Para
o judeo-cristianismo Deus nunca poderia ser um mistério, «uma questão», pois a
grande interrogação para as religiões proféticas é o "homem sofredor", que
Deus-Criador quis que passasse da condição de "ser submetido, mal
instalado, desconfortável" (Gn 1,2) a "senhor responsável" (Gn
1,26). É desta realidade – sofrida antes de ser misteriosa – que parte a
experiência bíblica, experiência que interroga o sentido do viver no concreto, o
sentido da nossa vida como Povo de quem Deus se abeira para dar a conhecer os Seus
planos. Se existe mistério na natureza é o mistério do sofrimento infligido
injustamente – contra a minha/tua vontade (Rm 7,19; Is 53,4) – para o qual
ainda não fora (à época do Génesis e, aparentemente, na nossa) encontrado
antídoto definitivo (o Génesis fora "escrito" em situação de
cativeiro na Babilónia).
O
homem, contando apenas com a sua determinação individual e a pretensão da força
do seu superego, parece não ter sido capaz de resolver de vez este aspecto
torturador da sua existência. Serão a
política, a economia, as ciências laboratoriais e a filosofia capazes de o
conseguir?
Este texto – genial – de Anselmo Borges ajuda a traçar as coordenadas de tal desafio.
Com ele se encerra este ciclo iniciado em 28 de Fevereiro de 2015 (em «A Sala de Cima» - CRISES NEO-LIBERAIS NO SÉC. XXI [Manfred Steger & Ravi Roy]) sobre a análise e a interpretação da bomba maldosa que sobre Portugal caiu com o início da governação austeritária-total ("além da troika"…) pelas mãos da coligação PSD-CDS. A Sala de Cima imaginou um Ꞌciclo de formação sociopolíticaꞋ (uma catequese…sobre os sinais dos tempos) com base em cerca de 27 textos seleccionados para tal. Este e os últimos três post’s, se observados bem de perto!, são já a transição que vai da análise económica pura e dura, da dimensão pessoal/psicológica da dominação/exploração económica para a «sugestão» cristã que depois deste ciclo se proporá como luz esperançosa para os povos, povos esmagados pela bota da ideologia neoliberal tão fortemente criticada por um Papa como nunca o fora até hoje por Papa algum, desde o nascimento da chamada «doutrina social da igreja» (que – na feliz expressão de frei Bento Domingues, op – deveria melhor ser designada por Ꞌdoutrina social dos PapasꞋ…).
Era precisa esta transição – estes quatro textos – pois o Homem… é um ser terrível, que vai desde a «bestia cupidíssima» ao «asceta da vida», como quem nunca sabe bem o que quer da sua existência nem dela nunca se satisfaz plenamente!
O mal nunca se fica apenas pela dimensão social: anda sempre «cá e lá», entre o relacional e o ípsico. Esta realidade – o mal estrutural e individual na figura da divergência que interroga o poder –, nem o mais feroz regime estalinista a conseguiu eliminar de vez, antes, requintando-se, disfarçou-a segregando barbárie[1].
É
perante este quadro que somos obrigados a encarar o trans- e o meta-histórico também
como terrenos da luta pela libertação humana e, por via disso, como espaços de
acabamento do Reino de Deus anunciado por Jesus de Nazaré.
«O corpo humano é corpo que
espera e que espera ilimitadamente, de tal maneira que há sempre um desnível
humanamente insuperável entre o que verdadeiramente se espera e o realmente
alcançado. Assim, a realização
última da esperança não pode dar-se intra-historicamente, mas apenas
meta-historicamente e enquanto participação no Sumo Bem
transcendente. Por isso, conclui Laín: se «o homem por natureza espera algo que
transcende a sua natureza» é porque «o natural, no
homem, é abrir-se ao trans-natural». O homem, finito no agir, é, por
causa da potentia
oboedientialis, tão sublinhada por Karl Rahner, ilimitadamente
aberto no receber. Assim, o corpo humano, na e pela sua própria dinâmica, é invocação
da Transcendência, que já não aparece em concorrência com as aspirações do
corpo, mas em resposta gratuita como dom às suas perguntas.
