distintas. Por um lado, nasceu mais ou
menos oito séculos depois, sem nenhum fio cronológico a ligá-lo ao anterior.
Por outro lado, o monoteísmo Yahvista não está enraizado na ideologia real, mas
trata-se de uma reação ao desaparecimento da
realeza e ao colapso da religião nacional tradicional. Não há,
portanto, relação de parentesco entre os dois monoteísmos. De acordo com o
egiptólogo Jan Assmann, não há ligação causal entre a revolução monoteísta de
Akhenaton e o monoteísmo Yahvista[69].
No entanto, existem "vestígios
de memória" do monoteísmo de Akhenaton, traços que podem ter influenciado
os autores bíblicos quando escreveram a história fundadora do êxodo do Egito e
a revelação no Sinai. Podemos pensar que a associação das figuras de Moisés e
Akhenaton pode ser rastreada até Manetho, um sacerdote egípcio helenizado que
escreveu no século III aC. Em sua história do Egito, Manetho evoca um sacerdote
chamado Osarsip, que na época de Akhenaton se teria
tornado o chefe de uma comunidade de leprosos forçados a trabalhar e teria dado
a essa comunidade leis contrárias aos costumes do Egito, proibindo acima de
tudo o culto aos deuses. Manetho especifica no final de seu relato que esse
líder dos impuros "mudou seu nome e tomou o de Moisés"[70]
(70). Assim, esse Osarsip pode ser entendido como uma caricatura de Akhenaton,
o que mostra que esse "trauma akhenatoniano" durou mais de um
milénio. A visão de Manetho, que apresenta Moisés como um egípcio incompreendido
pelo seu povo, abre caminho para uma concepção que conta com Sigmund Freud
entre os seus adeptos mais conhecidos[71].
É claro que a Bíblia hebraica se
apresenta a nós, em suas três partes, como um "documento monoteísta",
mas os autores e editores bíblicos também preservaram traços politeístas, como
no livro de Jó ou em numerosos salmos, onde Yhwh aparece cercado por sua corte
celestial. Há, portanto, pelo menos
parcialmente, uma integração da herança politeísta no discurso monoteísta. Por outro lado, tanto os autores do Novo
Testamento quanto os do Alcorão terão que enfrentar o mesmo problema, ou seja, a
gestão de uma pluralidade na confissão de um único Deus. O monoteísmo bíblico, portanto, não é uma doutrina, é
plural e convida à reflexão sobre a difícil relação entre unicidade e diversidade.
11.O ADVENTO DA TORÁ E O ESTABELECIMENTO DO JUDAÍSMO
COMO A "RELIGIÃO DO LIVRO"
A pequena província de Yehud
dificilmente atraiu a atenção dos persas. As nossas informações sobre esta
região vêm principalmente de relatos bíblicos, que refletem a ideologia da
elite judaica durante o período persa[72].
De acordo com a introdução dos livros de Crónicas e Esdras, logo após sua
vitória sobre a Babilónia em 539 a.e.c., o rei persa Ciro emitiu um decreto
autorizando os exilados a retornar à Judeia e incentivando-os a reconstruir o
templo em Jerusalém. Esta é, sem dúvida, uma
construção ideológica[73],
que visa mostrar que os persas se importavam com a comunidade judaica exilada.
No entanto, essa construção é baseada no facto comprovado de que os primeiros
reis persas alegaram ter restaurado os cultos locais e reinstalado os exilados nas
suas terras. Embora essas declarações correspondam à ideologia real, parece
claro que a política religiosa dos persas era diferente da dos seus
antecessores. Podemos até especular sobre uma espécie de sincretismo persa, que
permitiu aos persas identificar as divindades locais
como manifestações de Ahura Mazda.
Durante o período babilónico, a sede
provincial do antigo reino de Judá, que estava integrado no Império Babilónico,
ficava em Mispá; não sabemos quando ou por quê Jerusalém se tornou a capital da
província (“medina”) de Yehud[74].
É bastante claro que a reconstrução do templo e outras obras de construção em
Jerusalém sob Neemias[75]
atestam a sua crescente importância durante o período persa. Um dos primeiros
governadores de Yehud ("pehah") parece ter sido Zorobabel, um
deportado de ascendência real davídica nomeado pelos persas, que sem dúvida
pensou que o seu pedigree real convenceria a população nativa a colaborar com
ele. É possível que sua chegada a Jerusalém tenha provocado esperanças e
tentativas de restauração da dinastia davídica[76],
mas não há vestígios de qualquer revolta anti-persa, como às vezes é alegado[77].
O súbito desaparecimento de Zorobabel na Bíblia sugere, no entanto, que os
persas o removeram do cargo para evitar expectativas messiânicas. Alguns dos
seguintes governadores são conhecidos por relatos epigráficos, mas não sabemos
se eram todos judeus ou se também havia governadores persas[78].
