A história e o bem
[primeira
redacção]
Deixemos
para «trás de nós a abstracção que domina em parte o pensamento Ético do homem
individual isolado, o qual, de modo incessante e exclusivo, se deve decidir
entre um Bem e um Mal claramente reconhecidos segundo um critério absoluto de que esse
Homem Individual poderia dispor. Semelhante indivíduo singular não existe, nem
desse critério absoluto do Bem dispomos nós, nem
é habitual que o Bem e o Mal se apresentem a nós na sua forma pura.
O erro deste abstracto esquematismo ético consiste em só valorizar o indivíduo
isolado como eticamente relevante, em que só o absoluto e o universalmente
válido conta como Norma, em que só a decisão entre o Bem e o Mal claramente reconhecidos valem como
decisão ética; por outras palavras, o erro está em reduzir o elemento ético a
uma fórmula fundamental absolutamente estática, o que é uma ficção e no qual o
especificamente ético se perde.
A
esta abstracção corresponde um determinado comportamento prático, com que se
intenta sempre de novo a solução do problema ético e que está, no entanto,
sempre de novo condenada
a fracassar.
O
que está em causa, aqui, é de o indivíduo abdicar da responsabilidade viva do seu ser-aí histórico e de se
refugiar numa realização privada de ideais éticos em que veja garantida a sua
bondade pessoal. (…)
De
harmonia com a radicalidade de tais princípios, esta atitude leva a renunciar à
responsabilidade na sua globalidade e a refugiar-se numa existência burguesa
puramente privada ou no convento. Mas, visto que o isolamento ético do
indivíduo é, na prática, uma ficção – pois ninguém se pode isolar de todo da
comunidade humana e cada qual dela vive −, esta concepção do ético está
condenada ao fracasso. Ela desmorona-se em face da historicidade do ser-aí humano. [M. Heidegger,
«Sein und Zeit», 387 (título do §75):
«A historicidade do ser-aí e o
mundo-história.»] (…)
No
momento em que um homem aceita uma responsabilidade por outros homens – e só
assim ele está na realidade – nasce a situação ética genuína, que se distingue
essencialmente da abstracção (…). O sujeito da acção já não é o indivíduo
isolado, mas aquele que é responsável por outros homens; a norma do agir não é
um princípio universalmente válido, mas o próximo concreto, tal como ele é dado
por Deus; a decisão já não incide entre um Bem e um Mal claramente, mas a
decisão é um risco que se corre na fé face à ocultação do Bem e do Mal na
concreta situação histórica.
Agir
na responsabilidade concreta significa agir na liberdade, decidir pessoalmente,
sem ter aos ombros o manto protector de homens ou de princípios, é agir e
responder pelas consequências do seu agir. A responsabilidade pressupõe uma derradeira liberdade no
julgar uma dada situação, no decidir e no agir. A acção responsável não foi
estabelecida à partida e de uma vez por todas, mas nasce na situação concreta.
Não se trata de cumprir um princípio
que, no fim, fracassa em contacto com a realidade, mas de aprender aquilo que é
necessário - «mandato» - na situação
dada. Importa observar, sopesar e avaliar tudo na perigosa liberdade do eu. É necessário
ingressar totalmente no campo das relatividades, na luz ambígua que a situação histórica estende sobre o
Bem e o Mal. Preferir o melhor ao menos bom porque o
«absolutamente bom» pode, por isso mesmo, suscitar o Mal, é a auto-renúncia às
suas pretensões, muitas vezes necessária, de quem com responsabilidade actua.
(…) Afirma-se, aqui, do modo mais elevado a liberdade de quem é responsável
também em face da escravatura dum «absolutamente bom». (…)
O
agir é, num sentido muito profundo, adequado à realidade.»
Dietrich
Bonhoeffer [1906-1945], «ÉTICA»,
Assírio & Alvim, Teofanias_6, 2007, tradução de Artur Morão. ISBN
979-972-37-1179-0. [Esta
tese de D. Bonhoeffer opõe-se à tese conservadora dos conservadores e
restauracionistas cardeal Joseph Ratzinger e Papa João Paulo II, apologistas
das «verdades absolutas inegociáveis».
