Fragmento de um ousado testemunho sobre “a vocação sacerdotal” por parte do teólogo Redentorista Bernhard Häring (1912-1998) escrito muitos anos antes do terramoto provocado pelo conhecimento público da degradação da vida sexual por parte de eclesiásticos católicos.
Poderíamos, então, começar por «Era
uma vez um jovem alemão nascido há mais de 100 anos que se sentia fascinado pela
vida sacerdotal…», que não fugiríamos muito ao que se irá seguir. Só que,
depois… Bem, o melhor será mesmo ler tudo até ao fim, até ao fim … do minúsculo
livro de testemunhos. O livrinho tem o valor (raro) de trespassar e revelar as
duas faces dum único e muito especial século XX: a do «padre-polícia» e a do
«padre-profeta». Uma pérola…
QUE PADRES PARA QUE IGREJA?
Há pouco tempo (1993?), li um artigo escrito
por um teólogo católico sério, com este título: "JESUS NÃO QUIS
PADRES". Fiquei indignado. Pensava: então Jesus não teria querido o que
durante uma longa vida sempre tentei ser? Para mim, padre feliz na minha
vocação, isso era inaceitável. Depois da leitura atenta do Artigo, acabei por
compreender que o autor, com uma formulação desconcertante, queria fazer-nos
reflectir.
Então, fiz a pergunta a diferentes pessoas,
crentes e católicas fervorosas: "Na sua opinião Jesus quis que houvesse
padres?" Os mais inteligentes, após um momento de surpresa, respondem:
"Tudo depende de que tipo de padres está a falar, que padres querem
ser, ou que padres desejam para a Igreja". Depois desta resposta,
tornei a perguntar: "Qual seria então, na vossa opinião, o tipo de
padre aceitável ou agradável para Jesus?" Alguém respondeu:
‒ “PENSO NO PADRE GAILLOT, O
BISPO SEM FRONTEIRAS!”
Eis o ponto de partida para um diálogo que
procuro com o Ieitor. Estou convicto de que Jesus quis discípulos consagrados
ao serviço do evangelho e da paz messiânica, homens de oração e de uma grande
caridade para com os pobres e para com as pessoas não amadas.
Nos últimos anos temos vindo a fazer todo um
percurso paciente, interrogando o Novo Testamento e a história do cristianismo
para chegarmos um pouco mais perto de uma resposta exacta à questão: "Que
padres Jesus teria achado aceitáveis, au mesmo agradáveis, como discípulos segundo
o desejo do Seu coração?" Colocamos a questão tendo em vista,
evidentemente, a história da salvação para nós, para a próxima geração, para a
salvação do mundo. As reflexões de muitos e um esforço comum poderiam talvez
conduzir a uma grande diversidade de opiniões e, ao mesmo tempo, a um acordo de
fundo.
É assim que nos pomos a caminho numa pesquisa
nunca terminada: "QUE PADRES PARA A IGREJA?
QUE IGREJA PARA O MUNDO?" As
duas questões não podem facilmente ser analisadas em separado.
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COMO ENCAREI A MINHA VOCAÇÃO PESSOAL
Ser um santo missionário
Que experiencia fiz da minha vocação na minha
juventude e como a vejo agora após 56 anos de ministério? No princípio da minha
vocação não existia, seguramente, o desejo de ser, um dia, um “pároco”. Padre
era para mim sinónimo de pároco, imagem igual à que conhecia do pároco da minha
aldeia. Ele era alegre, simples. Mas a minha experiência durante a formação religiosa,
o catecismo, etc. não era entusiasmante. Não conseguia compreender que um pároco
se mostrasse tão facilmente impaciente e furioso. E, sobretudo, eu estava
zangado com o seu cão. Um belo dia, esse seu cão violento esfarrapou-me as calças
e rasgou-me a pasta da escola, com os dentes. A minha mãe, depois de um primeiro
esforço para me acalmar, foi comigo à casa do pároco. Disse à criada: “O pároco
tem que ver o Bernhard para constatar o que lhe fez o seu cão”. A reacção da
criada espantou-me: “O Azor conhece muito bem os seus inimigos”. O
pároco, bom homem no fundo, mostrou-se mais sensível e compreensivo.
Consolou-me e deu dinheiro à minha mãe para me comprar umas calças novas. Mas,
… ser eu um dia um pároco, com um cão mau? Nunca!
Mais tarde, durante um retiro para padres, eu
faria uma conferência inteira com o título “O cão do meu pároco”, pondo
o cão como reflexo do seu amo. Aos dez anos fiz a minha primeira comunhão. A
preparação feita pelo pároco não foi grande coisa para mim. Mas a minha mãe e
sobretudo a minha irmã Konstantine, dez anos mais velha do que eu,
prepararam-me de uma maneira verdadeiramente tocante. Chegado o dia, confiei
nesta comunhão dizendo: “Gostaria muito de vir a ser um santo”. Nunca me
passaria pela cabeça identificar um santo com um pároco. A minha ideia de santo
recebi-a nos serões de Inverno quando a minha mãe lia e explicava a vida dos
grandes santos. Ela dava preferência aos santos missionários. E, por isso, aos
onze, doze anos, um dia, quando estava em casa sozinho com a minha mãe, tive a
coragem de lhe dizer: "Que é que tu pensas da minha ideia de ser
missionário? Sei muito bem que não sou propriamente um modelo de rapaz,
mas ... " A minha mãe ficou maravilhada e disse-me: "Mas,
Bernhard, nunca santo algum caiu do céu. Com a ajuda de Deus tu conseguirás o
que foi possível a tantos outros". Assim começou a minha vocação
sacerdotal. Era simplesmente uma visão bem imperfeita de um santo missionário.