O poder real em relação aos assuntos domésticos
parece ter pertencido às elites sacerdotais e leigas reunidas em torno
do templo de Jerusalém.
Não possuímos informações precisas
sobre as fronteiras nem sobre a população de Yehud durante a época persa.
O número de 42 000 exilados que
regressaram da Babilónia a Judá, segundo Esdras
2 e Neemias 9, é
claramente pouco realista. Durante o período persa havia muito menos habitantes
em Yehud[79].
Actualmente existe um intenso debate acerca da população de Jerusalém na época
persa. Algumas estimativas minimalistas chegam a 200-300 pessoas, enquanto
outras optam por uma população de 1000 habitantes[80].
É possível que Jerusalém tenha sido
principalmente o local do Templo, e Ramat Rahel, um lugar importante
já nos tempos assírios e babilónicos, o da administração persa.
Tal como já assinalámos, os membros
da “golah” babilónica [diáspora judaica na Babilónia] não tinham pressa
em regressar a Jerusalém. Os arquivos babilónios da família Murashu referem um
grande número de nomes judaicos e um possível testemunho epigráfico de uma
«cidade dos judeus» («Al-Yâhûdu») perto de Nipur[81] sublinha igualmente a importância da
diáspora judeo-babilónia durante o período persa. Os judeus que voltaram da Babilónia,
eventualmente por pressão e incitamento dos persas, mantiveram fortes laços com
ela. É evidente que o poder económico e ideológico estava nas mãos desta ‘golah’
que tinha regressado ao país e que era ela quem controlava a cidade restaurada
de Jerusalém.
No entanto, não devemos esquecer a
província da Samaria, mesmo que os escritos bíblicos a mencionem pouco e,
sobretudo, de forma negativa. Escavações arqueológicas tornaram muito plausível
que houvesse um templo yahvista no monte Garizim já no século V a.e.c.[82],
o que significa que na época da promulgação do
Pentateuco havia na verdade dois santuários dedicados a Yhwh: em Jerusalém e em
Garizim. Consequentemente, os samaritanos devem ter desempenhado um
papel muito mais importante durante a promulgação do Pentateuco do que os
escritos bíblicos teriam admitido. Pesquisas futuras certamente especificarão o
seu envolvimento a esse respeito. É claro, no entanto, que o Pentateuco,
embora mantenha a ideia de um único santuário (no capítulo 12 do livro
de Deuteronómio) nunca menciona o nome de Jerusalém. O Génesis alude
a isso, especialmente no capítulo 14, quando Abraão encontra o misterioso rei e
sacerdote de Salém, porém, no final de Deuteronómio, o Monte Garizim aparece
como o local do sacrifício[83].
Assim, o Pentateuco, que foi aceite por judeus e samaritanos como o
documento fundador, permite dois locais diferentes de um
santuário. Este ponto pressupõe evidentemente um
compromisso, não apenas entre diferentes correntes ideológicas do
judaísmo, mas também entre judeus e samaritanos.
Foi provavelmente entre 400 e 300
a.e.c. que os escritos sacerdotais, o livro de Deuteronómio e outras tradições,
como a história de José (Génesis 37-50), foram reunidos para formar o
Pentateuco - a TORAH - que a
princípio excluía os pergaminhos proféticos e a história da conquista até ao
exílio babilónico (ou seja, os livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis).
Esta exclusão reflecte duas situações: (1) a desconfiança da elite religiosa e
secular em relação ao profetismo,
sobretudo porque alguns textos proféticos anunciavam a restauração da dinastia
davídica - o que não agradava nem aos oficiais do Templo nem às autoridades
persas - e (2) a importância em envolver os samaritanos,
para quem os livros de Samuel e Reis - que afirmavam que o verdadeiro santuário
de Yhwh estava em Jerusalém - eram inaceitáveis.
O Pentateuco termina, no capítulo 34
do livro de Deuteronómio, com a morte de Moisés às portas da Terra Prometida
[no cimo do Monte Nebo]. Moisés torna-se, assim, um símbolo para os judeus da
diáspora, sinalizando, com a sua morte naquele sítio, que pouco importa
permanecer numa terra estrangeira desde que se mostrem fiéis aos mandamentos
divinos transmitidos por Moisés. Além disso, o judaísmo nascente tem outra
peculiaridade: no Próximo Oriente são os reis que recebem das suas divindades
tutelares as leis que devem ensinar aos seus povos; isso é muito claro na
estela que contém o código de Hamurabi, onde o governante babilónico é
desenhado na frente do deus Shamash, o qual passa para as mãos do governante as
suas leis. Agora, na Bíblia hebraica, nenhum rei recebe uma lei; esse papel
foi transferido para Moisés. É outra maneira de definir o judaísmo como uma religião que não precisa de legitimação real ou
estatal. O Pentateuco substitui as instituições políticas,
mas também a terra, e assim torna-se − para empregar uma famosa expressão
do poeta Heinrich Heine − uma “pátria portátil”, o que permite
ao judaísmo venerar Yhwh mantendo as leis encontradas na Torá e esta ser lida
em qualquer lugar onde haja uma sinagoga.
