teologia para leigos

8 de outubro de 2015

O QUE É O HOMEM NOVO? [J.COMBLIN]

RESUMO do LIVRO

O cristianismo contribui, para a Humanidade, com o «Homem Novo», não tanto em forma de doutrina, mas antes sob a forma de realidades concretas, as quais são: as comunidades cristãs, os missionários e a prática da evangelização.

O Homem Novo entra na humanidade velha pelo que a história humana é, antes de tudo, o drama de um parto de uma nova humanidade a partir do seio da humanidade velha, o drama da vida a partir da morte, da justiça a partir do pecado e da liberdade a partir da escravidão.

A caminhada do homem novo começa entre os pobres, eles que são os portadores privilegiados da libertação do homem velho.

Os pobres não podem renovar a humanidade por si sós, ainda que tenham que assumir sempre a condução da libertação para que esta seja autêntica; eles precisam da ajuda de forças históricas disponíveis, entre as quais devem praticar o discernimento.

O conceito de pessoa humana, com a sua dignidade e os seus direitos, formou-se neste século XX, no confronto, quer com os totalitarismos, quer com o individualismo liberal; só nas comunidades é que existem pessoas, verdadeiramente falando; é na realidade concreta que os direitos da pessoa humana adquirem o seu completo significado, através da reivindicação dos direitos dos oprimidos.

O cristianismo rejeita todo o tipo de dualismo no ser humano, quer o dualismo grego antigo, quer o dualismo moderno e burguês; o cristianismo defende a unidade do ser humano, a qual coincide com o seu corpo, no qual o centro é o cérebro; a alma somente pode ser a vida do corpo e não se distingue dele, pois é ela que faz a diferença entre um corpo vivo e um corpo morto.

O corpo real não é o objecto analisado, observado e reconstituído pelas Ciências, mas, sim, o "meu" corpo, o que o torna único e insubstituível.

O corpo é o fundamento da comunidade, pois ele é o ser humano exprimindo-se e comunicando com outros numa comunidade; a própria sexualidade é o primeiro passo da sociabilidade.

O corpo não desaparece completamente com a morte: a vida que há nele, e que formou uma pessoa, não se apaga, mas sobrevive na espera da ressurreição.

O corpo humano somente existe no espaço, sobre a terra, numa geografia que o condiciona, numa pátria, numa cultura rodeada de outras culturas, ligado a um lugar, mas também livre e como habitante estrangeiro do mundo, lançando raízes em cidades ou comunidades menores.

A vida humana é breve, situada num ponto – bem delimitado – duma história enormemente mais longa; a vida humana passa da infância para a velhice, inserida numa cadeia de gerações, em que a cada geração lhe compete uma tarefa limitada e específica.

O ser humano é feito para agir sobre a matéria do universo inteiro, o que só consegue mediante as ciências e as tecnologias; estas, em vez de serem instrumentos das comunidades humanas, podem tornar-se as dominadoras que impõem o seu próprio crescimento como fim último do agir.

O trabalhador é o primeiro fim do trabalho, mas é susceptível de se tornar a primeira alienação, de tal sorte que a libertação dos trabalhadores é o ponto crucial de toda a libertação humana.

A humanidade sofre violência e está subordinada a forças de morte, porque existem seres humanos que oprimem outros seres humanos; a transformação da sociedade humana é obra dos pobres, que são as vítimas da opressão.

A dominação nasce da guerra e da violência; a libertação não pode excluir de antemão algum tipo de recurso à guerra, mas ela faz-se fundamentalmente pela força da palavra, pois na afirmação de si, pela sua palavra, é que a humanidade adquire a condição humana autêntica.

Não há libertação da humanidade sem trabalho de libertação do indivíduo chamado a vencer o medo, a submissão e todas as resistências e pressões, externas e internas; pois somente o indivíduo pode tornar-se livre, e nenhuma estrutura exterior pode dispensar essa responsabilidade pessoal.

A liberdade individual não consiste no isolamento do indivíduo em si próprio, por exemplo, na propriedade privada, mas, sim, no livre serviço aos outros em comunidade; embora, cada um precise de uma protecção para a sua vida privada e dos seus direitos em face da arbitrariedade de todas as autoridades.

