COMO A DESIGUALDADE SE ENTRANHA NA PELE
«É
bem certo que cada homem traz no
olhar
a
indicação exacta da posição que ocupa
na
imensa escala dos homens.
E estamos sempre a aprender a ler esse olhar.»
(Ralph Waldo Emerson, «A Conduta
da Vida»).
Como
se explica que sejamos tão fortemente marcados pela desigualdade e pela nossa
posição no seio da sociedade, como sugerem os dados apresentados no capítulo
anterior [«Pobreza ou Desigualdade?»]?
Antes de explorarmos — nos nove capítulos seguintes — as relações entre a
desigualdade e uma ampla gama de problemas sociais, nomeadamente os problemas
incluídos no nosso índice de problemas sociais e de saúde, tentaremos explicar
por que
razão os seres humanos são, provavelmente, tão sensíveis à desigualdade.
Como
a desigualdade é um aspecto da estrutura ampla das sociedades, as explicações
dos seus efeitos implicam mostrar como os indivíduos são afectados pela
estrutura social. São as pessoas, e não as sociedades em si, que têm saúde
deficiente, que são violentas e se tornam mães adolescentes. Embora as pessoas
não usufruam de uma distribuição de rendimentos, dispõem, no entanto, de um
rendimento relativo, de um estatuto social ou posição de classe na sociedade em
geral. Por conseguinte, neste capítulo iremos mostrar como a nossa sensibilidade individual em
relação à sociedade em geral explica por que razão as sociedades
mais desiguais talvez tenham efeitos tão profundos.
Compreender
a nossa vulnerabilidade à desigualdade
implica discutir algumas das nossas características psicológicas comuns. Quando
falamos ou escrevemos acerca destas questões, é muito frequente as pessoas
interpretarem mal o nosso propósito. Não estamos a sugerir que o problema se
reduz a uma questão de psicologia individual, nem que é realmente a própria
sensibilidade das pessoas, e não a escala da desigualdade, que deveria ser
mudada. A solução para os problemas causados pela desigualdade não radica numa
psicoterapia em massa destinada a tornar todas as pessoas menos vulneráveis. A
melhor forma de lidar com os danos causados por altos níveis de desigualdade
seria reduzir a própria desigualdade. Em vez de se mandar dissolver medicamentos ansiolíticos no
sistema público de abastecimento de água ou de recorrer a uma psicoterapia em
massa, o elemento mais entusiasmante do quadro que apresentamos é que a
redução da desigualdade aumentaria o bem-estar e a qualidade de vida de todos
nós. Longe de ser inevitável e imparável, a sensação de deterioração do
bem-estar social e da qualidade das relações sociais na sociedade é, de facto, reversível. Compreender os
efeitos da desigualdade implica implementar medidas políticas imediatas para
fomentar o bem-estar das sociedades como um todo.
Os
poderosos mecanismos que tornam as pessoas sensíveis à desigualdade não são
passíveis de ser compreendidos apenas em termos de estrutura social ou de
psicologia individual. A psicologia individual e a desigualdade
social relacionam-se uma com a outra como uma chave e uma fechadura.
Uma das razões por que os efeitos da desigualdade não foram anteriormente
compreendidos de forma adequada deve-se ao fracasso em compreender a relação
entre ambos os factores.
O aumento da ansiedade
Tendo
em conta o conforto material e a comodidade física sem precedentes das
sociedades modernas, talvez seja sensato adoptar um certo cepticismo em relação
à forma como todas as pessoas falam do stresse, como se a vida fosse
dificilmente suportável. No entanto, Jean Twenge, uma psicóloga da Universidade
Estadual de San Diego, compilou provas impressionantes de que somos hoje
realmente muito mais ansiosos do que costumávamos ser. Ao analisar o vasto
número de estudos sobre os níveis de ansiedade na população realizados em datas
diferentes, foi capaz de documentar tendências muito claras. Descobriu 269 estudos
amplamente comparáveis que mediam os níveis de ansiedade nos EUA em vários
períodos entre
1952 e 1993[1].
O conjunto desses estudos abrangeu mais de 52 mil indivíduos e revelou uma
contínua tendência ascendente ao longo desse período de quarenta anos. Os
resultados de Jean Twenge para os homens e para as mulheres são apresentados na
figura 3.1. Cada ponto no gráfico mostra o nível médio de ansiedade apurado num
estudo posterior à data da sondagem efectuada. A tendência ascendente presente em tantos
estudos é inequívoca. Twenge descobriu o mesmo padrão tanto em
estudantes universitários como em crianças: o estudante universitário médio
estava no final desse período mais ansioso do que 85% da população no início
desse mesmo período; e, mais impressionante ainda, no final da década de 1980 a
criança norte-americana média estava mais ansiosa do que as crianças que eram
pacientes psiquiátricos na década de 1950.
