«ECLESIOGÉNESE»
— As
comunidades eclesiais de base reinventam a Igreja
Leonardo Boff, ofm
Datado
de 1977, este histórico livrinho, de apenas 113 páginas, ainda é uma excelente
porta de entrada (e de saída) para as múltiplas questões com que os católicos leigos (ainda) se confrontam no século XXI. Por exemplo:
«Quis, o Jesus
histórico, uma única forma institucional de Igreja?»
«Jesus,
com a sua morte e ressurreição, veio para salvar os homens. Aquando da sua vida
terrestre, Jesus fundou a Igreja para que ela continuasse a Sua obra até à
consumação dos tempos. A Igreja está de tal forma unida ao seu Fundador que
pode ser chamada Corpo de Cristo.»
«Porém,
para os
evangelistas, há uma ruptura entre Jesus e a Igreja. Entre ambos
está o "fracasso" de Jesus crucificado. Está também a infidelidade
dos apóstolos e a dissolução da comunidade dos seguidores de Jesus. Só após a
ressurreição é que se voltaram a reunir.»
«O
modernista Alfred Loysi (1857-1940) situou bem o problema quando, com certo
desconcerto, escreveu: "Cristo pregou
o Reino de Deus e em seu lugar apareceu a Igreja" ("L’Evangile
et l’Église", Paris 1902, 111).»
«Se
não há identidade perfeita entre Reino de Deus e a Igreja, que relação vigora
entre ambos? Como se chegou da pregação de Cristo sobre o Reino à constituição
da Igreja? É ela uma consequência imediata desta pregação ou constitui um
substitutivo precário do Reino de Deus que não veio? A Igreja é fruto de uma "decepção" ou de uma realização?»
«O que
pregou Jesus: o Reino de Deus ou a Igreja?»
«Sem sacramento da Ordem, a pessoa é
sacramentalmente incapaz [para presidir à Eucaristia]. A Igreja
entendeu excluir o leigo da presidência eucarística. Ainda recentemente a Sagrada Congregação para a
Doutrina da Fé, no dia 15 de Fevereiro de 1975, censurou a opinião de Hans Küng
nestes termos: "Também a opinião já insinuada pelo Prof. Küng no livro «Die Kirche» e segundo a qual a Eucaristia, pelo menos em caso
de necessidade, pode ser consagrada validamente por pessoas baptizadas carentes
da ordem sacerdotal, não pode estar de acordo com a doutrina dos Concílios
Lateranense IV e Vaticano II"».
«O povo
pergunta: porque é que nós não podemos celebrar a Eucaristia?» (Carlos Mesters, «O futuro do nosso passado», em
"Uma Igreja que nasce do povo – Encontro de Vitória, ES", Vozes, Petrópolis, 1975, p. 137).
Inúmeras outras questões são, de vez em quando,
pomos polémicos com ecos vibratórios muito violentos na comunicação social. Uma
delas tem a ver com afirmações políticas consideradas fora ou para lá da missão
da Igreja de Cristo (cf. certas críticas contundentes do bispo das forças
armadas D. Januário Torgal Ferreira a certos ministros do Governo de Passos
Coelho-Paulo Portas [2012], que tiveram, como resposta, as seguintes palavras
do Ministro da Defesa Dr. José Pedro Aguiar-Branco: "O Sr.
Bispo vai ter de escolher entre ser bispo e ser comentador político…". Outro exemplo, o do capelão militar, padre Mário
de Oliveira, que após a Homilia do Dia Mundial da Paz de 1968, na Guiné Bissau,
foi interpelado pelo comandante do Batalhão de Caçadores 1912 dizendo que o evangelho
anunciado naquela homilia ia contra a Constituição que jurara defender. Resposta do capelão: «Pois então, meu comandante, mudem a Constituição, porque
eu não posso mudar o Evangelho de Jesus!». Estas palavras "assinariam" a sua Guia
de Marcha para o Continente… - in "Evangelho no Pretório", p.65ss).