Todos os homens vivem na presença de Deus, como que sentindo-se responsáveis por uma missão recebida, e referindo-se ao juízo final desse Deus, qualquer que seja o nome que lhe dê: nesse sentido, o homem é imagem de Deus e não pode viver sem reflectir, em si mesmo, o ser de Deus. Essa relação objectiva do homem inteiro para com Deus há-de ser vivida subjectivamente na oração sem cessar.

O homem novo é Cristo ressuscitado, crucificado, mas também o é na sua vida histórica (pública): nele está todo o valor humano manifestado no decorrer dos tempos.

A missão do Espírito Santo não consiste em elevar os homens acima da humanidade através duma divinização que os afastaria dos limites da sua condição corporal, mas, pelo contrário, o Espírito vivifica o corpo para a vida eterna e move os homens para que todos e cada um alcancem a plenitude do ser humano na maior diversidade e liberdade, de tal sorte que não haja somente um modelo de imitação de Jesus, mas milhões.










O HOMEM NOVO



Introdução

«Todos os caminhos da Igreja conduzem ao homem»[1], dizia o Papa João Paulo II na sua primeira encíclica, Redemptor Hominis. Por conseguinte, todos os caminhos da teologia cristã também conduzem ao homem. A humanidade não é um objecto qualquer da teologia: ela é central. Todos os outros objectos que ela aborda giram ao redor da humanidade e têm, por finalidade, iluminar o destino do homem.

Nesta colecção, o ser humano – objecto do Evangelho e preocupação da Igreja – vai ser o alvo de alguns livros. Contudo, os editores quiseram abrir a série com um volume que oferecesse, digamos, uma visão geral da humanidade e da sua libertação, a partir do ponto de vista cristão. Este volume não é o resumo dos livros que virão a seguir; pelo contrário, é a abordagem genérica dos temas que serão mais pormenorizadamente examinados (nos seus diversos aspectos) nos volumes seguintes.

No tempo em que a teologia assumia o papel de ideologia dominante de uma certa sociedade, ela pretendia apresentar uma visão completa do homem e do seu lugar no mundo. À medida que iam surgindo novas ciências do homem, novos descobrimentos e novos conceitos, a teologia procurava integrá-los na sua síntese. Se ela não tivesse sido capaz de sintetizar todos esses conhecimentos, a teologia teria deixado de ser capaz de orientar a sociedade. Mesmo depois de terem perdido, de facto, o controlo da sociedade ocidental, os teólogos continuaram ainda, durante várias gerações, a idealizar uma visão total do homem que fosse capaz de oferecer pelo menos o equivalente das grandes ideologias, que ambicionavam a conquista intelectual do mundo.

A partir do momento em que a teologia faz a opção pelos pobres, fica claro que a teologia abandona o projecto de fornecer, à sociedade, a ideologia que irá orientar a sua classe dominante. Sempre haverá ideologias e visões globais – do mundo e do homem – para orientar as sociedades políticas, as culturas e as civilizações. A teologia cristã desiste desse papel. Na América Latina, a teologia exerceu esse papel durante a época dos Impérios coloniais. Depois da ruína dos Impérios, manteve, durante várias gerações, uma certa nostalgia dessa função. Depois de Medellín e Puebla, ela renunciou a esse papel, pelo menos oficialmente.

A teologia também não quer assumir o papel de ser uma espécie de síntese ou uma enciclopédia das ciências humanas. Esta seria uma tarefa impossível e vã, em que os teólogos perderiam a sua identidade, sem proveito nenhum.

A teologia nem sequer pretende elaborar o equivalente a uma filosofia do homem. Na época contemporânea, a filosofia emancipou-se cada vez mais da teologia e está à procura da sua tarefa própria. No início da sua história, na civilização greco-romana, a filosofia renunciou também ao papel de orientadora da cidade, como Platão lhe havia sugerido.