O ideal de missionário concretizou-se para mim
num encontro com um missionário Redentorista, o
padre Leonard Eckl, que mais tarde se tornou famoso, como
missionário corajoso e dedicado, no Brasil. Pregou uma “missão” na minha terra.
Contou os trabalhos missionários dos seus confrades no Brasil, em viagem durante meses para pregarem
O Evangelho e administrarem os sacramentos a milhares de pessoas que raramente
viam um padre. Mais tarde, li bibliografias sobre os grandes missionários
jesuítas na China. A sua ideia era serem tudo para todos, serem chineses com os
chineses. Com este objectivo, logo que terminei os meus estudos humanistas,
procurei informações nos Jesuítas. Mas quando soube que eles tinham dois cursos
de formação diferentes, um para futuros professores e outro para os menos
dotados, destinados a serem futuros missionários, essa Ordem deixou de me
interessar. A vocação de professor não estava nos meus planos, menos ainda no
meu coração. Então, dirigi-me ao Padre Provincial dos Redentoristas com a ideia
firme de saber se poderia ter a certeza de que não iriam fazer de mim um
professor. Resposta: "Com 95% de
probabilidades: - ‘Não’. Pode ter quase a certeza de que irão mandá-Io
para o Brasil, se for esse o seu desejo". Só muito mais tarde
compreendi que a profissão de teólogo, e sobretudo de ‘teólogo moralista’,
poderia muito bem ser uma vocação missionária.
A PRIMEIRA MISSA
Celebrei a "primeira missa" na minha
paróquia natal, juntamente com o meu amigo e primo Johannes Flad que, sobretudo
devido à nossa amizade, se tinha associado a mim nos estudos e na escolha da
vocação de Redentorista, encorajado pela mãe, a minha madrinha: “Se o teu
amigo Bernhard, com toda a sua vivacidade, se decidiu, porque não tu?”.
Celebramos a primeira missa no mesmo dia, no mesmo altar. Mas, segundo a lei da
Igreja desse tempo, não podíamos concelebrar. Cantamos duas missas, uma a
seguir à outra. Na igreja do nosso grande convento, numa grande igreja, durante
duas horas, os seus nove altares foram ocupados por confrades: cada um celebrava "a sua missa", sozinho,
coadjuvado por um irmão leigo. Que absurdo! Sinceramente, nem sequer
tínhamos coragem de pensar nisso, menos ainda de o discutir. Era uma
característica do “bom” padre. Naturalmente, era tudo em latim, sinal de uma cultura superior e sinal
da separação relativamente ao povo, ao comum.
Foi uma grande festa para a aldeia. Vieram
muitas pessoas das aldeias vizinhas, sinal da alta estima da vocação
sacerdotal. Durante todo o dia choveu torrencialmente. As pessoas consolavam-se
ou antes consolavam-nos dizendo: “É um símbolo da chuva de graças que estão
a cair do céu”. Eu pensava: Será que isto não é uma espécie de profecia, a mostrar-me que muitas vezes o padre tem de
andar “à chuva”?
NO “SERVIÇO” DE SAÚDE: “UM DE NÓS”
Comecei o meu ministério
sacerdotal durante a guerra de 1939-1945. De facto, estava entre os primeiros
padres convocados pelo exército de Hitler.
Segundo a “Concordata”, os padres tinham o direito de recusar o serviço
armado. Por isso, a companhia em que fui inserido era composta quase
exclusivamente de padres, médicos, seminaristas e estudantes de medicina. O
cabo que dirigia os exercícios ostentava, com orgulho indizível, a sua
superioridade sobre um grupo assim. Um dia, quis evidenciá-lo de uma forma
particularmente espectacular mandando correr um de nós, padre, até ao outro
lado do quartel e gritar em voz alta: “Eu sou um idiota”. O padre-soldado
correu muito, mas gritou com voz bem forte: “Cabo, você disse com razão: Eu sou
um idiota”. Todos se desfizeram a rir. O cabo estúpido contribuiu, assim, para
criar entre nós uma grande solidariedade. Todos reconheciam intimamente: Este
padre é um de nós! Todos notavam que os padres são bons companheiros. E os
mais endurecidos tinham a possibilidade de descobrir que os padres não são nem ingénuos
nem covardes.
Durante os tempos maus da guerra na Rússia
fui, a meu pedido, integrado numa companhia de infantaria, como cabo nos serviços
de saúde. Muitas vezes, tive de transportar feridos das primeiras linhas para a
retaguarda, para os salvar. A resposta era uma amizade calorosa quase com todos.
Mas havia também nazis fanáticos que nunca deixavam de manifestar o seu
desprezo pelos "ratinhos". Um belo dia, um deles estava a insultar-me
diante dos companheiros. A minha resposta foi directa e enérgica: “Se um dia você
gritar por socorro, eu lá estarei. Lembre-se disso!” Quando algumas semanas
depois eu trazia este capitão da linha de fogo e cuidava das suas feridas
graves, ele, com as lágrimas nos olhos, pedia-me perdão. Não se tinha esquecido
dos seus insultos. Tais acontecimentos fortificavam o espírito de camaradagem,
a experiência de que «padre do serviço de saúde é “um de nós”». Esta imagem do padre "um de nós" ultrapassava
as fronteiras confessionais e nacionais. Quando, durante o Inverno
de 1940/41, me encontrei com a minha companhia na Normandia, rapidamente tive o
privilégio da amizade de muitas famílias francesas. Contra as leis do regime,
eu celebrava todos os Domingos uma missa cantada com o coro do regimento na Catedral de Bayeux. De Domingo para Domingo aumentava o número
de franceses que vinha participar. Não sei se estavam conscientes do risco que
eu corria. Como os outros padres do serviço de saúde do exército, eu sabia muito
bem que tínhamos uma proibição formal de exercer o nosso ministério no exército,
sob pena de incorrermos em nove anos de prisão. Um Domingo, quando vinha de bicicleta
da cidade de Bayeux, encontrei, por acaso, o coronel comandante da cidade, que
me fez sinal de que queria falar comigo. Receei o
pior. Mas, para meu espanto,
desta vez cumprimentou-me cordialmente, dizendo-me. “Se
aparece de bicicleta, isso causa má impressão ao povo. Vou dar ordens para que,
daqui em diante o venham buscar de carro. Aliás, se estiver de acordo, pedirei
aos músicos do regimento para darem um pouco mais de solenidade à celebração”.
Ele, coronel, bem ao corrente da legislação, revelava-se, à sua maneira, “um de
nós”.
Assim iam caindo as fronteiras confessionais:
durante esse Inverno, um grupo de soldados protestantes abordou-me, pedindo-me
para os ajudar a animar “serões bíblicos”. E isso durou todo o tempo em que
pertenci ao regimento. À noite, numa floresta,
antes da declaração de guerra à Rússia, celebrei uma Missa, com confissão e
absolvição geral para o regimento, sem uma palavra de distinção entre
católicos e protestantes. Muitos manifestaram-me o seu
reconhecimento. E uma vez que isto começara assim num momento tão crucial,
nunca mais pensei afastar-me da orientação ecuménica.
Uma vez, na Rússia, adverti os meus
companheiros protestantes de que, no dia seguinte, viria o seu capelão
protestante para uma celebração. Reacção espontânea: “Não, você é um de nós.
Aliás, nós não sabemos exactamente o que pensa o capelão sobre o nazismo e esta
guerra”. De facto, tem que se dizer francamente, o capelão protestante desta
divisão era um homem de fé e de espírito ecuménico. Quando um dia, eu já não
tinha vinho para celebrar a missa, foi ele que veio oferecer-me espontaneamente
uma garrafa de graça. E que amor me mostraram os
Ortodoxos ‒ povo e padres ‒ em toda a parte da Ucrânia e da Rússia!
Sempre me tratavam como um deles. E no fim da guerra diabólica, uma paróquia da
Polónia, onde antes eu tinha tratado algumas pessoas doentes, decidiu por unanimidade arrancar-me ao campo de
prisioneiros russos e pôr-me ao seu serviço como padre, mas não “como Senhor
Prior”.
SERÁ POSSÍVEL?! DEUS ENVIA-ME UM PADRE!
Uma tarde, num dos dias mais terríveis, chegavam
de todos os lados gritos: “Serviço de saúde, socorro! Enfermeiro,
socorro”. Eu estava absolutamente esgotado, quando eu comecei a preparar
uma trincheira para me proteger dos atiradores russos o melhor que podia. De
longe chegavam gritos: ”Socorro, serviço de saúde!”. Como vinham de um
outro batalhão, poderia ter ficado tranquilo, dizendo: não é nada comigo. Até
porque já tinha trabalhado muito para além das minhas forças. Mas, subitamente,
compreendi que alguém gritava chamando um padre.
Corri, então, dez minutos sob os olhares dos atiradores russos. Ainda agora me
espanto que eles não me tenham matado. Penso que foi por respeito às
Convenções de Genebra. Assim, totalmente esgotado, encontrei um companheiro
muito gravemente ferido, mas ainda em plena consciência. Depois de ter
constatado a natureza das feridas e feito o possível, disse-lhe que era padre
católico e que além disso trazia comigo a hóstia consagrada para a comunhão.
Nunca mais esquecerei o seu olhar e as suas palavras: “Então o bom Deus enviou-me a esta hora um padre, a mim
pobre pecador!” Antes de o deixar, fiquei com o seu nome e
direcção para informar a família. A resposta veio-me dum padre, primo do
defunto: “Que maravilha! Ele tinha-se afastado da Igreja depois de uma grave
injustiça cometida pelo seu pároco e nunca mais conseguira encontrar o caminho
de volta com esse pároco. A mãe tinha rezado dia e noite para que Deus lhe
desse a graça da Paz”.
Sim, o padre faz bem em considerar-se enviado aos necessitados. O padre é por vocação “o homem para os outros”. Ser enviado aos outros foi também a minha experiência feliz e algumas vezes exigente, quando, tanto os católicos polacos, como os Ortodoxos, procuravam o meu auxílio para as suas doenças e mais ainda o meu ministério sacerdotal. A notícia circulava de boca em boca: “O doutor alemão é um de nós”. Não havia nada a fazer. Chamavam-me "doutor" (médico), não apenas porque durante muito tempo eu ocupara o posto de médico do batalhão, mas também porque os meus companheiros alemães, por todo lado onde os russos ou ucranianos estavam doentes, diziam: “Vá ao nosso doutor!” Estar ao serviço, tanto da saúde como da salvação, derruba todas as fronteiras. E que Graça imensa se - por onde quer que andemos como 'padres servidores' - encontramos no coração das pessoas um lugar para nós!
MISSIONÁRIO NO MEIO DE EXPATRIADOS E
REFUGIADOS
Ser "um de vós" é
muito mais fácil de dizer do que de realizar. Ser "o homem para os
outros", obra da graça. Durante os
anos que se seguiram à segunda guerra mundial, um grupo de missionários começou
a visitar os expatriados de língua alemã nas regiões que antes eram
exclusivamente protestantes. Para esta pobre gente, eram os primeiros encontros
com a Igreja Católica na Alemanha. Partíamos juntos, em grupo, mas a cada um
era atribuído um certo número de aldeias onde devia visitar todos os católicos.
Viviam ainda na miséria. Em algumas aldeias, o pároco luterano punha à nossa
disposição a sua igreja, mas, muitas vezes, as nossas reuniões eram feitas numa
sala de dança alugada. Começámos na região de Coburg e Ansbach onde ainda não
havia paróquias. Eu fazia esse “trabalho” dez semanas por ano. Foi durante esse
tempo que comecei a escrever a obra «A Lei de Cristo», em três volumes, (tanto para as fiéis como
para as padres). Antes de partir tinha preparado
dezasseis sermões ou, se quiserem, “conferências”. Deixei-os de lado. Eram
inúteis. Depois das visitas a todas as famílias, devíamos responder
às suas perguntas, problemas, sofrimentos. Aprendi assim que a evangelização é
uma dupla resposta: resposta ao apelo de Deus e, ao mesmo tempo, resposta aos
ouvintes. São eles que nos dão os temas.
Por princípio, nunca procurávamos um hotel.
Hospedávamo-nos em casas particulares. Refeições a sério só as tomávamos se
fôssemos convidados par alguma família. Mas, normalmente, estávamos muito contentes.
Nunca tínhamos a certeza de que seríamos convidados. Numa cidade pequena, de
facto, como ninguém me convidou tive de ocupar um espaço reservado a
vagabundos. A roupa havia muito tempo que não era mudada. Depois, os
expatriados começaram a aperceber-se disso. Um professor protestante e a sua
mulher traziam-me roupa lavada. E eu ia com o primeiro que me convidasse para
as suas pobres refeições. Porém, poucas vezes os nossos encontros foram tão familiares
como neste lugar.
Como se pode anunciar a Boa Nova
às pessoas que vivem na miséria, se não se é, tanto quanto possível, um deles quanto
ao modo de vida?
DESPERTAR VOCAÇÕES MISSIONÁRIAS
Um dos frutos mais preciosos era despertar
vocações entre os expatriados. Nas aldeias e nas cidades procurámos cooperadores
e cooperadoras para construir comunidades fervorosas. Voltávamos todos os anos
para ver e promover o crescimento. Agora, vejamos um exemplo, entre outros.
Numa pequena cidade, uma jovem de uns vinte anos ajudou-me a encontrar todos os
católicos para os preparar para a Eucaristia. No fim, ela confiava-me: “Se
eu conseguir trazer toda a minha família à prática da fé, sentir-me-ei chamada
a ser missionária”. No primeiro ano, conseguia a participação da mãe; no
segundo, a da irmã e um dos dois irmãos; no terceiro, pode dizer-me: “A minha
oração foi ouvida; toda a nossa família é praticante”. Entrou nas Irmãs
Beneditinas de Tutzing. Quando,
anos mais tarde, fui à Tanzânia, lá estava ela, muita activa e muita amada! ...
No tempo da primeira cristandade teria podido, depois de ter pedido conselho a
toda a comunidade, propor o “presbiterado” para alguns e algumas como
dirigentes da comunidade e como presidentes da celebração eucarística. Ou, então,
teria podido facilmente, em nome de todos, propor ao bispo uma lista de "Responsáveis"
pela comunidade com diversidade de carismas e de ministérios.
O futuro na Igreja e da Igreja tem ainda belas
hipóteses em perspectiva. Para se ter consciência disso, é preciso conhecer o Evangelho
e decifrar os sinais dos tempos.
NO HOSPITAL ENTRE DOENTES POBRES
Em 1977 tive de fazer, pela segunda vez, uma
delicada operação devido a eu ter um cancro na laringe. Foi uma operação de
seis horas, com risco de morte por causa de várias complicações. Não me lembro
bem se fiz considerações idealistas. A razão directa era a circunstância de o cirurgião,
que me tinha feito a primeira operação numa clínica de Irmãs, ser o “chefe” da
secção no hospital de Colleferro, ao Sul de Roma. Do ponto de vista cirúrgico
nada faltava, mas tudo o resto era realmente destinado apenas aos pobres. O cirurgião,
sem dúvida simpático, tinha aprendido nos Estados Unidos a substituir as
laringes por membranas mucosas do doente com a condição, no entanto, de ele nunca
ter fumado. Era o meu caso. Logo no primeiro dia, veio visitar-me um grupo de carismáticos
que me trouxe garfos, colheres, tigelas de sopa, justamente tudo aquilo que se
devia levar para um hospital de pobres, e que eu não sabia. No dia seguinte, trouxeram-me
flores. As relações com os outros doentes foram logo cordiais. Uma velhinha, do
quarto ao lado, vinha todos os dias cumprimentar-me e cantar-me canções com a
sua rica e bela voz. “Você está completamente
mudo e eu surda. Não é a mesma coisa", disse ela e desandou.
Como padres, sentimo-nos muito bem entre os pobres de um hospital, se eles
tiverem a impressão de que somos "um deles".
PADRE DOENTE NO MEIO DE OUTROS DOENTES
Há cerca de dezoito anos que, de uma maneira
ou de outra, luto contra o cancro. Há quinze anos que me foi extraída
completamente a laringe. Isto deu-me uma capacidade extraordinária para ajudar
outros doentes, sobretudo do mesmo género. Eles não podem dizer: “Este padre
fala muito bem, mas que é que ele sabe da minha situação?”. Cedo me
apercebi de que esta espécie de proximidade é um privilégio para consolar e
poder encorajar. Nestas circunstâncias, podemos traduzir melhor as palavras de
Deus ao rei Ezequias, doente: “Ouvi a tua oração, vi as tuas lágrimas, vou
curar-te” (2 Rs 20, 5). Para um padre que não sofreu de uma maneira semelhante,
é mais difícil aprender e viver uma compaixão autêntica, mutuamente partilhada.
Não aprendeu Jesus Cristo, de uma maneira especialíssima, a compaixão através
da sua Paixão? Da Sua boca aprendemos o grande mandamento: “Mostrai-vos
misericordiosos, como o vosso Pai é misericordioso” (Lc 6, 36). Ele próprio, na
Sua humanidade, é um sinal privilegiado da compaixão do Pai celeste.
CURAR OS DOENTES
Durante os últimos séculos, a Igreja organizou
serviços maravilhosos para os doentes, graças, sobretudo, à grande generosidade
das religiosas. Foi um padre, S. Vicente,
que rompeu com tabus e libertou as energias tornadas estéreis durante muito
tempo pela severa lei da clausura imposta por um clérigo “masculino” às
mulheres consagradas. Não há dúvida de que as enfermeiras, mulheres da Igreja,
deram também um testemunho corajoso e de que comunicaram o evangelho. Mesmo
assim, esta época foi marcada por uma separação
de duas tarefas inseparáveis: anunciar a Boa Nova e curar.
Pior ainda, o moralismo angustiante causou muitos sofrimentos e graves doenças
psicogéneas e noogéneas. Hoje, fala-se mesmo de patologias
eclesiogénicas, quer dizer, causadas
ou condicionadas pela Igreja.
Mas a fé, se vivida com alegria e comunicada
com justiça, pode ter uma força tanto libertadora como curativa. Voltarei a
este importante tema muitas vezes. Vou contar uma experiência que também me
ajudou a desenvolver sistematicamente o poder da dimensão terapêutica da fé e
da moral verdadeiramente evangélica.
Tendo quarenta anos, levaram-me a casa onde
vivia, em Roma, uma mulher jovem que, durante os últimos exames na
Universidade, sofreu de uma terrível explosão de
esquizofrenia. Face ao seu comportamento impossível e à sua miséria
indizível, o velho Adão reagiu dentro de mim: “Mas porque é que as pessoas
me trazem tantas vezes doentes que ninguém pode ajudar? Se os outros não
conseguem, com maioria de razão, eu também não!” Mas, nesse momento, a graça tocou o meu coração, dizendo-me: “É Jesus
que te põe à prova. Na medida em que o fizestes a um destes mais
pequenos dos Meus irmãos e irmãs, foi a Mim mesmo que o fizestes” (Mt 25,40).
Então, tomei a firme decisão de manifestar a essa pessoa tão doente todo o meu
respeito religioso e humano, como se ela fosse Jesus em pessoa que tivesse
vindo ter comigo. A doente rapidamente ganhou uma confiança sem reservas.
Apesar de uma psicocirurgia que normalmente priva as pessoas de qualquer
espírito de iniciativa, nunca faltou à visita na hora marcada.
Continua a contactar comigo, sem qualquer tipo
de dependência. Vive uma vida normalíssima, com relações completamente sãs e
naturais. Não sou um terapeuta diplomado. Estudei as obras dos maiores
terapeutas e estou particularmente atento às opiniões daquelas que mais
insistem de que é necessário, sobretudo, curar as relações humanas. Isto é muito eficaz na medida em que há um
profundo respeito por todos, sobretudo por aqueles que sofrem psicologicamente.
Mas há mais do que melhorar a saúde. Ainda não acolhemos todas as consequências
de uma missão com duas dimensões inseparáveis: “Proclamai que o Reino dos Céus
está próximo. Curai os doentes, purificai os leprosos, expulsai os demónios.
Recebestes gratuitamente ... “ (Mt 10,8-9; Lc 10, 9).
Para se abrir ao carisma de curar através de
todo o seu ministério, o padre e geralmente todo o terapeuta inspirado pela fé,
devem viver e promover sobretudo relações sensatas, saudáveis, de tal maneira
que elas se transformem também em relações geradoras de saúde, “curadoras”.
Tais relações devem ser marcadas pela experiência da gratuidade e por uma
profunda confiança em Deus. De tudo isto decorrerão relações amigas muito
respeitadoras, generosas e encorajadoras para com os doentes, os perturbados.
Não se pode anunciar a Boa Nova de que o Reino
de Deus está próximo, se os outros, sobretudo os doentes, não vêem em nós,
naturalmente, através das nossas relações diárias com eles, mensageiros cheios
de uma profunda paz interior e de um amor muito respeitoso. É diferente de uma atitude dita “caridosa” que olha do
alto o miserável. A Redenção, regime de saúde e de salvação, está profundamente
marcada pela "gratia præveniens",
segundo a expressão teológica. Tento traduzi-la pelo conceito de “adiantamento”. Deus, pela graça do seu
Espírito, o Paráclito, encoraja-nos sempre com um fecundo
"adiantamento" que inspira confiança, esperança, força interior para
avançar. Se os educadores censurarem excessivamente e degradarem os que lhe são
confiados, só gerarão doentes, anormais, paralíticos, leprosos ou, então,
revolucionários destruidores. Pelo contrário, se os pais e todos os outros
educadores sabiamente comunicarem “o adiantamento” da coragem, farão, por assim
dizer, “milagres”, ou melhor, impelirão os outros a realizar o “milagre” de
relações sensatas e saudáveis consigo próprios e com Deus, de confiança e de
criatividade ...
Nós, padres, nunca devemos
atribuir-nos um poder mágico-miraculoso. Nada disso. Mas Deus faz grandes coisas se nos ajudarmos
uns aos outros a reconciliar-nos connosco
próprios, com o próximo, com Deus. Sobretudo, com “o adiantamento
permanente” de um grande respeito, despertaremos uma sã confiança em Deus e também
nos nossos recursos pessoais interiores que, gradualmente, podem, querem e
devem ser descobertos. Todos os métodos, aliás excelentes, das diferentes
escolas terapêuticas são pouca coisa em comparação com a força terapêutica das
relações plenamente humanizadas, isto é, em comparação com “o meio divino” onde surge continuamente o louvor de Deus e
que se exprime pelo encorajamento mútuo, pela paz interior, pela franqueza e
pelas iniciativas criadoras.
A Igreja, a todos os seus níveis,
é convidada com urgência a criar e a recriar um tal meio divino, baseado no
"adiantamento recebido da parte de Deus". Evidentemente que isso
exige uma luta encarniçada contra estruturas malsãs.
UMA SÃ TEOLOGIA MORAL: UMA VOCAÇÃO SACERDOTAL
Fui descobrindo lentamente que uma sã
teologia moral e todos os esforços da catequese e pedagogia morais têm uma dimensão
de vocação sacerdotal, mas não no sentido dum ‘monopólio do clero’. Penso sempre, em primeiro lugar, no povo sacerdotal-profético de Deus, que vive a consagração
pelo baptismo de Cristo. Sempre ensinei e escrevi sobre teologia moral, tendo
em vista todos os fiéis. Descobrir e
aperceber-se que uma espécie de moral ‒ o moralismo ‒ pode deixar as pessoas
doentes e que, de facto, causa muitas doenças psicogénias,
noogénias, eclesiogénias, quer dizer, muitos sofrimentos que afectam
a salvação das pessoas e as relações humanas, criando sistemas e modos malsãos de pensar e de dialogar, é chocante!!! A palavra "eclesiógene" é um apelo urgente aos
homens da Igreja a que se dêem conta das muitas desordens, sofrimentos e
doenças que são, pelo menos parcialmente, causadas por estruturas, relações e
ideologias malsãs existentes no seu interior. Karl
Rahner chamou a atenção de muitos
católicos para o facto de, no Confessionário, se classificarem como "pecados
mortais", simples "bagatelas".
Quando era jovem professor de teologia moral
preguei retiros ao clero do Tyrol; eram uma centena de padres. Na primeira conferência
afirmei que não pensava ter diante de mim padres com pecados mortais na consciência.
