Eis a nuvem dos que procuram a tua compaixão, Senhor
No filme que por estas
alturas se exibe nas salas de cinema — «At War»[1] —, a cena final — inesperada, chocante e, também
por isso, polémica e arrebatadora de ânimos — aproxima-nos da densidade de
textos e situações históricas como a dos textos do Evangelho de João, capítulos
18 e 19: suplício e morte de Jesus. Um manto de silêncio envolve-a e uma grossa
escuridão pesa sobre as consciências de todos os actores, espectadores e sobre
os próprios elementos físicos: à última palavra do moribundo («Tudo está
consumado», João 19, 30; e à exalação do Espírito), diante da última imagem
seguem-se passos secretos, temor, respeito, silêncio, compaixão, peso e negrume.
Pouco antes de tão trágico desfecho, tudo era tumulto, discussão raivosa,
exaltação tempestuosa, gritos (João 18, 28-40), mas, em poucos minutos, tudo
está consumado.
Parece-me que está aqui a
falha maior do depoimento do jesuíta Javier Gafo (1936-2001, Doutorado em Teologia
Moral pela Universidade Gregoriana de Roma, 1976; director da Cátedra de
Bioética da Universidade Pontifícia de Comillas, Madrid, desde Dezembro de
1987) no que diz respeito à «eutanásia de Ramón Sampedro»: a dificuldade em
calçarmos as sandálias do servo sofredor é imensa! A incapacidade de treparmos à
cruz para ficarmos silenciosamente ao lado do líder até que tudo esteja
consumado, rói-nos! A quase impossibilidade de sermos apenas «seguidores»
respeitadores, chaga: é gume e lume! A negatividade de nunca relativizarmos as
nossas certezas é pecado.
Gafo cai na tentação de
fazer passar tudo pelo pensamento e pela razão (lógica), inclusivamente aquilo
que não deve porque não pode passar por aí se não pelo coração e pelas
entranhas. Gafo esfacela-se, assim, diante da simples razão, muito misteriosa,
de que estamos apenas e totalmente diante de uma «pedra que ainda espera dar
flor»… (Raúl Brandão), ou seja, estamos diante da máxima expectação
transcendente, alguém que está definitivamente condenado a um sofrimento
visceral prometaico sem qualquer esperança hercúlea.
O conteúdo deste livro (Javier
Gafo sj, «Eutanasia y ayuda al suicidio – mis recuerdos de Ramón Sampedro»,
DDB, 1999) é um contributo ao debate sobre a eutanásia e à ajuda ao suicídio.
Está repleto de argumentos contra,
esmeradamente preparados para derrotar (ou entontecer…) os argumentos pró. O livro foi editado em 1999
e desde então a realidade (intelectual, médica, filosófica, jurídica,
teológica, espiritual e sociológica) já mudou muito: os avanços (filosóficos,
jurídicos e teológicos) relativizam a maior parte destas armas. Mesmo assim,
deve ser lido: ele faz a pedagogia do contra,
expondo os argumentos ainda hoje os mais esgrimidos. Peca, porém, por sair das
mãos de um cristão sem algo mais que faça a diferença.
Eu penso que ninguém
consegue falar (ou escrever) sobre esta situação existencial, que é a eutanásia,
sem estremecimento, respeito e pavor. Quem leu o livro, a estas horas estará a
murmurar que estou a ser injusto. Na verdade, quer no Prólogo, quer no Epílogo,
o Autor refere-se com muita amabilidade e respeito à pessoa de Ramón Sampedro,
mas fá-lo, pelo menos mais de uma vez, para lamentar a sua opção final – o
suicídio; para contrapor um 'sentido
alternativo' à visão da sua vida de tetraplégico (contra as preferências de
Ramón); para forçar uma argumentação lógica acerca da eutanásia e para mais uma
vez defender a racionalidade da opção "contra";
para opor, à visão não crente da eternidade de Sampedro («en la estrella que en el cielo de las noches parpadea»; permanecer
vivo «na estrela que no céu das noites cintila»), o discurso "humano,
demasiado humano" dos braços de um Deus bom que o olha; etc.