A teologia nem sequer pode assumir as funções de uma "teoria geral da libertação da humanidade". Em primeiro lugar, tal teoria nunca poderia existir como teoria cristã, na medida em que ela traria dentro de si as sementes de futuras dominações. Em segundo lugar, nem o cristianismo nem a Igreja nem a teologia receberam a missão de planificar a libertação da humanidade. Cristianismo, Igreja e Teologia têm uma missão dentro da libertação da humanidade e ao serviço da humanidade, mas Deus não lhes confiou a missão de planificar, liderar, conduzir como se de um processo único, sintético ou coeso se tratasse. Dizem os críticos que essa, sim, foi a tentação específica em que a Igreja do Ocidente caiu, tentação que motivou os protestos, quer dos orientais, quer dos reformadores do século XVI, quer dos seus precursores medievais, bem como dos seus sucessores modernos.

Então, o que é que, para a libertação da humanidade, o cristianismo oferece?

Em primeiro lugar, não oferece uma doutrina, uma concepção da vida ou um modelo de mundo, mas homens e mulheres concretos reunidos em comunidades. A contribuição do Cristianismo são as comunidades cristãs espalhadas pelo mundo.

Essas comunidades são Jesus Cristo. Se Jesus fosse apenas uma pessoa do passado, ele traria à humanidade alguns exemplos, alguns conceitos, algo semelhante à contribuição dos fundadores das grandes religiões. Ora, Jesus Cristo torna-se presente e multiplica-se pelo mundo inteiro através da presença das comunidades cristãs. Estas trazem algo novo, algo específico que é a sua acção. A actuação das comunidades cristãs no meio do mundo é a contribuição cristã para a libertação. As doutrinas, as ideias, os temas cristãos contribuem para a libertação na medida em que representam, animam e estimulam a praxis das comunidades. As doutrinas cristãs sobre o homem somente podem ajudar à libertação da humanidade na medida em que a praxis das comunidades lhes confira um conteúdo concreto. É por isso que a primeira referência de todos os conceitos antropológicos cristãos é a vida das comunidades cristãs. A própria Bíblia contribui com um conteúdo histórico real apenas e na medida em que a Bíblia reviver (reganhar vida) através da actuação das comunidades cristãs concretas.

A actuação das comunidades chama-se "evangelização": este é o dado antropológico novo que contém, em si, a parte libertadora da humanidade que o cristianismo aporta.

A evangelização oferece aos homens uma verdade sobre si próprios. Como dizia Puebla, é missão das comunidades cristãs oferecer uma verdade sobre o homem. Essa verdade não é uma doutrina, um ensinamento, um conjunto de conceitos. A verdade é uma força que denuncia e destrói a mentira[2], a verdade é o renascer duma realidade nova. Pela sua acção, as comunidades fazem com que possa nascer a realidade da humanidade, uma realidade nova.

O primeiro capítulo olhará este facto fundamental que se denomina "homem novo", a nova humanidade: as comunidades cristãs no decorrer da história e agora.

Ora, a evangelização é uma palavra dirigida e orientada. Ela escolhe os pobres e contempla-os como os encarregados da libertação da humanidade. Tal movimento inclui uma maneira de enxergar a própria humanidade. Mas, quanto a isto, o fazer é anterior ao dizer. Não é por causa duma doutrina que os cristãos fazem a opção pelos pobres, mas, ao contrário, é por que fazem essa opção que eles arquitectam e adquirem uma certa doutrina.

Em quase todas as grandes civilizações, aquilo que se pode denominar "humanismo" foi, ou ainda é, um estilo de vida: o modo de ser das elites privilegiadas ou de certos elementos escolhidos entre as elites. Humanismo foi, e ainda é, quase sempre sinónimo de elitismo. A verdade cristã denuncia esse humanismo e procura outra forma de humanismo a partir dos pobres.

