teologia para leigos

21 de março de 2023

Os destinatários da Boa Nova de Jesus

 


Os destinatários da boa nova de Jesus

os desmiolados, a escumalha, os ladrões e as prostitutas

Lucas 5,31-32

“Na mesma região encontravam-se uns pastores que pernoitavam nos campos fazendo turnos a vigiar os seus rebanhos durante a noite”.

 

Como acabamos de ver, os pastores monopolizaram as atenções desta cena. «Olhai que vos anuncio uma grande alegria, … Hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador, que é o Messias Senhor.» (Lc 2,10-11)

Que significado têm aqui, os pastores, neste momento da cena? Que representam eles na narração? A perícopa inicia-se afirmando que «naquela região (Belém) havia uns pastores que passavam a noite sob a intempérie velando o rebanho por turnos». No tempo de Jesus, os pastores eram gente menosprezada e marginalizada pela sociedade[1]. Eram normalmente considerados delinquentes, ladrões obstinados que se dedicavam à pilhagem contínua, pelo que constituíam um grupo que não merecia a mínima confiança. Esse era um dos motivos por que eram proibidos de testemunhar em julgamentos. Quanto a isto, eles eram comparáveis aos cobradores de impostos, que, igualmente, estavam excluídos de comparecer em juízo enquanto testemunhas[2].

Também é verdade que existe uma tradição bíblica favorável aos pastores[3]. No entanto, o contexto próximo e o horizonte da obra lucana favorece a interpretação pejorativa: os pastores eram gente marginalizada e perigosa e, por isso mesmo, menosprezada. Para Lucas, são precisamente estas pessoas pobres, simples e depreciadas pelos poderosos as escolhidas por Deus para receber, antes de mais ninguém e como autênticos destinatários, a revelação celeste de Jesus. Como disse C. Stuhlmüller, «é típico de Lucas serem os pobres os primeiros a receber a mensagem da salvação»[4]. Os pastores pertencem à categoria dos pobres de Yahvé de que os fariseus se enojavam e que depreciavam porque, por causa da vida nómada que tinham de levar [e por, apesar de ser “impuro”, serem obrigados a contactar com vísceras ensanguentadas aquando da degola], não podiam observar todas as prescrições da Lei»[5].

Fica bem patente o contraste entre o modelo de sociedade judaica defendido pelo poder religioso no tempo de Jesus e o projecto de Deus. Os pastores, protótipo das pessoas marginalizadas, menosprezadas e descartadas são precisamente os eleitos por Deus a fim de lhes comunicar a boa notícia, a grande alegria: o nascimento, a eles dirigido, do Salvador, que é o Messias, o Senhor. O paralelismo com Lucas 4,18 é manifesto. Na perícopa de Belém (2,10-11), o evangelho identifica-se com o nascimento do Salvador. É o próprio Deus quem anuncia a boa notícia aos pastores, protótipo de gente pobre e protótipo dos destinatários do evangelho. Na cena de Nazaré (4,18-19.21) o evangelho identifica-se com a actividade libertadora de Jesus. Aqui, é o próprio homem Jesus quem anuncia essa boa notícia aos pobres e oprimidos, os verdadeiros destinatários da sua mensagem e da sua actividade salvífica.

O evangelho fica, por um lado, definitivamente identificado com a pessoa, a mensagem e a actividade de Jesus e, por outro, não deixa a mais pequena dúvida de que os primeiros e verdadeiros destinatários desse evangelho são os pobres, os marginalizados, os descartados, os explorados, os menosprezados. Foi Deus que o decretou deste modo (e não de outro) e foi Deus que o revelou sem intermediários em Lucas 2,10-11 – na primeira pessoa (Anjo) e directamente; também, através de Jesus, em Lucas 4,14-19.21.

Estas duas cenas da escritura não fazem mais do que antecipar, como programa, e ratificar enquanto compêndio, a actividade libertadora de Jesus, através do seu ministério terrestre. De facto, os cobradores de impostos e as prostitutas (gente odiada, excluída e depreciada por serem ‘pecadores públicos’) são colocados nos lugares da frente, em lugares de destaque, muito à frente dos chefes do povo no que diz respeito ao acolhimento no Reino de Deus[6]. O motivo para tal tem a ver com o facto de terem sido esses os que em primeiro lugar acreditaram na mensagem de João (e por conseguinte em Jesus), ao passo que estes últimos não creram em João. O evangelho é de facto desconcertante; no entanto, nós continuamos a insistir em não o levar a sério. Jesus desprestigia a classe dominante, desmascarando-a e denuncia-a enquanto “classe”, já que o respeito aos dirigentes e às instituições judaicas constitui «o grande obstáculo para aceitar a mensagem de Jesus»[7].

Por parte de Jesus há, portanto, uma opção de classe: pelos marginalizados, desprezados e pecadores. Lucas é cristalino, quanto a isto. Tendo como cenário o baptismo de João, Jesus contrapõe duas classes sociais: por um lado, o povo (laos) e os cobradores de impostos e, por outro, os fariseus e os juristas:

 

«E todo o povo que o escutou, bem como os cobradores de impostos, reconheceram a justiça de Deus, recebendo o baptismo de João. Mas, não se deixando baptizar por ele, os fariseus e os doutores da Lei anularam os desígnios de Deus a seu respeito (Lucas 7,29-30)

 

Nesta contraposição existe uma verdadeira “opção de classe”. O povo-escória e os cobradores (pecadores) são a classe que aceita o desígnio de Deus: serem libertados da opressão que os esmaga e enlouquece[8].

