teologia para leigos

2 de outubro de 2015

O QUE É O HOMEM? [ANSELMO BORGES]


Para o judeo-cristianismo Deus nunca poderia ser um mistério, «uma questão», pois a grande interrogação para as religiões proféticas é o "homem sofredor", que Deus-Criador quis que passasse da condição de "ser submetido, mal instalado, desconfortável" (Gn 1,2) a "senhor responsável" (Gn 1,26). É desta realidade – sofrida antes de ser misteriosa – que parte a experiência bíblica, experiência que interroga o sentido do viver no concreto, o sentido da nossa vida como Povo de quem Deus se abeira para dar a conhecer os Seus planos. Se existe mistério na natureza é o mistério do sofrimento infligido injustamente – contra a minha/tua vontade (Rm 7,19; Is 53,4) – para o qual ainda não fora (à época do Génesis e, aparentemente, na nossa) encontrado antídoto definitivo (o Génesis fora "escrito" em situação de cativeiro na Babilónia).

O homem, contando apenas com a sua determinação individual e a pretensão da força do seu superego, parece não ter sido capaz de resolver de vez este aspecto torturador da sua existência. Serão a política, a economia, as ciências laboratoriais e a filosofia capazes de o conseguir?

Este texto – genial – de Anselmo Borges ajuda a traçar as coordenadas de tal desafio.

 

Com ele se encerra este ciclo iniciado em 28 de Fevereiro de 2015 (em «A Sala de Cima» - CRISES NEO-LIBERAIS NO SÉC. XXI [Manfred Steger & Ravi Roy]) sobre a análise e a interpretação da bomba maldosa que sobre Portugal caiu com o início da governação austeritária-total ("além da troika"…) pelas mãos da coligação PSD-CDS. A Sala de Cima imaginou um Ꞌciclo de formação sociopolíticaꞋ (uma catequese…sobre os sinais dos tempos) com base em cerca de 27 textos seleccionados para tal. Este e os últimos três post’s, se observados bem de perto!, são já a transição que vai da análise económica pura e dura, da dimensão pessoal/psicológica da dominação/exploração económica para a «sugestão» cristã que depois deste ciclo se proporá como luz esperançosa para os povos, povos esmagados pela bota da ideologia neoliberal tão fortemente criticada por um Papa como nunca o fora até hoje por Papa algum, desde o nascimento da chamada «doutrina social da igreja» (que – na feliz expressão de frei Bento Domingues, op – deveria melhor ser designada por Ꞌdoutrina social dos PapasꞋ…).

 

Era precisa esta transição – estes quatro textos – pois o Homem… é um ser terrível, que vai desde a «bestia cupidíssima» ao «asceta da vida», como quem nunca sabe bem o que quer da sua existência nem dela nunca se satisfaz plenamente!

 

O mal nunca se fica apenas pela dimensão social: anda sempre «cá e lá», entre o relacional e o ípsico. Esta realidade – o mal estrutural e individual na figura da divergência que interroga o poder –, nem o mais feroz regime estalinista a conseguiu eliminar de vez, antes, requintando-se, disfarçou-a segregando barbárie[1].


É perante este quadro que somos obrigados a encarar o trans- e o meta-histórico também como terrenos da luta pela libertação humana e, por via disso, como espaços de acabamento do Reino de Deus anunciado por Jesus de Nazaré.

«O corpo humano é corpo que espera e que espera ilimitadamente, de tal maneira que há sempre um desnível humanamente insuperável entre o que verdadeiramente se espera e o realmente alcançado. Assim, a realização última da esperança não pode dar-se intra-historicamente, mas apenas meta-historicamente e enquanto participação no Sumo Bem transcendente. Por isso, conclui Laín: se «o homem por natureza espera algo que transcende a sua natureza» é porque «o natural, no homem, é abrir-se ao trans-natural». O homem, finito no agir, é, por causa da potentia oboedientialis, tão sublinhada por Karl Rahner, ilimitadamente aberto no receber. Assim, o corpo humano, na e pela sua própria dinâmica, é invocação da Transcendência, que já não aparece em concorrência com as aspirações do corpo, mas em resposta gratuita como dom às suas perguntas.