O livro de Esdras atribui a
promulgação do Pentateuco ao escriba e sacerdote Esdras, que se apresentara
munido de uma carta de acreditação do rei persa para facilitar a aceitação da
"lei do deus do céu" e da lei do rei. A partir desses textos e de
outros documentos, Peter Frei elaborou a hipótese de que teria havido uma
autorização imperial segundo a qual a própria administração persa teria
ordenado que as diferentes populações do Império publicassem as suas tradições
religiosas e depois as submetessem à aprovação do poder aqueménida[84].
Esta teoria é muito frágil[85]
pois todos os exemplos que Peter Frei propõe não podem ser diretamente
relacionados com a Torá, pois são documentos curtos que muitas vezes dizem
respeito apenas aos detalhes de um culto local. A edição da Torah é antes de
tudo uma realidade que apenas diz respeito a judeus e samaritanos ainda que também
com uma forte implicação da “golah” que provavelmente se reconhecia na
figura de Esdras, ao mesmo tempo que se legitimava a si mesma encenando uma
benevolência persa em relação à promulgação do Pentateuco.
Com a Torá, o judaísmo
passa a ser definitivamente uma religião móvel para a diáspora. Yhwh deixa de ter
necessidade de templo,
mas mantém uma relação específica com o seu povo, que vive conforme as
prescrições da Torá.
12.YHWH, DEUS ÚNICO, INVISÍVEL, TRANSCENDENTE E
UNIVERSAL
Defendemos até aqui a
tese de que o primeiro templo de Jerusalém tinha uma estátua de Yhwh que, ao
que parece, nunca foi posta em causa durante a Reforma de Josias. O mandamento primitivo, mais tarde
integrado no Decálogo, "Não terás outros deuses diante de mim", apontava,
a princípio, para a presença de estátuas de outras divindades diante da estátua
de Yhwh. Quando se reconstruiu o Templo, por alturas do começo da Era Persa, com
certeza que terá havido discussões acerca da edificação de uma (nova) estátua
de Yhwh. Quando o autor denominado «Deuteroisaías» anuncia o regresso de Yhwh
da Babilónia à Terra Prometida, deparamos com esta afirmação: «Ouve: as tuas sentinelas gritam, cantam em
coro, porque vêem olhos nos olhos o
regresso de Yhwh a Sião» (Isaías 52,8). Caso nos puséssemos a imaginar a
chegada de uma estátua de Yhwh a Jerusalém, esta descrição seria perfeitamente
compreensível. É por isso que o autor do capítulo 4 do Deuteronómio insiste no facto de o povo não ter
visto nenhuma «forma», nenhuma representação durante a revelação de Yhwh a
Israel: «15Tomai
muito cuidado convosco, pois não vistes imagem (“temunah”) alguma no
dia em que Yhwh vos falou no Horeb do meio do fogo. 16Portanto,
não vos deixeis corromper, fabricando para vós imagem esculpida (“pesel”)
de qualquer representação (“temunah samel tabnit”) […]». Esta passagem pode, de facto, ser lida como um texto
programático contra a construção de uma estátua de Yhwh na época persa[86].
O aniconismo
judeu passou a ser um sinal identitário, o qual, num contexto helenístico e
romano, intrigava deveras. Quando Pompeu entra
no Templo de Jerusalém, por volta do ano 63 a.e.c., descobre com estupefação que o templo está vazio[87],
realidade inconcebível[88]
para ele.
Outro aspecto que sublinha a transcendência de Yhwh é a decisão que o
judaísmo tomou, por volta do século IV a.e.c., em deixar de pronunciar o nome
de Yhwh e em substituí-lo, tal como vimos no primeiro capítulo deste livro, por
«o Senhor» ou «o Nome». Esta decisão, que precede a tradução do Pentateuco para
a língua grega, de algum modo também é explicada pelo novo credo monoteísta: se
o “nome próprio” costuma servir para distinguir uma pessoa ou uma divindade
dos, e das, demais, o deus único não necessita de nome próprio; caso
tivesse um nome próprio, isso equivalia a pactuar com o passado, com o velho
politeísmo em que o deus Yhwh seria um entre outros.