«Eu ainda não sou o que serei,
pois a minha história e a história do mundo ainda não estão encerradas. Se é
permitido esperar, com tudo o que a esperança implica de risco e de
empenhamento na transformação do mundo, é precisamente porque o processo do
mundo ainda não está decidido. Nem a matéria nem Deus mostraram ainda todas as
suas possibilidades. De qualquer modo, em última instância, a história do
mundo, portanto, a criação, lê-se essencialmente a partir do fim. Por isso, só no final da história o debate acerca
de Deus e, por conseguinte, acerca do sentido ou do sem sentido último da
realidade, terá termo. A verificação
última é escatológica.» (Anselmo Borges)
Para
um cristão nem tudo fica resolvido dentro dos limites do seu tempo histórico.
Muito fica por fazer pelas suas mãos… E, também, muito fica para lá da luta
política e dos modelos económicos. Há aí, nesse para lá, um vasto campo tão urgente quanto os outros, e por isso
tão real como os outros: a esperança ficaria coxa sem a inacção, sem a espera,
sem os silêncios que alargam o espaço a todo o tipo de liberdade até aos mais
inimagináveis, sem a "paciente espera histórica". Tento, aqui,
conjugar a linguagem da palavra que constrói história – e denuncia – com a
linguagem da comunhão que completa a história – e anuncia. Creio serem estas as
duas metades da pessoa humana, aquela que foi criada por Deus «à Sua imagem e
semelhança».
Quem
é o Homem?
Porque
estamos aqui?
Para
onde vamos?
Que
querem ou esperam os outros de nós?
O
que acontecerá a nós depois da nossa morte?
O
Universo, um dia, desintegrar-se-á também?
Se
sim, que sentido faz vivermos?
O
que é a felicidade?
Trazemos
esta angústia colada à pele: estas perguntas são anteriores à Ilíada
de Homero. São da Epopeia de Gilgamesh, rei de Uruk (Babilónia)… Inspiraram parte das narrativas bíblicas do
Livro do Génesis. Estas perguntas são fatais como o destino humano. «Que é que
vieste fazer na vida? (…) A tua vida integrou-se na economia de haver seres
viventes desde o homo sapiens até à
minhoca? Que é que vieste fazer na vida?» [Pensar
n. 175, Vergílio Ferreira] Perguntas antigas que esperam por uma resposta nossa.
Que
é que vieste aqui fazer?
O Pensador, RODIN |
O ENIGMA DA CONSTITUIÇÃO HUMANA
Segundo Pedro Laín Entralgo, em ordem ao
conhecimento científico e filosófico do homem, o melhor ponto de partida é o da
atenção à conduta humana. O chimpanzé,
seu primo afastado, sente (sente o mundo exterior e sente-se a si próprio),
recorda experiências passadas e utiliza-as, procura alimento, parceiro sexual,
etc., espera, se necessário, a oportunidade de encontrar o que busca, brinca e
joga com os membros da sua espécie, comunica com eles, pode aprender muitas
coisas novas (lembrar os casos famosos de Washoe
e Sarah) e pode, inclusivamente,
inventar instrumentos novos (são célebres, por exemplo, os chimpanzés de
Köhler, Kortland e Goodhall). Se também o homem sente, recorda, procura,
espera, joga, comunica, aprende e inventa, quais são as notas especificamente
humanas que o observador pode discernir no desempenho dessas actividades por
parte do homem, que mostram que o ser humano é qualitativa e essencialmente
distinto do animal? Entre essas notas, refiram-se as seguintes:
O livre arbítrio. O animal é conduzido pelo
instinto. Por isso, esfomeado, não se conterá perante a comida apropriada que
lhe apareça. Perante a fêmea, no período do cio, não resistirá. O homem, pelo
contrário, por motivos de ascese ou religiosos ou até pura e simplesmente para
mostrar a si próprio que se não deixa arrastar pelo impulso, é capaz de
conter-se, resistir e dizer não. Foi nesse sentido que Max Scheler escreveu que o homem
é «o asceta
da vida», o único animal capaz de dizer ꞋnãoꞋ aos impulsos instintivos. Assim, uma vez que o homem é capaz
de renunciar, abster-se, optar, é animal liberum e, por conseguinte, animal morale:
livre e moral.
A simbolização. Tanto o animal como o homem
comunicam com os seus semelhantes mediante signos. Mas só o homem comunica mediante símbolos.
Os signos e os símbolos são sinais, mas, enquanto o signo é o sinal que
manifesta a existência de algo distinto dele mas natural e directamente
relacionado com ele, os símbolos são sinais cuja significação foi estabelecida
por convenção dentro de um determinado grupo humano: por exemplo, a bandeira
nacional, a cruz… Portanto, só o homem é, como bem viu Cassirer, animal simbolicum ou, talvez melhor, animal
symbolizans. Precisamente porque é capaz de simbolizar, o homem é constitutivamente
animal
loquens: falante. E bastaria constatar a existência de um corpo que
fala para que surgisse a consciência do seu carácter enigmático.
A inconclusão. A acção do animal, uma vez
alcançado o seu termo, fica encerrada e concluída em si mesma: para o animal
não há propriamente o novo. Pelo contrário, com a excepção das raras
experiências do que se chama o «instante eterno», o homem, mesmo quando a sua acção
tem êxito, sente a necessidade de «mais» e «outra coisa». Há uma série de
expressões célebres, precisamente em conexão com esta abertura ilimitada da
realidade humana: "Mais, mais e cada vez mais; quero ser eu e, sem deixar
de sê-lo, ser também os outros…!" (Unamuno); citius, altius, fortius [lema olímpico]; o homem, bestia cupidissima rerum novarum, o
homem, "o eterno Fausto", "a pergunta é a forma suprema do
saber", "o homem é o único animal que pode prometer" (Santo
Agostinho, Scheler, Heidegger, Nietzsche, respectivamente). O homem nunca está
satisfeito (satis
factum, feito suficientemente), acabado. A inconclusão das suas
acções e de si mesmo manifesta que a sua temporalidade e o seu ser têm uma
estrutura essencialmente aberta, de tal modo que deve dizer-se que o homem é
simultaneamente animal
transcendens e animal inconclusum: transcendendo sempre e
nunca concluído.
O ensimesmamento. O animal move-se e
descansa, de tal modo que, quando não está em movimento, encontra-se em
repouso. Também o homem repousa. Mas mesmo o behaviourista objectivo pode
constatar que, por vezes, o aparente repouso é outra coisa: entrada dentro de
si próprio, descida à intimidade, à sua subjectividade pessoal.
A vida no real. Para o animal, o mundo
(melhor, o seu meio,
pois o animal propriamente não tem mundo) não passa de um conjunto de
estímulos. O homem, pelo contrário, dada a sua capacidade de distanciação, vive
no real, é um «animal
de realidades», como repeti Zubiri. Para ele, o mundo é um conjunto
de coisas reais, que têm por si mesmas a propriedade de estimular.
A pergunta. O casal Gardner, Premarck, etc.
conseguiram, por exemplo, ensinar chimpanzés a comunicar mediante sinais
gestuais ou objectos visualmente distintos entre si. Nunca se conseguiu, porém,
que um chimpanzé faça perguntas. O homem reconhece que o seu saber é limitado
e, por isso, pergunta, em ordem a superar esses limites: na pergunta, reconhece
ao mesmo tempo a sua indigência e a sua ilimitada esperança. De qualquer modo,
perguntar é parte característica e específica da conduta humana. O homem é animal quærens:
procura e pergunta ilimitadamente.
A criação. Os animais propriamente não
inventam. Mesmo quando o chimpanzé de Köhler encaixou as canas para chegar à
banana, tratou-se de um mecanismo de adaptação, e não de uma acção criadora. É
um facto da observação que há uma diferença essencial entre a inovação
do antropóide e a criação humana. Mediante a sua actividade criadora, o ser
humano produz novidades, que pode transmitir aos outros, de tal modo que a vida da
humanidade é autenticamente histórica, com mudanças qualitativas, e
não constante repetição. O homem é animal
creans, e é aliás esta capacidade criadora – também através da técnica –
que faz com que ele possa viver em qualquer meio que fisicamente o não destrua,
tornando-se assim animal panecológico.