O convite feito a Levi (Mateus 9,9, Lucas 5,27-32) e a conversão de Zaqueu (Lc 19,1-10) são igualmente significativos. Levi é cobrador de impostos. Jesus escolhe-o para ser ‘um dos Doze’ e de seguida entram em casa para tomar uma refeição juntos. A reacção dos fariseus e dos doutores da lei é fulminante: «Porque é que o vosso Mestre come com os cobradores de impostos e os pecadores?» A resposta de Jesus não se fez esperar. «Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes. Ide aprender o que significa: “Prefiro a misericórdia ao sacrifício”(Oseias 6,6; 12,7; Amós 5,21-27). Porque … Eu não vim chamar os ‘justos’ [os zelosos], mas os pecadores.» (Lc 5,32) Este versículo expõe a opção de Jesus pelos doentes e pelos pecadores como sendo o cerne da sua missão. Jesus quer dizer-nos que, para Ele, a grande questão é a existência de miseráveis e que os responsáveis por essa miséria são os ‘religiosos’… (a pobreza é ‘sinal’ de que eles não merecem viver; até Yahvé os amaldiçoa não permitindo que enriqueçam: eles são pobres porque querem… se quisessem ser ricos, bastava-lhes rezar muito e darem gordas esmolas no Templo…). Há aqui, mais uma vez, uma opção pela classe débil, necessitada; a leitura da realidade social por parte de Jesus é antissistema, anti-preconceituosa, é includente, é misericordiosa! Enquanto os eclesiásticos apontam o dedo e dizem: ‘Vão trabalhar malandros!’, Jesus diz: ‘Baixem os impostos, perdoai as dívidas e cumpram a Lei do Ano do Jubileu!’

A perícopa de Zaqueu é muito semelhante. Também Zaqueu era cobrador de impostos (chefe de cobradores e muito rico; Lc 19,2). As pessoas que estão a observar protestam e murmuram porque Jesus vai hospedar-se na casa de Zaqueu (19,5-7). A conclusão de Jesus é clara: «Este homem veio procurar e salvar o que estava perdido» (Lc 19,10). Jesus opta pelo que anda perdido e desprezado e isso surge aqui, mais uma vez, como algo habitual no seu ministério[9].

Por existir uma enorme semelhança com Lucas 2,10-11, no que diz respeito à revelação, deixei Lucas 10,21-22 para o final deste breve excurso sobre os pobres, os pecadores e os escorraçados como os autênticos destinatários do evangelho:

«Bendigo-te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos inteligentes e as revelaste aos simples. (…) quem é o Filho só o Pai o sabe, quem é o Pai só o conhece o Filho e aquele a quem o Filho houver por bem revelar-lho

Jesus bendiz a seu Pai por ter querido revelar-se a gente simples, por oposição aos sábios e entendidos. A opção de Deus é manifesta e gratuita. Esta passagem faz-nos pensar nos pastores como os primeiros destinatários da revelação divina.

Os pastores, primeiros e autênticos destinatários da mensagem evangélica, representam o povo (laos), essa gente que sofre, que não tem importância social alguma, mas que afectiva e vitalmente está do lado de Jesus: «O povo inteiro estava suspenso dos seus lábios» (Lucas 19,48b).

O texto evangélico é explícito a este respeito: «Hoje trago-vos uma boa notícia, uma grande alegria para todo o povo» (2,10).

 

Carlos Escudero Freire, «Devolver el evangelio a los pobres», Sígueme 1977, 291-294.

 

 

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[1] [141] Josef Schmid, «El evangelio según san Marcos» Herder Barcelona, 1967, 101-103.

[2] [142] H. L. Strack-P. Billerbeck, «Kommentar zum Nueuen Testament IV» , II, 113-114.

[3] [143] Quer os Patriarcas, quer David foram pastores. Ao próprio Deus se chama pastor de Israel (Salmo 23,1; 80,2), na medida em que ele governa o seu povo. Pastorear chega a ter, com efeito, o significado de governar (2 Samuel 7,7; Jeremias 2,8); cf. C. Stuhlmüller, o. c., 319.

[4] [144] Ibid, 318. Até porque, em Lucas, «evangelizar» é sinónimo de «libertar da opressão socio-económica»; cf. J. Dupont, «Les beatitudes II», Paris 1969, 19-51: “pobres são todos aqueles que se encontram numa situação de total incapacidade de se defenderem de todo o tipo de violência.”

[5] [145] G. Leonardi, «L’infanzia di Gesù nei vangeli di Matteo e di Luca», Padova 1975, 211. Os fariseus, abusando da enorme autoridade que tinham sobre o povo «faziam crer às pessoas que, para estarem de bem com Deus, tinham de fazer tudo como eles faziam, inculcando-lhes um sentimento de culpa e de inferioridade o que os tornava sem valor, escória. Para além da observância das regras religiosas, os fariseus eram amigos do dinheiro [avarentos] e extorquiam dinheiro de gente simplória pressionando-as com argumentos de natureza piedosa (Mateus 23,25-28; Marcos 12,40; Lucas 11,39; Lc.16,14)»: Juan Mateos, Luís Alonso Schökel, «Nuevo testamento», Madrid 1987, p. 15.

[6] [146] Cf. Mateus 21,31-32. Os interlocutores, a quem Jesus se dirige quando quer comparar com cobradores de impostos e prostitutas, são os sacerdotes e os senadores do povo [anciãos], a fina flor, ‘la crème de la crème’ da sociedade judaica (Mateus 21,23). Em si mesma, a comparação por si só é já um verdadeiro insulto. A classe dos dirigentes é excluída do Reino, ao passo que os desprezados por essa mesma classe são admitidos prioritariamente; cf. P.-E. Bonnard, «Le second Isaïe. Son disciple et leurs éditeurs. Isaïe 40 - 66», Paris 1972, 313-314.

[7] [147] Juan Mateos, L. A. Schökel, «Nuevo testamento», Cristiandad Madrid, 1987, p. 33: «… el gobernador, sabendo que [Jesus] es inocente, lo condena a muerte (Mt 27,23-26). La injusticia del mundo no quiere que Dios reine (Mt 11,12-15), odia todo lo que Dios pide, mata el Hijo de Dios.»

[8] [148] O paralelismo com Mateus 21,31-32 é por demais evidente. Provavelmente, aqui, Jesus não faz referência às prostitutas pela simples razão de que, neste mesmo capítulo, Jesus vai apresentar uma delas em casa de Simão, o fariseu (Lc 7,36-50). A contraposição entre esta prostituta e o fariseu é, só por si, eloquente.

[9] [149] A parábola lucana do fariseu e do cobrador (Lucas 18, 9-14) ilumina admiravelmente as anteriores passagens. Com efeito, aos fariseus da parábola ela os descreve como «gente segura de si e que despreza os restantes» (Lc 18, 9-11-12); o cobrador, ao contrário, surge reconhecendo os seus pecados e pondo a confiança no Senhor (Lc 18,13). Este é o único que regressa a casa de bem com Deus (18,14); a conclusão é clara: Deus opta pelo que está curvado para o erguer bem alto; cf. também Lc 14,12-14; 14, 21 e contexto.