A tradução do
Pentateuco para o grego fez definitivamente de Yhwh um deus universal. Segundo a Carta de Aristeias, a
tradução grega teria sido feita em Alexandria por volta do ano 270 a.e.c., no
tempo de Ptolomeu II, e por setenta sábios (razão porque o Pentateuco adquiriu
o nome da versão “Septuaginta”, sendo esse nome conferido também a todas as
versões em língua grega da Bíblia hebraica completa); esses setenta sábios
trabalharam isoladamente, ou seja, em total isolamento entre si, tendo, apesar
dessa circunstância particular, chegado, no fim, ao mesmo texto. Ainda que este
relato seja fictício – hoje em dia
sabemos que os diferentes livros do Pentateuco não foram traduzidos de uma só
vez nem pelos mesmos tradutores – é bastante plausível que esta tradução
tenha começado no século III a.e.c. Com esta tradução, Yhwh, ou melhor, “kúrios”
ou “theós”, dá-se a conhecer ao mundo grego e passa, definitivamente, a
ser o deus universal. O seu culto
estende-se a toda a bacia do mediterrâneo (fruto da disseminação e fixação dos
judeus, bem como da difusão de sinagogas), despertando intriga e, ao mesmo
tempo, despertando a curiosidade de numerosos não-judeus que passam a sentir-se
atraídos. Eis como Yhwh se converte num deus que
supera o marco semítico, ao mesmo tempo, que o judaísmo, até hoje,
confessa o seu particular vínculo a este deus.
Thomas Römer, La invención de Dios, Sígueme
2022, cap. 12 «Del Dios “uno” ao Dios “único”», pp. 241-276.
©
[1] Tal como o faraó fez com Joaquim, o rei babilónio
muda-lhe o nome, procedimento que simboliza a manifestação do seu poder sobre
ele.
[2] O. Lipschits, «Demographic
changes in Judah between the seventh and the fifth centuries B.C.E.», in
O. Lipschits – J. Blenkinshopp (dirs.), “Judah and the Judeans in the
Neo-Babylonian Period”, Winona Lake 2003, 323-376.
[3] Por exemplo, 2 Reis 25,21: «SAQUE DA CIDADE DE
JERUSALÉM − «[1]No
nono ano do seu reinado, no dia dez do décimo mês, Nabucodonosor marchou com
todo o seu exército contra Jerusalém. Acampou diante da cidade e levantou
trincheiras em redor dela. (…) [10]E as tropas que acompanhavam o chefe da
guarda, destruíram o muro que cercava Jerusalém. [11]Nebuzaradan, chefe da
guarda, levou cativos para Babilónia, os que restavam da população da cidade,
os que já se tinham rendido ao rei da Babilónia e o resto da população. [12]O
chefe da guarda só deixou ali alguns pobres para cultivarem as vinhas e os
campos. (…) [20]Nebuzaradan, chefe da guarda, prendeu-os [vários sacerdotes,
Sofonias, três porteiros e um eunuco conselheiro do rei] e levou-os ao rei
da Babilónia, em Ribla. [21]Este matou-os em Ribla, na região de Hamat. Assim,
Judá foi levado cativo para longe da sua terra.» Quanto ao mito do “país vazio”, cf. H. M.
Barstad, «The Myth of the Empty Land: A Study in
the History and Archaeology of Judah during the “Exilic” Period»,
Oslo 1996.
[4] D. V. Edelman, «Die Saulide-Davidic rivalry resurface
in early Persian Yehud?», in J. A. Dearman – M. P. Graham (dirs.), «Teh Land
that I Will Show You. Essays on the History and Archaeology of the Ancient Near
East in Honour of J. Maxwell Miller», Sheffield 2001, 69-91.
[5] Sobretudo, no que diz respeito aos da primeira
deportação, no ano de 597 a.e.c.
[6] Flávio Josefo, «Antiguidades Judaicas» XV, 1, § 2.
[7] Esta coleção provém do «mercado cinzento», ou seja,
de comerciantes de antiguidades.
[8] F. Joannès – A. Lemaire, "Three cuneiform
tablets of west-semitic onomastics (col. Sh. Moussaïeff) (Pls. I-II)":
Transeuphratene 17 (1999) 17-27 e 33.
[9] Expressão usada pelos exilados (na Babilónia) que se
estabeleceram no país para onde foram deportados.
[10] Segundo as indicações que o livro de Jeremias
proporciona, as populações pobres teriam, inclusivamente, beneficiado de uma
certa redistribuição de terras que pertenciam aos exilados.
