O
SEGUIMENTO DE JESUS COMO PRINCÍPIO EPISTEMOLÓGICO
[…] Analisemos
agora a fórmula de Calcedónia como fórmula doxológica, ou seja, como uma
fórmula que fala de Jesus Cristo propriamente Deus.
Uma epistemologia específica
Já dissemos, no
capítulo anterior[1],
que as afirmações sobre Deus-em-si só são possíveis através dum processo
de conhecimento. Este processo começa assim: (1) tomar consciência de actuações
históricas (2) as quais, na fé, são referidas a Deus como sendo acções de Deus,
e, (3) assim, aquelas acções permitem que se façam afirmações sobre Deus-em-si.
A partir do ponto
de vista epistemológico, segundo este processo, a razão controla o primeiro passo
e, de alguma maneira, compreende – ainda que nele já esteja a actuar a fé – o
segundo passo. Porém, para captar a realidade de Deus-em-si-mesmo isso só é
possível pela entrega
da razão ao mistério de Deus (tendo como símile a adoração que
ocorre no culto). No caso do Êxodo: (1) ocorre (ou é narrada como
historicamente acontecida) uma libertação a partir do Egipto; (2) tal facto, é
atribuído a Deus, de modo que Deus, a partir da sua acção libertadora, fica
conhecido como «o Deus que libertou Israel do Egipto; e (3) a partir de aí
confessa-se a realidade de Deus-em-si; diríamos que, na sua essência, é
possível afirmar: «Deus é libertador».
Este processo de
conhecimento de Deus pode ajudar – ainda que apenas analogicamente – a
compreender como funciona aquela razão que procura produzir formulações
cristológicas. Nessas formulações, também se diz que Jesus Cristo é Deus (a sua natureza última é ser pessoa
divina), e esta realidade tem de ser formulada em afirmações-limite que
necessitam de um processo de conhecimento e de uma entrega final.
(1)
O
processo começa com a realidade humana de Jesus, em princípio,
historicamente constatável. Em que consiste essa realidade humana, já o vimos
no livro anterior a este («Jesucristo
Liberador»). A isso apenas queremos acrescentar que a história de Jesus
podia – e deveria – ser lida «calcedonicamente», de maneira que aquilo que tem
de humano nunca o deixasse de ser (sem mudanças), nem fosse absorvido pelo
divino (sem confusão), nem se apartasse do divino (sem divisão) e sempre assim
até ao fim sem marcha atrás (sem separação). Programaticamente, pode dizer-se
que, durante a sua vida, se refere a Deus sem que Deus o «des-humanize» e isso
ocorre até ao fim, apesar das crises, do horto, da cruz…[2]
(2)
Essa
realidade humana, agora a partir da fé, é colocada em relação com Deus. É isto que a
reflexão cristológica do Novo Testamento e da Patrística fizeram (como já vimos
em capítulos anteriores) servindo-se de títulos e de interpretações teológicas
da vida de Jesus, concluindo por uma relação muito especial estabelecida entre
Jesus e Deus.
(3)
O
processo termina
com a confissão da divindade do próprio Jesus Cristo, o qual,
insipidamente no Novo Testamento e explicitamente a partir de Niceia, ocorre na
entrega da razão ao mistério.[3]
Para a
epistemologia, o importante é a conclusão: conhecer a realidade de Jesus Cristo
em si só será possível através de uma afirmação doxológica. Neste exacto
sentido, as fórmulas conciliares são «pontos de chegada», que recolhem e
guardam o início do processo e o seu desenvolvimento. São significativas na
medida em que são o ponto final (ainda que sempre provisório) do processo do
conhecer que começa no Novo Testamento e, dentro dele, nos textos que se
referem à vida e destino reais de Jesus, aos que se acrescentam –
posteriormente – as interpretações teológicas que deles fazem o Novo Testamento
e a Patrística; terminam na entrega da razão ao mistério.
Esta epistemologia
inclui, pois, dois elementos essenciais: o caminho do conhecimento que começa com uma
certa realidade de tipo histórico, e a entrega da razão no final desse processo.
Estes dois elementos – caminho e entrega – é aquilo que queremos analisar de seguida,
não apenas quanto à sua dimensão teórica cognoscitiva, mas quanto à sua
realidade histórica práxica. Queremos analisar o "caminho" rumo à
doxologia como seguimento de Jesus e a "entrega da razão" como
entrega da totalidade da pessoa. (…)
Jon Sobrino
«La Fe en Jesucristo – ensayo desde las víctimas»
[pp. 27]
[1]
Veja-se o subcapítulo «Un Dios misterioso»
no capítulo 6. Neste subcapítulo aplicamos, com as devidas modificações que o
caso exige, a análise das fórmulas doxológicas às fórmulas conciliares.
[2]
O que é que acontece com a divindade de Jesus nesse momento não é visível, mas
pode ser inferido e acreditado. Mas, uma vez isso aceite posteriormente ao
nível da fé, podia e devia dizer-se que, em Jesus de Nazaré, Deus abeira-se do
humano sem que esse humano o «des-divinize», ainda que isso aconteça de maneira
escandalosa.
[3]
No caso da divindade de Jesus Cristo, a necessidade da entrega da razão pode ser vista de um outro ponto de vista, caso
nos demos conta de como funciona a cópula é
nas fórmulas dogmáticas conciliares. Quando falamos da divindade em geral e
dizemos «Deus é libertador», o é poderia ser compreendido a partir da
analogia do ser (ainda que também na analogia o último passo pressupõe a
entrega da inteligência, já que se prega algo de Deus por via da afirmação, da
negação e da elevação). Porém, na cristologia nem sequer esta analogia do ser é
via de solução, na medida em que o é,
da fórmula, opera de uma maneira absolutamente incontrolável pela razão. A
partícula é não opera aqui como
noutras afirmações da linguagem. A afirmação Deus
é homem «não pode identificar a realidade expressada no sujeito
da frase, "Deus", com a aludida no predicado (ser humano, nascer,
etc.), da mesma maneira que o faz em enunciados correntes» (K. Rahner, ¿Que debemos crer todavia?, Santander,
1980, p. 110; cf. K. Rahner e W. Thüsing, «Cristología»,
Madrid, 1975, pp. 58-62; «Curso
Fundamental sobre la Fe», Barcelona, 31984, p. 340).