A VIDA DEPOIS DA RAZÃO
CODA: AS
PRIMEIRAS E AS ÚLTIMAS COISAS
La Rochefoucauld disse que a morte,
tal como o sol, é algo que não se deve olhar fixamente de frente. Não tivemos
em conta esse conselho: ao longo deste livro, encaramos de frente a morte e o
debate acerca da morte sempre nos devolveu à vida, ou seja, ao território
(domínio) da vida muito mais do que ao domínio da morte, à devastadora e muito
importante verdade de que o significado da morte depende de ꞋcomoꞋ e do ꞋporqueꞋ as nossas vidas são sagradas.
Começámos com a amarga e vasta discussão acerca do aborto. É, para nós, uma
batalha inabordável (que não tem ponta por onde se pegue): batalha agressiva
pela sua virulência e ódio, e tudo isso apenas porque fomos enganados ou nos
enganamos a nós próprios, por causa de uma equivocada compreensão acerca
daquilo que está realmente no centro do debate. Persuadiram-nos que a questão
central é metafísica — será, o feto, uma pessoa? — diante da qual nenhum argumento é definitivo,
decisivo e nenhum compromisso é aceitável já que, para uns, a pergunta é se Ꞌos bebés podem ser assassinados?Ꞌ, enquanto, para outros, a pergunta é se Ꞌas mulheres devem ser vítimas de uma superstição religiosa?Ꞌ. Quando analisamos mais
minuciosamente aquilo que as pessoas sentem a propósito do aborto, esta questão
(metafísica) fica imediatamente fora de jogo, por ser fatalmente enganosa.
Praticamente ninguém de entre aqueles que apoiam a tese antiaborto crê
realmente que um feto recém-concebido seja uma pessoa, e quase nenhum dos
opositores a essas leis crê realmente que o argumento contra o aborto se apoie
apenas na superstição. O verdadeiro debate é
muito distinto: estamos tão profundamente em desacordo uns com os
outros porque todos assumimos seriamente um valor que nos unifica como seres humanos: a
santidade ou a inviolabilidade, seja lá em que Ꞌetapa da vidaꞋ estamos e seja lá Ꞌque vida humanaꞋ for. As nossas tão drásticas
dissensões sinalizam a complexidade desse valor
e das formas como interpretam o seu
significado (marcadamente diversas: dependentes da cultura, do grupo social e
das diversas pessoas comprometidas com esse valor).
Um compromisso soberano com a
santidade da vida domina igualmente as nossas preocupações com o outro extremo
da vida: é aí que se ancoram as nossas preocupações e enigmas acerca da
eutanásia. Os interesses da maioria das pessoas não se esgotam no desejo de
prazer ou de gozo, bem-estar, etc. Os interesses têm a ver com aquilo que é
crucial para o sentido da identidade pessoal: a vontade de que viver seja o atingir de um
objetivo finalmente bem-sucedido, que a existência seja rica em
vida, que consiga mais vida que morte, mais bem que mal. Mesmo que a maioria
das pessoas não se expressem desta forma tão cénica (dramática), o certo é que
a maioria assume que viver é envolver-se, comprometer-se numa responsabilidade
sagrada, e sentem que a sua responsabilidade parece que cresce quando encaram a
própria morte ou a morte dos outros. Aqueles que desejam uma morte rápida e pacífica
para si ou para os seus familiares não rejeitam ou denigrem a santidade da
vida. Pelo contrário, crêem que uma morte rápida revela maior respeito pela vida,
quando comparada com uma morte prolongada. Mais uma vez, acerca da eutanásia,
os contendores partilham a preocupação comum pela santidade da vida; estão
unidos por esse valor,
estando o seu desacordo relacionado com a melhor maneira de o interpretar e
respeitar.
A dignidade — reveladora do respeito para com o valor inerente às nossas
próprias vidas — está no centro de ambos os argumentos. Ao
longo deste livro, ocupamo-nos intensamente com aquilo que outras pessoas fazem
com o aborto e a eutanásia, porque estas decisões revelam uma opinião acerca do
valor intrínseco de qualquer forma de vida e, por conseguinte, afectam também a
nossa própria dignidade. Esperamos que, em relação ao aborto, todos adoptem
decisões que se adequem ao nosso próprio sentido de transcendência. Achamos que um
aborto frívolo ou não justificado revela um desprezo por qualquer tipo de vida
humana, é uma subvalorização do respeito por qualquer tipo de vida.
Desejamos que todos — no caso de lhes ser possível escolher — morram de uma
maneira que expresse respeito por si próprio: desse modo, esse sino também
repicará por nós.
Contudo, mesmo que sintamos que a
nossa própria dignidade se encontra comprometida com aquilo que os outros fazem
com a sua morte, e às vezes sintamos que gostaríamos que esses outros actuassem
como nós consideramos o mais correcto, a verdadeira percepção da dignidade aponta
no sentido oposto desse nosso querer, isto é, ela favorece a liberdade individual
e não a coerção, ela está a favor de um regime jurídico e de uma atitude que
anime, que incentive cada um de nós a adoptar decisões sobre a morte, individualmente.
A liberdade é o requisito cardinal e absoluto do respeito próprio: as pessoas
só consideram a sua vida como algo importante — intrínseca e objectivamente —
se forem elas a conduzi-la por si mesmas e a não serem levadas por outros ao
longo do processo de viver, independentemente do amor, do respeito ou do temor
que a esses tenham. As decisões relativas à vida e à morte são da maior
importância, são as mais cruciais quanto à formação e expressão da
personalidade, de entre todas as decisões que for capaz de realizar. Achamos
que, sim: é crucial chegar a decisões correctas, mas
também é crucial realizá-las segundo um modelo personalizado e em conformidade
com o próprio carácter de quem decide. Inclusivamente, todas aquelas
pessoas que pretendem impor as suas convicções aos outros servindo-se do Código
de Direito Penal numa altura das suas vidas em que se sentem todo-poderosas,
poderiam horrorizar-se — ao ponto de promoverem, até, uma revolução — caso a
situação política se invertesse e
dessem de caras com uma total perda de liberdade, aquela precisamente
que agora querem negar aos outros.
Insistimos
na liberdade, porque valorizamos a dignidade e, no seu centro, colocamos o direito a exercer a liberdade de consciência,
pelo que um governo que negue a liberdade é um
governo totalitário, mesmo que nos deixe livres para escolhas de menor
valor. Porque honramos a liberdade, reclamamos a democracia; definimos
democracia de um modo tal que, quando uma Constituição que permita que a maioria
restrinja a liberdade de consciência, essa Constituição é inimiga da democracia
e nunca a expressão da democracia. Seja lá qual for a opinião que adoptemos
face ao aborto e à eutanásia, reivindicamos o direito a decidir por nós mesmos
e, portanto, devemos estar dispostos a insistir que qualquer Constituição
credível e genuína que assente em Princípios tem de garantir esse direito a
todos.
É tão importante viver de acordo com
a nossa liberdade como poder dispor dela. A liberdade de consciência pressupõe
responsabilidade pessoal de reflexão e perde grande parte do seu significado
quando ignora essa responsabilidade. Uma vida boa não tem de ser uma vida especialmente reflectida; a
maioria das melhores vidas são justamente aquelas que foram simplesmente
vividas e não aquelas que apenas foram planeadas. Contudo, existem
momentos que clamam por uma autoafirmação. Por exemplo, uma entrega nos braços do
destino ou uma decisão mecânica a favor da complacência ou da conveniência
pressupõe uma traição,
porque isso suspende a dignidade a troco simplesmente de "facilitar a
coisa"… Ao longo deste livro encontramos um grande número de convicções
pessoais intensas relacionadas com o aborto e a eutanásia, algumas liberais
outras conservadoras. São convicções respeitáveis, e aqueles que as defendem
devem viver e morrer de acordo com elas. Porém, é imperdoável ignorar inteiramente a
importância destas questões: escolher ou aconselhar, acerca do
aborto, levado apenas pela comodidade irreflectida, ou deixar a decisão acerca
do destino de um amigo inconsciente ou demente entregue a estranhos de
bata-branca, apenas, com o argumento que pouco importa o que lhe venha a
acontecer. O
maior insulto à santidade da vida é a indiferença ou a preguiça em enfrentar a
complexidade.
No entanto, ainda não começamos a
medir esta complexidade ou a avaliar todas as suas dimensões. Recentemente, os
médicos vieram anunciar novos êxitos no tratamento da doença de Parkinson,
usando tecido fetal, e alguns creem que um tratamento similar poderia
beneficiar as vítimas de outras doenças, incluindo, quiçá, a doença de
Alzheimer. Pode ser que um dia se consiga convencer as mulheres a engravidar
precisamente para produzir tecidos salvadores através de um aborto realizado no
momento preciso. Até poderá acontecer que, passada uma geração, as grandes
batalhas em volta da eutanásia e do aborto tenham sido postas de parte — na
imaginação pública e na controvérsia política — por outras questões mais
complexas que tenham que ver com o valor intrínseco da vida humana. A ciência
promete — ou ameaça poder — alterar dramaticamente os processos de reprodução
humana e de desenvolvimento de embriões, melhorar as técnicas de inseminação e
inclusivamente desenvolver novas técnicas para o nascimento de bebés sem
fertilização; o poder de alterar códigos genéticos e de produzir crianças
desenhadas segundo um modelo pré-definido e eleito, para produzir pessoas com
as células de outros indivíduos com características muito apreciadas ou muito
ricas ou com desejos de imortalidade. A ciência também promete — ou ameaça com
— novas técnicas médicas e cirúrgicas que aumentem a esperança média de vida,
em alguns casos para as esticar até dimensões bíblicas, ainda que com um custo
tão grande que, desenvolvê-las e experimentar tais técnicas e, pior, colocá-las
à disposição de um grande número de pessoas e não as reservar apenas a uma
reduzida minoria, poderia esgotar os recursos necessários para fazer com que as
pessoas não apenas vivam uma vida longa, mas também uma vida boa.
Qualquer destes desenvolvimentos ou
quaisquer dúzias de outros que possam saltar da ficção científica para a rotina
médica poderiam forçar-nos a enfrentar as questões já colocadas — a importância relativa dos contributos
naturais e humanos para a santidade da vida — em termos muito diferentes.
Isso faria com que fosse absurdo especular acerca de como estas questões
poderiam ser melhor definidas e muito menos ainda como seriam resolvidas.
Contudo, se preservarmos a autoconsciência
e o autorrespeito — "consciência de si" e "respeito por
si" que são, afinal, as grandes conquistas da nossa espécie — isso
não permitirá que nem a ciência nem a natureza tudo atropele no seu imparável
caminho, mas fará com que os seres humanos lutem por exprimir, através de leis elaboradas por cidadãos e
através de escolhas feitas por
indivíduos, a melhor compreensão a que se possa chegar acerca das
razões porque a vida humana é sagrada e — subordinado a este domínio — a
definir qual o lugar adequado para a liberdade.
Ronald
Dworkin, «El dominio de la vida – una discusión
acerca del aborto, la eutanasia y la libertad individual», Ariel,
Barcelona 1994, pp. 285-315, ISBN 84-344-1115-6.