[11] O texto de 2 Reis 24,14.16 não menciona
explicitamente que entre os deportados também estivessem sacerdotes. Segundo 2
Reis 25,18-20, os sacerdotes mais importantes tinham sido mortos aquando da
destruição de Jerusalém. É possível que existissem alguns membros da classe
sacerdotal que tenham ficado para trás em Judá e que asseguraram algum tipo de culto sacrificial, como
sugere Jeremias 42,5:
«Eles disseram a Jeremias: «Que o SENHOR seja testemunha fiel e verdadeira
contra nós, se não fizermos tudo
o que o SENHOR, teu Deus, te mandar dizer-nos!»
[12] A. Steil, «Krisensemantik: Wissenssoziologische
Untersuchungen zu einem Topos moderner Zeiterfahrung», Opladen 1993.
[13] Por outro lado, essa delimitação cronológica é
enganosa, pois, embora a queda do Império neobabilónico tenha significado que
as populações de Judá exiladas pelos babilónios puderam retornar à sua terra,
muitos dos exilados permaneceram na Babilónia e no Egipto, dois lugares que se
tornariam centros intelectuais do judaísmo.
[14] Para mais detalhes, cf. T. Römer, «La Première Histoire d’lsrael. L'École deuteronomiste
à l’œuvre», Genève 2007.
[15] O hebraico «berît» é geralmente traduzido como
“aliança”. Na verdade, abrange o mesmo campo semântico que o assírio «adê»,
“tratado” ou “juramento de fidelidade”.
[16] Cf. Introdução desse livro, N.1
[17] Esta célebre expressão («wie es eigentlich gewesen») talvez
ficasse melhor traduzida por «como basicamente aconteceu»; cf. R. J. Evans, in «Defence
for History», London 1997, 17.
[18] Tal como o demostrou Rolf Rendtorff, «Die Erwahlung
Israels als Thema der deuteronomischen Theologie», em J. Jeremias - L. Perlitt
(dirs.), «Die Botschaft und die Boten. Festschrift Hans Walter Wolff zum 70.
Geburtstag», Neukirchen-Vluyn 1981, 75-86.
[19]
Dt 10, 16 e 30, 6 enfatizam o motivo da "circuncisão do coração"; isso
poderia levar a uma controvérsia contra a tentativa sacerdotal de transformar o
ritual da circuncisão em um sinal distintivo do judaísmo nascente.
[20] O. H. Steck, «Gottesknecht und Zion. Gesammelte Aufsätze
zu Deuterojesaja», Tübingen 1992.
[21] Para uma versão inglesa, cf. www.britishmuseum.org/collection/object/W_1880-0617-1941
ou então www.livius.org/sources/content/cyrus-cylinder/cyrus-cylinder-translation/
(última consulta Th. Römer:
30.9.2022).
[22] Esta expressão «El», neste contexto, possui
unicamente o sentido de um «deus» vulgar.
[23] J. D. Macchi, «”Ne ressassez plus les choses
d’autrefois”. Ésaïe 43,16-21, un suprenant regard deutéro-ésaïen sur le passé»:
Zeitschrift für die Alttestamentliche Wissenschaft 121 (2009) 225-241.
[24]
A vitória de Yhwh sobre os babilónios é
descrita com as mesmas imagens da derrota do Faraó e do seu exército no livro
de Êxodo.
[25] Quanto a este assunto, cf. D. V. Edelman, «Proving
Yahwh killed his wife (Zechariah 5,5-11)»: Biblical Interpretation (2003)
335-344.
[26] A expressão «ris’ãh» pode ser interpretada
provavelmente como um jogo de palavras a partir do nome da deusa Asherá
(«’ãserãh»).
[27] A trasladação da deusa para a Babilónia reflecte, sem
sombra de dúvidas, a ideia de que a deusa (Ishtar) era originária da
Mesopotâmia, aonde, segundo Zacarias 5, é imperioso que regresse para sempre.
[28] O sentido exacto do verbo que aqui se utiliza é
«parir envolto em dores», verbo que está redigido no particípio masculino.
[29] M.-T. Wacker, «Figuration des Weiblichen im
Hosea-Buch», Friburg-Bâle-Vienne 1996.
[30] M. Nissinen, «Prophetie, Redaktion und Forstchreibung
im Hoseabuch: Studien zum Werdegang eines Prophetenbuches im Lichte von Hos 4
und 11», Kevelaer-Neukirchen 1991, 268-276.
[31] J. Wellhausen, «Die Kleinen Propheten. Skizzen und
Vorarbeiten 5», Berlin 1963 (31889), 134.
[32] Tal é facilmente dedutível já que o autor de Génesis
1 utiliza a expressão «Elohim», a qual tanto pode ser tomada no singular como
no plural.
[33] Encontramos um fenómeno comparável no Egipto, onde a «ma’at», conceito que exprime a ordem
justa do munto (“A Sabedoria”), se transforma numa jovem deusa adornada com uma
pluma, símbolo da ma’at.
