A IGREJA CATÓLICA AINDA
TEM FUTURO?
Em defesa de uma nova Constituição
para a Igreja católica
É com muita satisfação que escrevi
expressamente para a edição portuguesa este prefácio ao meu livro «Nur ver
sich andert bleibt sich treu», que em português aparece na colecção
«Religiões» com o título «A Igreja Católica ainda Tem Futuro?»
Ele consta de três pontos
fundamentais:
1. Jesus
não fundou nem quis fundar uma Igreja.
2. Por isso, toda a estrutura
ministerial remete para a própria Igreja. Jesus
não criou nenhum cargo oficial. Assim, a Igreja pode proceder de
modo totalmente livre com os ministérios. Pode mudar os actuais ou aboli-los e
introduzir novos. Não deve tornar-se escrava dos ministérios que ela própria criou.
3. O mesmo vale para os sacramentos.
Todos os sacramentos têm a sua origem na própria Igreja, e esta pode, neste
domínio, proceder com liberdade: mudar o seu
número, dispor do modo como
relacionar-se com os sacramentos (por
exemplo, se é necessária uma ordenação ou não para a celebração da Eucaristia).
Vou explicitar.
Este livro não nos vai libertar de
todas as preocupações que a Igreja Católica nos causa presentemente ‒ um livro não consegue mudar a Igreja ‒, mas pode apontar um caminho que a transformaria, se ela
tivesse a sabedoria e a coragem de segui-lo. A Igreja cristã tem cerca de dois
mil anos. As suas estruturas e a sua Constituição permaneceram, porém,
praticamente as mesmas ao longo destes dois mil anos. Ora, já isto nos mostra
que há algo aqui que não está certo. De facto, o homem, a sua vida, a sua
história, as suas representações sociais, religiosas, políticas, são no ano
2001 completamente diferentes do que eram no ano 1001. Em 1001 ainda não se
sabia nada do Brasil, e Portugal estava sob domínio árabe. Mas a Igreja, no
essencial, manteve-se imóvel.
Houve vários factores que
contribuíram para que a Igreja em nada mudasse. O principal foi que desde o
século III se introduziu a ideia de que para o exercício de um ministério
eclesial era precisa uma ordenação. Por isso, desde então já não há uma Igreja,
mas duas: a Igreja do clero, que
consta de Papa, bispos, padres e diáconos, os «sagrados», e a Igreja dos fiéis «normais», os «leigos». Todos
os direitos e poderes estão com os do primeiro grupo; ao segundo, aos leigos,
compete o cumprimento dos deveres.
É de admirar que esta situação tenha
sido aceite obedientemente. De facto, era fácil ver que nos Evangelhos não
existe uma só palavra referente a esta «ordenação sagrada». Jesus não queria
que entre os seus discípulos houvesse diferenças entre os colocados mais acima
e os situados mais abaixo. Esta é a sua divisa: «Não vos deixeis tratar por rabi,
pois um só é o vosso Mestre, e vós sois todos
irmãos» (Mateus 23, 8).
Jesus não quis fundar
uma Igreja
O grande erro cometido consistiu em
pensar-se que a Constituição hierárquica da Igreja foi querida por Jesus. Se
assim tivesse sido, então não se poderia tocar nela. Se Jesus tivesse
pretendido um Papa para a sua Igreja, ela teria de ter um Papa. Se Jesus
tivesse desejado bispos com determinados direitos e deveres, esses bispos
tinham de existir na sua Igreja. Se Jesus tivesse querido padres, tinha de
haver padres. Nesta situação, a proposta de transferir para leigos os
privilégios dos padres, por exemplo, a presidência na Eucaristia, teria de
levar a uma divisão na Igreja.
Mas é preciso ir ainda mais longe.
Devemos perguntar não apenas que forma de Igreja Jesus quis, precisamos de
perguntar se Jesus quis pura e simplesmente uma Igreja. Ora, quanto a esta
questão, há hoje unanimidade na investigação teológica e a resposta é: «não».
Que Jesus não pode ter pensado na fundação de uma nova instituição torna-se
claro pelo facto de que esperava como iminente o fim do tempo em que vivia.
Deste fim próximo falam várias parábolas, bem como a palavra proferida por ele
na última ceia com os discípulos: «Já não beberei do produto da videira até
àquele dia em que o hei-de beber de novo no Reino de Deus» (Marcos 14,25).
Não é, pois, de admirar que a palavra
«igreja» (ekklesia, em grego) não
pertença à linguagem de Jesus. Nos quatro Evangelhos só se encontra duas vezes
em São Mateus (16, 18 e 18, 17). É bem conhecida a passagem de Mateus (16, 18)
em que Jesus denomina o discípulo Simão como uma pedra sobre a qual edificará a
sua Igreja (ekklesia), mas hoje a
investigação é unânime no reconhecimento de que ambas as passagens de Mateus têm origem pós-pascal e não são do Jesus histórico.
Instituição livre dos
ministérios
Se Jesus nunca teve o propósito de
fundar uma instituição, uma Igreja, então ainda menos podia prever uma determinada
Constituição para essa instituição. O que aconteceu foi que a mensagem de Jesus
foi levada a todo o mundo pelos seus discípulos e discípulas. Por toda a parte
se formaram comunidades cristãs, em Jerusalém, Síria, Ásia Menor, Grécia, Roma,
Itália, e desse modo surgiu a necessidade de se organizarem, o que, por sua
vez, deu lugar a cargos de direcção. Desde o século III é uma instituição
estável a estruturação em bispos (vigilantes), presbíteros
(anciãos) e diáconos (servidores). Finalmente, quando Constantino, o
Grande, em 313, no Édito de Milão, reconheceu o cristianismo em igualdade com
as antigas religiões, a Igreja pôde adaptar os
seus ministérios ao sistema romano de administração. Frente ao poder
civil, desenvolveu-se um «poder sagrado», uma hierarquia.
É natural e evidente que a Igreja
tenha formado um sistema de administração e instituído cargos. E porque não
havia de aproveitar o sistema do Império Romano, apoiado numa experiência rica?
Mas é preciso tornar completamente claro que todos estes
cargos eclesiais foram criados por homens e nenhum foi criado por
Jesus.
Foi a Igreja que deu a si própria a
sua estrutura e organização, e os cargos que criou correspondiam às
necessidades daquele tempo. A Igreja precisa, porém, de adaptá-los
permanentemente às novas situações. Pode
conservá-los, mudá-los ou aboli-los totalmente, segundo as
exigências dos tempos. Os ministérios são para a Igreja e não, ao contrário do
que pensam muitos hoje, os fiéis para os ministérios. Os ministros da Igreja
devem estar ao serviço dos fiéis e não os fiéis ao serviço dos ministros da
Igreja.
As necessidades dos fiéis são,
portanto, a lei suprema na estrutura dos cargos eclesiais. Se essa necessidade
for uma Igreja sem Papa, que seja uma Igreja sem Papa; se for uma Igreja sem
bispos, que seja sem bispos; se for uma Igreja
sem padres, que seja sem padres. A Igreja não só pode abolir os
actuais cargos, mas também introduzir novos. Não pode capitular perante
barreiras que ela própria ergueu (por exemplo, o celibato obrigatório),
pelo contrário, deve afastá-las. O novo Código do Direito Canónico (Codex
luris Canonici, N. 1752), de 1983, termina com a afirmação: «Salus animarum in Ecclesia suprema semper lex esse
debet» (a salvação dos homens tem de ser sempre, na Igreja, a lei
suprema). Isto quer dizer que a Igreja tem de
colocar todo o poder que possui ao serviço dos seres humanos.
Sacramenta propter
homines - também os sacramentos existem por causa dos seres humanos
Tal como no respeitante às estruturas
da Igreja, também quanto aos sacramentos se julga que foram instituídos por
Jesus. Segundo a tradição da Igreja, três coisas pertencem a um sacramento: é
um sinal exterior que é mediador de uma graça interior e foi instituído por
Jesus. Depois de muitas hesitações, o Concílio de Trento decidiu, no século
XVI, que há sete sacramentos: baptismo, confirmação, eucaristia, penitência,
unção dos enfermos, ordem e matrimónio. A Reforma só defendeu a existência
de dois: o baptismo e a ceia, mas também do lado católico houve
dúvidas quanto a alguns sacramentos. A unção dos enfermos é realmente um
sacramento, que pode ser equiparado ao baptismo? Será
o matrimónio um sacramento? Nunca
houve dúvidas quanto ao baptismo e à ceia. No fim do Evangelho de Mateus há a
ordem de baptizar dada por Jesus aos onze discípulos: «Ide a todos os povos,
tornai todos os homens meus discípulos e baptizai-os em nome do Pai e do Filho
e do Espírito Santo» (28, 29). E na última ceia com os discípulos, Jesus
deu-lhes pão e vinho como seu corpo e sangue, e ordenou-lhes que o fizessem em
sua memória (Lc. 22, 19; 1 Cor. 11, 24).
A actual investigação bíblica sabe
que as narrativas da ceia no Novo Testamento estão fortemente influenciadas
pelo modo como a Eucaristia era celebrada nas diferentes comunidades. Em
linguagem técnica, diz-se que se trata de narrações que não contam o
acontecimento histórico, mas o pensamento e a praxis da comunidade em
que o Evangelho foi escrito, o que se chama formação da comunidade. Assim, as
narrativas sobre a instituição do baptismo e da Eucaristia por Jesus são em
parte formação da comunidade, isto é: a prática
da Eucaristia não foi ordenada por Jesus, mas introduzida pelas comunidades.
Sem entrarmos aqui em pormenores, podemos globalmente dizer que Jesus não instituiu nenhum dos sete sacramentos.
Todos eles remetem para a prática das comunidades, são todos obra da Igreja.
A Igreja pode
relacionar-se livremente com os sacramentos
Se todos os sacramentos foram
instituídos pela Igreja, então ficam para sempre no âmbito da sua autoridade.
Ela pode decidir por quem devem ser administrados e de que modo. Ao longo dos
anos e dos séculos, vivemos neste domínio as transformações mais variadas.
Ainda me lembro muito bem do tempo em que, se se queria comungar no dia
seguinte, era pecado grave comer ou beber a mínima
coisa a partir da meia-noite. Mais tarde, a Igreja aboliu esta
determinação. Também houve um tempo ‒ durou vários séculos ‒ em que leigos presidiram à
Eucaristia. Hoje, muitas comunidades têm de renunciar à Eucaristia,
porque há falta de padres para presidir à celebração. A Igreja poderia mudar
isto de uma penada, ficando o problema resolvido. A
prescrição segundo a qual só um padre ordenado pode presidir à Eucaristia não
provém de Jesus, pois, se assim fosse, a Igreja não poderia agir de
modo diferente durante centenas de anos. A prescrição procede da Igreja, e esta
torna-se escrava de leis que ela própria fez e que sem dificuldades poderia
mudar.
O que não pode mudar na
Igreja?
Se Jesus não fundou nenhuma Igreja
nem instituiu nenhum sacramento, o que continua na Igreja que seja proveniente
de Jesus? É ele o Senhor da Igreja, como permanentemente ouvimos? Sim e não. Quem levou a mensagem de Jesus a
todo o mundo eram homens, seres humanos que estavam decididos a segui-lo como
discípulas e discípulos e a formar uma comunidade, mas esta comunidade será
sempre até ao fim dos tempos constituída por seres humanos e cometerá todos os
erros que podem ser cometidos por seres humanos. É certo que Jesus estará
sempre presente nesta comunidade, pois onde estiverem dois ou três reunidos em
seu nome aí estará ele no meio deles (Mateus 18,20).
Jesus vê a comunidade dos seus
discípulos e discípulas como comunidade de
irmãos e irmãs, a qual tem como critério do seu comportamento a mensagem de Jesus. Tudo pode ser mudado na
Igreja, só uma coisa é que não: a Palavra de Jesus, que lhe está confiada, Palavra que é a
Boa Nova de Deus para os homens e para as mulheres. Noutros termos: Palavra referente à causa de Deus, que é a causa do ser
humano. (…)
Herbert Haag (1915-2001), Biblista de renome internacional. Leccionou
como Professor da Universidade de Tubinga.
Lucerna, 8 de Março de 2001
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