«Eu ainda não sou o que serei, pois a minha história e a história do mundo ainda não estão encerradas. Se é permitido esperar, com tudo o que a esperança implica de risco e de empenhamento na transformação do mundo, é precisamente porque o processo do mundo ainda não está decidido. Nem a matéria nem Deus mostraram ainda todas as suas possibilidades. De qualquer modo, em última instância, a história do mundo, portanto, a criação, lê-se essencialmente a partir do fim. Por isso, só no final da história o debate acerca de Deus e, por conseguinte, acerca do sentido ou do sem sentido último da realidade, terá termo. A verificação última é escatológica.» (Anselmo Borges)

Para um cristão nem tudo fica resolvido dentro dos limites do seu tempo histórico. Muito fica por fazer pelas suas mãos… E, também, muito fica para lá da luta política e dos modelos económicos. Há aí, nesse para lá, um vasto campo tão urgente quanto os outros, e por isso tão real como os outros: a esperança ficaria coxa sem a inacção, sem a espera, sem os silêncios que alargam o espaço a todo o tipo de liberdade até aos mais inimagináveis, sem a "paciente espera histórica". Tento, aqui, conjugar a linguagem da palavra que constrói história – e denuncia – com a linguagem da comunhão que completa a história – e anuncia. Creio serem estas as duas metades da pessoa humana, aquela que foi criada por Deus «à Sua imagem e semelhança».

Quem é o Homem?
Porque estamos aqui?
Para onde vamos?
Que querem ou esperam os outros de nós?
O que acontecerá a nós depois da nossa morte?
O Universo, um dia, desintegrar-se-á também?
Se sim, que sentido faz vivermos?
O que é a felicidade?

Trazemos esta angústia colada à pele: estas perguntas são anteriores à Ilíada de Homero. São da Epopeia de Gilgamesh, rei de Uruk (Babilónia)…  Inspiraram parte das narrativas bíblicas do Livro do Génesis. Estas perguntas são fatais como o destino humano. «Que é que vieste fazer na vida? (…) A tua vida integrou-se na economia de haver seres viventes desde o homo sapiens até à minhoca? Que é que vieste fazer na vida?» [Pensar n. 175, Vergílio Ferreira] Perguntas antigas que esperam por uma resposta nossa.

Que é que vieste aqui fazer?


O Pensador, RODIN




O ENIGMA DA CONSTITUIÇÃO HUMANA



Segundo Pedro Laín Entralgo, em ordem ao conhecimento científico e filosófico do homem, o melhor ponto de partida é o da atenção à conduta humana. O chimpanzé, seu primo afastado, sente (sente o mundo exterior e sente-se a si próprio), recorda experiências passadas e utiliza-as, procura alimento, parceiro sexual, etc., espera, se necessário, a oportunidade de encontrar o que busca, brinca e joga com os membros da sua espécie, comunica com eles, pode aprender muitas coisas novas (lembrar os casos famosos de Washoe e Sarah) e pode, inclusivamente, inventar instrumentos novos (são célebres, por exemplo, os chimpanzés de Köhler, Kortland e Goodhall). Se também o homem sente, recorda, procura, espera, joga, comunica, aprende e inventa, quais são as notas especificamente humanas que o observador pode discernir no desempenho dessas actividades por parte do homem, que mostram que o ser humano é qualitativa e essencialmente distinto do animal? Entre essas notas, refiram-se as seguintes:

O livre arbítrio. O animal é conduzido pelo instinto. Por isso, esfomeado, não se conterá perante a comida apropriada que lhe apareça. Perante a fêmea, no período do cio, não resistirá. O homem, pelo contrário, por motivos de ascese ou religiosos ou até pura e simplesmente para mostrar a si próprio que se não deixa arrastar pelo impulso, é capaz de conter-se, resistir e dizer não. Foi nesse sentido que Max Scheler escreveu que o homem é «o asceta da vida», o único animal capaz de dizer ꞋnãoꞋ aos impulsos instintivos. Assim, uma vez que o homem é capaz de renunciar, abster-se, optar, é animal liberum e, por conseguinte, animal morale: livre e moral.