[34] Mais tarde, uma evolução semelhante é observada no judaísmo em relação à ideia de “shekinah”, que primeiro significa a presença divina entre os homens, mas que às vezes também assume a forma de uma hipóstase.
[35] No marco narrativo que compreende os capítulos 1−2 e 42, os sofrimentos de Jó são consequência, são
fruto de uma aposta entre Yhwh e o Adversário («satã»), que faz o papel de um
agente provocador da Corte Celestial, ao qual voltaremos mais adiante.
[36] M. Leuenberger, “«Ich bin Jhwh und keiner sonst»: der
exclusive Monotheismus des Kyros-Orakels Jes. 45,1-7”, Stuttgart 2010.
[37] Refere-se ao rei persa Ciro.
[38] Esta expressão que usualmente é traduzida por «paz»
significa “ordem justa”, significa que tudo está no seu equilibrado lugar, num
estado de perfeição; assim nada nem ninguém perturbará.
[39] Só o livro do Eclesiastes (Qohelet) irá no mesmo
caminho e aconselhará os seus leitores: «No dia da felicidade, sê alegre; no
dia da desgraça (ra’ah),
reflecte, pois Deus fez uma a par da outra, a fim de que o homem não descubra o
que depois lhe irá acontecer.» (Ecl 7,14)
[40]
C. Nihan, «From
Priestley Torah to Pentateuch: A Study in the Composition of the Book of
Leviticus», Tübingen 2007, 340-378. [Edição Kindle]
[41] A teoria desta ideia encontra-se na versão sacerdotal
da revelação de Moisés no livro do Êxodo cap. 6: «2Deus falou a
Moisés, dizendo-lhe: «Eu sou o Yhwh. 3Apareci a Abraão, a Isaac e a
Jacob como El Shaday [Deus supremo], mas pelo meu nome “Yhwh”, Eu não me dei a
conhecer por eles.» Este texto remete para Génesis 17, que também é relato de
tipo sacerdotal no qual Yhwh se revela a Abraão como «El Shaday». Os redactores
sacerdotais, antes desta revelação a Abraão, utilizam a expressão «Elohim».
[42] A. de Pury, «Gottesname, Gottesbezeichnung und
Gottesbegriftt. “Elohim als Indiz zur Entstehungsgeschichte des Pentateuch”»,
in J. C. Gertz – K. Schmid – M. Witte (Dirs.), “Abschied vom Yahwisten. Die
Komposition des Hexateuch in der jüngsten Diskussion”, Berlin-New York 2002,
25-47.
[43] E. A. Knauf, «El Saddai – der Gott Abrahams?»: Biblische Zeitschrift 29 (1985),
97-105.
[44] Esta proximidade é encenada também na narração
sacerdotal da instituição da circuncisão em Gn
17, 1-14, apresentada como sinal da
aliança entre Yhwh e Abraão. A circuncisão afeta não apenas Isaque, mas também
Ismael, o que reflete que o autor sacerdotal estava ciente dessa prática nas tribos árabes. O fato de Ismael (v. Gn 17, 25) ser
circuncidado aos treze anos e Isaque (Gn 21, 4) aos
oito dias
de nascimento indica a evolução, no judaísmo, de um rito de
passagem ligado à puberdade para um ritual que marca a entrada do
recém-nascido numa comunidade.
[45] Para uma primeira iniciação, cf. G. Widengren, «Les Religions de l’Iran», Paris 1968; M. A. Dandamaev – V. G. Lukonin, «The
Culture and Social Institutions of Ancient Iran», Cambridge 1989; J.
Wiesehöfer, «Das antike Persien. Von 550 v.Chr. bis 650 n.Chr.,
Düsseldorf-Zurich 2005 (1993).
[46] Quanta a estas inscrições, cf. P. Lecoq, «Les Inscriptions de la Perse achéménide», Paris, Gallimard 1997, 217.
[47] L. L. Grabbe, «Ezra-Nehemiah»,
London- New York 1998, 160.
[48] Neste sentido, cf. H. Niehr, «Religio-historical
aspects of the “early post-Exilic” period», in B. Becking – M. C. A. Korpel
(dirs.), “The Crisis of Israelite Religion. Transformation of Religious
Tradition in Exilic and Post-Exilic Times”, Leyde-Boston-Köln 1999, 228-244,
243. Não há dúvidas que a historicidade da figura de Esdras levanta muitas
questões e dúvidas; a de Neemias parece mais plausível.
[49] Para mais detalhes, cf. A. de Pury – T. Römer, «Terres
d’exil et terres d’accueil. Quelques réflexions sur le judaïsme postexilique
face à la Perse et à l’Égypte»:
Transeuphratène 9 (1995) 25-34, 29-30.