Outras questões (algumas relacionadas com esta
tensão Igreja-mundo) dizem respeito às opções de fundo que a Comunidade cristã
toma ou não toma. Há comunidades que optam por uma postura teológica pacifista,
neutral, consensualmente pluralista, recusando «habitar» o polémico espaço
público como seria de esperar em coerência com o Concílio Vaticano II.
«A Igreja deve entender-se e creditar-se como testemunho
público e como transmissora de uma perigosa memória libertadora entre os
«sistemas» da nossa sociedade emancipadora. Esta tese alicerça-se na memória como
forma fundamental de expressão da fé cristã e na importância central e
privilegiada da liberdade dentro dessa mesma fé. Na fé, os cristãos realizam a memoria passionis, mortis
et resurrectionis Jesu Christi; no acto
de acreditar recordam o testemunho do seu amor, em cujo amor se manifestou o
reinado de Deus entre os homens pelo próprio facto de o domínio do homem pelo
homem começar aí a desmoronar-se; memória de que Jesus se colocou do lado dos
insignificantes, do lado dos marginalizados e oprimidos, proclamando assim o
advento do reino de Deus como força libertadora de um amor sem reservas. Esta memoria Jesu Christi não é apenas uma recordação que dispense
enganadoramente de correr riscos futuros. Não é uma espécie de reverso burguês
da esperança. Pelo contrário, implica uma
determinada antecipação do futuro, como futuro dos que não têm esperança, dos
fracassados e acossados.» (J. B. Metz, «La fe, en la
historia y la sociedad», Cristiandad, 1979, pp. 101-102)
Portanto, importa perguntar: qual é o «lugar
teológico» que funciona como opção preferencial da
Comunidade local? A resposta
a esta pergunta é a garantia da sanidade (ou da doença) mental de uma comunidade
local. Quando uma comunidade local não é capaz de responder como Jesus respondeu,
então, começam o enquistamento e as tensões.
Como muito bem diz L. Boff, «na hora de escolher
uma teoria explicativa da sociedade, entram em jogo uma série de critérios que
não procedem exclusivamente da objectividade e da racionalidade, mas da 'opção de
fundo' e do 'lugar
social' de quem analisa.» De facto,
«toda a reflexão sobre a realidade humana está orientada por um projecto de
fundo, ou seja, por uma utopia construída por um grupo na qual esse colectivo
humano projecta o seu futuro». Sendo assim, em termos gerais, «podemos
identificar dois tipos de projectos ou utopias cada um com o seu tipo de aderente: o projecto das
classes dominantes e o projecto das classes dominadas da sociedade. A utopia dos grupos dominantes propugna um progresso linear, sem mudança alguma
dos esquemas que estruturam a sociedade; ela manifesta uma fé imensa na ciência
e na técnica e pressupõe uma concepção elitista da sociedade, cujos fins e
benefícios − acredita − irão progressivamente estender-se às massas. A utopia dos grupos dominados procura uma sociedade utilitária: o fosso entre as
elites e as massas constitui o principal obstáculo ao desenvolvimento e,
enquanto ele persistir, não haverá verdadeiro progresso e justiça social. Esta
última utopia afirma uma fé inquebrantável no potencial transformador dos
oprimidos capaz de gerar uma sociedade com o menor número de opressores
injustos». ("La fe en la periferia del
mundo. El caminar de la Iglesia con los oprimidos", Santander, 1981,
26-27 cit. por Julio Lois, «Identidad cristiana y compromiso socio-político»,
Ediciones HOAC, 110-111).
Como diz a Comunidade Cristã da Serra do Pilar (VN
Gaia, 08-04-2018) pela boca de José Antonio Pagola, «a Igreja do futuro não
poderá continuar a apoiar-se nos presbíteros», pois «o maior potencial para a
renovação da Igreja está nos crentes leigos e leigas». Só os leigos — para lá
dos ambíguos "sim, mas"
que enxameiam os textos do Concílio Vaticano II, em matéria de identidade &
especificidade laical … — serão
capazes de viver sem esquizofrenias o serviço
diaconal e ao mesmo tempo
o compromisso
político público como
Jesus de Nazaré nos mandou viver.
(Leonardo Boff, ofm)