https://www.youtube.com/watch?v=UkDIhkdv3NA
Também é verdade que
procura, por mais de uma vez, esquivar-se à crítica de que poderá estar a
«fazer o jogo de Sampedro» (o que seria muito mal visto por Roma…), mas, para
evitar isso, serve-se da pior das estratégias: sem se colocar totalmente do
lado dos críticos de Ramón Sampedro (Gafo de facto diz: «eu não me atrevo a dizer tanto», referindo-se aos decepcionados de
última hora com Sampedro, quando começaram a divulgar – a tornar público – que
alguém ouvira Ramón confessar que, com a decisão de se eutanasiar, estava a «encontrar o
sentido da sua vida através da luta pela sua própria morte»…),
Javier Gafo confessa: «Eu não tencionava tornar públicas estas minhas
reflexões, caso não tivesse acontecido esta espécie de canonização – quase
maioritariamente − nos meios de comunicação social. É verdade que é sempre
legítimo dizer que cada pessoa é uma pessoa única, com poder para tomar as suas
próprias opções de vida ou de morte — ainda que, nesta circunstância, a opção
nunca é tomada sozinha e conta sempre com a ajuda de um terceiro —, mas devemos sempre
resistir à sacralização da figura de uma pessoa que não foi capaz de tomar em
mãos a sua situação – indiscutivelmente difícil – na qual,
contudo, era sempre possível uma certa forma de realização pessoal.»
Esta machadada final (que destila uma certa má relação com a imprensa espanhola
e que também lança um julgamento moralista e culpabilizador sobre Ramón
Sampedro…), quase a despedir-se dos leitores, é de tom muito pouco cristão.
Mas, para Javier Gafo, pior é ainda a ideia de ir buscar dois exemplos de
tetraplégicos que escreveram a Gafo e a Sampedro a dar o seu testemunho — «ALTERNATIVO!»
—, a fim de serem usados por J. Gafo neste seu livro como prova demonstrativa de
que a eutanásia não é a única saída. Ao tomar conhecimento desses testemunhos,
a resposta de Ramón Sampedro não poderia ser mais elevada: «De facto, somos todos
diferentes…».
A nossa condição de
seguidores cristãos de Jesus de Nazaré, ainda que não seja nada fácil, deve-nos
fazer lembrar que (na feliz expressão de Fray Marcos op, Madrid) «a atitude interna é a única atitude espiritual válida
para Jesus». Em circunstâncias terríveis, duríssimas (como a de
um assassinato colectivo iminente…), o Irmão Christophe Lebreton, monge
trapista de Tibhirine (Argélia), escreve no seu livro "Aime":
«Creio profundamente numa
proximidade misteriosa entre o monge e o delinquente, o prisioneiro, os nossos
amigos da Arche, os torturados. Penso que tenho de receber dos mais pobres a permissão de
ser monge, monge da miséria». (Edição Consolata, Fátima, p. 51)
«Être serviteur, afin d’entendre l’Appel en
Le vivant car telle est «ma» vocation. Souffrance : expression de l’amour, purification de l’amour. La Croix : Jésus
tout amour tout donné… Le temps prend la dimension de Dieu : il exprime l’appel
de Dieu quel que soit mon travail, il se nourrit d’amour et je veux le gaver [encher] de moi, de mes ambitions,
désirs, projets ou souvenirs. Trappiste: si Dieu veut.» (Diário, 24.10.1973, cit. de «Moines de Tibhirine – Heureux ceux qui
espèrent – autobiographies spirituelles», CERF, Abbaye de Bellefontaine, p.
512)
Fico com a sensação que o
jesuíta sempre viajou a Porto do Son (Coruña) não para procurar estar com e conhecer Ramón, mas para o con/vencer, com os bolsos cheios de
discursos e catequese. Fico com a sensação que o jesuíta Gafo foi incapaz
daquele silêncio compassivo e acolhedor, «ombro com ombro», junto de Ramón, o
sofredor humilhado pelo terrível abandono e pela humilhação que a incompreensão
sempre produz: incompreensão da família, da Igreja católica local, do Rei e do
Estado espanhol; o jesuíta despachou essa compaixão silenciosa e mistérica que é própria dos santos e que fora destinada ao 'aqui e agora', transferindo-a para os ombros de Deus… quando Ramón
Sampedro fosse já cadáver. Ele, que também já morreu, perdeu a oportunidade
única de se converter ao pobre, de ser também «servo sofredor» e salvar-se.
«Monge da miséria»? Infelizmente, miséria de monge, por não ter pedido
permissão (ao Servo Sofredor) para o ser. Por ser auto-suficiente demais.
O "pecado" de
Gafo está em ter presumido que sabia tudo o que Ramón tinha vivenciado. Não só
nunca o havia experienciado… como nunca o havia sabido todo, porque um ser
humano como Ramón (um pescador galego que entretanto — sendo tetraplégico há
décadas — adquirira uma cultura muito elevada…) são muitíssimos seres humanos
num só. Quem algum dia poderá dizer que Ramón Sampedro nunca «procurou o grande
ausente»? Quem, de entre os humanos, poderá julgar os sentimentos e as hesitações
mais íntimas de Ramón Sampedro? Quem senão «quem é terrível entre as coisas
grandiosas», «a mandrágora perfumada» (Cântico dos Cânticos 6, 4.7, 14)?
Procurava-te nas estrelas
quando em criança as interrogava.
Pedi-te às montanhas,
mas só me deram em poucas ocasiões
solidão e breve paz.
Porque faltavas, nas longas noites
cismei no
disparate insensato
de que o mundo era um erro de Deus,
eu um erro do mundo.
E quando, diante da morte,
Gritei que não com todas as fibras,
que ainda não terminara,
que tinha ainda muito a fazer,
tu comigo a meu lado, tal como hoje
sucede,
um homem uma mulher sob o sol.
Voltei porque tu existias.
[Primo Levi]
Eis a nuvem dos incompreendidos,
dos humilhados e aflitos que entregamos à mortal solidão dum sofrimento atroz e
sem sentido, apenas porque, burguesmente, desistimos deles, meu Deus, e nos
afligimos muito mais com os rígidos Princípios, as Normas mornas e as Regras de
mármore. Para quem acredita na força curadora de Jesus de Nazaré,
«A
pedra ainda espera dar flor»…
Paulo Bateira, 11 de
Novembro de 2018.
Ω
«Quem
acreditou no nosso anúncio? A quem foi revelado o braço do Senhor?»
«O servo cresceu diante do Senhor como um rebento,
como raiz em terra árida, sem figura nem beleza. Vimo-lo sem aspecto atraente,
desprezado e abandonado pelos homens, como alguém cheio de dores, habituado ao sofrimento, diante do
qual se tapa o rosto, menosprezado e desconsiderado. Na verdade, ele
tomou sobre si as nossas doenças, carregou as nossas dores.
Nós o reputávamos como um leproso, ferido por Deus e
humilhado. Mas foi ferido por causa dos nossos crimes, esmagado por causa das
nossas iniquidades. O castigo que nos salva caiu sobre ele, fomos curados pelas
suas chagas. Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas perdidas, cada um
seguindo o seu caminho. Mas o Senhor carregou sobre ele todos os nossos crimes.
Foi maltratado, mas humilhou-se e não abriu a boca, como um cordeiro que é
levado ao matadouro, ou como uma ovelha emudecida nas mãos do tosquiador.
Sem
defesa, nem justiça, levaram-no à força.
Quem é que se preocupou com o seu destino? Foi suprimido da terra dos vivos,
mas por causa dos pecados do meu povo é que foi ferido. Foi-lhe dada sepultura
entre os ímpios, e uma tumba entre os malfeitores, embora não tenha cometido crime algum, nem
praticado qualquer fraude.
Mas aprouve ao Senhor esmagá-lo com sofrimento, para
que a sua vida fosse um sacrifício de reparação. Terá uma posteridade duradoura
e viverá longos dias, e o desígnio do Senhor realizar-se-á por meio dele. Por
causa dos trabalhos da sua vida verá a luz. O meu servo ficará satisfeito com a
experiência que teve. Ele, o justo, justificará a muitos, porque carregou com o
crime deles. Por isso, ser-lhe-á dada uma multidão como herança,
há-de receber muita gente como despojos, porque ele próprio entregou a sua vida
à morte, e foi
contado entre os pecadores, tomando sobre si os pecados de todos, e sofreu pelos
culpados.» (Isaías 53)