O “rolo” achado nas obras do Templo é apresentado pelo rei Josias (a seu lado, Manassés - El Escorial©) onde se lê: «Assim diz Yhwh: Vou enviar calamidades sobre este lugar e sobre os seus habitantes, conforme as ameaças que o rei de Judá leu no livro» (2Reis 22,16). Presume-se que a referência arquitetónica da planta inicial de “O Escorial” tenha sido a descrição do Templo de Salomão, feita pelo historiador Flávio Josefo. No Escorial existem paredes cujas temáticas são os principais triunfos bélicos do exército franquista-nacionalista aquando da chacina dos Republicanos durante a Guerra Civil de Espanha (1936-1939)…
A REFORMA DE JOSIAS
Como pode a ideia de um deus paternal e maternal
coexistir com a de um deus vingativo?
Em alguns Salmos, encontramos títulos divinos como p. ex. «deus
vingador» que castiga os pecados (Sl 99, 8) ou
«deus da vingança» (Sl
94, 1) acompanhados de imagens particularmente violentas. Eis como o Salmo
58 reflete a situação de um indivíduo rodeado de pessoas «más» que zombam
da justiça e do direito (cf. v. 2-3): «Ó Deus, parte os dentes da sua boca [...]
O justo se alegrará quando vir vingança, lavará os pés no sangue dos ímpios; e
os homens dirão: “Sim, existe recompensa para o justo; de facto, há um Deus que
faz justiça sobre a terra.”» (Sl 58, 7.11-12). Um
texto como este é difícil de suportar. (…)
Os textos bíblicos que
retratam um ‘deus guerreiro’ representam um problema comparável ao de um deus
vingador. Como
lidar com textos bíblicos − como p. ex. os do livro de Josué −
que descrevem a instalação de Israel na terra prometida como parte de uma
conquista militar realizada sob a conduta do deus de Israel? Os autores que nos
transmitiram o livro de Josué estavam sendo confrontados com a ideologia
assíria dominante no antigo Próximo Oriente entre os séculos IX e VII a.e.c. De
acordo com esta ideologia assíria, Assur, o deus
nacional do império
assírio, era um deus invencível que conduzia todas as guerras assírias a
fim de subjugar todos os povos. Para os teólogos judeus, esta ideologia opunha-se
à soberania do deus de Israel. Os teólogos
judeus assumiram, então, o “modelo teológico assírio” e viraram-no contra os
próprios assírios. Quiseram com isso mostrar que Yhwh (deus dos
judeus) era mais forte do que Assur e que o deus de Israel tinha dado a terra
de Canaã (com todos os seus habitantes) ao seu povo como recompensa. Mas como?
Deste modo. É que, acontece
que na altura dessa redação teológica (Livro de Josué), os habitantes de Canaã eram
justamente os assírios. Ou seja, os relatos, que
nos apresentam uma vitória sobre os cananeus, na realidade, são uma verdadeira
vitória sobre aqueles assírios que, à época, ocupavam Canaã! Os redactores do livro de Josué afirmam, deste
modo genial, a superioridade de Yhwh sobre a Assíria e sobre todos os seus
deuses, mesmo que isso lhes custe converter Yhwh também num deus tão guerreiro
quanto o deus Assur.
Não podemos negar o peso da imagem de
um deus bélico na Bíblia hebraica. No entanto, devemos ao mesmo tempo sublinhar
o facto de, ao mesmo tempo e graças à Crítica
Textual, essa imagem poder ser «contrabalançada por releituras» que a modificam
substancialmente.
Thomas
Römer, «Monoteísmo y poder», Universidad Bíblica Latinoamericana, Costa Rica
2018, p. 85-87.
1. O REINADO DE JOSIAS
O começo do reinado de Josias coincide mais ou menos com o declínio do Império Assírio. Por volta do ano
627 a.e.c. [antes da era comum],
a Babilónia recupera a sua independência e os assírios declinam a sua presença
no Próximo Oriente, o qual passará a estar, por algum tempo, sob o controlo do
Egipto. É possível que os assírios e os egípcios, sob Psametico I (664-610), tivessem assinado um pacto segundo o qual os
assírios, em troca de apoio militar, devolveriam o Próximo Oriente ao Egipto. O
reinado de Josias faz parte desta situação. O relato bíblico, que lhe é
consagrado, trata quase exclusivamente da “reforma” que ele teria empreendido.
Os capítulos 22 e 23 de 2 Reis, bem como 2 Crónicas 34-35, narram a descoberta de um rolo em pergaminho
no templo de Jerusalém durante obras de renovação, no décimo oitavo ano do
reinado de Josias. Esta descoberta feita pelo sacerdote Hilchias e a leitura do
pergaminho ao rei pelo alto funcionário Chafan provocam
uma reação muito forte em Josias, que parece estar seriamente afetado pelas
maldições contidas no livro. Enviou então Hilchias, Chafan e outros
funcionários a perguntar à profetisa Hulda qual o significado do pergaminho
encontrado. Ela responde à delegação com palavras que têm inúmeros paralelos no
livro de Jeremias. Acima de tudo, anuncia um infortúnio que se abaterá sobre
Jerusalém por causa do abandono de Yhwh por parte dos habitantes de Judá, e um
oráculo de paz para Josias:
«16Assim
diz Yhwh: Vou enviar calamidades sobre este lugar e sobre os seus habitantes,
conforme as ameaças que o rei de Judá leu no livro. 17Pois eles
abandonaram-me e queimaram incenso a deuses estrangeiros, irritando-me com as
suas obras; a minha indignação inflamou-se contra esta terra e não se apagará
mais. 18Porém, ao rei de Judá, que vos mandou consultar Yhwh,
direis: Isto diz Yhwh: 19Porque ouviste as palavras do livro, e o
teu coração se atemorizou, e te humilhaste diante de Yhwh, ao ouvir a minha
sentença contra esse lugar e contra os seus habitantes, condenados a serem
objecto de espanto e de maldição, e rasgaste as tuas vestes e choraste diante
de mim, eu também te ouvi, oráculo de Yhwh. 20Por isso, vou
reunir-te a teus pais e serás sepultado em paz no teu sepulcro, para que os
teus olhos não vejam as calamidades que vos vou enviar sobre esta terra.» (2 Rs 22,16-20)
Tendo os seus oficiais transmitido a
Josías a mensagem, o próprio Josias lê o livro para “todo o povo” e compromete-se
através de um tratado (Aliança) com Yhwh (2 Reis 23,1-3). Em seguida, Josias empreende
importantes mudanças cultuais em
Jerusalém e em Judá. Elimina os símbolos de culto, bem como «o exército
celestial» e os sacerdotes das divindades Baal e Asherah. Também profanou e
destruiu os "bãmôt", os santuários ao ar livre (os “Lugares Altos”)
consagrados a Yhwh, e também o “tõpet” – aparentemente, um lugar onde eram
realizados sacrifícios humanos. De acordo com 2Rs 23,15, Josias chega a derrubar
o altar de Betel, o antigo santuário yahvista de Israel. Os actos de destruição
têm a sua contrapartida positiva na conclusão de um (novo) tratado entre Yhwh e
o povo, e a celebração de uma Páscoa (v. 21-23).
2. O ‘REI RESTAURADOR DO SANTUÁRIO’ E ‘O
LIVRO’ DESCOBERTO
Antigos comentadores judeus, bem como
alguns Padres da Igreja identificaram o livro encontrado em 2 Reis 22-23 como
sendo «O Livro do Deuteronómio», uma vez que os actos de Josias e a ideologia
centralizadora estabelecida pela sua «reforma» parecem coincidir com as
prescrições da Lei Deuteronómica[1]. Essa identificação tem sido usada
desde então, nos séculos XIX e XX, para situar a edição inicial do livro do
Deuteronómio no reinado de Josias. De acordo com a teoria da «mentira piedosa»,
a primeira edição do Deuteronómio teria sido escrita para promover a reforma de
Josias: essa Reforma de Josias teria sido camuflada sob a designação de «O
Testamento de Moisés» e, depois, “escondida com o rabo de fora” no Templo, de
modo que fosse facilmente descoberta. Esta teoria pressupõe a historicidade da
descoberta do Livro, aspecto que suscita problemas. O relato de 2 Reis 22-23 é,
antes de mais, um «mito fundador» dos escritores
bíblicos, que escrevem a história da realeza de acordo com as escolhas
teológicas do livro do Deuteronómio: esses escritores são os teólogos
deuteronomistas. No entanto, o relato não pode ser ingenuamente usado como um
relato de testemunhas oculares de eventos que ocorreram por volta de 620 a.e.c.
Na sua forma atual, pressupõe a prévia
destruição de Jerusalém e até o próprio exílio babilónico. Portanto, o relato teve de ser escrito depois do
ano 587 a.e.c., como mostram, aliás, os anúncios da profetisa Hulda em 2 Reis 22,16-17 («16Vou enviar
calamidades sobre este lugar e sobre os seus habitantes, conforme as ameaças
que o rei de Judá leu no livro. 17Pois eles abandonaram-me e
queimaram incenso a deuses estrangeiros, irritando-me com as suas obras; a
minha indignação inflamou-se contra esta terra e não se apagará mais.»)
O motivo para que ocorram “descobertas
de livros” é bastante comum na literatura antiga[2].
Regra geral serve para legitimar mudanças
religiosas, económicas e políticas. Podemos citar, entre outros, um
texto hitita do século XIV a.e.c., no qual o sacerdote de Mursili explica, numa
oração, que encontrou duas tábuas que permitiram compreender as razões de uma
epidemia que atingiu o país hitita; uma dessas tabuletas relata um juramento do
pai de Mursili, que ele não havia respeitado[3].
Eusébio, um Padre da Igreja, cita a obra de um certo Filó de Biblos (século 1
ou 2 e.c.), que afirma ter traduzido a história da Fenícia da autoria de um
certo Sanjuniatón. Isso teria sido baseado em algumas
tábuas muito antigas de Taaut (Thot), escondidas no passado por alguns
sacerdotes, e que ele teria descoberto[4].
Uma versão egípcia deste motivo aparece na rubrica final do capítulo 64 do
"Livro dos Mortos", que não tinha uma única versão até ao período Saíte
(664-525 a.e.c). Diz-se que este capítulo foi encontrado no templo de Sokaris e
que remonta às origens do Egipto[5].
É possível, portanto, que a primeira
versão das reformas de Josias, ainda não contivesse o relato da descoberta de
um livro[6].
Por outro lado, a informação do versículo 8, que fala da descoberta do livro
pelo sacerdote Hilchias, é introduzida de forma bastante rude no texto e
interrompe a primeira cena (cf. v. 3-7 e 9[7]).
Portanto, é muito provável, como muitas vezes tem sido argumentado, que duas
histórias devam ser distinguidas em 2 Reis 22: o relato da restauração e
o da descoberta do livro. É possível que este relato da descoberta[8]
seja uma inserção tardia, atribuível a um
escritor da era persa que, no contexto do judaísmo nascente, deseja
mostrar como o Livro (o Pentateuco) substitui o culto tradicional. A origem do
motivo da “descoberta do livro” também tem paralelos nas tábuas dos depósitos
de fundação dos santuários mesopotâmicos, que muitas vezes são “redescobertos”
por reis que realizam trabalhos de restauração em uma data posterior. As
inscrições de Nabonido (556-539), o último rei do Império Neobabilónico
que procurou ficar para a História como o maior descobridor de documentos, têm
um valor muito especial. Eis o relato da reconstrução do templo de Shamash em Sipar:
"Um antigo rei [isto é,
Nabucodonosor] tinha procurado, sem sucesso, a antiga pedra fundamental. Por
sua própria iniciativa, ele tinha construído um novo templo para Shamash, mas
não foi construído [suficientemente bem] durante o seu reinado […], as muralhas
[…] corriam o risco de desabar […]. Eu implorei a [Shamash], ofereci
sacrifícios e perscrutei as suas decisões. Shamash, o Altíssimo Senhor,
tinha-me escolhido desde os tempos mais remotos. Inquiri e reuni os anciãos da
cidade, os babilónios, os arquitetos, os sábios... [...] E disse-lhes: «Procurem
a primeira pedra.» Os sábios procuraram a antiga pedra fundamental; implorando a
Shamash, meu Senhor, e orando aos grandes deuses, eles inspecionaram o lugar e
os quartos e viram-na. Eles vieram até mim e disseram: «Vimos a antiga pedra
fundamental de Naram-Sin, o antigo rei, do verdadeiro santuário de Shamash, a
morada da divindade.» O meu coração alegrou-se e o meu rosto iluminou-se[9]."
De acordo com este texto, a primeira
pedra contém o documento do “templo original” e permite que o rei Nabonedo
realize os trabalhos de restauração. No relato em
2 Reis 22-23 a ‘pedra fundamental’ foi substituída pelo ‘livro’, o que
mostra que esta é uma história construída para descrever os eventos de 622 a.e.c.,
e, portanto, não pode ser tomada ao pé da letra. Além disso, o relato da
restauração do templo pelo piedoso rei Josias depende literalmente do relato da
renovação encontrada em 2 Reis 12,10-16 a respeito de Joás, rei de Judá[10].
Aparentemente, o relato da
restauração do templo por Joás, coroado aos sete anos de idade, que encerra “o
intervalo” da rainha Atália (2Cr 22-10; 2Cr 23,15), serve de
modelo para o relato de Josias, que se tornou rei aos oito anos de idade. Joás
também é visto positivamente pelos autores do Segundo Livro dos Reis, embora os
«lugares altos» não tenham sido destruídos (2 Reis 12,3-4). Para os editores
dos livros dos Reis, tratava-se de mostrar que Josias termina o que Joás não
pôde fazer. Em geral, as obras no santuário fazem parte de um ritual pelo qual
o rei mostra sua lealdade aos deuses[11].
Ao integrar motivos do Próximo Oriente (rei-curador “renovador do templo”
e consolidador da narrativa através da “descoberta de documentos antigos”)
o relato de 2 Reis 22 pretende criar o ambiente para que Josias aparece como um rei exemplar.
O que dizer, então, da famosa reforma
de Josias? É pura ficção dos escritores bíblicos, como sustenta um número
significativo de exegetas? É verdade que não temos provas em primeira mão de
qualquer «reforma de Josué»[12]
que ateste a existência de uma reorganização política ou cultual. No entanto,
não são poucos os indícios que tornam muito plausível que o reinado de Josias
corresponda a mudanças importantes na veneração a Yhwh.
3. PROVAS ARQUEOLÓGICAS?
O expediente
arqueológico não consegue provar a historicidade da reforma de Josias.
Muitas vezes se quis fazer crer que a perda de importância do santuário
de Arad era uma prova política da centralização levada a cabo por Josias[13].
O facto de os altares e as duas “massebas” do santuário terem sido
encontrados derrubados levou-nos a pensar que eram vestígios da sua destruição
pelo exército de Josias, mas esta visão das coisas não se impôs de todo. De
acordo com David Ussishkin, o santuário não teria existido até
o século VII e teria sido usado até o século VI a.e.c.[14]
De acordo com Zeev Herzog, a construção do santuário e do muro deve ser datada de
meados do século VIII a.e.c.. Para além disto, o fato de os dois altares com
chifres e as “massebas” terem sido cuidadosamente colocados fora de
sítio − ou até escondidos − e o local onde foram localizados
poderia eventualmente estar relacionado com o interesse em esconder este
santuário durante a época da invasão assíria sob o reinado de Ezequias[15].
Estas visões contraditórias mostram que não é
fácil interpretar os dados arqueológicos. Uma fortaleza foi
reconstruída em Arad no tempo de Manassés ou no tempo de Josias. O facto de o
santuário não ter sido reabilitado poderia eventualmente estar relacionado com
a crescente importância de Jerusalém e, portanto, com a reforma de Josias. Em
suma, não é fácil interpretar os dados arqueológicos.
A reforma de Josias, pode ter estado
por trás da mudança do glíptico de Judá entre os séculos VII e VI a.C. No
século VII, os selos da aristocracia e dos oficiais são em grande parte
gravados com motivos astrais e representações antropomórficas de divindades,
enquanto que em um ‘corpus’ de cerca de 260 selos datados do início do
século VI não há símbolos nem divindades astrais, mas motivos mais abstratos. Isso
implica que, por volta de 600 a.e.c., motivos antropomórficos e astrais tinham
caído em desuso entre a elite de Jerusalém[16].
Além disso, a partir do final do século VII não há mais desenhos que pudessem
ser identificados com o casal “Yhwh e sua Achera”. Quanto à epigrafia, este par
já não é atestado em Judá em datas posteriores às inscrições de Khirbet el-Qom
e Kuntillet Akhrud[17].
Na inscrição em Khirbet Beit Lei (8 quilómetros a leste de Láquis) há uma
referência a Jerusalém. É uma inscrição difícil de ler e de datar, que parece
afirmar que «Yhwh é o deus de toda a terra, o deus de Judá e Jerusalém»[18].
Se esta inscrição datasse do final do século VII a.e.c. poderia de alguma forma
defender-se a tese de uma centralização do culto de Yhwh. Deve-se notar que
também nesta inscrição Yhwh é apresentado como o deus de Judá e de Jerusalém.
5. AS INDICAÇÕES FORNECIDAS PELO RELATO DE 2 REIS 23
De acordo com 2 Reis 23, Josias
suprimiu muitos elementos que refletiam um culto astral, um aspecto relevante
da ideologia religiosa neo-assíria. A referência aos cavalos e carros de Shamash, o deus
sol (v. 11), é historicamente
plausível no contexto da dominação assíria: «Ele removeu os cavalos que os reis
de Judá tinham instalado em honra do Sol
na entrada da Casa de Yhwh, ao lado da câmara do eunuco Natan-Mélec (2Reis 23,11) situada nos anexos;
queimou as carruagens do sol.» A importância do culto
ao sol em Jerusalém também é indicada no livro de Ezequiel: «Depois,
conduziu-me ao átrio interior da casa do SENHOR e eis que, à entrada do
santuário do SENHOR, entre o vestíbulo e o altar, estavam cerca de vinte e
cinco homens com as costas voltadas para o santuário do SENHOR e o rosto para o
oriente. Prostravam-se para oriente diante do sol.» (Ez 8, 16).
A iconografia do antigo Próximo
Oriente fornece um número significativo de representações de cavalos e
cavaleiros, ao mesmo tempo que as imagens do
deus Sol estão em estreita relação com cavalos. De particular
interesse é um desenho de um molusco tridacna, encontrado em Sippar [Iraque] datado do século VII a.e.c. Retrata dois cavaleiros ladeando
uma divindade solar, situada numa espécie de nimbo[19]. Uma vez que Yhwh já havia sido
assimilado ao deus sol, a presença dos elementos solares assírios poderia ser
entendida em Judá como refletindo uma das manifestações de Yhwh.
O relato da reforma também menciona
uma classe específica de sacerdotes chamada «kemarim». De acordo com 2 Reis 23,5, Josias «aboliu os “kemarim”, que
os reis de Judá haviam estabelecido para queimar incenso em honra do Baal, do
sol, da lua, das constelações e de todos os céus». O termo kemarim, do kumru acadiano mas provavelmente de origem
aramaica, é bastante raro na Bíblia. Encontramo-lo em duas estelas funerárias
em aramaico que remontam ao século VII a.C. Parece que este é um grupo
específico de sacerdotes que estão mais especialmente ligados ao serviço das divindades astrais, os deuses da lua e do sol.
Pode, portanto, ser uma memória histórica de uma classe de sacerdotes “importados”
no contexto da ocupação assíria.
A observação do versículo 12, segundo
a qual «o rei derrubou os altares da alcova de Acaz, sobre o flagelo, alguns
altares que os reis de Judá tinham feito», pode aludir a um culto prestado aos “exércitos
dos céus” nos topos das casas de Jerusalém. O rei Acaz tinha sido vassalo do
rei da Assíria e pode ter erguido um local de culto em um telhado para
demonstrar sua lealdade[20]
(2 Reis 16). Temos que imaginar um grande altar
ao qual se acedia através de uma escadaria, o que pode dar a ideia de um
telhado. O livro de Jeremias também menciona este culto
realizado em residências particulares, todas providas de açoteias: Jeremias 19, 1-13 - Cap 19 - A bilha quebrada - 1Assim fala
o SENHOR: «Vai e compra uma bilha de barro, leva contigo alguns anciãos do povo
e anciãos dos sacerdotes, 2e dirige-te ao vale de Ben-Hinom, diante
da porta da olaria, e pronuncia ali o oráculo que te vou dizer. 3Dirás
então: “Escutai a palavra do SENHOR, reis de Judá e habitantes de Jerusalém.
Isto diz o SENHOR do universo, Deus de Israel: Vou
mandar sobre este lugar uma grande catástrofe que fará retinir os
ouvidos a quem dela ouvir falar. 4Com efeito, abandonaram-me,
profanaram este lugar e ofereceram incenso a outros deuses que não conheceram, nem eles, nem
seus pais, nem os reis de Judá. (…)” 10Então, na presença dos que
forem contigo, quebrarás a bilha, 11exclamando: Assim fala o SENHOR
do universo: “Quebrarei este povo e a cidade como se parte um vaso de barro,
que não pode mais refazer-se. E, por falta de outro lugar, serão sepultados em
Tofet. 12Isto farei a este lugar e aos seus habitantes, tornando
esta cidade semelhante a Tofet - oráculo do SENHOR. 13As casas de
Jerusalém e os palácios dos reis de Judá ficarão imundos como a terra de Tofet.
Todas essas casas, em cujos terraços ofereceram
incenso aos astros do céu e libações a deuses estranhos.”» Segundo
vários textos, estes cultos continuaram depois da reforma de Josias, mas fora
do templo, em casas privadas[21].
6. A
QUESTÃO DA PROSTITUIÇÃO CULTUAL
A reforma de Josias afectou também a
«prostituição cultual». Segundo 2 Reis 23,7, Josias «derrubou as casas dos
santos («qedesim»), que se encontravam na Casa de Yhwh e onde as
mulheres teciam tela para Achera[22]». Fica claro que «qâdes» é
uma expressão que se emprega para prostitutos masculinos[23]
e «quedesãh» para prostitutas femininas. No plano literário, a decisão
de destruir as casas dos prostitutos remete para uma informação que tem a ver
com um rei de Judá de nome Roboão. No final do século X a.e.c. e durante o seu
reinado, Roboão instituiu todo o tipo de cultos que desgostavam os redactores
bíblicos e introduziu a prática da prostituição masculina: «wegam qãdes
hãyãh bã’ãres», «houve prostitutos no país[24]»
(1 Reis 14,24).
O termo "q-d-s-(h)"
também aparece em textos ugaríticos, onde parece designar pessoas não
sacerdotais dedicadas a uma divindade. Eles poderiam casar-se, ter filhos e ser
libertados do seu serviço por decreto real. Os textos ugaríticos não fazem
qualquer referência à atividade sexual destas pessoas. Isto parece ser assumido
num texto bíblico que provavelmente é contemporâneo da reforma de Josias, e que
proíbe a prostituição no santuário: «Não haverá 'santo' ('qedesah')
entre as filhas de Israel, nem nenhum 'santo' ('qades'). Não levarás à
casa de Yhwh, teu Deus, para cumprir um voto, o salário de uma prostituta (‘zônãh’),
ou o preço de um cão (‘keleb’). Porque ambos são uma abominação a Yhwh,
teu Deus"[25]. Esta
proibição sugere uma prática comum, que deverá ser erradicada a partir de
então. O paralelismo da proibição −
«salário da prostituta» e «preço de um cão» − mostra que a denominação «santa» se refere a uma prostituta (zônãh)
e a expressão «cão» a um prostituto. A prostituição cultual gerou numerosos debates e
estimulou particularmente as fantasias dos comentadores. Segundo Karel van der
Toorn, tratava-se de uma «prostituição normal» que era gerida pelo Templo a fim
de angariar verbas suplementares. A ser assim, a observação 2 Reis 23,7 («Destruiu os lugares de
prostituição idolátrica do templo do SENHOR, onde as mulheres teciam véus para
Achera.») faz pressupor que as prostitutas dispunham de lugares específicos,
eventualmente alugados, no próprio Templo de Jerusalém[26].
A questão é se há uma ligação entre
as duas partes do versículo 7. A segunda parte, que menciona mulheres tecendo
vestidos para Asherah, tem sido muitas vezes considerada uma glosa, mas não
precisa necessariamente de ser assim. Se a casa do "qedêsim" era
também o lugar onde as mulheres faziam vestidos para a deusa, o
"qedêsim" poderia ser entendido como semelhante aos conhecidos
travestis ou eunucos que estavam ao serviço da deusa Ishtar, cujo equivalente
poderia ser a deusa Achera[27].
Observemos que o Livro do Deuteronómio proíbe não só a prostituição, mas também
o travestismo: « Uma mulher não usará roupas de homem, e um homem não usará
roupas de mulher, porque quem o fizer é abominação a Yhwh, teu Deus » (Dt 22, 5). Na Mesopotâmia, a "casa de
Ishtar" também podia designar o bordel, e não havia dúvida de que havia
uma conexão entre a prostituição e o culto a Ishtar. Textos neobabilónicos de Uruk parecem indicar que o clero alugava mulheres para homens abastados,
aparentemente como uma fonte suplementar de financiamento.
A existência de homens e de mulheres
que se prostituíam no Templo de Jerusalém é provável e, no caso de terem alguma
vinculação com Achera, também é compreensível que Josias tentasse erradicá-los
do templo.
7. A ELIMINAÇÃO DA DEUSA
A reforma de Josias, segundo parece,
implicou o desaparecimento da deusa do culto oficial de Jerusalém. O 2º Livro
dos Reis (23,6: «Mandou tirar do templo de Yhwh o tronco de Achera») anota que
Josias «retirou da Casa
de Yhwh a Achera e levou-a para fora de Jerusalém,
para a torrente do Cédron, onde a queimaram. Depois, mandou lançar a sua cinza
no sepulcro comum do povo.» A eliminação da estátua da deusa inscreve-se na intenção monolátrica da reforma de Josias. A
erradicação do culto à deusa significava, de facto, uma rotura importante que
não foi aceite facilmente pelos habitantes de Jerusalém e de Judá. Um texto (pertencente
ao livro de Jeremias já referido) defende que a destruição de Jerusalém no ano
587 a.e.c. se deveu a uma vingança da deusa,
cujo culto se quis proibir: «Desde que deixámos de queimar incenso à rainha do céu, e de
lhe oferecer libações, tudo nos falta e somos dizimados pela espada e pela
fome.» (Jeremias 44,18). Este discurso poderia aludir à
tentativa de proibir o culto da “Rainha do céu”, a qual, como já sugerimos
atrás, poderia ser o outro nome de Achera.
8. REIS REFORMADORES
Um argumento comparativo adicional
ajuda a suportar a possibilidade de que, sob Josias, se produziu uma mudança ao
nível cultual. De facto, no antigo Médio Oriente, há testemunhos de reis
reformadores no segundo e primeiro milénios[28].
Akhenaton, por exemplo, dedica-se a uma "centralização" do culto na
nova cidade de Akhenaton e prega a veneração a um único deus (Aton). Quanto a Nabucodonosor I (1125-1104 a.e.c.), mandou reescrever o épico Enuma Elish para substituir Enlil
por Marduk, que ele
queria estabelecer como o deus central do panteão babilónico. Sob o rei assírio
Senaqueribe (705-681), Marduk foi substituído
por Assur, que se tornou o "deus do céu e da terra", tendo
sido construído um novo templo fora da cidade de Assur. No entanto, o seu
sucessor, Esarhaddon, [significa: "Ashur has given
me a brother"] que havia sido coroado rei da Babilónia, restabeleceu o culto a Marduk e a outras divindades
babilónicas. Nabonedo (556-539), o último rei da Babilónia,
fortaleceu o ‘culto ao pecado’, um ‘deus da lua’, e restaurou numerosos
templos. Outros deuses são "degradados" em relação ao pecado: Shamash
torna-se no ‘filho do pecado’ e Ishtar na ‘filha de Sin’. A captura da Babilónia por Ciro, em 539, pôs fim a
essa evolução. Todas essas reformas, que visam
elevar uma divindade à categoria de deus chefe, começam com o rei. O facto de a
reforma de Josias não ter durado torna-a inteiramente semelhante aos paralelos
que acabamos de citar. A constatação de que ela não foi imposta imediatamente
não é, portanto, um argumento contra a historicidade dessa reforma.
9. UM ARGUMENTO HISTÓRICO A FAVOR DA
REFORMA DE JOSÍAS
Devemos ver nas medidas de Josias, especialmente as relativas aos
elementos do culto assírio, a marca de uma política anti-assíria? Ainda que tal
não possa ser excluído, a verdade é que as mudanças cultuais que ocorreram em
Judá no final do século VII a.e.c. são também um sinal do declínio
significativo da influência assíria na Síria e na Palestina. O vácuo temporário
que ocorreu na região Sírio-Palestina nas últimas décadas do século VII, devido
ao progressivo desaparecimento das estruturas de poder assírias, torna
plausível, de facto, a hipótese de que Josias, ou melhor, os seus conselheiros,
empreenderam uma reorganização política e cultual[29].
Também é muito plausível, neste
contexto, que tenha havido uma tentativa de
centralizar o culto, o poder e a tributação (os santuários também administravam
impostos) em Jerusalém. A relativa independência de Judá, por volta
de 620 a.e.c., provavelmente deu origem à convicção, em certos círculos, de que
Josias foi o criador de um grande reino independente de Judá[30].
Muitas vezes foi argumentado que Josias poderia ter anexado as províncias assírias
estabelecidas no território do antigo reino de Israel. Há, contudo, muito
poucos vestígios dessa anexação. 2 Reis 23,15 menciona a destruição de um
santuário em Betel; a haver alguma verdade nisso, o que é incerto, tal não
significa que tenha havido real ocupação (prolongada) das províncias
samaritanas de Samerina, Magidu[31]
e Gal'aza.
Permanece, no entanto, possível que
Josias e os seus conselheiros tenham reivindicado o título de herdeiros
legítimos de “Israel”. De fato, o território de
Benjamim, no qual também estava localizado o santuário de Betel,
pode ter sido anexado por Josias, já que no livro de Jeremias os oráculos de
Yhwh são frequentemente dirigidos a Jerusalém, Judá e Benjamim. Outro argumento
importante a favor da integração de Benjamin no território do reino de Judá é
que os babilónios, após a destruição de Jerusalém, estabeleceram a sede do
governo provisório em Mispá, uma cidade localizada em Benjamim.
Embora a reforma de Josias, ou
melhor, a reforma dos seus conselheiros não tenha sido imediatamente imposta, é
um dos momentos mais importantes na evolução do culto a Yhwh. A partir de
então, Yhwh torna-se o “único” deus (ainda não único, mas unitário), e Jerusalém torna-se o único lugar legítimo para praticar
o culto sacrificial. Esta nova visão de Yhwh também se manifestará numa
abundante literatura, que está na origem do “corpus bíblico”, o qual foi escrito
e fomentado enquanto decorriam as mudanças religiosas sob o poder de Josias.
10. O DEUTERONÓMIO E A REFORMA DE
JOSIAS
A versão inicial do
Deuteronómio, que não foi encontrada durante os trabalhos de restauro no
Templo mas escrita para promover as ideias da reforma de Josias, abria com esta declaração, que é
encontrada no livro, na sua forma atual, no capítulo 6: "Shema' yisra'el yhwh
'elohenu yhwh 'ehad". O enunciado que surge a seguir ao apelo («Escuta,
Israel») pode ser traduzido de várias maneiras: «Yhwh, nosso deus, Yhwh é
único» ou «Yhwh, nosso deus, Yhwh apenas», «Yhwh, nosso deus, Yhwh é uno». A
solução mais lógica é entender esta oração nominal como um enunciado composto
de duas orações: «Yhwh é o nosso deus, Yhwh é UNO». Trata-se, com efeito, de
duas afirmações centrais que se explicam muito bem no quadro da reforma de
Josias: Yhwh é o (único) deus de Israel e é “uno”, ou seja, não há outro para
além de Yhwh de Jerusalém, não há nenhum Yhwh da Samaria, de Temam, de Betel e
de outros lugares. O facto de Yhwh ser «uno»
encaixa com o facto de existir apenas um só lugar legítimo de culto, tal como o
livro do Deuteronómio explicará no capítulo 12, 4ss. O início do “rolo primitivo”
continuava assim: «4Escuta, Israel! Yhwh é o nosso Deus, Yhwh é UNO.
5Amarás Yhwh teu Deus com todo o
teu coração, com todo o teu ser, com todas as tuas forças». [cf. o filme «O Rapto», de Marco Bellocchio]
Estes versículos estão claramente
relacionados com a reforma de Josias. Em primeiro lugar, de acordo com o que
nos é dito no final do seu reinado, Josias é o único rei que cumpriu exatamente
as prescrições de Deuteronómio 6,4-5: «Não houve outro rei que se voltasse para
Yhwh com todo o seu coração, com todo o seu
ser e com todas as suas forças» (2 Reis 23,25).
11. «YHWH É UM» E OS “TRATADOS DE
VASSALAGEM” À ASSÍRIA
A afirmação da unidade de Yhwh deve
ser entendida, em primeiro lugar, como a afirmação da unidade do culto
Yahwista. De fato, o Deuteronómio primitivo opõe-se à pluralidade de lugares de
culto e à diversidade das manifestações do divino, e defende um único local de
adoração. Sem dúvida, este é o slogan da reforma de Josias: Yhwh é «um», ou
seja, há apenas um lugar de adoração. Jerusalém tornou-se o único santuário
Yahwista, no qual Yhwh foi venerado de forma exclusiva a partir daquele
momento. A insistência na unidade de Yhwh é acompanhada pela exigência de amor
total e exclusivo à divindade. Este mandamento
não exige do homem um amor sentimental pela divindade; exige lealdade
absoluta ao Deus de Israel.
A linguagem de Deuteronómio 6,5 advém
dos tratados de vassalagem assírios, que obrigam os vassalos do grande rei
assírio a amar seu soberano. As
semelhanças mais próximas encontram-se no juramento de fidelidade que Assaradão
obrigara a fazer aos reis vassalos no ano de 672 a favor de seu filho Assurbanipal[32]: «Amarás Ashurbanipal (...) rei da Assíria, como a ti mesmo. . . Não coloques
outro rei ou outro senhor sobre ti.» O Deuteronómio
inspira-se extensivamente no estilo e na estrutura deste Tratado,
que o autor do Deuteronómio pôde conhecer[33].
Esses textos-paralelos também dizem respeito à advertência contra as tentações
de rebelar-se e submeter-se a outros senhores (tal como em Deuteronómio 13), bem como às maldições que, no capítulo 28, parecem ser tomadas do tratado
assírio e aplicadas a Yhwh:
«Que Ninurta, o primeiro dos deuses, te derrube com a sua flecha feroz,
encha a planície com o teu sangue, alimente a águia e o abutre com a tua carne
[…] Que todos os deuses nomeados nesta tábua do tratado tornem o teu chão tão
estreito como um tijolo [...]. E que a chuva não caia do céu que então será de
bronze […], que em vez de orvalho, chovam carvões em brasa sobre a tua terra […].»
Existem ameaças idênticas no capítulo 28 do Deuteronómio[34]:
«23 […] O céu que está
sobre a tua cabeça será de bronze, e a terra, debaixo dos teus pés, será de
ferro. 24Yhwh transformará a chuva da tua terra em cinza e poeira,
que descerão sobre ti do alto do céu até seres aniquilado. […] 26O
teu cadáver servirá de pasto a todas as aves do céu e aos animais da terra,
[…].»
Não há dúvida alguma que o autor da
primeira versão do Deuteronómio se inspirou no juramento de Assaradão. Não resta dúvida que, ao aplicar o
juramento de lealdade absoluta a Yhwh, o Deuteronómio adquire uma perspectiva
que poderíamos caracterizar como «subversiva», já que Israel possuía um
soberano ao qual devia obediência absoluta. A diferença é que esse soberano não
é o rei da Assíria, mas é Yhwh, o deus de Israel.
12. A IDEOLOGIA DA CENTRALIZAÇÃO
O pregão de Deuteronómio 6,4-5 (Dt
5,1) − «Shema’ yisra’el»[35],
«ESCUTA ISRAEL!» − tem uma estreita vinculação à lei da
centralização que se encontra no capítulo 12. Este importante texto sofreu várias
revisões, mas não há dúvidas de que a versão mais antiga da ideia da
centralização é a que se encontra nos versículos 13-18[36].
À volta deste núcleo antigo foram acrescentados em primeiro lugar os
versículos 8-12 (o que pressupõe uma situação de exílio babilónico) e
depois os versículos 2-7, que insistem na separação estrita face a outros
povos, parecendo, portanto, reflectir as preocupações da época persa.
Esta sucessão cronológica (em
primeiro lugar, v. 13-18; de seguida, v. 8-12; por último, v. 2-7) é confirmada
pela evolução da fórmula a respeito do “santuário único”. O v. 14 fala do
«lugar («mãqôm») que Yhwh escolherá numa («’ehãd») das tuas
tribos»; no v. 11 trata-se do «lugar («mãqôm») que Yhwh, vosso Deus,
escolherá para fazer habitar («sakken») ali o seu nome»; e no v. 5,
trata-se do «lugar («mãqôm») que Yhwh, vosso Deus, escolherá entre todas
as vossas tribos para ali colocar o seu nome e habitá-lo («s-k-n»[37]).
Esta progressiva ampliação do motivo para a escolha de um lugar mostra
igualmente a vontade de insistir, sobretudo após a destruição do Templo, no
facto de Yhwh se limitar a fazer com que o seu Nome habite no lugar escolhido, ao
passo que ele mesmo reside apenas e só no Céu.
Analisemos, agora, a fórmula mais
antiga do mandamento da centralização em Deuteronómio 12,13-18 a qual, seguramente, provém da época
de Josias:
«13Guardai-vos de oferecer
os vossos holocaustos em qualquer lugar que vos parecer melhor. 14Oferecereis
os vossos holocaustos somente no lugar que Yhwh tiver escolhido numa das suas
tribos; ali é que oferecereis os holocaustos e ali cumprireis tudo quanto vos
ordeno. 15Poderás, contudo, matar os animais à vontade e comer a sua
carne em todas as tuas cidades que Yhwh, teu Deus, te tiver concedido como
bênção. Cada um pode comê-la, quer esteja ou não em estado de pureza legal,
como se come a carne do cabrito e do veado. 16Somente não comerás o
sangue; derramá-lo-ás na terra, como se fosse água. 17Não poderás
comer dentro das portas das cidades o dízimo do teu trigo, nem do teu vinho,
nem do teu azeite, nem os primogénitos do teu gado graúdo ou miúdo, nem as
ofertas que tiveres prometido, por voto ou espontaneamente, nem as tuas
primícias. 18Mas comerás estas coisas diante de Yhwh, teu Deus, no
lugar que Ele tiver escolhido: tu, os teus filhos, as tuas filhas, os teus servos
e servas e também o levita que estiver dentro das portas da tua cidade.
Alegrar-te-ás na presença de Yhwh, teu Deus, por tudo o que as tuas mãos
adquiriram.»
Esta prescrição opõe, em primeiro
lugar, a totalidade ou multitude de lugares sagrados («kol-mãqôm») ao
santuário que Yhwh escolherá em uma única tribo. O «mãqôm» aqui
refere-se apenas ao templo em Jerusalém, e a «única» tribo só pode designar
Judá[38].
Por outro lado, a mesma ideologia aparece no Salmo 78, no qual Yhwh se recusa a escolher
Efraim (o Norte) e escolhe “a tribo de Judá e o monte de Sião, que ele ama” (v.
68: «escolheu o monte Sião, seu preferido»). O autor da lei da centralização
assume a tradição da eleição de Sião, embora a transforme, uma vez que a torna numa
escolha exclusiva, o que proíbe qualquer outro santuário.
Mas a passagem diz respeito também, e
sobretudo, às consequências diretas da centralização. O encerramento (pelo
menos teoricamente) de talhos em santuários locais exige agora um pedido de autorização
para abrir um «matadouro profano[39]».
De facto, a ‘regulamentação’ desta novidade ocupa mais espaço do que o
enunciado da ‘centralização’. No entanto, podemos interrogar-nos se o texto em
Deuteronómio 12,13-18 contém o decreto original ou se ele deriva de uma
primeira revisão da lei sobre a centralização[40].
Não se pode excluir, evidentemente, que a lei original tenha sido retocada a
tal ponto de a sua reconstrução se ter tornado impossível. Seja como for, faz
todo o sentido que o decreto sobre o “santuário único” tivesse de regular o
abate de animais fora de Jerusalém.
Se admitirmos que a versão inicial do
Deuteronómio, escrita no final do século VII a.e.c., continha sobretudo o
núcleo das leis dos capítulos 12-16, precedido pelo «Shema' yisra'el» em
Deuteronómio 6,4-5 e seguido das bênçãos e maldições (no capítulo 28), podemos
ler o «Shema' yisra'el» e o início da lei da centralização como uma
unidade coerente:
Escuta Israel, Yhwh é o nosso Deus,
Yhwh é Um («‘ehãd»). Amarás a Yhwh, teu Deus, com
todo («be-kol») o teu coração, com todo («be-kol»)
o teu ser, com toda («be-kol») a tua força. Livra-te de erguer os aromas dos
teus holocaustos em qualquer lugar. Somente no lugar que Yhwh escolher em UMA («ehãd»)
de entre as suas tribos é que oferecerás os teus holocaustos, e lá farás tudo («kõl»)
o que eu te ordenar.
Esta passagem está organizada segundo
a dialética kol − 'ehãd. Ao único Deus, a quem se deve adorar
com todo o nosso ser, corresponde a escolha do “santuário único” da “tribo única”,
bem como a rejeição da totalidade dos lugares santos e, claro, da totalidade
das outras tribos (isto é, o reino do Norte). Dirige-se a destinatários relativamente bem acomodados e abastados
(proprietários de escravos) que vivem em ambiente urbano (v. 18). A
identidade do locutor não é especificada.
Será Moisés? Yhwh? Um rei? Será um «eu» anónimo? O «Shema' yisra'el»
em Deuteronómio 6,4-5 torna improvável que seja Yhwh quem fala, mas nada impede
que na primeira versão seja o rei (Josias) quem fale, antes de a grande revisão
do Deuteronómio, que ocorreu durante a chamada “Era Exílica”, ter transformado
aquela versão no «Testamento de Moisés».
13. O RELATO DA CONQUISTA E A VIDA DE
MOISÉS
Sob o reinado de Josias outros
pergaminhos vieram à luz, como o relato da conquista da terra, que se encontra
na primeira parte (os primeiros doze capítulos) do livro de Josué. Esta
história retoma elementos e temas da propaganda assíria através da imagem e do
texto[41].
De fato, podemos observar, além dos
paralelos, que as histórias que narram conquistas em detalhes estão todas
localizadas no território de Benjamin. Poderia ser, então, uma legitimação das
conquistas de Josias, por meio de um relato que se apresenta como a narrativa
das origens da posse do país, e que apresenta o apoio de Yhwh ao estilo ou à
maneira do apoio que os deuses assírios davam aos reis do Império assírio.
Por outro lado, Josué, cuja
historicidade não está de modo algum assegurada, é apenas um Josias mal
dissimulado[42]: o fato
de conquistar todos os territórios prometidos por Yhwh mostra a superioridade
do deus de Israel sobre os outros deuses. O renascimento dos temas e da
ideologia assíria transforma o livro de Josué numa "contra-história",
para usar um termo cunhado recentemente[43].
Outra história escrita sob o reinado
de Josias pode ser a primeira versão da vida de Moisés: o relato de seu
nascimento é muito semelhante ao de Sargão, escrito no tempo de Sargão II[44].
Portanto, podemos dizer que é no final do século
VII a.e.c. que uma parte importante da literatura bíblica tem o seu início.
Paradoxalmente, foram os assírios, tão detestados pelos autores bíblicos, que
forneceram grande parte dos materiais necessários para construir esta
literatura, contribuindo assim para forjar a nova imagem de Yhwh.
14. O FIM DE JOSIAS E DA SUA REFORMA
Os autores bíblicos não são muito
loquazes quando lidam com o fim aparentemente inglório de seu rei favorito:
«29Durante o seu reinado,
o Faraó Necao, rei do Egipto, pôs-se em marcha contra o rei da Assíria, na
direcção do Eufrates. O rei Josias saiu-lhe ao encontro, mas foi morto pelo
Faraó em Meguido, logo no primeiro combate. 30Os seus servos levaram
o seu cadáver num carro, de Meguido para Jerusalém, e sepultaram-no no seu
túmulo. (2 Reis 23,29-30).»
Não sabemos se Josias queria
confrontar o rei egípcio, considerando que Megido fazia parte dos territórios
controlados por ele, ou se tinha sido convocado pelo rei egípcio, que o
considerava um vassalo não fiável [mau cumpridor fiscal?]. Na versão das Crónicas
(2 Crónicas 35,20-25) tenta-se corrigir as coisas:
«20Depois de tudo isto e
da reparação do templo feita por Josias, Necao, rei do Egipto, marchou sobre
Carquémis, pelo Eufrates, com uma expedição militar. Josias saiu-lhe ao
encontro. 21Necao enviou-lhe mensageiros para lhe dizer: «Não tenho
nada a ver contigo, rei de Judá! Não venho hoje contra ti, mas contra uma
dinastia com a qual estou em guerra. E Deus disse-me que me apressasse. Não te
oponhas a Deus, que está comigo, pois Ele deitar-te-á a perder.» 22Mas
Josias não quis voltar atrás, porque procurava uma ocasião para o atacar. Longe
de escutar as palavras de Necao, vindas da boca de Deus, atacou-o na passagem
de Meguido. 23Os arqueiros dispararam sobre o rei Josias, e o rei
disse aos seus soldados: «Levai-me, porque estou gravemente ferido.» 24Eles
tiraram-no do seu carro, colocaram-no num outro que ali havia e levaram-no para
Jerusalém. Morreu e foi sepultado no sepulcro de seus pais. Josias foi chorado
por todos os habitantes de Judá e Jerusalém. 25Jeremias compôs uma
lamentação fúnebre sobre Josias.» (2 Crónicas 35,20-25)
De acordo com esta versão, Josias
morre porque não ouve as palavras do faraó Necao, inspirado por Yhwh. Além
disso, ele não morre em Meguido, mas em Jerusalém. A
morte de Josias, pelo menos por enquanto, parece ser o fim de sua reforma. Não
há nenhuma alusão a esta reforma nem no livro de Jeremias nem no livro de
Ezequiel. Além disso, não há dúvida de que em Elefantina, nos tempos
persas, havia um santuário de Yhwh distinto do de Jerusalém; e talvez acontecesse
o mesmo na Babilónia, onde os exilados de Judá talvez tivessem construído um
templo a Yhwh, para não mencionar o santuário yahvista no Monte Garizim.
Independentemente
disso, a Reforma de Josias, de alguma forma, marca o início do judaísmo, com o lugar
teológico central conferido a Jerusalém, a afirmação da unidade de Yhwh
recitada até hoje, e a ideia monolátrica de uma veneração exclusiva de Yhwh,
que poderia facilmente ser transformada em monoteísmo.
@
Thomas Römer, «La Invención de Dios»,
Sígueme 2022, cap. 11, 219-240.
[1] Cf. Dt 17,1-3 e 2Rs
23,4-5; Dt 12,2-3 e 2Rs23,6.14; Dt 23,18 e 2Rs 23,7; Dt 18,10-11 e 2Rs 23,24.
[2] Quanto a isto, cf. B. J. Diebner – C. Neauerth, «Die Inventio des ‘sepher hattorah’
in 2 Kön 22: Struktur, Intention und Funktion von Auffindungslegenden»:
Dielheimer Blätter zum Alten Testament 18 (1984) 95-118.
[3] «Ancient Near Eastern Texts», 394-396. Cf. A.
Barucq et al., «Prières de l’Ancient Orient», Paris 1989, 53-54.
[4] K. Stott, «Finding the lost Book of the Law:
re-reading the story of “The Book of the Law” (Deuteronomy-2 Kings) in light of
classical literature»: Journal for the Study of the Old Testament 30 (2005)
153-169.
[5] Num capítulo difícil de traduzir, existe uma versão
extensa e outra abreviada. A rubrica referente ao papiro de ‘Nou’ contém o
seguinte relato: «Esta fórmula foi encontrada em Hermópolis […] aos pés deste
deus (=Thot), na época em que reinava sua majestade o rei do Alto e do Baixo
Egipto, ‘Mikerinos, o triunfante’, pelo Príncipe Deidefhora Triunfante, que o encontrou
quando foi inspeccionar os templos […]. Este foi de imediato contar ao Rei,
quando se apercebeu de que se tratava de algo muito secreto, que nunca houvera
sido visto nem notado. Que esta mensagem seja lida em estado puro e sem mancha
[…]». Tradução francesa segundo P. Barguet, «Les Livres des Morts des
Ancients Egyptiens», Paris 1967, 104-105.
[6] Segundo N. Na’aman, «The ‘Discovered Book’ and the
Legitimation of Josiah’s Reform»: Journal of Biblical Literature 130
(2011) 47-62, o descobrimento do “Rolo” (Livro) era um elemento necessário para
pôr em marcha a Reforma. No entanto, em
2Crónicas 34-35, que é o relato paralelo de 2Reis 22-23, coloca em primeiro
lugar o Relato da Reforma de Josias e só depois é que narra a Descoberta do
Livro.
[7] «3No décimo oitavo ano do reinado de
Josias, o rei enviou ao templo de Yhwh o seu secretário Chafan, filho de
Açalias, filho de Mechulam, dizendo-lhe: 4«Vai ter com o Sumo
Sacerdote Hilquias e diz-lhe que mande recolher o dinheiro levado à Casa de
Yhwh, e entregue pelo povo nas mãos dos porteiros do templo. 5Dê-se
esse dinheiro aos encarregados dos trabalhos do templo, a fim de pagarem aos
que trabalham na reparação do edifício, 6carpinteiros, construtores
e pedreiros, e comprarem a madeira e as pedras de cantaria necessárias às
reparações do templo. 7Mas não se lhes exigirão contas do dinheiro
que lhes é confiado, porque são pessoas íntegras.» 8O Sumo
Sacerdote Hilquias disse ao escriba Chafan: «Encontrei no templo de Yhwh o
Livro da Lei.» Hilquias entregou este livro ao escriba Chafan, o qual o leu. 9O secretário Chafan foi ter com o rei e
prestou-lhe contas da missão que lhe fora confiada: «Teus servos juntaram o
dinheiro que se encontrava na Casa de Yhwh e entregaram-no aos encarregados do
templo de Yhwh.» Na verdade, a leitura deste
relato faz mais sentido sem o versículo 8 (em itálico), versículo que constitui
uma inserção.
[8] Que se encontra, sobretudo nos versículos 8, 10-11,
13, 16-18, 19 e 20 do capítulo 22 e nos versículos 1-3 do capítulo 23.
[9] Traduzido por R. S. Ellis, "Foundation Deposits
in Ancient Mesopotamía», New Haven-London 1968, 181.
[10] Cf., em particular, H.-D. Hoffmann, "Reform und
Reformen. Untersuchungen zu einem Grundthema der deuteronomistischen
Geschichtsschreibung», Zurich 1980, 169-270. Nos dois relatos, o
comissionamento das obras e a menção aos trabalhadores e sua honestidade surgem
lado-a-lado, em paralelo. Cf., por exemplo, 2 Reis 12, 16: «Não chamaram à
responsabilidade os homens a quem confiaram o dinheiro para o darem aos que
fizeram as obras, porque agiram com probidade», e 2 Reis 22, 7: «Não lhes
peçais que prestem contas do dinheiro que lhes foi posto nas mãos, porque agem
conscienciosamente».
[11] V. A. Hurowitz, «I Have Built You an Exalted House:
Temple Building in the Bible in Light of Mesopotamian and Northwest Semitic
Writings», Sheffield 1992.
[12] Para a distinção entre testemunhos directos e indirectos,
cf. E. A. Knauf, «From history to interpretation», in D. V. Edelman (dir.), «The Fabric of History, Text, Artifact
and Israel’s Past», Sheffield 1991, 26-64.
[13] Y. Aharoni – R. Amiram, «Arad. A biblical city in Southern Palestine»: Archaeology 17 (1964) 43-53.
[14] D. Ussishkin, «The date of the Judaean shrine at Arad»: Israel Exploration Society 38 (1988) 142-157.
[15] Z. Herzog, «The date of the temple at Arad: reassement
of the stratigraphy and the implications for the history of religion in Judah»,
in A. Mazar (dir.), Studies in the Archeology of the Iron Age in Israel
and Jordan, Shefield 2001, 156-178.
[16] C. Uehlinger, «Was there a cult reform under King
Josiah? The case for a well grounded minimum», in Lester L. Grabbe (dir.), “Good Kings and Bad Kings”, 279-316.
[17] Há que referir, antes de mais, a existência da deusa Anat associada a Yhwh na comunidade
judaica de Elefantina [Egipto] no período da época persa.
[18] A. Lemaire, «Prières en temps de crise: les
inscriptions de Khirbet Beit Lei»: Revue biblique 83 (1970) 558-568.
[19] R. A. Stucky, «The Engraved Tridacna Shells», Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo 1976, nº 21.
[20] Ao mesmo tempo, o texto de Isaías 38,8 “menciona”
uma escadaria na casa de Acaz, possivelmente destinada ao mesmo uso: “No relógio de sol de Acaz [necessariamente
colocado na açoteia, um ponto alto da casa...] voltarei,
a sombra, dez graus atrás, tantos quantos tivesse avançado.”
[21]
O livro de Jeremias foi escrito meio século
depois da reforma de Josias. O
texto de Sofonias também é muito mais recente do que o final do século VII a.e.c.
O texto de Sofonias
1,5 denuncia todos os tipos de cultos ilegítimos: «Aqueles que se prostram
nos telhados das casas diante da “milícia dos céus”, aqueles que se prostram
jurando por Yhwh e ao mesmo tempo juram por Milcom». Se este texto reflete
alguma realidade, mostra que alguns cultos proscritos gozaram, no entanto, de
uma longa vida; no caso do oráculo de Sofonias, é um culto ao ‘deus dos
amonitas’, mas ao mesmo tempo a Yhwh.
[22] O texto massorético neste ponto escreve «bãttîm»,
o que realmente não faz sentido. Só há duas hipóteses: entender a expressão de
maneira abstracta com significado de «coberturas» ou postular uma vocalização
errónea ou tendenciosa para uma palavra que significa «vestido» (compare com o
termo árabe «battum»).
[23] A existência de prostituição no contexto do templo
foi, em certos momentos, muito discutida.
[24] Em hebraico o termo «prostituto» encontra-se no
singular-colectivo.
[25] Esta passagem, que se encontra no Livro do
Deuteronómio (23,18-19), foi redigida por um restricto grupo de redactores que posteriormente
haveriam de dar corpo à reforma de Josias.
[26] K. van der Toorn, «Cultic prostitution», in Anchor
Bible Dictionary V (1992), 510-513.
[27] H. Spieckermann, «Juda unter Assur in der Sargonidenzeit»,
Göttingen, 1982, 221.
[28] N.
Na’aman, «The king leading cult reforms in his kingdom: Josiah and other kings
in the Ancient Near East»: Zeitschrift für Altorientalische und Biblische
Rechtsgeschichte 12 (2006) 131-168. Cf. «ENUMA ELISH», Catedra Letras
Universalis, Madrid 12020, org. e tradução de Rafael Jiménez Zamudio:
«A obra Enuma Elish, dividida em sete ‘tabuinhas’ foi a recensão canónica das
mãos dos escribas e, provavelmente, fruto do esforço de um único escriba
que considerava que a Babilónia era o centro do mundo e Marduk a sua divindade suprema.
Acontece que esta ideia de supremacia não foi apenas dos babilónios, mas também
dos assírios, os quais substituíram o deus
Marduk pelo seu deus Assur. Tudo isto leva-nos a fazer crer que esta obra literária tinha, por trás, intenções
nacionalistas. É provável que o poema tenha sido fruto de uma
Babilónia nacionalista no tempo de Nabucodonosor I (1125-1103 a.e.c.), ainda
que não possuamos provas incontestáveis para encerrar esta questão com
segurança. Apenas podemos dizer que a língua em que está escrito e o seu
conteúdo nos levam até aos últimos séculos do segundo milénio (cf. W. G.
Lambert, «Babylonian Creation Myths», Winona Lake, Indiana, Eisenbraus,
2013:9). Esta ideia tomou corpo em muitos estudiosos que viram neste poema um
canto que visava justificar um ‘poder único e absoluto’ a partir de uma ‘assembleia
de iguais’. Em suma, tratar-se-ia da defesa de uma evolução política rumo a um
poder absoluto do monarca. O poema encarna uma
metáfora que explicaria a evolução das instituições políticas mesopotâmicas a
partir da modalidade de “assembleias” até à modalidade de “poder absoluto” de
um só monarca sob a ameaça de uma eventual sanção divina. Deste
modo, o poder omnímodo do deus Marduk deveria corresponder ao poder igualmente absoluto
do monarca enquanto representante do poder
divino na terra, pelo que tudo quanto o deus Marduk exigisse era visto como uma
clara alusão ao poder que o monarca pretendia. Se até os próprios deuses entregavam parcelas dos
seus poderes ao rei, porque é que não deveriam também as vetustas e
respeitadíssimas ‘assembleias de anciãos’ prescindir de parcelas do seu poder
em favor do rei, elas, tão profundamente inculcadas na tradição do povo desde
tempos antigos?» (p. 10)
[29] Segundo 2 Reis 22,1-8,
Josias tinha oito anos de idade quando começou a reinar. Caso esta informação
seja histórica, então foram os seus conselheiros – entre
eles a família de Chafan e o sacerdote Hilquias – aqueles que governaram em
nome de Josias…
[30] Cf. G.
W. Ahlström, «The History of Ancient Palestine from the Palaeolithic to
Alexander’s Conquest», 778.
[31] De
acordo com Ephraim Stern, no caso de ser verdade que Josias tivesse morto um
rei egípcio em Megido, tal ocorrência poderia ter propiciado (e demonstrado?) que
Josias tivesse realmente governado esta região por um breve período de tempo
(E. Stern, "Archaeologie of the Land of the Bible", vol. 2: The
Assyrian, Babylonian, Persian Periods 732-332 AC, Nova Iorque 2001, 68). Do meu
ponto de vista, é mais sensato supor que Megido estava sob controle egípcio e
não sob controlo de Josias; Cf., neste sentido, G. W. Ahlstrom, «History of
Ancient Palestine», p. 765.
[33] Foi descoberta uma cópia deste
Tratado em Tell Tayinat, no sul da Turquia, o que demonstra que ele foi copiado
e colocado, à disposição, nos Templos vassalos. É, assim, possível imaginarmos
que ele também estava disponível em Jerusalém e que Manassés
se comprometeu a respeitá-lo. Cf. J. Lauinger, «Esarhaddon’s
sucession treaty at Tell Tayinat: text and commentary»: Journal of
Cuneiform Studies 64 (2012) 87-123; H. U. Steymans, «Deuteronomy
28 and Tell Tayinat»: Verbum et Ecclesia (online) 34 (2013) 13.
[34] Cf. H. U. Steymans, «Deuteronomium
28 und die adê zur Thronfolgeregelung Asarhaddoms. Segen und Fluch im Alten
Orient und in Israel», Fribourg-Göttingen 1995.
[35] Este texto faz parte hoje em dia das orações
litúrgicas do judaísmo.
[36] Cf. M. Keller, «Untersuchungen zur
deuteronomisch-deuteronomistischen Namenstheologie», Weinheim 1996, 25-44; B.
M. Levinson, «Deuteronomy and the Hermeneutics of Legal Innovation», New
York-Oxford 1997, 21-28.
[37] A vocalização massorética de «l-s-k-n-w»
coloca um problema. Os massoretas, ao colocar a cesura principal depois de «sãm»
(«alí»), compreenderam «s-k-n» como sendo o objecto do verbo seguinte.
No texto antigo, «l-s-k-n-w» era entendido como um ‘infinito intensivo e
final’ da fórmula de centralização. Cf. a este respeito M. Keller, «Untersuchungen
zur deuteronomisch-deuteronomistischen Namenstheologie», Weinheim 1996, 15-17.
[38] Cf. A. D. H. Mayers, «Deuteronomy», Grand Rapids –
London 1981, 227.
[39] Não atribuir à expressão «profano» o significado de
«irreligioso». Ela aplica-se a um matadouro fora do santuário central, ainda
que todos os actos aí praticados sejam, sem qualquer dúvida, acompanhados dos
respectivos rituais sagrados.
[40] N. Lohfink, «Fortschreibung? Zur Technik von
Rechtsrevisionent im deuteronomischen Bereich, erörtert an Deuteronomium 12, Ex
21,2-11 und Dtn 15,12-18», in T. Veijola (dir.), «Das Deuteronomium und seine
Deutungen», Helsinki-Göttingen 1996, 127-171, 139-142.
[41] K. L. Younger Jr., «Ancient Conquest Accounts. A
Study in Ancient Near Eastern and Biblical History Writing», Sheffield 1990.
[42] R. D. Nelson, «Josiah in the Book oh Joshua»: Journal
of Biblical Literature 1004 (1981) 531-540.
[43] A. Funkenstein, «History, counter-history and memory», in S. Friedlander (dir.), «Probing the Limits of Representation: Nazism and the
“Final Solution”», Cambridge-London
1992, 66-81.