O homem é animal instrumentificum, proiectivum, progrediens, labefeciens
(destruidor), sociale, historicum: o
homem é, por natureza, um ser histórico. E Laín volta uma e outra
vez ao que Sófocles, na Antígona,
disse do homem: o
mais maravilhoso-terrível do mundo.
O sorriso e a sepultura. Pode também
apresentar-se o riso, o sorriso e a sepultura como acções especificamente
humanas, essencialmente distintas do animal. De facto, o animal não ri nem
sorri e também não gasta tempo com os seus mortos. Pelo contrário, o homem tem os seus rituais funerários e não
abandona os mortos à morte. Pode mesmo dizer-se que, na gigantesca
história da evolução, o sinal indiscutível de que há homem são os rituais
mortuários: o homem é o animal sepeliens. A esta breve série de notas
específicas da conduta humana outras poderiam ainda acrescentar-se: a
capacidade do homem para o ódio, a admiração, a crueldade, a inveja, a extravagância
e o luxo, o amor de auto-doacção, o suicídio e outras mais, tais como, p. ex.,
o jogo, a esperança, o choro, a contemplação e a criação de beleza.
Pedro Laín Entralgo sublinha que todas
estas características são, independentemente de uma atitude explicativa ou
compreensiva, constatáveis por qualquer observador atento, já que se manifestam
na actividade do corpo, tal como este se oferece ao observador a partir de
fora. Não basta, porém, esta constatação: impõe-se, agora, explicar e
compreender o que se descreveu. Quando e como poderemos dizer que conhecemos
verdadeiramente o corpo humano, autor da conduta com estas notas específicas?
A partir de Dilthey, há duas vias que é
necessário percorrer: a da explicação (Erklären, Erklärung) e a
da compreensão
(Verstehen, Verständnis). Em que é que consistem uma e outra? No sentido
técnico, explicar uma coisa é
conhecê-la segundo as suas causas eficientes, ou seja, ter um conhecimento
objectivo, científico, dessa realidade, determinando os seus vários ꞋporquêsꞋ
e o ꞋcomoꞋ dos seus diversos
movimentos. Na compreensão, o
objectivo é conhecer uma coisa segundo as suas causas finais, o seu Ꞌpara quêꞋ, portanto, é captar o seu sentido e o seu
significado, desde que isso seja possível de modo racional ou razoável.
Impõe-se, portanto, o conhecimento da
conduta humana, mediante o recurso às diferentes ciências explicativas; mas a
mera explicação cientifico-objectiva não é de modo nenhum suficiente. É
necessária a sua compreensão.
O que seria, para nós, de facto, um sorriso ou um aperto de mão, reduzidos à
sua realidade objectivo-natural, portanto, sem a apreensão do seu significado e
sentido intencional? O que seria
cada um de nós sem a experiência de si mesmo interiormente vivida?
Ora, precisamente, essa experiência de mim mesmo dá-me a conhecer as
capacidades e notas da minha própria realidade, exigidas e implicadas na
descoberta do sentido do que sou e faço: a intimidade, a liberdade, a
responsabilidade, a vocação, a ideia de si mesmo, a actividade psíquica, a
posse pessoal do mundo, a inquietação, de tal modo que sou pessoa humana,
podendo dizer simultaneamente «eu sei o que sou» e «eu sei quem sou». E dado
que a auto e a hetero-compreensão se implicam e exigem uma à outra, concluirei
que cada
homem é pessoa ou está num processo de personalização.
Com a descrição, a explicação e a
compreensão da realidade do homem, ficamos a saber o que faz e como é.
Trata-se, agora, de tentar responder à pergunta: o
que é o homem? De modo mais explícito: para fazer tudo o que
realmente faz, para ser tal como realmente é, como é que tem que estar
constituído? Qual é a sua realidade constitutiva?
[…]
Anselmo Borges, padre
da Sociedade Missionária e professor jubilado de Filosofia e Antropologia Filosófica
na FLUC.
[pp. 18]
[1] Icek
Erlichson, «O Sabor do Paraíso»,
Bertrand Editora, 2013, ISBN 978-972-25-2717-0. «O dia-a-dia nos gulags
estalinistas».