RESUMO do LIVRO
O
cristianismo contribui, para a Humanidade, com o «Homem Novo», não tanto em
forma de doutrina, mas antes sob a forma de realidades concretas, as quais são:
as comunidades cristãs, os missionários e a prática da evangelização.
O
Homem Novo entra na humanidade velha pelo que a história humana é, antes de
tudo, o drama de um parto de uma nova humanidade a partir do seio da humanidade
velha, o drama da vida a partir da morte, da justiça a partir do pecado e da
liberdade a partir da escravidão.
A
caminhada do homem novo começa entre os pobres, eles que são os portadores
privilegiados da libertação do homem velho.
Os
pobres não podem renovar a humanidade por si sós, ainda que tenham que assumir
sempre a condução da libertação para que esta seja autêntica; eles precisam da
ajuda de forças históricas disponíveis, entre as quais devem praticar o
discernimento.
O
conceito de pessoa humana, com a sua dignidade e os seus direitos, formou-se
neste século XX, no confronto, quer com os totalitarismos, quer com o
individualismo liberal; só nas comunidades é que existem pessoas,
verdadeiramente falando; é na realidade concreta que os direitos da pessoa
humana adquirem o seu completo significado, através da reivindicação dos
direitos dos oprimidos.
O
cristianismo rejeita todo o tipo de dualismo no ser humano, quer o dualismo
grego antigo, quer o dualismo moderno e burguês; o cristianismo defende a
unidade do ser humano, a qual coincide com o seu corpo, no qual o centro é o
cérebro; a alma somente pode ser a vida do corpo e não se distingue dele, pois
é ela que faz a diferença entre um corpo vivo e um corpo morto.
O
corpo real não é o objecto analisado, observado e reconstituído pelas Ciências,
mas, sim, o "meu" corpo, o que o torna único e insubstituível.
O
corpo é o fundamento da comunidade, pois ele é o ser humano exprimindo-se e
comunicando com outros numa comunidade; a própria sexualidade é o primeiro
passo da sociabilidade.
O
corpo não desaparece completamente com a morte: a vida que há nele, e que
formou uma pessoa, não se apaga, mas sobrevive na espera da ressurreição.
O
corpo humano somente existe no espaço, sobre a terra, numa geografia que o
condiciona, numa pátria, numa cultura rodeada de outras culturas, ligado a um
lugar, mas também livre e como habitante estrangeiro do mundo, lançando raízes
em cidades ou comunidades menores.
A
vida humana é breve, situada num ponto – bem delimitado – duma história
enormemente mais longa; a vida humana passa da infância para a velhice,
inserida numa cadeia de gerações, em que a cada geração lhe compete uma tarefa
limitada e específica.
O
ser humano é feito para agir sobre a matéria do universo inteiro, o que só
consegue mediante as ciências e as tecnologias; estas, em vez de serem
instrumentos das comunidades humanas, podem tornar-se as dominadoras que impõem
o seu próprio crescimento como fim último do agir.
O
trabalhador é o primeiro fim do trabalho, mas é susceptível de se tornar a
primeira alienação, de tal sorte que a libertação dos trabalhadores é o ponto
crucial de toda a libertação humana.
A
humanidade sofre violência e está subordinada a forças de morte, porque existem
seres humanos que oprimem outros seres humanos; a transformação da sociedade
humana é obra dos pobres, que são as vítimas da opressão.
A
dominação nasce da guerra e da violência; a libertação não pode excluir de
antemão algum tipo de recurso à guerra, mas ela faz-se fundamentalmente pela
força da palavra, pois na afirmação de si, pela sua palavra, é que a humanidade
adquire a condição humana autêntica.
Não
há libertação da humanidade sem trabalho de libertação do indivíduo chamado a
vencer o medo, a submissão e todas as resistências e pressões, externas e
internas; pois somente o indivíduo pode tornar-se livre, e nenhuma estrutura
exterior pode dispensar essa responsabilidade pessoal.
A
liberdade individual não consiste no isolamento do indivíduo em si próprio, por
exemplo, na propriedade privada, mas, sim, no livre serviço aos outros em
comunidade; embora, cada um precise de uma protecção para a sua vida privada e
dos seus direitos em face da arbitrariedade de todas as autoridades.