Estas
provas resultaram da aplicação de medidas padronizadas da ansiedade às amostras
da população. E não podem ser facilmente explicadas dizendo que as pessoas se
tornaram mais conscientes da ansiedade. Esta tendência de agravamento também se
encaixa nos resultados relativos a condições médicas similares como a
depressão. A depressão e a ansiedade estão intimamente
relacionadas: as pessoas que sofrem de uma também sofrem amiúde da outra e os
psiquiatras tratam por vezes as duas condições médicas de forma similar. Existe
hoje um enorme conjunto de estudos que mostram aumentos substanciais nas taxas
de depressão nos países desenvolvidos. Alguns estudos analisaram as mudanças
ocorridas ao longo dos últimos cinquenta anos por via da comparação das
experiências das diferentes gerações, mas tentando sempre evitar a armadilha de
atribuir essa maior consciência da depressão ao número crescente de relatos
relativos a estados de depressão[2].
Outros investigadores compararam as taxas incluídas em estudos que acompanharam
amostras representativas da população nascida em anos diferentes. Na
Inglaterra, por exemplo, a taxa da depressão entre pessoas com cerca de 25 anos
era o
dobro da taxa de depressão
num estudo de cerca de 10 mil nascidas em 1970 em comparação com um estudo
similar realizado anteriormente entre pessoas com cerca de 25 anos nascidas em
1958[3].
As
análises das investigações concluíram que em muitos países desenvolvidos as
pessoas experienciaram aumentos substanciais na ansiedade e na depressão. Entre
os adolescentes, a ansiedade e a depressão vinham também acompanhadas de
aumentos na frequência de problemas comportamentais – nomeadamente
criminalidade, alcoolismo e toxicodependência[4],[5].
Estes problemas afectavam adolescentes do «sexo masculino e feminino de todas
as classes sociais e de todos os tipos de famílias»[6].
É
importante compreender o que significam estes aumentos na taxa de ansiedade
antes de a sua relevância se tornar clara para a desigualdade. Não estamos a
sugerir que tais aumentos foram desencadeados pelo aumento da desigualdade.
Essa possibilidade pode ser descartada, porque os aumentos nas taxas de
incidência da ansiedade e da depressão parecem ter começado muito antes dos
aumentos na desigualdade que ocorreram em muitos países durante o último quarto
do século XX. (É no entanto possível que as tendências de 1970 e 1990 possam
ter sido agravadas pelo aumento da desigualdade.)
Auto-estima e
insegurança social
Uma
pista importante sobre os factores subjacentes às tendências na saúde mental
provém de provas que referem que tais factores vieram acompanhados de um
aumento surpreendente naquilo que de início se pensou ser a auto-estima. Quando
comparadas ao longo do tempo (muito à semelhança da forma como as tendências na
ansiedade são mostradas na figura 3.1), as medidas-padrão da auto-estima
revelaram também uma clara tendência ascendente a longo prazo. Como se, apesar
dos crescentes níveis de ansiedade, as pessoas também estivessem a encarar-se
de forma mais positiva no decurso do tempo. Por exemplo, havia mais
probabilidades de se afirmarem orgulhosas de si próprias; de concordarem com
afirmações como «Sou uma pessoa com valor»; e pareciam ter posto de lado
questões de insegurança pessoal e sentimentos de que eram pessoas «inúteis» ou
«sem nenhum valor». Twenge refere que na década de 1950 apenas 12% dos
adolescentes concordavam com a afirmação «Sou uma pessoa importante», mas que,
no final da década de 1980, esta proporção tinha subido para 80%.
Sendo assim, o que teria acontecido
durante esse período intermédio entre as décadas de 1950 e 1980? O facto de as
pessoas (…)»
Richard Wilkinson & Kate Pickett,
in «O Espírito da Igualdade – por que
razão sociedades mais igualitárias funcionam quase sempre melhor»,
Editorial Presença 1ª Edição Lisboa, Abril 2010.
Richard
Wilkinson – professor de História Económica e de Epidemiologia [Universidade de
Nottingham/Medical School e na University College London]
Kate
Pickett – antropóloga-bióloga, cientista em Nutrição e em Epidemiologia
[professora na Universidade de York, investigadora no National Institute for
Health Research]
[pp. 15]
[1]
J. M. Twenge, «The age of
anxiety? Birth cohort change in anxiety and neuroticism, 1952-1993»,
Journal of Personality and Social
Psychology (2007), 79 (6): 1007-21.
[2] M. Rutter e D. J. Smith, «Psychosocial Disorders in Young People: Time Trends and
Their Causes», Chincester: Wiley, 1995.
[3] S. Collishaw, B. Maughan, R.
Goodman e A. Pickles, «Time trends in
adolescent mental health», Journal
of Child Psychology and Psychiatry (2004), 45 (8): 1350-62.
[4] Ibidem, M. Rutter e D. J. Smith, «Psychosocial Disorders in Young People:
(…)
[5] B. Maughan, A. C. Iervolino e S.
Collishaw, «Time trends in adolescent mental disorders»,
Current Opinion in Psychiatry (2005),
18 (4): 381-5.
[6] Ibidem, S. Collishaw, B. Maughan, R.
Goodman e A. Pickles, «Time trends in
adolescent mental health», (…)