A simbolização. Tanto o animal como o homem comunicam com os seus semelhantes mediante signos. Mas só o homem comunica mediante símbolos. Os signos e os símbolos são sinais, mas, enquanto o signo é o sinal que manifesta a existência de algo distinto dele mas natural e directamente relacionado com ele, os símbolos são sinais cuja significação foi estabelecida por convenção dentro de um determinado grupo humano: por exemplo, a bandeira nacional, a cruz… Portanto, só o homem é, como bem viu Cassirer, animal simbolicum ou, talvez melhor, animal symbolizans. Precisamente porque é capaz de simbolizar, o homem é constitutivamente animal loquens: falante. E bastaria constatar a existência de um corpo que fala para que surgisse a consciência do seu carácter enigmático.

A inconclusão. A acção do animal, uma vez alcançado o seu termo, fica encerrada e concluída em si mesma: para o animal não há propriamente o novo. Pelo contrário, com a excepção das raras experiências do que se chama o «instante eterno», o homem, mesmo quando a sua acção tem êxito, sente a necessidade de «mais» e «outra coisa». Há uma série de expressões célebres, precisamente em conexão com esta abertura ilimitada da realidade humana: "Mais, mais e cada vez mais; quero ser eu e, sem deixar de sê-lo, ser também os outros…!" (Unamuno); citius, altius, fortius [lema olímpico]; o homem, bestia cupidissima rerum novarum, o homem, "o eterno Fausto", "a pergunta é a forma suprema do saber", "o homem é o único animal que pode prometer" (Santo Agostinho, Scheler, Heidegger, Nietzsche, respectivamente). O homem nunca está satisfeito (satis factum, feito suficientemente), acabado. A inconclusão das suas acções e de si mesmo manifesta que a sua temporalidade e o seu ser têm uma estrutura essencialmente aberta, de tal modo que deve dizer-se que o homem é simultaneamente animal transcendens e animal inconclusum: transcendendo sempre e nunca concluído.

O ensimesmamento. O animal move-se e descansa, de tal modo que, quando não está em movimento, encontra-se em repouso. Também o homem repousa. Mas mesmo o behaviourista objectivo pode constatar que, por vezes, o aparente repouso é outra coisa: entrada dentro de si próprio, descida à intimidade, à sua subjectividade pessoal.

A vida no real. Para o animal, o mundo (melhor, o seu meio, pois o animal propriamente não tem mundo) não passa de um conjunto de estímulos. O homem, pelo contrário, dada a sua capacidade de distanciação, vive no real, é um «animal de realidades», como repeti Zubiri. Para ele, o mundo é um conjunto de coisas reais, que têm por si mesmas a propriedade de estimular.

A pergunta. O casal Gardner, Premarck, etc. conseguiram, por exemplo, ensinar chimpanzés a comunicar mediante sinais gestuais ou objectos visualmente distintos entre si. Nunca se conseguiu, porém, que um chimpanzé faça perguntas. O homem reconhece que o seu saber é limitado e, por isso, pergunta, em ordem a superar esses limites: na pergunta, reconhece ao mesmo tempo a sua indigência e a sua ilimitada esperança. De qualquer modo, perguntar é parte característica e específica da conduta humana. O homem é animal quærens: procura e pergunta ilimitadamente.

A criação. Os animais propriamente não inventam. Mesmo quando o chimpanzé de Köhler encaixou as canas para chegar à banana, tratou-se de um mecanismo de adaptação, e não de uma acção criadora. É um facto da observação que há uma diferença essencial entre a inovação do antropóide e a criação humana. Mediante a sua actividade criadora, o ser humano produz novidades, que pode transmitir aos outros, de tal modo que a vida da humanidade é autenticamente histórica, com mudanças qualitativas, e não constante repetição. O homem é animal creans, e é aliás esta capacidade criadora – também através da técnica – que faz com que ele possa viver em qualquer meio que fisicamente o não destrua, tornando-se assim animal panecológico. O homem é animal instrumentificum, proiectivum, progrediens, labefeciens (destruidor), sociale, historicum: o homem é, por natureza, um ser histórico. E Laín volta uma e outra vez ao que Sófocles, na Antígona, disse do homem: o mais maravilhoso-terrível do mundo.