[50] Tal como mostra o alto-relevo e as inscrições de Beistum, as quais descrevem as conquistas de Dario.
[51]
Neste relato, «satanás» não é (ainda) um nome
próprio: designa apenas uma função…
[52]
É por demais evidente que os versículos que representam o face-a-face entre
Deus e Satanás foram adicionados após a história original, na qual Yhwh foi
diretamente responsável pelos infortúnios de Jó. De facto, o primeiro capítulo
de Jó pode ser lido sem as cenas da Corte Celestial, tanto mais que os
pronomes-sufixos do versículo 13 (“os seus filhos e filhas”) não podem
referir-se ao versículo precedente (“Satanás retirou-se da presença de Yhwh”);
são apenas compreensíveis como continuação do versículo 5 ("assim fez Jó
todas as vezes"). Além disso, o epílogo do capítulo 42 não contém alusão a
uma aposta entre Deus e Satanás, mas passa a um acerto de contas entre Yhwh e
os amigos de Jó. A inserção posterior de satanás na história de Jó pode,
portanto, ser entendida como uma tentativa de
colocar o mal fora de Deus e "personificá-lo".
[53] Os livros das Crónicas são mais recentes que os
livros de Samuel e foram compostos no final da época persa ou no princípio da
época helenística.
[54] C. Briffard, «2 Samuel 24. Un parcours royal: du pire au meilleur»: Études théologiques et religieuses 77» (2002)
95-104.
[55] Recordemos o dualismo defendido pela Comunidade de
Qümran, a qual aguardava um combate escatológico
que oporia os «filhos da luz» aos «filhos das trevas». Na época de Jesus existia, ao nível popular, uma
demonologia muito mais complexa.
[56] Frantz Grenet, «Y a-t-il une composante iraniennne dans
l’apocalyptique judéo-chrètienne? Retour sur un vieux problème»: Studia Archaeus 11-12 (2007-2008) 15-36.
[57] J. Briend, «Malachie 1, 11 et I'universalisme», en R.
Kuntzmann (dir.), “Ce Dieu qui vient. Mélanges offerts à Bernard Renaud”, Paris
1995, 191-204.
[58] Pierre Grelot, «Documents araméens d’Égipte», Paris 1972, 95, documento 10.
[59] Sétimo mês do calendário egípcio; corresponde ao
Tishri babilónico.
[60] Moeda persa que corresponde a 10 siclos; o siclo era
equivalente ao didracmo dos gregos.
[61] P. Grelot, «Documents araméens d’Égipte», 383, documento 89.
[62] Este papiro encontra-se em Berlin. Para uma consulta:
[63] L. L. Grabbe, «A History of the Jews and Judaism in the Second Temple
Period. I, Yehud: a History of the Persian Province of Judah», London – New York 2004, 318-319.
[64] P. Grelot, «Le monothéisme est três difficile à
pensar!»: Le Monde de la Bible 124 (2000) 50-51.
[65] Cf. G. Ahn, «”Monotheismus”-“Polytheismus”. Grenzen
und Möglichkeiten einer Klassifikation von Gottesvorstellungen», in M. Dietrich
– O. Loretz (dirs.), “Mesopotamia-Ugaritica-Biblica (Festschrift Kurt
Bergerhof)”, Neukirchen-Vluyn 1993, 1-24, 5-6.
[66] Para mais detalhes e bibliografia, cf. Fritz Stolz, «Einführung in den biblischen Monotheismus», Darmstadt 1996, 4-22.
[67] Samuel Terrien, «Job: the Poet of Existence», Genève 22005, 60-62.
[68] Houve quem quisesse ver traços deste hino no Salmo
104, porém os paralelos são muito ténues.
[69] Jan Assmann, «Le traumatisme monothéiste»: Le Monde de la Bible 124 (2000) 29-34.
[70] Para os fragmentos de Manetho, cf. G. P. Verbtugge –
J. M. Wickersham, «Berossos and Manetho Introduced and Translated. Native
Traditions in Ancient Mesopotamia and Egypt», Ann Arbor 2000. Cf. também J.
Assmann, «Exodus und Amarna. Der Mythos der “Aussätzigen” als verdängle
Erinnerung der Aton-Religion», in E. Staehlin – B. Jaeger (dirs.),
«Ägypten-Bilder. Akten des «Symposiums zur Ägypten-Rezeption», Augst bei Basel,
vom 9.-11. September 1993, Fribourg-Göttingen 1997, 11-34; P. Borgeaud, «Aux
origines de l’histoire des religions», Paris 2004, 97-102.
[71] Sobretudo em S. Freud, «El hombre Moisés y la religión monoteísta», Madrid 2015 (1939).
[72] Trata-se sobretudo dos livros de Esdras, Neemias,
Ageu e Zacarias.
[73] J. Briend, «L’édit de Cyrus et sa valeur historique»: linha 11 da
base-de-dados Transeuphratène
11 (1996), 33-34.
[74] É costume dizer que, no
início do período persa, Yehud não era autónomo, mas fazia parte de uma
província maior, cuja capital teria sido Samaria. Yehud não se teria separado
da Samaria até Neemias. Essa ideia deve ser abandonada. Na verdade, há mais
evidências a favor da existência de um Yehud como uma “província independente”
desde o período neobabilónico.
[75] Segundo a apresentação bíblica e a opinião
tradicional dos especialistas, o templo foi reconstruído durante os anos
520-515 a.e.c. No entanto, Diana V. Edelman defendeu que seria mais verosímil
correlacionar a reconstrução do templo com as actividades de Neemias a partir
do ano 445 a.e.c. Isso parece-me mais sensato, à luz das importantes mudanças
que se operaram na província de Yehud sob o reinado aqueménida de Artaxerxes
(465-424 a.e.c.). Cf. Diana Vikander Edelman, «The Origins of the “Second” Temple. Persian Imperial
Policy and the Rebulding of Jerusalem»,
London 2005.
[76] Neste sentido, veja-se o capítulo 2 do livro de Ageu; veja-se também a importância de Zorobabel nas visões
que estão no livro de Zacarias.
[77] F. Bianchi, «Le rôle de Zorobabel et de la dynastie
davidique en Judée du VIe siècle au IIe siècle av.
J.-C.»: Transeuphratène 7 (1994) 153-165.
[78] A. Lemaire, «Administration in the 4th century B.C.E.
Judah in light of epigraphy and numismatics», in O. Lipsichits – G. N. Knoppers
– R. Albertz (dirs.), «Judah and the Judeans in the Fourth Century B.C.E.»,
Winona Lake 2007, 53-74.
[79] É muito difícil oferecer uma indicação precisa quando
ignoramos a extensão do território da Yehud persa. C. E. Carter, «The Emergence of Yehud in the Persian Period. A Social
and Demographic Study», Sheffield
1999, 246-248, estima que a população que vivia neste Yehud seria de
20 000 a 30 000 pessoas.
[80] Cf. O. Lipschits, «Demographic changes in Judah
between the seventh and the fifth centuries B.C.E.; Israel Finkelstein, «The
territorial extent and demography of Yehud/Judea in Persian and early
Hellenistic periods»: Revue biblique
117 (2010) 39-54.
[81] L. Pearce, «New evidence for Judeans in Babylonia»,
in O. Lipschitz – M. Oehming (dirs.), “Judah and the Judeans in the Persian
Period”, Winona Lake 2005, 399-411.
[82] E. Stern – Y. Magen, «Archeological evidence for the first stage of the
Samaritan temple on Mount Gerizim»:
Israel Exploration Journal 52 (2002) 49-57.
[83] No Deuteronómio 27 o texto massorético afirma que o
altar deve ser construído no topo do monte Ebal, ao passo que o Pentateuco
samaritano fala de Monte Garizim. Na verdade, esta última versão é a versão
original, que ademais é confirmada por um fragmento de Qümran. Cf. C. Nihan,
«Garizim et Ébal dans le Pentateuque. Quelques remarques en marge de la
publication d’un nouveau fragment du Deutéronome»: Semitica 54 (2011) 185-210.
[84] Peter Frei, «Zentralgewalt und Lokalautonomie im
Achämenidenreich», in P. Frei – K. Koch, «Reichsidee und Reichorganisation im
Perserreich», Fribourg-Göttingen 21996, 5-31.
[85] Jean Louis Ska, «Le Pentateuque et la politique
imperial perse»: Foi & Vie 103, Cahiers bibliques 43 (2004) 17-30.
[86] M. Köckert, «Die Entstehung des Bilderverbots», in B.
Groneberg – H. Spieckermann (dirs.), “Die Welt der Götterbilder”, Berlin 2007,
272-290.
[87] Tácito, «Historias V,1».
[88] Tal reacção fez com que se inventasse todo o tipo de
discursos antijudaicos, como por exemplo, que no templo de Jerusalém existia um
asno ou uma cabeça de burro venerado como deus pelos judeus. Cf. P. Bourgeaud,
«Moïse, son âne et les Typhoniens. Esquisse pour une
remise en perspective» [Moisés, o seu burro e os Tifonianos. Esboço de
uma perspectiva], in “T. Römer (dir.), «La Construction de la figure de Moïse. The
Construction of the Figure of Moses”,
Paris 2007, 121-130.
FIM