Todos
os homens vivem na presença de Deus, como que sentindo-se responsáveis por uma
missão recebida, e referindo-se ao juízo final desse Deus, qualquer que seja o
nome que lhe dê: nesse sentido, o homem é imagem de Deus e não pode viver sem
reflectir, em si mesmo, o ser de Deus. Essa relação objectiva do homem inteiro
para com Deus há-de ser vivida subjectivamente na oração sem cessar.
O
homem novo é Cristo ressuscitado, crucificado, mas também o é na sua vida
histórica (pública): nele está todo o valor humano manifestado no decorrer dos
tempos.
A
missão do Espírito Santo não consiste em elevar os homens acima da humanidade
através duma divinização que os afastaria dos limites da sua condição corporal,
mas, pelo contrário, o Espírito vivifica o corpo para a vida eterna e move os
homens para que todos e cada um alcancem a plenitude do ser humano na maior
diversidade e liberdade, de tal sorte que não haja somente um modelo de
imitação de Jesus, mas milhões.
O HOMEM NOVO
Introdução
«Todos os caminhos da Igreja conduzem ao homem»[1], dizia o Papa João
Paulo II na sua primeira encíclica, Redemptor Hominis. Por conseguinte, todos os caminhos da teologia
cristã também conduzem ao homem. A humanidade não é um objecto qualquer
da teologia: ela é central. Todos os outros objectos que ela aborda giram ao
redor da humanidade e têm, por finalidade, iluminar o destino do homem.
Nesta colecção, o ser humano – objecto do
Evangelho e preocupação da Igreja – vai ser o alvo de alguns livros. Contudo,
os editores quiseram abrir a série com um volume que oferecesse, digamos, uma
visão geral da humanidade e da sua libertação, a partir do ponto de vista cristão.
Este volume não é o resumo dos livros que virão a seguir; pelo contrário, é a
abordagem genérica dos temas que serão mais pormenorizadamente examinados (nos
seus diversos aspectos) nos volumes seguintes.
No tempo em que a teologia assumia o papel
de ideologia dominante de uma certa sociedade, ela pretendia apresentar uma
visão completa do homem e do seu lugar no mundo. À medida que iam surgindo
novas ciências do homem, novos descobrimentos e novos conceitos, a teologia
procurava integrá-los na sua síntese. Se ela não tivesse sido capaz de
sintetizar todos esses conhecimentos, a teologia teria deixado de ser capaz de
orientar a sociedade. Mesmo depois de terem perdido, de facto, o controlo da
sociedade ocidental, os teólogos continuaram ainda, durante várias gerações, a
idealizar uma visão total do homem que fosse capaz de oferecer pelo menos o
equivalente das grandes ideologias, que ambicionavam a conquista intelectual do
mundo.
A partir do momento em que a teologia faz a opção pelos pobres, fica claro que a teologia abandona o projecto
de fornecer, à sociedade, a ideologia que irá orientar a sua classe dominante.
Sempre haverá ideologias e visões globais – do mundo e do homem – para orientar
as sociedades políticas, as culturas e as civilizações. A
teologia cristã desiste desse papel. Na América Latina, a teologia
exerceu esse papel durante a época dos Impérios coloniais. Depois da ruína dos
Impérios, manteve, durante várias gerações, uma certa nostalgia dessa função.
Depois de Medellín e Puebla, ela renunciou a esse papel, pelo menos
oficialmente.
A teologia também não quer assumir o papel
de ser uma espécie de síntese ou uma enciclopédia das ciências humanas. Esta
seria uma tarefa impossível e vã, em que os teólogos perderiam a sua
identidade, sem proveito nenhum.
A teologia nem sequer
pretende elaborar o equivalente a uma filosofia do homem. Na época
contemporânea, a filosofia emancipou-se cada vez mais da teologia e está à
procura da sua tarefa própria. No início da sua história, na civilização greco-romana,
a filosofia renunciou também ao papel de orientadora da cidade, como Platão lhe
havia sugerido.