Ora, o humanismo que parte dos pobres inclui uma opção realista contra os idealismos. A história da antropologia teológica quase que se confunde com a história dos debates entre idealismo e realismo. Apesar da defesa dos maiores Doutores da Igreja, nomeadamente, S. Tomás de Aquino, quase sempre o Idealismo triunfou, sobretudo na práxis das igrejas cristãs instaladas e nas Escolas ou nas Academias. Procuraram a perfeição do Homem através da fuga rumo a metas ideais, supostamente «espirituais», e perderam de vista a realidade corporal do homem. Regra geral, o homem privilegiado esquece-se do seu corpo[3]. O corpo recorda, força e impõe a existência quando ele sofre. Quem nunca teve fome não sabe que o homem, em primeiro lugar, é um ser que precisa de comer. Quem nunca esteve doente não sabe o que é a saúde. Para os pobres, a libertação da humanidade é a libertação dos corpos sofridos, esmagados, humilhados.

Nos capítulos 3, 4, 5 e 6 veremos as diversas relações do corpo com tudo aquilo que o faz existir como corpo: o corpo na sua relação com o mundo, com a natureza, com os outros corpos humanos, e, finalmente, o corpo como distante dos outros corpos e da matéria.

O espírito não está fora do corpo. Pelo contrário, está presente em cada uma das suas relações. Contudo, para que a espiritualidade humana fique mais clara, o capítulo 7 fará uma recapitulação dos seus diversos aspectos.

Os cristãos não inventaram o homem. Não constroem a história do homem: eles participam nela como os outros homens. Não sabem prever as etapas ulteriores da libertação. Os cristãos não conhecem a humanidade melhor do que os outros. Porém, o que os diferencia dos outros, não é simplesmente uma ideologia diferente ou um sistema simbólico diferente. A antropologia cristã não é outra maneira de exprimir o que os outros diriam de modo científico. Os modernos sempre se mostraram dispostos a aceitar o cristianismo com a condição de que se limitasse a dizer em forma de símbolos o que eles, os modernos, sabiam dizer de modo científico.

Pelo contrário, as áreas das ciências humanas e da teologia não coincidem. Teologia e Ciências Humanas falam de coisas diferentes embora tendo o mesmo objecto: o homem. É que não há uma ciência da humanidade; mas, por outro lado, as ciências humanas dizem coisas acertadas sempre que se dedicam a aspectos muito circunscritos, muito limitados. A libertação é matéria de um discernimento, e, em matéria de discernimento, o homem cristão acrescenta algo à humanidade.

O que é que os cristãos têm para dizer aos homens de hoje sobre a libertação da humanidade? Nada mais e nada menos do que o que eles são e fazem. Neles está o Cristo, criado de novo, no mundo de hoje pelo Espírito Santo. Por conseguinte, o objecto deste livro é: qual é o tipo de humanidade, de valor humano, de conteúdo com verdadeiro sentido humano, que existe nas nossas comunidades cristãs? Onde e como é que Jesus Cristo – o Homem Novo – está presente e a agir, hoje em dia? Quem é ele? O que é que Ele traz a este nosso mundo concreto? […]



José Comblin, belga de nascimento (1923-2011), trabalhou na América Latina a partir de 1958 como teólogo (Brasil, Chile, Equador), vivendo em comunidades pobres, que o inspiraram a criar um método teológico-catequético que ficou conhecido por "teologia da enxada".[4] Faleceu com 88 anos e deixou uma vasta obra, indispensável, não aos professores europeus de teologia (que vivem afastados das comunidades mais marginalizadas e preferem a teologia espiritualista e especulativa à da libertação), mas, sim, aos leigos preocupados em iluminar suas dúvidas e em fundamentar as suas opções de vida no concreto dos dramas humanos e políticos diários.

«Antropologia Cristã», TOMO I de A Libertação na História (Série III) da colecção «Teologia e Libertação», VOZES, Petrópolis 1985, pp. 15-59.


[pp. 37]



Arcebispo Albert Rouet,
«A IGREJA CORRE O RISCO DE SE CONVERTER NUMA SUB-CULTURA»






[1] S. S. João Paulo II, enc. Redemptor hominis, 4 de Março de 1979, n. 14.
[2] «A Verdade é um Encontro» - Homilias em Santa Marta, pelo Papa Francisco, Ed. Paulinas, ISBN 978-989-673-411-4[NdE]
[3] [NdE] Cf. «O que é o Homem?», por Anselmo Borges, in blog "A SALA DE CIMA", 2 Out. 2015: