teologia para leigos

14 de setembro de 2016

O SEGUIMENTO DE JESUS COMO PRINCÍPIO EPISTEMOLÓGICO [J.SOBRINO]



O SEGUIMENTO DE JESUS COMO PRINCÍPIO EPISTEMOLÓGICO


[…] Analisemos agora a fórmula de Calcedónia como fórmula doxológica, ou seja, como uma fórmula que fala de Jesus Cristo propriamente Deus.


Uma epistemologia específica

Já dissemos, no capítulo anterior[1], que as afirmações sobre Deus-em-si só são possíveis através dum processo de conhecimento. Este processo começa assim: (1) tomar consciência de actuações históricas (2) as quais, na fé, são referidas a Deus como sendo acções de Deus, e, (3) assim, aquelas acções permitem que se façam afirmações sobre Deus-em-si.

A partir do ponto de vista epistemológico, segundo este processo, a razão controla o primeiro passo e, de alguma maneira, compreende – ainda que nele já esteja a actuar a fé – o segundo passo. Porém, para captar a realidade de Deus-em-si-mesmo isso só é possível pela entrega da razão ao mistério de Deus (tendo como símile a adoração que ocorre no culto). No caso do Êxodo: (1) ocorre (ou é narrada como historicamente acontecida) uma libertação a partir do Egipto; (2) tal facto, é atribuído a Deus, de modo que Deus, a partir da sua acção libertadora, fica conhecido como «o Deus que libertou Israel do Egipto; e (3) a partir de aí confessa-se a realidade de Deus-em-si; diríamos que, na sua essência, é possível afirmar: «Deus é libertador».

Este processo de conhecimento de Deus pode ajudar – ainda que apenas analogicamente – a compreender como funciona aquela razão que procura produzir formulações cristológicas. Nessas formulações, também se diz que Jesus Cristo é Deus (a sua natureza última é ser pessoa divina), e esta realidade tem de ser formulada em afirmações-limite que necessitam de um processo de conhecimento e de uma entrega final.

(1)        O processo começa com a realidade humana de Jesus, em princípio, historicamente constatável. Em que consiste essa realidade humana, já o vimos no livro anterior a este («Jesucristo Liberador»). A isso apenas queremos acrescentar que a história de Jesus podia – e deveria – ser lida «calcedonicamente», de maneira que aquilo que tem de humano nunca o deixasse de ser (sem mudanças), nem fosse absorvido pelo divino (sem confusão), nem se apartasse do divino (sem divisão) e sempre assim até ao fim sem marcha atrás (sem separação). Programaticamente, pode dizer-se que, durante a sua vida, se refere a Deus sem que Deus o «des-humanize» e isso ocorre até ao fim, apesar das crises, do horto, da cruz…[2]
(2)        Essa realidade humana, agora a partir da fé, é colocada em relação com Deus. É isto que a reflexão cristológica do Novo Testamento e da Patrística fizeram (como já vimos em capítulos anteriores) servindo-se de títulos e de interpretações teológicas da vida de Jesus, concluindo por uma relação muito especial estabelecida entre Jesus e Deus.
(3)        O processo termina com a confissão da divindade do próprio Jesus Cristo, o qual, insipidamente no Novo Testamento e explicitamente a partir de Niceia, ocorre na entrega da razão ao mistério.[3]

Para a epistemologia, o importante é a conclusão: conhecer a realidade de Jesus Cristo em si só será possível através de uma afirmação doxológica. Neste exacto sentido, as fórmulas conciliares são «pontos de chegada», que recolhem e guardam o início do processo e o seu desenvolvimento. São significativas na medida em que são o ponto final (ainda que sempre provisório) do processo do conhecer que começa no Novo Testamento e, dentro dele, nos textos que se referem à vida e destino reais de Jesus, aos que se acrescentam – posteriormente – as interpretações teológicas que deles fazem o Novo Testamento e a Patrística; terminam na entrega da razão ao mistério.

Esta epistemologia inclui, pois, dois elementos essenciais: o caminho do conhecimento que começa com uma certa realidade de tipo histórico, e a entrega da razão no final desse processo. Estes dois elementos – caminho e entrega – é aquilo que queremos analisar de seguida, não apenas quanto à sua dimensão teórica cognoscitiva, mas quanto à sua realidade histórica práxica. Queremos analisar o "caminho" rumo à doxologia como seguimento de Jesus e a "entrega da razão" como entrega da totalidade da pessoa. (…)

Jon Sobrino
«La Fe en Jesucristo – ensayo desde las víctimas»

[pp. 27]






[1] Veja-se o subcapítulo «Un Dios misterioso» no capítulo 6. Neste subcapítulo aplicamos, com as devidas modificações que o caso exige, a análise das fórmulas doxológicas às fórmulas conciliares.
[2] O que é que acontece com a divindade de Jesus nesse momento não é visível, mas pode ser inferido e acreditado. Mas, uma vez isso aceite posteriormente ao nível da fé, podia e devia dizer-se que, em Jesus de Nazaré, Deus abeira-se do humano sem que esse humano o «des-divinize», ainda que isso aconteça de maneira escandalosa.
[3] No caso da divindade de Jesus Cristo, a necessidade da entrega da razão pode ser vista de um outro ponto de vista, caso nos demos conta de como funciona a cópula é nas fórmulas dogmáticas conciliares. Quando falamos da divindade em geral e dizemos «Deus é libertador», o é poderia ser compreendido a partir da analogia do ser (ainda que também na analogia o último passo pressupõe a entrega da inteligência, já que se prega algo de Deus por via da afirmação, da negação e da elevação). Porém, na cristologia nem sequer esta analogia do ser é via de solução, na medida em que o é, da fórmula, opera de uma maneira absolutamente incontrolável pela razão. A partícula é não opera aqui como noutras afirmações da linguagem. A afirmação Deus é homem «não pode identificar a realidade expressada no sujeito da frase, "Deus", com a aludida no predicado (ser humano, nascer, etc.), da mesma maneira que o faz em enunciados correntes» (K. Rahner, ¿Que debemos crer todavia?, Santander, 1980, p. 110; cf. K. Rahner e W. Thüsing, «Cristología», Madrid, 1975, pp. 58-62; «Curso Fundamental sobre la Fe», Barcelona, 31984, p. 340).