A teologia nem sequer pode assumir as funções de uma "teoria
geral da libertação da humanidade". Em primeiro lugar, tal teoria nunca
poderia existir como teoria cristã, na medida em que ela traria dentro de si as
sementes de futuras dominações. Em segundo lugar, nem o cristianismo nem a
Igreja nem a teologia receberam a missão de planificar a libertação da
humanidade. Cristianismo, Igreja e Teologia têm uma missão dentro da libertação da humanidade e ao
serviço da humanidade, mas Deus não lhes confiou a missão de planificar,
liderar, conduzir como se de um processo único, sintético ou coeso se tratasse.
Dizem os críticos que essa, sim, foi a tentação específica em que a Igreja do
Ocidente caiu, tentação que motivou os protestos, quer dos orientais, quer dos
reformadores do século XVI, quer dos seus precursores medievais, bem como dos
seus sucessores modernos.
Então, o que é que, para a libertação da humanidade, o
cristianismo oferece?
Em primeiro lugar, não oferece uma doutrina, uma concepção da
vida ou um modelo de mundo, mas homens e mulheres concretos reunidos
em comunidades. A contribuição do Cristianismo são as comunidades cristãs espalhadas
pelo mundo.
Essas comunidades são Jesus Cristo. Se Jesus fosse
apenas uma pessoa do passado, ele traria à humanidade alguns exemplos, alguns
conceitos, algo semelhante à contribuição dos fundadores das grandes religiões.
Ora, Jesus Cristo torna-se presente e multiplica-se pelo mundo inteiro através
da presença das comunidades cristãs. Estas trazem algo novo, algo específico
que é a sua acção. A actuação das comunidades cristãs no meio do mundo é a
contribuição cristã para a libertação. As doutrinas, as ideias, os
temas cristãos contribuem para a libertação na medida em que representam,
animam e estimulam a praxis das comunidades. As doutrinas cristãs sobre o homem somente podem ajudar à
libertação da humanidade na medida em que a praxis das comunidades lhes confira
um conteúdo concreto. É por isso que a primeira referência de todos os
conceitos antropológicos cristãos é a vida das comunidades cristãs. A própria
Bíblia contribui com um conteúdo histórico real apenas e na medida em que a
Bíblia reviver (reganhar vida) através da actuação das comunidades cristãs
concretas.
A actuação das comunidades chama-se "evangelização":
este é o
dado antropológico novo que contém, em si, a parte libertadora da
humanidade que o cristianismo aporta.
A evangelização oferece aos homens uma
verdade sobre si próprios. Como dizia Puebla, é missão das comunidades cristãs
oferecer uma verdade sobre o homem. Essa verdade não é uma doutrina, um ensinamento, um conjunto de
conceitos. A verdade é uma força que denuncia e
destrói a mentira[2],
a verdade é o renascer duma realidade nova. Pela sua acção, as
comunidades fazem com que possa nascer a realidade da humanidade, uma realidade
nova.
O primeiro capítulo olhará este facto
fundamental que se denomina "homem novo", a nova humanidade: as
comunidades cristãs no decorrer da história e agora.
Ora, a evangelização
é uma palavra dirigida e orientada. Ela escolhe os
pobres e contempla-os como os
encarregados da libertação da humanidade. Tal movimento
inclui uma maneira de enxergar a própria humanidade. Mas, quanto a isto, o fazer é
anterior ao dizer. Não é por causa duma doutrina que os cristãos
fazem a opção pelos pobres, mas, ao contrário, é por que fazem essa opção que
eles arquitectam e adquirem uma certa doutrina.
Em quase todas as grandes civilizações,
aquilo que se pode denominar "humanismo" foi, ou ainda é,
um estilo de vida: o modo de ser das elites privilegiadas ou de certos
elementos escolhidos entre as elites. Humanismo foi,
e ainda é, quase sempre sinónimo de elitismo. A verdade cristã
denuncia esse humanismo e procura outra forma de humanismo a partir dos pobres.
Ora, o humanismo que parte dos pobres inclui uma opção
realista contra os idealismos. A história da antropologia teológica
quase que se confunde com a história dos debates entre idealismo e realismo.
Apesar da defesa dos maiores Doutores da Igreja, nomeadamente, S. Tomás de
Aquino, quase sempre o Idealismo triunfou, sobretudo na práxis das igrejas
cristãs instaladas e nas Escolas ou nas Academias. Procuraram a perfeição do
Homem através da fuga rumo a metas ideais, supostamente «espirituais», e
perderam de vista a realidade corporal do homem. Regra geral, o homem
privilegiado esquece-se do seu corpo[3].