O sorriso e a sepultura. Pode também apresentar-se o riso, o sorriso e a sepultura como acções especificamente humanas, essencialmente distintas do animal. De facto, o animal não ri nem sorri e também não gasta tempo com os seus mortos. Pelo contrário, o homem tem os seus rituais funerários e não abandona os mortos à morte. Pode mesmo dizer-se que, na gigantesca história da evolução, o sinal indiscutível de que há homem são os rituais mortuários: o homem é o animal sepeliens. A esta breve série de notas específicas da conduta humana outras poderiam ainda acrescentar-se: a capacidade do homem para o ódio, a admiração, a crueldade, a inveja, a extravagância e o luxo, o amor de auto-doacção, o suicídio e outras mais, tais como, p. ex., o jogo, a esperança, o choro, a contemplação e a criação de beleza.

Pedro Laín Entralgo sublinha que todas estas características são, independentemente de uma atitude explicativa ou compreensiva, constatáveis por qualquer observador atento, já que se manifestam na actividade do corpo, tal como este se oferece ao observador a partir de fora. Não basta, porém, esta constatação: impõe-se, agora, explicar e compreender o que se descreveu. Quando e como poderemos dizer que conhecemos verdadeiramente o corpo humano, autor da conduta com estas notas específicas?

A partir de Dilthey, há duas vias que é necessário percorrer: a da explicação (Erklären, Erklärung) e a da compreensão (Verstehen, Verständnis). Em que é que consistem uma e outra? No sentido técnico, explicar uma coisa é conhecê-la segundo as suas causas eficientes, ou seja, ter um conhecimento objectivo, científico, dessa realidade, determinando os seus vários Ꞌporquês e o ꞋcomoꞋ dos seus diversos movimentos. Na compreensão, o objectivo é conhecer uma coisa segundo as suas causas finais, o seu para quê, portanto, é captar o seu sentido e o seu significado, desde que isso seja possível de modo racional ou razoável.

Impõe-se, portanto, o conhecimento da conduta humana, mediante o recurso às diferentes ciências explicativas; mas a mera explicação cientifico-objectiva não é de modo nenhum suficiente. É necessária a sua compreensão. O que seria, para nós, de facto, um sorriso ou um aperto de mão, reduzidos à sua realidade objectivo-natural, portanto, sem a apreensão do seu significado e sentido intencional? O que seria cada um de nós sem a experiência de si mesmo interiormente vivida? Ora, precisamente, essa experiência de mim mesmo dá-me a conhecer as capacidades e notas da minha própria realidade, exigidas e implicadas na descoberta do sentido do que sou e faço: a intimidade, a liberdade, a responsabilidade, a vocação, a ideia de si mesmo, a actividade psíquica, a posse pessoal do mundo, a inquietação, de tal modo que sou pessoa humana, podendo dizer simultaneamente «eu sei o que sou» e «eu sei quem sou». E dado que a auto e a hetero-compreensão se implicam e exigem uma à outra, concluirei que cada homem é pessoa ou está num processo de personalização.

Com a descrição, a explicação e a compreensão da realidade do homem, ficamos a saber o que faz e como é. Trata-se, agora, de tentar responder à pergunta: o que é o homem? De modo mais explícito: para fazer tudo o que realmente faz, para ser tal como realmente é, como é que tem que estar constituído? Qual é a sua realidade constitutiva? […]

Anselmo Borges, padre da Sociedade Missionária e professor jubilado de Filosofia e Antropologia Filosófica na FLUC.

[pp. 18]




[1] Icek Erlichson, «O Sabor do Paraíso», Bertrand Editora, 2013, ISBN 978-972-25-2717-0. «O dia-a-dia nos gulags estalinistas».