20 de março de 2023

O sagrado e o profano no Evangelho

 


O sagrado e o profano

no Evangelho

 

Antes de abordar os conceitos de sagrado e profano, convém esclarecer o termo “Evangelho”, que domina todo este meu livro «El Evangelio es profano». ‘Evangelho’ não é um conceito abstrato pertença de uma teologia especulativa. É algo muito concreto, eu diria que é bem palpável, já que Jesus, a sua actividade e a sua mensagem constituem o que chamamos “Evangelho”.

O tema do sagrado e do profano   referido ao Evangelho, que pretendo abordar neste livro, é um dos pontos mais importantes e conflituosos que diferenciam o Antigo do Novo Testamento. As pessoas podem compreender com relativa facilidade o que se entende por “sagrado”, mas convém explicar qual o alcance da palavra e do conceito “profano”[1]. O profano, oposto ao sagrado, indica antes de tudo a autonomia dos seres humanos em relação à realidade que os circunda e com a qual se relacionam constantemente. O profano significa, pois, o quotidiano, algo normal na vida das pessoas, o secular, aquilo que lhes pertence e que tem a ver com os «leigos», segundo a linguagem e o conteúdo do Código de Direito Canónico e da Hierarquia católica em uso nos seus documentos. Deste modo, a laicidade, por ser remetida pela hierarquia aos leigos, não deveria assustar assim tanto os chefes eclesiásticos, porque foram eles mesmos que dividiram o mundo católico em clérigos e leigos. Esta divisão tem por objetivo fazer com que os hierarcas se diferenciassem com muita nitidez dos leigos para se constituir a eles a hierarquia no único referente sagrado provido de todo o tipo de prebendas, honras e privilégios, enquanto os leigos constituiriam o mundo vulgar e comum do profano.

A Hierarquia, ou seja, o Papa, os Bispos, os sacerdotes e os diáconos, não só constituem o mundo do sagrado, mas também, através de diversos ritos religiosos de caráter sagrado, são eles mesmos os consagrados. Para além disso, só eles têm o poder de consagrar.  Eles são os senhores e donos absolutos no e do campo do religioso, e apenas eles o administram, pois assim o decidiram ao longo da história secular da Igreja, em matéria de sagrado: os sacramentos, as missas, os tríduos, as novenas, as peregrinações ou romarias a lugares sagrados, as aparições da virgem e os templos construídos e por eles abençoados por tudo quanto é canto. Mais! São eles os únicos que decidem a quem proclamar beatos e santos aqui na terra. A Hierarquia tem, pois, o monopólio total do sagrado e da santidade. A hierarquia tem igualmente o poder sagrado de «benzer» seja lá o que for inclusivamente benzer entidades bancárias e caixas de aforro, muitas das quais acabam por ‘derreter’ as poupanças dos imprudentes, pelo que a hierarquia também tem algo a ver com crises financeiras, socioeconómicas e dos “mercados” em que todos os países estão enterrados até ao pescoço. Num passado não tão longínquo quanto isso, benziam igualmente canhões, carros de combate e a própria guerra. Com estas incursões no terreno dos leigos, a hierarquia quis demonstrar o seu poder e domínio sobre tudo o que existe. Em suma: a hierarquia move-se na esfera de Deus e do divino e encarrega-se de tudo o que for relacionado com Deus enquanto intermediários e administradores do sagrado.

Portanto, os leigos estão atados de pés e mãos e à sua mercê. Enquanto cristãos, muitos crentes vivem absolutamente dependentes das leis e das normas da Hierarquia sem possibilidades de se desenvolverem e crescerem enquanto pessoas autónomas, num perpétuo e triste infantilismo. Perante este cenário, o problema que se coloca é da máxima actualidade na medida em que os leigos começam hoje em dia a despertar e progressivamente a tomar contacto com o convite do Evangelho para que cresçam enquanto pessoas e para que vivam uma vida feliz e plena. É por isso que os leigos começam a exigir autonomia em matérias que dizem respeito às suas vidas enquanto leigos, ao mesmo tempo que começam a querer desmistificar e desconstruir a questão do sagrado a partir de narrativas e acontecimentos referidos nos Evangelhos. Os leigos estão a deixar de aceitar ingerências absurdas dos hierarcas católicos ‒ ou dos chefes de outras confissões religiosas ‒ no seu mundo e na sua vida específica de leigos. Basta de bênçãos e de palestras sobre o sagrado as quais procuram apenas tornar-nos dependentes e submissos! Tudo isso começa a asfixiar-nos. Para além disto, tenho a certeza que a Hierarquia vive mais à maneira judaica do que à maneira do cristianismo, ou seja, persegue o espírito e a letra do Antigo Testamento muito mais do que “o núcleo do Novo”, o qual se centra sobretudo nos evangelhos. Sobre este assunto, e para já, não é preciso discorrer mais; basta chamar a atenção para o seguinte tópico: Jesus foi um leigo e não uma pessoa consagrada.

Há que examinar igualmente quais foram as instituições sagradas do Antigo Testamento e a forma como Jesus se relacionou com elas, ou seja, que relação teve Jesus com tais instituições e com as personagens que as representavam e as promoviam, como fora o caso dos fariseus (enquanto fiéis observantes da Lei e cumpridores rigorosos da mesma), a «Lei de Moisés», o Sábado, os sumos-sacerdotes, o Templo, o Sinédrio algo semelhante a um Conselho ou Parlamento-Tribunal constituído pelos sacerdotes, escribas e doutores da Lei (anciãos ou presbíteros) e que pelo menos aparentemente parece que tinha capacidade para condenar à morte; cf. João 8,5. (cf. «Diccionário de la Bíblia – Historia y Palabra», Verbo Divino 2007, p. 58).

É muito importante escrutinar com muita atenção aquilo que os evangelhos nos dizem sobre esta relação de Jesus com estas instituições. É bem possível que aquilo que muito provavelmente fez com que Jesus fosse descartado como impróprio e indesejável esteja também a acontecer hoje em dia (com toda a normalidade) pela mão da Hierarquia católica. Importa também examinar, investigar e provar se o núcleo central e as passagens nucleares dos evangelhos surgiram e se configuraram no âmbito laical ou profano (espaços da preferência de Jesus) ou, pelo contrário, se foram originários de lugares sagrados ou de lugares coniventes com lugares sagrados.

Regressando ao que foi dito atrás em matéria de História das Religiões («Lo sagrado y lo profano en la historia de la humanidad»[2]), com que abrimos este livro, convém aclarar alguns conceitos em relação aos evangelhos. Há que distinguir entre teofanias ou revelações divinas que ocorrem nos evangelhos e que são muito importantes, como é o caso da Anunciação aquando da narração do nascimento de Jesus, do seu baptismo e da consequente abertura do céu por uma voz que fala, etc., e a criação ou constituição de lugares sagrados, dos quais não se encontra rasto nos evangelhos. Tampouco encontramos nos evangelhos a mediação sagrada, de capital importância no Antigo Testamento e nas religiões antigas, sobretudo nas mais evoluídas. Ou seja, nos evangelhos, Jesus nunca aparece como mediador sagrado a desempenhar essa função de mediação em lugares sagrados. Mais: Jesus nunca instituiu mediadores sagrados.

Por outro lado, convém deixar desde já bem claro que as teofanias ou manifestações divinas são momentos de gratuidade e, por isso, não podem ser requeridas nem controladas pelos discípulos de Jesus. Tampouco deveriam ser instrumentalizadas pelos seus seguidores constituindo-as em lugares sagrados ali onde tiveram lugar tais teofanias. Muito menos é próprio do cristianismo construir e erguer templos para oferecer sacrifícios, o que exigiria e justificaria a criação de ministros sagrados. Mas aquilo que de facto vemos acontecer é que o divino, o transcendente e as suas manifestações de gratuidade são consideradas como algo sagrado pela Hierarquia. O divino e o transcendente pertencem à esfera de Deus ao passo que o sagrado e as suas mediações pertencem à esfera humana. Ainda há pouco afirmamos que na maioria das religiões existe a mediação sagrada; no judaísmo acontece o mesmo. Mas não é admissível que isso aconteça no cristianismo, pois o cristianismo não pode ser considerado mais uma religião entre outras.

A práxis histórica do cristianismo, caso fizéssemos dele uma religião como as outras, acabaria por se apartar substancialmente do projecto inicial de Jesus que nunca pensou em fundar mais uma religião, mas em proclamar e realizar o Reinado de Deus aqui, no meio dos homens, tendo como base valores qualitativamente novos, revolucionários e subversivos enfrentando os contravalores da sociedade do seu tempo. Tal como dissemos no começo deste livro, o Reinado de Deus não se manifestou no sagrado, mas no profano, ou seja, no meio da vida comum, aquando da vida normal das pessoas. Muito menos precisou do sagrado para se implantar e crescer, quer no tempo do Jesus histórico, quer no tempo da Igreja primitiva.

Todas as religiões ‒ incluindo o cristianismo no seu devir histórico ‒ submeteram e dominaram o ser humano de diversas maneiras à custa de modos primitivos ou subtilmente fundamentalistas. Houve momentos em que as religiões passaram por cima do ser humano, escravizaram-no e inclusivamente torturaram-no e levaram-no à morte. Pelo contrário, o Evangelho coloca o ser humano no centro: a vida humana é o valor supremo. O Evangelho procura o desenvolvimento do ser humano, a liberdade e a felicidade humana. Esta maneira de ver convida-nos a recuperar a frescura dos evangelhos a partir dos seus núcleos essenciais e dos seus temas fundamentais.

 

In Carlos Escudero Freire, «El Evangelio es profano», Ed. El Almendro, Córdoba 2011, pp. 27-30

 

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[1]Pro” (= de frente) refere-se àquele que observa, a partir de fora, com curiosidade, o “fanos”, ou seja, a manifestação do transcendente. Profano refere-se a uma atitude positiva e não negacionista. [PB]

[2] Corresponde ao cap. 1 deste livro.


10 de março de 2023

Completou-se o tempo

 



Completou-se o tempo



Todos nós, em particular os católicos, deveríamos aferir a nossa vida pelo critério supremo da fidelidade ao «seguimento radical da ‘vida em acto’ de Jesus de Nazaré». Todos os conflitos, que com naturalidade surgem nas nossas vidas (íntimas e sociais), deveriam ser discernidos a partir deste critério supremo.

Parece-me que tal exigência tem ficado esquecida nas análises e nas tomadas de posição públicas no que diz respeito à questão dos ‘Abusos Sexuais praticados em menores de idade’ (assunto na ordem do dia).

A missão profética da Vida Humana em geral (seja ela cognominada de religiosa, laica, agnóstica, civil, canónica, política, etc.) não deve ser nem calculista, nem oportunista e muito menos prudente. Aliás, os primeiros passos da memória (vívida, ainda fresca) da pessoa de Jesus foram, no «seguimento do evangelho», marcadamente imprudentes. Pedro foi imprudente (Actos 10,9-48): ele ainda se lembrava que Jesus, diante do aparente fracasso da sua missão entre os judeus, também havia decidido ser imprudente e apostar nos estrangeiros que professavam uma religião herética: os odientos samaritanos (cf. João 4,27: «Diálogo com a mulher samaritana»).

A missão profética de qualquer ser humano implica essencialmente um compromisso com a inseparável dupla «Justiça-Direitos Humanos». A experiência do Deus bíblico e a prática da Justiça, na tradição profética, são inseparáveis. Conhecer Deus passa por fazer justiça ao pobre e ao desgraçado que, de seu, pouco ou nada possui (Jeremias 22,15-16: «Porventura pensas que és rei por dispores de mais cedro? Acaso o teu pai não comia e bebia, praticando a justiça e a equidade, e tudo lhe corria bem? Julgava a causa do pobre e do humilde, e tudo lhe era favorável! Não é isto conhecer-me? - oráculo do SENHOR.»).