D. Bonhoeffer opta, antes, por uma lógica indutiva. Esta deverá ser também a
orientação das teologias cristã, muçulmana, judaica ou outras para os
conturbados tempos de hoje, como propõe H. Kung]
Preceitos, não; felicidade e alegria, sim
[…] «O evangelho de Mateus começa o seu
relato do Sermão da Montanha dizendo: «Ao
ver a multidão, Jesus subiu a um monte. Depois de se ter sentado, os discípulos
aproximaram-se dele. Então tomou a palavra e começou a
ensiná-los» (Mt 5, 1-2). De seguida, Jesus expõe o seu programa: as Bem-aventuranças
(Mt 5,3-12). É provável que a fórmula do relato contenha alguma alusão à
memorável subida de Moisés ao Monte Sinai (Ex 19,3.12; 24, 15.18; 34, 1s.4). A
conclusão do Sermão da Montanha também evoca esses textos alusivos a Moisés[1]. Nesse sentido houve quem
afirmasse, com fundamento, que Jesus, ao subir ao monte das Bem-aventuranças,
«assume a função de um novo Moisés»[2]. Seja
qual for o conteúdo concreto desta afirmação, o certo é que Jesus, no Sermão da
Montanha, promulga o seu programa: um programa ético. Contudo, um programa que se diferencia
totalmente daquele que Moisés promulgou no outro monte, o Sinai. No Sinai, Moisés promulgou Mandamentos, ao passo que Jesus,
no monte da Galileia, anunciou
Bem-aventuranças. Ou seja, passamos de uma ética de deveres e obrigações para uma ética de felicidade e ventura. Eis a surpreendente inovação do projecto
moral oferecido por Jesus. Joaquim Jeremias
disse, com toda a razão, que o Sermão da Montanha não é Lei mas Evangelho, de
tal forma que a diferença entre um e outro é esta: «A Lei põe o homem diante das suas próprias forças e pede-lhe que as use
até ao máximo; o Evangelho situa o homem diante do dom de Deus e pede-lhe que
converta verdadeiramente esse dom inefável em fundamento da sua vida. Estamos
perante dois mundos distintos!»[3].
Claro que não se trata de Jesus ter
suprimido os mandamentos, como se de agora em diante fosse permitido matar,
roubar, mentir ou adulterar. Nada disso. O que acontece é que as
Bem-aventuranças vão muito para além do que tudo o que os mandamentos
significam (ou podem significar). As Bem-aventuranças não se ficam por uns
quantos limites que não se podem
transgredir, mas definem metas
que nunca seremos capazes de alcançar plenamente. Não são proibições, mas
propostas. Não são a negação daquilo
que não se pode fazer, mas a afirmação
daquilo que nos dá vida e nos deixa indizivelmente felizes. É o Evangelho, a
«Boa Notícia», o «tesouro» (Mt 13,44) e a «pérola» (Mt 13,45ss), que enche o
ser humano de uma felicidade indizível.
Com efeito, a primeira característica
que surge nas Bem-aventuranças é que o programa de Jesus para os seus
companheiros é um programa de felicidade[4]. Cada afirmação de Jesus
começa com a palavra makárioi, «ditosos». Em grego, essa palavra
significa a condição de quem está livre de preocupações e trabalhos diários; e
descreve, em linguagem poética, o estado dos deuses e daqueles que participam dessa
existência feliz. Por conseguinte, Jesus propõe a ventura sem limites, a
felicidade plena para os seus seguidores. Deus não quer a dor, a tristeza e o
sofrimento. Deus quer precisamente o contrário: que o ser humano se realize
plenamente, que viva feliz, que a boa sorte abunde e superabunde na sua vida.
Jesus compreendeu que o meio mais
eficaz e mais directo para aproximar-se de Deus, e para que cada qual se
realize, não é estabelecer proibições, mas
fazer propostas que melhor e mais naturalmente encaixem na nossa condição
humana, naquilo que mais desejamos e melhor agrada. Em suma, trata-se de
substituir os mandamentos que proíbem o mal por ofertas que nos fazem sentir
atraídos pela felicidade. Jesus
não nos diz: «Não faças isto porque se o
fazes estás condenado»; mas propõe: «Se viveres desta maneira, serás feliz». Sem sombra de dúvida que esta última é muito
mais atraente e mais eficaz que a anterior. Por isso, logicamente, tal proposta
deveria pesar mais na nossa vida. Acontece que, regra geral, tal não acontece.
Por que será? (…)»
José
M. Castillo
«Ética
de obligaciones, ética de felicidad», in «La
Ética de Cristo», 5ª Edición, Desclée De Brouwer Abril 2008, pp. 135-149. ISBN
978-84-330-2027-7.
[pp. 16]
[1] Ulrich Luz, «El Evangelio según san Mateo - I», Salamanca, Sígueme, 1993, 276. J.
Jeremias: TWNT IV, 875.
[2] J. Mateos e F. Camacho, «El Evangelio de Mateo», Madrid,
Cristiandad, 1981, 52.
[3] J. Jeremias, «Palabras de Jesús», Madrid, Edic. Fax,
1969, 99.
[4] J. M. Castillo, «Teología para comunidades», Madrid, San
Pablo, 1990, com bibliografia sobre este assunto.