Devemos pensar, pelo contrário, numa conversão contínua, como cristãos-padres
que vivem habitualmente na graça de Deus. Um decano levantou-se ineditamente
perguntando: "Como é que se pode viver sempre em graça se os ritos da
Igreja estão cheios de leis que ‘obrigam sob
pena de pecado mortal’?" Vinte anos mais tarde tive um duro litígio
com um cardeal que, num decreto público, queria
obrigar as crianças a confessarem os seus "pecados mortais" antes da
primeira comunhão, mesmo que tivessem apenas sete anos. Qual é o Estado que hoje aplica a pena de morte a crianças? E que Deus seria
esse que considerasse os defeitos das crianças merecedores de pena mortal para
toda a eternidade! Se esse Deus
existisse, merecia um tiro. A
teologia moral tinha e ainda tem muito que fazer para eliminar todas as doenças
"eclesiogénias", causadas por uma religião terrivelmente angustiante.
No decurso dos anos, comecei a compreender que a renovação da teologia moral é
uma vocação sacerdotal que tem como objectivo a libertação e também a cura. Pouco
a pouco, os melhores «teólogos da libertação» foram descobrindo a importância
de uma teologia moral ponderada, saudável, libertadora e curativa. Para mim, isto é o centro da minha vocação sacerdotal.
Espero que todas as minhas obras publicadas
depois do Concílio, nomeadamente “Livres e Fiéis em Cristo” e o livro sobre a pastoral dos divorciados “Existe Saída?”, dêem testemunho e apelem aos leitores para
que comecem corajosamente a testemunhar e a anunciar uma mensagem moral
libertadora e ao mesmo tempo curativa.
A PASTORAL PARA OS DIVORCIADOS
A minha preocupação
relativamente aos divorciados não resultou de uma pesquisa teórica. Foi a vida, todo o sofrimento dos
divorciados, muitas vezes imenso, que me mobilizou. Onde quer que eu
fosse fazer cursos, retiros, conferências, todos os meus amigos,
particularmente as religiosas, mas também os bispos, mandavam-me os
angustiados, os aflitos, os perturbados. Em África, um bispo mandou-me um dos
seus irmãos, dizendo-lhe: “O que o Padre Häring te disser, fá-lo e fica
tranquilo!” Que variedade imensa de dolorosas experiências, que oceano de sofrimentos! Muitas vezes lembrava-me da palavra de Cristo: “O
que fizestes a um destes mais pequenos, que são Meus irmãos e irmãs, foi a Mim
mesmo que o fizestes” (Mt 25, 40). Lembrava-me do amor
respeitoso com que Jesus abordou a mulher da Samaria e como lhe devolveu a sentido da dignidade,
de tal forma que ela veio a ser a primeira grande "missionária" da
Boa Nova na sua cidade (João 4).
Foi a ela que Ele falou da adoração do Pai em
Espírito e Verdade. De facto, a Sua atitude para com esta mulher desprezada por
homens que a tinham injustamente destruído, era um acto de adoração do Pai em
Espírito e em Verdade. Ela tinha sido rejeitada por homens cinco vezes! Ora, segundo
uma regra estabelecida por homens, exigia que ninguém de boa reputação falasse
com “uma tal pessoa”. Jesus foi deveras severo para com os homens
"justos" que levaram, escondida, a mulher adúltera a Ele (João 8), e nem sequer acusou o desgraçado do homem que
tinha abusado dela. Foi grande a
Sua misericórdia para com a mulher. Mas não basta recordarmos o exemplo de
Jesus. Impressionante é também a minha experiência interior. Nas pessoas
doentes, e muitas vezes injustamente desprezadas, Jesus testa o meu amor
por Ele.
Um grande número de moralistas, e até de
prelados, sentem-se tranquilamente de bem com a sua intenção a “atirarem a
primeira pedra” (Jo 8, 7), mas nem sequer se perguntam se eles próprios não serão,
talvez, pecadores ainda maiores. Jesus disse: “Quem
nunca pecou ... “
O Padre autêntico nunca
deve entrar na rotina de julgar segundo categorias simplistas. Deve entrar no sofrimento de cada um e de cada uma.
Percebi, de forma muito clara, que neles e nelas ‒ nos que sofrem ‒ o próprio
Senhor vem ao meu encontro. Teria realmente um sentimento de desprezo para
comigo mesmo, como padre, se os tratasse com categorias generalizantes, como
pessoas “que objectivamente se encontrassem em estado de pecado grave”, como se
pode ler em alguns documentos eclesiásticos. Aliás, também aqui se trata, logicamente,
de espírito ecuménico. De facto, muitos ortodoxos, zelosos com a causa
da unidade, ficam muitas vezes chocados com a dureza de alguns documentos católicos
para com as pessoas que sofreram e sofrem por causa do fracasso do seu
casamento. Como padres, e justamente porque amamos muito a nossa Igreja, sofremos
com isso. E em nome de Cristo, e da sublime missão da Igreja, que amamos Cristo
nas pessoas que fracassaram e em quem, muitas vezes, tive a ocasião de admirar
grande generosidade e sinceridade. (…)
CELIBATO ‒ UM “CASAMENTO INVÁLIDO”
Ao longo dos anos, muitos moralistas e
canonistas descobriram que um grande número de casamentos, realizados
solenemente e segundo todas as regras canónicas, estavam, desde o início, tão
gravemente feridos que, apesar da boa vontade, quase não tinham hipótese de se
tornarem "sacramentos indissolúveis". Apesar de toda a boa vontade
dos dois, ou pelo menos de um deles, naufragaram. Um dos cônjuges permanecia
totalmente "estranho" ao outro, em todo o seu modo de ser. Mesmo
entre pessoas "normais" há, por vezes, alergias de tal maneira graves
que levam à repulsa do outro. As Igrejas Ortodoxas e as Igrejas saídas da
reforma são muito mais sensíveis a estas situações e abordam esta realidade com
uma compreensão curativa. Entre nós, uma
mentalidade abstracta e jurídica reage, pelo contrário, com condenações e
marginalizações.
No que diz respeito ao celibato, algo de
semelhante deve ser posto a nu. Também os padres, com plena sinceridade,
fizeram a promessa de o viver e de o praticar. Mas, como poderiam desde o
início conhecer-se a si próprios e conhecer todos os problemas do celibato,
sobretudo, com uma educação nos seminários tão
hermeticamente separados da vida normal?
Apesar da boa vontade e de uma vida de oração
sincera, alguns padres, amados pelos fiéis, acabaram por pedir dispensa do seu
voto para se casarem, para viverem com coerência num casamento cristão. Conheço
casos nos quais a experiência do "outro" foi decisiva. A Igreja no
Vaticano, assim como a Igreja local, pode tornar-se para um padre de tal
maneira um estrangeiro ou uma estrangeira, que ele não consiga viver com ela
uma vida sã de celibato.
Conto só um caso típico. Num dia de Natal, na refeição
comunitária, o pároco mostra-se furioso contra o vigário por este, durante a
missa, não ter observado todas as regras, por ter, por exemplo, estendido demasiado
os braços. Para defender-se, o vigário cita-lhe palavras do Cardeal Faulhaber.
Então, o pároco grita: “Você tem que seguir a
lei e não um cardeal”. À tarde, encontram-se de novo nas escadas e
repete-se a mesma cena, o mesmo grito de escândalo. O jovem padre acaba por me
dizer, mais tarde, que naquele dia, pela primeira vez em toda a sua vida, se
masturbara: nenhum prazer, mas uma extrema experiência de frustração. Nas
semanas seguintes, foram-se repetindo os mesmos fenómenos de frustração. Um psicoterapeuta dá-lhe o conselho de abandonar o estado
de celibato numa Igreja que faz as pessoas doentes. Passados muitos
anos, esse jovem padre faz-me uma visita: casado, pai de família, feliz, muito
dedicado ao apostolado, uma família missionária. A sua vocação sacerdotal e o
seu celibato poderiam ter sido vividos muito bem se ele tivesse encontrado no
seu prior, nos seus confrades e superiores “o outro” em sã reciprocidade e
mútuo enriquecimento. Todos conhecemos pessoas assim que, apesar do seu
carácter simpático, experimentam a derrota por
causa do “outro” inassimilável, repelente.
O problema do celibato, como lei e porta
indispensável para se entrar no sacerdócio, toma-se na Igreja uma questão envenenada, deletéria por causa de uma "outra"
Igreja representada por pessoas autoritárias, juízes supremos. Só uma Igreja
que saiba curar, encorajar, pode ajudar tanto as pessoas casadas como os
padres. A extrema dureza, sem discernimento, para com os divorciados, tornou-se, há muito tempo em
vários lugares, e é-o ainda mais hoje, um motivo para recusar o casamento
litúrgico. Encontrei jovens que não ousavam entrar no estado de celibato por
causa do tratamento indigno para com os celibatários que, mais tarde, nas
situações concretas, descobriram que não eram capazes de viver um celibato
saudável.
Em toda
a vida cristã, mas de uma maneira particular no que concerne
ao celibato e ao casamento, há duas perspectivas totalmente opostas: ou a
perspectiva da Boa Nova, da “Paraclese” («encorajamento
no poder do Espírito»), do sopro da graça, da fé alegre e cheia de confiança,
da solidariedade que salva e cura, ou então, a perspectiva da lei em
toda a sua dureza, a das proibições, dos julgamentos, das sanções, das
segregações, com a graça apenas acrescentada para observar a lei.
Tanto os que são convidados para o sacerdócio,
e ao mesmo tempo para o celibato, como aqueles que os convidam, devem estar
dinamizados pela Boa Nova: “O pecado não terá
mais poder sobre vós, porque já não estais sob o regime da lei, mas sob o
espírito da Graça” (Rom 6, 14). (…)
Bernhard Häring
«Que padres … para a Igreja?»,
Editorial Perpétuo Socorro, Porto Julho 1995, pp. 9-31.112-115. ISBN
972-563-245-1.
AS
CONFISSÕES DO PADRE HÄRING CONTINUAM…