O compromisso com a Justiça e com os Direitos Humanos (prioritariamente relacionados com a “Ciência Económica” e a “Ética do Bem Supremo e do Fim Último” – cf. Adela Cortina) tem um carácter liminar: os profetas veterotestamentários ‒ ‘via’ escolhida por Jesus por oposição à ‘via’ messiânica ‒ colocaram-se sempre do lado da Justiça, mas de uma Justiça a partir das circunstâncias sociais e a partir da perspectiva do pobre marginalizado, e aí persistiram até que as denúncias chegassem ao centro do poder e o incomodassem (1Reis 18,17). Jesus percebeu isso e foi por essa ‘via’: a vida em Deus dispensa o sacerdócio tal como a Igreja Católica de Roma defende em contramão face à Carta aos Hebreus e ao dominicano fray Marcos op (Madrid, «FE ADULTA») que se esforça semana-após-semana a explicá-lo. A nós compete-nos «seguir no encalce de Jesus». Todos nós sabemos de cor e salteado onde essa opção de vida levou Jesus: ao abandono absoluto e, por fim, à mais execrável forma de morte.

Ser cristão é «seguir no encalce de Jesus», profeta que rejeitou a opção messiânica (Cf. C. Escudero Freire). Foi por ter precocemente percebido isso que Jesus rejeitou os «inspirados», os «místicos», os «novíssimos movimentos» e os «líderes carismáticos» que costumam pairar acima do comum dos mortais ostentando misteriosamente a sabedoria da vinda do Filho do Homem ou dos últimos tempos da chegada do Espírito de Deus, curiosamente aqueles a quem Jesus chamou "abutres" (Lucas 17,20-37).

Creio que o confronto entre as partes beligerantes e a disputa pelos argumentos (em torno dos "abusos sexuais" por parte dos sacerdotes) tem vindo a afunilar-se e, por conseguinte, tende a esquecer ou pelo menos a não valorizar suficientemente o testemunho que Jesus deixou na memória daqueles que o conheceram. Um bom exemplo desse esquecimento - direi mais - da total ignorância acerca do conteúdo da Mensagem de Jesus é a argumentação usada na entrevista pelo Pe. Duarte da Cunha ao jornal ‘SOL’, 25/Fev./2023. Glosando J. Ratzinger, o Pe. Duarte da Cunha, ‘grosso modo’ afirma: Foi Deus que decidiu que a hierarquia da Igreja deveria ser assim: feita exclusivamente de homens os quais encarnam a pessoa de Deus… Na verdade, passado pouco mais de um século após a condenação à morte do Nazareno, a mensagem de Jesus começava a ser piramidalmente estruturada, segundo um modelo militar e uma 'origem divina' (=sacral), características a que nem sequer o rabinismo e os sacerdotes judaicos se alcandoraram ao longo da sua existência (Cf. Carta de Clemente de Roma aos cristãos de Corinto, Cap. XXXVII e Cap. XL).

Dito isto, - salvo um hipotético Cisma de enorme magnitude que creio ser totalmente improvável - não fiquei surpreendido com a conferência de imprensa que os bispos portugueses deram há dias (3 de Março 2023), Conferência de Imprensa apresentada e defendida pelo bispo José Ornelas. E porquê? Porque a Igreja de Roma diz-se representar uma Religião (o cristianismo) e por ser uma Religião é forçoso que tenha uma estrutura piramidal, tenha vocação universal ("Ide pelo mundo inteiro proclamar ... Quem não acreditar será condenado", cf. Marcos 16,15-16), seja militarmente hierarquizada (o que exige funcionários consagrados plenipotenciários, ou seja, "separados para o Sagrado"), e seja sobretudo reverenciada e única, porque de 'origem divina' (Efésios 4,11: “só a alguns é que constituiu como apóstolos…”). Diz-se que "Jesus instituiu a Eucaristia" (Mateus 26,26) e que transmitiu todos os seus poderes divinos ao seu 'discípulo-apóstolo número um', o qual passará a ser considerado pela Tradição como o primeiro Papa plenipotenciário: "Dar-te-ei as chaves do Reino do Céu; tudo o que ligares na terra ficará ligado no Céu e tudo o que desligares na terra ficará desligado no Céu" (cf. Mateus 16,13-20). A leitura de «Abus sexuels et cléricalisme» de Hervé Legrand (“Études”, 2019/4 Avril, pages 81-92, ISSN 0014-1941, Cairn.info pour S.E.R.) revela quão inultrapassáveis são os obstáculos rumo à reforma da Instituição Eclesial Romana que o Papa Francisco diz que deseja. Mas o certo é que o próprio H. Legrand é totalmente incapaz de dizer preto-no-branco que Jesus não ordenou um corpo de sacerdotes nem pretendeu fundar uma Igreja, questões polémicas ultrapassadas há décadas por teólogos europeus de renome.

O futuro da questão dos Abusos sobre menores creio já estar sob controlo da Igreja (=dos Bispos) em Portugal – esta é a suspeita com que fiquei no fim daquela conferência de imprensa (creio que não poderia ser de outro modo). Era inevitável que os «funcionários do sagrado» controlassem esta crise e não permitissem que ela tomasse conta do centro das atenções por demasiado tempo. A realização das «Jornadas Mundiais da Juventude» é mais um Milagre de Fátima a acrescentar ao livro da 'Vida Consagrada de Portugal à Virgem' e também à consagração dos nossos Bispos à mesma Mãe. Seria o fim do catolicismo se se questionasse até aos alicerces esta Estrutura e esta Religião (que Jesus de Nazaré nunca quis nem fundou...). Deste modo (com as rédeas bem firmes nos carpos dos nossos hierarcas...), Fátima, ao colar tão estreitamente as Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ) a Maria e ao Terço (cf. Logotipo), consagrar-se-á definitivamente como "O Altar entre os altares do Mundo" (altares de que, curiosamente, os Profetas do Antigo Testamento, em convergência antecipativa com O Profeta do Novo Testamento, sempre fugiram: «Eis que vos enganais a vós mesmos, confiando em palavras vãs, que de nada vos servirão. Roubais, matais, cometeis adultérios, jurais falso, ofereceis incenso a Baal e procurais deuses que vos são desconhecidos; e depois, vindes apresentar-vos diante de mim, neste templo, onde o meu nome é invocado, e exclamais: 'Estamos salvos!' Mas seguidamente voltais a cometer todas essas abominações. Porventura, este templo, onde o meu nome é invocado, é a vossos olhos, um covil de ladrões? Ficai sabendo que Eu vi todas estas coisas - oráculo do SENHOR.» - Jeremias 7,8-11).

Esta foi a 'oportunidade do século' que nos escapou, a oportunidade perdida para, pelo menos, relançar o catolicismo neste Portugal, quer do ponto de vista religioso, quer do ponto de vista político, quer sociológico. Oportunidade para renovar a vida das paróquias e dos conventos neste século XXI que não sabe para onde se há-de inclinar, ou seja, perdeu-se a oportunidade para acrescentar «algo que ultrapasse o ateísmo e o teísmo», uma espécie de "ética da transcendência humanista" (Aloysius Pieris) que nunca como hoje teve tanto a ver com a felicidade dos seres humanos de todas as partes do mundo. De dentro do coração de uma enorme crise não se ouviu, troante, uma Palavra Profética, viesse ela de onde viesse: do campo ateu ou do campo crente, de um Filósofo ou de um Sociólogo, de um Académico ou de um Camponês, de um Poeta ou de um Artista Plástico. Nada. Uma desgraça. Ou estarei eu enganado e o que, na verdade, por aí germina é afinal de contas «uma graça divina»? (Avanço com três tópicos.)

Em primeiro lugar, essa questão deveria ser tratada pelos abusados (sem a mediação das comissões diocesanas) em sede dos Tribunais Não-eclesiásticos (Procuradoria Geral da República) e por iniciativa das próprias vítimas, as quais, caso fique provada a existência de crime, deveriam exigir da Igreja Católica Portuguesa enquanto instituição (na pessoa jurídica da Conferência Episcopal) uma indemnização pecuniária pelos danos causados, indemnização que também suportasse as custas do tratamento psicológico-psiquiátrico (tratamento decidido e escolhido em absoluta autonomia pela vítima sem intromissão alguma das comissões diocesanas). Acho inadmissível a proposta que ouvi (na Conferência de Imprensa) da boca do bispo J. Ornelas de uma indemnização a ser exigida ao abusador (peço antecipadamente perdão se entendi mal…), pois todos sabemos que, nesse caso, a vítima nunca viria a receber nada, já que os abusadores "deixaram tudo para trás a fim de trabalharem ‘pro bono’ na Igreja". A Igreja Católica não pode continuar a usufruir dos privilégios estatais de que sempre usufruiu. É tempo de a colocar ao nível de qualquer instituição que tem de responder FORÇOSAMENTE perante as Instâncias Civis Laicas (independentemente do seu código de conduta de uso interno). Há muito que o Estado se separou da tutela da Igreja.

Em segundo lugar, não sou ingénuo ao ponto de pensar que, caso a organização eclesial dos católicos (ou seja, as comunidades católicas ditas ‘Igrejas’, Paróquias, Movimentos, Conventos, Capelanias, etc.) se regesse pelo critério supremo do «seguimento radical da ‘vida em acto’ de Jesus de Nazaré» (Jeremias 7,5-7) poria fim de um dia para o outro aos casos de abuso sexual sobre menores de idade. Creio, contudo, que esta vergonha humilhante que agora assaltou a praça pública (um dia será inevitável que se fale da outra face da moeda: a prática sexual das mulheres e dos homens que fizeram votos de castidade…) seria uma oportunidade para credibilizar, e muito, a condição crente católica em Portugal caso a Justiça Económica, os Direitos Humanos sob a forma de «Prioridade Máxima e Concreta aos Marginalizados, aos Desempregados e aos Sem-Abrigo» passassem a ocupar o centro da espiritualidade católica portuguesa (Missas, Retiros, Linhas de Orientação dos Conselhos Paroquiais, Congressos de Teologia da Universidade Católica, Vida dos Seminários, Movimentos Laicais, etc.) em vez de algumas espiritualidades descafeinadas desprovidas de qualquer solidez teológica, como é o caso dos «Novos Movimentos Católicos» que encontraram, finalmente, um poderoso impulso no pontificado do Papa João Paulo II, no entanto, horrorosamente pérfidos... na sua vida íntima.

Se fossemos capazes de tal, poderíamos iluminar o espírito de todos os cristãos com a força do profetismo do Nazareno (Mateus 11,2-6) abrindo ao 'mundo real' as mentes dos católicos ao ponto de ferir publicamente e de forma determinante a tentação pela duplicidade de vidas espirituais frustradas e sofridas de muitos crentes, a tentação pelo Prestígio, pela Vaidade e pelo Luxo de eclesiásticos que se passeiam na praça pública (ainda novos, mas já poderosos), enquanto a seu lado caminha um povo apesar de tudo ainda crente, humilde, mas mal agasalhado e que em casa passa dificuldades económicas (um pequeno-grande exemplo de contratestemunho cristão não são apenas os 'abusos sexuais de menores' ou as orgias de sacerdotes aos domingos que procuram algum tipo de satisfacção sexual; é a própria Universidade Católica Portuguesa, Instituição que em certos cursos defende orientações ideológicas fortemente marcadas por correntes neoliberais incompatíveis com o Evangelho de Jesus; cf. Teresa Vasconcelos no jornal 7 MARGENS).

Por último. Dá que pensar aquilo que surpreendentemente surge no mundo Ocidental a partir do pós-guerra. Refiro-me à problemática da "perigosidade" estreitamente conectada em geral com as Religiões e as Seitas Religiosas. A ofensiva das forças policiais sobre comunidade do Monte Carmelo (Waco, Texas, 1993), a comunidade de Asahara Shōkō e o atentado com gaz sarin no Metro de Tóquio (1995), os assassinatos e suicídios dos membros da Ordem do Templo solar em Vercors perto de Grenoble (após os do Canadá e os da Suíça) lançam uma suspeita que aparentemente deixa imune a Igreja Católica (se exceptuássemos o caso do Office Culturel de Cluny). Aparentemente, a Igreja Católica permanece à margem de qualquer suspeita e, portanto, de qualquer investigação. Mas ... a investigação actual sobre «Abusos sexuais» demonstra que aquilo que se julgava que acontecia "extra Ecclesia" começara em simultâneo "intra Ecclesia": a senhora Odette de Beaulieu, de linhagem nobre, 'tomou o hábito' no convento das dominicanas de La Croix em 1924 e adoptou o nome de Marie Agnès de Jésus, para abraçar de modo absoluto o ramo contemplativo da Ordem. É nesse Convento feminino que um dia entra o bispo de Lille acompanhado do frei Thomas Philippe op recém ordenado sacerdote, o qual, com muita regularidade passa a dirigir retiros e a proferir conferências à volta do tema 'A Vida Contemplativa'. Este é apenas o primeiro nome de uma lista de cinco mulheres - Odette de Beaulieu, Madeleine Guéroult, Marie-Renée Seuillot, Alix Parmentier, Michèle-France Pesneau - que, entre 1930 e os dias de hoje cairam nas malhas de uma extraordinária tecitura feita de um delicado entrecruzamento entre Vida Contemplativa Clássica (isolada do mundo real), denúncia da "Cultura da Morte" e do Relativismo, tendo, à mistura, Rituais Sexuais empapados da Teologia do Amor Virginal e Íntimo de Maria, a Mãe de Deus. Jean Vanier, foi um dos mais importantes e horrendos membros desta aliança entre Espiritualidade Contemplativa e intimidade sexual. Antes de morrer, negou todas as suspeitas de abusos sexuais, ele que partilhava da mesma Espiritualidade Contemplativa dos irmãos dominicanos Philippe e de algumas freiras, que advogavam o sentir do Amor Virginal da Mãe Santíssima para com o seu Filho com todos os sentidos: os corporais e os espirituais.

É agora muito evidente que a Igreja Católica se foi tornando, ao longo de demasiado tempo (séculos) numa enigmática seita que oferecia sobre o Altar da Consagração a Graça Divina conjuntamente com o sexo do celebrante. Se não, vejamos:

«Saint Paul VI le suggérait ainsi en 1967: ”Saisi par le Christ Jésus (Ph 3, 12) jusqu'à s'abandonner totalement à lui, le prêtre se configure plus parfaitement au Christ également dans l'amour avec lequel le prêtre éternel a aimé l'Église, son corps s'offrant tout entier pour elle afin de s'en faire une Épouse glorieuse, sainte et immaculée (Ep 5,23-27)” La virginité des ministres sacrés manifeste en effet l’amour virginal du Christ pour l'Église et la fécondité virginale et surnaturelle de cette union [Paul VI, «Encyclique Sacerdotalis Caelibatus»,24 Juin 1967, nº 26]. Le Christ s'est offert sur l'autel de la Croix. Chaque jour, le prêtre renouvelle cette oblation en prononçant les mots “ceci est mon corps livré pour vous”. Ces paroles prennent pour lui le sens de l'entrée dans l'offrande virginale du Christ. Chaque fois qu'un prêtre redit “ceci est mon corps”, il offre son corps sexué en continuité avec le sacrifice de la Croix.» (Benoît XVI et cardenal Robert Sarah, «Des profondeurs de nos cœurs», Fayard 2020, p. 130)

Cf. N. «62. O sacerdócio é ministério instituído por Cristo para serviço do seu Corpo Místico que é a Igreja. A esta compete admitir os que julgar aptos, isto é, aqueles a quem Deus concedeu o carisma do celibato juntamente com os outros sinais de vocação eclesiástica (cf. n.15).
«Em virtude deste carisma corroborado pela lei canônica, o homem é chamado a responder com “decisão livre” e “entrega total”, subordinando o próprio eu ao beneplácito divino que o chama. Em concreto a vocação divina manifesta-se num indivíduo determinado, dotado de estrutura pessoal própria que a graça não costuma violentar. Por isso, no candidato ao sacerdócio, há de cultivar-se o sentido da receptividade do dom divino, e da disponibilidade nas relações com Deus, dando essencial importância aos meios sobrenaturais.» [Paul VI, «Encyclique Sacerdotalis Caelibatus»,24 Juin 1967]; Nº 62 da «Encyclique Sacerdotalis Caelibatus».

Creio que não é exagero algum dizer que estamos diante de uma linguagem demasiado estranha consentânea com concepções próprias de uma seita capaz de fazer a ponte com os piores exorcismos traumatizantes (cf. "L'Ombre de l'Aigle", p. 45-46). O 'ritual número 1 da seita católica' (a Consagração Eucarística) sugere uma espécie de castração ('oferenda sacrificial da condição sexuada' do sacerdote) a qual se assume sobre um Altar em perfeita simultaneidade com a oferta do corpo de um deus redentor que, igualmente vítima, também se imola a fim de tudo poder salvar! Paira, então, o pior de entre aquilo que o Antigo Testamento se esforçava por se ver livre: a idolatria e a feitiçaria.

Aparentemente, e excluindo os primeiros decénios do cristianismo, a Igreja cristã nunca pareceu ser uma seita e, por isso - ou seja, pela sua impecável 'omertà' - sempre foi respeitada pelos poderes político e jurídico e, por conseguinte, insuspeita e excluída de qualquer investigação judicial quanto à relação entre 'religião, seitas e violência', fenómeno pujante de força nos séculos XX-XXI. O tratado (com cerca de 800 páginas), que a editora Cerf lançou há semanas, ajuda a compreender o embaraço dos bispos e da Cúria (incluindo a atrapalhação do Papa, que hoje tanto diz que «o celibato sacerdotal é irrevogável» como amanhã o desdiz... e que hoje diz que a Igreja Alemã não tem poder para decidir por si o futuro dos Ministérios como amanhã irá ter de 'engolir' as decisões maioritárias do Caminho Sinodal que os germânicos começaram antes do da Cúria). Este relatório-investigação encomendado pela Ordem dos Irmãos Dominicanos franceses, chama-se «L'Affaire» e tem como autor Tangi Cavalin (Cerf, 2023; ISBN 978-2-204-15353-9), historiador que conta com obras notáveis sobre os "Padres Operários" e "La Mission de France". Um dos contributos desta obra é o de chamar a atenção para a Teologia da Espiritualidade contemplativa e para a sua repercussão na Psicologia humana, mas também na Eclesiologia, ou seja, no modelo de Igreja que daí resulta.



«Mon Dieu, je vous remercie très humblement de toutes les graces que vous m'avez faites jusqu'ici. C'est encore par un effet de votre bonté que je vois ce jour; je veux aussi l'employer uniquement à vous servir. Je vous consacre toutes les pensées, les paroles, les actions et les peines. Bénissez-les, Seigneur, afin qu'il n'y en ait aucune qui ne soit animée de votre amour, et qui ne tende à votre plus grande gloire. Adorable Jésus, divin modèle de la perfection à laquelle nous devons aspirer, je vais m'appliquer autant que je pourrait à me rendre semblabe à vous, humble, chaste, zélé, patient, charitable et résigné comme vous; et je ferai particulairement tous mes efforts pour ne pas retomber aujourd'hui dans les fautes que je commets si souvent, et dont je souhaite sincèrement de me corriger



Ou seja, quanto mais afastados da realidade material e social da "vida inter-humana mundana" estivermos, mais a espiritualidade se agiganta ao ponto de se tornar a totalidade do mundo psicológico do contemplativo («servir exclusivamente a Deus»). E porque, pelo elevado grau de exigência que coloca, isso fascina de tal modo 'o contemplativo' ao ponto dessa espiritualidade se constituir num Desígnio Absoluto, o qual, ao fim de algum tempo, transforma o místico num frágil e inseguro ser, capaz de tudo aceitar como fazendo parte de um segredo do seu coração que só poderá partilhar a sós com Deus. O seu discernimento acaba na despersonalização, às vezes numa luta contra o sentimento de culpa, outras vezes contra o medo de sofrer alguma atracção sexual. O(a) contemplativo(a) despersonalizado(a) sempre estremecerá diante duma súbita dúvida ("Mas ... não foi a mão do Amor de Deus que penetrou sob o corpete e afagou os meus seios?!!! Claro que foi: Ele era a mão, e o sussurro de Deus no meu ouvido!"). O mesmo acontecerá perante uma eventual denúncia que o(a) sobressalte (tal como aconteceu na Comunidade de "L'Eau Vive", entidade que antecedeu a fundação de «L'Arche» de Jean Vanier, para a qual ele transplantou o inferno dos abusos sexuais que com outros praticava na «L'Eau Vive»). Devemos interrogar-nos como foi possível, depois de ela saber tudo o que ali havia de mais escabroso, a mais alta hierarquia da Igreja Católica (dois Papas - João Paulo II, Bento XVI - e um Cardeal) ter tido o comportamento que teve (“Des décennies de louange par la haute hiérarchie de l'Église et d'amitié affichée avec le pape Jean-Paul II. Un hommage appuyé de Benoit XVI lors du décès de Marie-Dominique Philippe [Communauté de Saint-Jean] puis les funérailles élogieuses célébrées par le cardinal Barbarin.”; cf. Nota 23 in Marie-Dominique Philippe).


Em suma, o contemplativo despersonalizado (e isolado pelas calúnias que vê crescerem à sua volta) escolhe renunciar a ser quem sempre foi e é: um ser humano que vive no único reino que verdadeiramente existe - a Terra (João 1,14), onde Deus se deu inteiramente a conhecer sob a forma de "Caminho, Verdade e Vida" (ou seja, "Vida em doação para os demasiado frágeis, Fidelidade e Plenitude"). À medida que o tempo passa, o contemplativo-acossado e abusado procura desesperadamente consolo e refúgio num "Deus celestial" ... que habita no sacrário dum silêncio que mais cedo do que tarde se revelará insuportável. Muitos puseram fim ao Inferno, que é viver numa Comunidade Religiosa Católica onde é sinal de fraqueza (e até de irreverência) partilhar humilhações sofridas, lançando mão do suicídio (cf. «L'Ombre de l'Aigle», p. 6, edição de "AVREF - 2020 Aide aux victimes des dérives dans les mouvements religieux en Europe et à leurs familles").



«La vraie charité n'aime pas les rapports. Le démon ... semeur de rapports! Par rapports, il faut entendre certaines confidences que l'ont fait à quelqu'un... Oh! quelle peine il aurait éprouvée, lui qui était si bon, si charitable, si sa conscience lui avait adressée sur ce point le moindre reproche! Gardez-vous de ce désordre qui contristerait votre bon Ange. Efforcez-vous de fermer cette bouche intempérante.» (citações de «L'Amour du prochain», trinta meditações espirituais, Abbé P. Feige, Paris 1919)



Foi por isso que Jesus se afastou dos contemplativos, foi por isso que nunca orou ao Pai à maneira das Comunidades de Eleitos (Qümran), antes nos apontou ao peito a espada do Julgamento Definitivo (Mateus 25, 31-46) e nos alertou contra o espírito dos teólogos desligados da realidade social (Mateus 16,6).



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A fechar. Mais uma vez, e quanto às discussões em torno deste monstruoso CRIME eclesiástico, Jesus é o grande ausente: ninguém fala do Seu evangelho (“Completou-se o tempo”; Marcos 1,15). Inacreditavelmente, Ele acaba sempre fora dos muros da Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana… quando na verdade, Ele é a resposta: a eucaristia que Jesus fez, aconteceu fora dos muros da igreja do seu tempo! Isso ‒ essa eucaristia ‒ deveria dizer-nos muito, mas parece que não é para aqui chamada.

«Por isso, também Jesus (…) padeceu fora das portas de Jerusalém, do lado de fora da Cidade Santa. Saiamos, então, ao seu encontro fora do acampamento, suportando a sua humilhação, porque não temos aqui cidade permanente, mas procuramos a futura…» (Hebreus 13,12-14)

Os noticiários andam entupidos de ‘Papa para aqui’, ‘Papa para acolá’, ‘bispos para aqui’, ‘bispos para acolá’, ‘clericalismo para aqui’, ‘clericalismo para acolá’… quando a questão das questões é: de que é que os leigos estão à espera para empunharem, aos domingos, a bandeira da justiça, dos direitos humanos e da partilha eucarística de bens com os que pouco ou nada têm de seu? A questão das questões é: alguém sabe por onde anda o Nazareno aos domingos?

Garanto-vos que não vai à missa…Talvez fique à porta de mão estendida. Ou, então, deixou-se ficar no barraco, entanguido de frio com um naco de pão ressequido à cabeceira e um pacote de vinho como companhia divinal.

Completou-se o tempo” do cristianismo como Religião centrada nos ritos do Altar e dos Templos que um Deus habita para receber Oferendas, Preces e ser venerado.

Saiamos fora disto também (o Papa Francisco diria: sejamos uma "igreja em saída", uma comunidade que procura ir no encalce do Crucificado).




Paulo Bateira (médico aposentado; reside no Porto)