O corpo recorda, força e
impõe a existência quando ele sofre. Quem nunca teve fome não sabe que o
homem, em primeiro lugar, é um ser que precisa de comer. Quem nunca esteve
doente não sabe o que é a saúde. Para os pobres, a libertação da humanidade é a libertação dos corpos
sofridos, esmagados, humilhados.
Nos capítulos 3, 4, 5 e 6 veremos as
diversas relações do corpo com tudo aquilo que o faz existir como corpo: o
corpo na sua relação com o mundo, com a natureza, com os outros corpos humanos,
e, finalmente, o corpo como distante dos outros corpos e da matéria.
O espírito não está fora do corpo. Pelo
contrário, está presente em cada uma das suas relações. Contudo, para que a
espiritualidade humana fique mais clara, o capítulo 7 fará uma recapitulação
dos seus diversos aspectos.
Os cristãos não inventaram o homem. Não
constroem a história do homem: eles participam nela como os outros homens. Não
sabem prever as etapas ulteriores da libertação. Os
cristãos não conhecem a humanidade melhor do que os outros. Porém, o
que os diferencia dos outros, não é simplesmente uma ideologia diferente ou um
sistema simbólico diferente. A antropologia cristã não é outra maneira de
exprimir o que os outros diriam de modo científico. Os modernos sempre se
mostraram dispostos a aceitar o cristianismo com a condição de que se limitasse
a dizer em forma de símbolos o que eles, os modernos, sabiam dizer de modo
científico.
Pelo contrário, as áreas das ciências
humanas e da teologia não coincidem. Teologia e Ciências Humanas falam de coisas diferentes embora
tendo o mesmo objecto: o homem. É que não há uma ciência da humanidade; mas,
por outro lado, as ciências humanas dizem coisas acertadas sempre que se
dedicam a aspectos muito circunscritos, muito limitados. A libertação é matéria de um discernimento, e, em matéria
de discernimento, o homem cristão acrescenta algo à humanidade.
O que é que os cristãos têm para dizer aos homens de hoje sobre
a libertação da humanidade? Nada mais e nada menos do que o que eles são e fazem. Neles está o
Cristo, criado de novo, no mundo de hoje pelo Espírito Santo. Por conseguinte,
o objecto deste livro é: qual é o tipo de humanidade, de valor humano, de
conteúdo com verdadeiro sentido humano, que existe nas nossas comunidades
cristãs? Onde
e como é que Jesus Cristo – o Homem Novo – está presente e a agir, hoje em dia? Quem é ele? O que é que Ele traz a este nosso mundo concreto? […]
José
Comblin, belga de nascimento (1923-2011),
trabalhou na América Latina a partir de 1958 como teólogo (Brasil, Chile,
Equador), vivendo em comunidades pobres, que o inspiraram a criar um método
teológico-catequético que ficou conhecido por "teologia da enxada".[4]
Faleceu com 88 anos e deixou uma vasta obra, indispensável, não aos professores
europeus de teologia (que vivem afastados das comunidades mais marginalizadas e
preferem a teologia espiritualista e especulativa à da libertação), mas, sim, aos
leigos preocupados em iluminar suas dúvidas e em fundamentar as suas opções de
vida no concreto dos dramas humanos e políticos diários.
«Antropologia Cristã»,
TOMO I de A Libertação na História
(Série III) da colecção «Teologia e Libertação», VOZES, Petrópolis 1985, pp.
15-59.
[pp. 37]
Arcebispo Albert Rouet,
«A IGREJA CORRE O RISCO
DE SE CONVERTER NUMA SUB-CULTURA»
(entrevista, Le Monde, 3 de Abril 2010)
[1] S. S.
João Paulo II, enc. Redemptor hominis, 4 de
Março de 1979, n. 14.
[2] «A Verdade é um Encontro» - Homilias em
Santa Marta, pelo Papa Francisco, Ed. Paulinas, ISBN 978-989-673-411-4[NdE]
[3] [NdE] Cf.
«O que é o Homem?», por Anselmo Borges, in blog "A SALA DE CIMA", 2
Out. 2015:
[4] Consultados
em 08 de Outubro de 2015 [NdE]: