teologia para leigos

10 de julho de 2015

LÓGICA DA COMUNIDADE contra LÓGICA DO MERCADO




OS PRESSUPOSTOS DO ESTADO SOCIAL
que, no Portugal do PS-PSD-CDS, está ameaçado

"No hay interpretación posible sin presupuestos previos, como no hay reflexión filosófica sin ellos. La pretensión de comenzar desde cero es un autoengaño, si no se trata de un ardid ideológico para ocultar los propios presupuestos. Lo importante es aclarar siempre los propios presupuestos, fundamentarlos en lo posible y mantener siempre la actitud vigilante." [Rubén Dri, Los caminos de la Racionalidad]

"Ouvi, meus irmãos: porventura não escolheu Deus os pobres para serem os herdeiros do Reino?" [Carta de Tiago 2,5]

"Não coloqueis prioridade nos vossos interesses pessoais, mas adoptai, todos e cada um, exactamente os interesses dos outros." [Carta aos de Filipo 2,4]

"Conheceis bem a bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo que, sendo rico, se fez pobre por vós, para vos enriquecer com a sua pobreza." [2ª Carta aos de Corinto 8,9]

"A existência de pobres indica até que ponto a riqueza é injusta e, portanto, ilegítima. A opção pelos pobres é um chamamento à emancipação. Toda a emancipação está permeada pela opção pelos pobres, a qual diz respeito a toda a sociedade. Não há emancipação de alguns sem que haja uma mudança de todos." [F. Hinkelammert]


«Há na teologia da libertação um antecedente que me parece importante ser mencionado. Trata-se de um livro publicado em 1980 pelo DEI (Departamento Ecuménico de Investigações, São José, Costa Rica) sob o título "La lucha de los dioses" […]. O livro de Jorge Pixley tem um fio condutor que está presente em toda a sua argumentação. É a opção pelos pobres. Porém, o livro concede-lhe um carácter específico, que, hoje, efetivamente importa destacar.

Eu poderia resumir isso do seguinte modo: Deus é Deus de todos, ricos e pobres, e justamente por isso é necessário fazer a opção pelos pobres. Perante esta opção pelos pobres, não estamos diante de uma parcialidade. Deus não defende os interesses de um grupo. Pelo contrário, se não houvesse a opção pelos pobres, Deus seria um Deus parcial, a favor dos ricos. Uma igualdade diante de Deus só pode ocorrer através da opção pelos pobres. Caso contrário, essa igualdade é uma opção (encoberta) pelos ricos: transforma-se em opção contra os pobres. De igual forma, para que sejamos iguais diante de Deus, temos de fazer a opção pelos pobres. Deus só poderá ser o Deus de todos se fizer a opção pelos pobres.

«Isto implica com toda a sociedade. Tal facto revela-se como um critério sobre a legitimidade da riqueza e da sua apropriação. Na medida em que há pobres, todo o sistema de apropriação da riqueza é injusto. A existência de pobres indica até que ponto a riqueza é injusta e, portanto, ilegítima. Por isso, a opção pelos pobres não é uma opção pelos interesses de um grupo. A sociedade terá que fazer essa opção a fim de ser transformada a tal ponto que possa, então, enfrentar a pobreza e assumir realisticamente a opção pelos pobres. Neste sentido, a opção pelos pobres é um chamamento à emancipação. Toda a emancipação está permeada pela opção pelos pobres, a qual diz respeito a toda a sociedade. Não há emancipação de alguns sem que haja uma mudança de todos. A opção pelos pobres mostra, ao mesmo tempo, uma opção dos pobres por si mesmos e de toda a sociedade por eles. Contudo, como essa opção só raramente atinge ao mesmo tempo a sociedade no seu todo, a opção pelos pobres e o seu realismo tornam-se conflituosos. O critério da maioria não pode ser a última palavra, a última instância.

«Isto é algo muito diferente da fraseologia dos poderes da estratégia da globalização, que fala da solução da pobreza através da sua "focalização". Uma sociedade que produza pobreza permanece intocada, mas, no entanto, ela faz-se acompanhar a si mesma do falso canto da luta contra a pobreza. O resultado é que essa pretensa luta contra a pobreza - por parte dos governos e das instituições internacionais - não é capaz de apresentar resultados.

«Essa análise do Deus que opta pelos pobres leva Jorge Pixley a ver Deus como um Deus desdobrado. Esse desdobramento de Deus já permeou toda a sua obra anterior e, neste volume ["O Deus libertador na Bíblia – teologia da libertação e filosofia processual", Ed. Paulus, ISBN 978-85-349-2168-8], ele é sintetizado. Deus surge com duas faces. Mencionemos, apenas, alguns casos: o Deus de David e o Deus das tribos, o Deus dos amigos de Job e o Deus de Job, o Deus absoluto e o Deus concreto e relativo, o Deus fora da história e o Deus na história, o Deus da Lei e o Deus de Jesus. Mas Jorge Pixley não constrói dualismos. Não se trata de dois deuses em luta entre si, nada havendo de maniqueísmo nesses desdobramentos. Estamos diante do seguinte facto: Deus é visto diferentemente consoante é visto a partir do poder ou a partir dos pobres. O poder tende a ver Deus sem opção pelos pobres, enquanto o Deus da opção pelos pobres é visto como estando ao lado dos explorados, ao lado dos ultrajados na história

Franz Hinkelammert (comentário), São José, Costa Rica.






CONCEBER O ESTADO SOCIAL



Entendimentos e desentendimentos do Estado Social

Não há uma só maneira de conceber o Estado Social. Este pode ser pensado como um conjunto de instituições idealizadas para que ninguém numa sociedade caia abaixo dum nível de vida decente, respondendo às emergências da pobreza e da doença, mas também aos problemas dos mais vulneráveis na sociedade, como as crianças e os idosos. Este é um Estado Social do amparo, cujo desenho depende do que se considere serem mínimos aceitáveis, o que variará consoante as circunstâncias históricas em que uma sociedade vive e a perceção nela partilhada do que serão esses mínimos. Certamente, está em causa, para uma sociedade, não se permitir o que a fere mortalmente — atingir os órfãos, as viúvas, os estrangeiros, os mais vulneráveis. Mas, além destes mínimos de decência moral, talvez menos variáveis, podem estar em causa outros mínimos de rendimento de subsistência dentro de uma sociedade. Ou mínimos esperados na escolarização, ou ainda nos cuidados de saúde. Para a definição desses mínimos, importarão as representações dominantes na sociedade, mas também a sua maior ou menor condição próspera. Apesar de tudo o que nele permanece variável, podemos ainda assim dizer que este entendimento do Estado Social é o do assistencialismo.

Com esta conceção compete uma outra visão do Estado social que, muito diversamente, defende a implicação do Estado, sem definição de mínimos prévios, na concretização de um entendimento adquirido do que é uma boa sociedade humana. Mais particularmente: o entendimento geral de uma sociedade mais igual é uma sociedade melhor. Em vista deste objetivo, o Estado procura maximizar a igualdade de oportunidades, através da materialização de instituições e meios que garantam a melhor educação e a melhor saúde possível para o maior número possível, sob o princípio de uma universalidade do direito de acesso a esses bens sociais, mas também, além das áreas sectoriais do Estado social, através de políticas fiscais que materializem o princípio da progressividade nos impostos e, mais geralmente, de políticas comummente designadas como políticas redistributivas que limitem ou condicionem a desigualdade de rendimentos.

Esta dupla perspectiva, uma de mínimos a garantir e outra de máximos a perseguir, não tem necessariamente de significar a oposição entre um Estado social pobre e outro rico. O assistencialismo pode fixar mínimos mais altos, através, por exemplo, de subsídios de desemprego elevados e duradouros, especialmente se a sociedade é próspera o suficiente para os sustentar. E, em contrapartida, Estados sociais muito empenhados na maximização de um modo de organização da sociedade mais igual podem ser paupérrimos. O que desde logo significa que não são as maiores ou menores dificuldades de financiamento por que possa passar o Estado social que estipulam o assistencialismo como uma necessidade ou uma escolha forçada. A escolha entre o assistencialismo – enquanto conjunto de funções sociais do Estado dirigidas dominante ou exclusivamente aos cidadãos vulneráveis de uma sociedade – e uma construção comunitária de alcance universal é, no fundamental, uma escolha política da sociedade sobre o tipo de comunidade concreta que quer ser, designadamente, se quer ou não organizar conjuntamente aspetos importantes da sua vida, seja aqueles que implicam um maior sentido de equidade para cada um dos cidadãos – como os que dizem respeito à saúde – seja aqueles de que a capacitação da sociedade depende diretamente – como os que dizem respeito à educação.

Estas distinções dão voz, de facto, àquelas que, no âmbito da teoria política, se costumam fazer a respeito da noção de liberdade política. O filósofo Isaiah Berlin tornou célebre uma distinção entre ser livre de – liberdade negativa que liberta os indivíduos mais do que os empenha – e ser livre para – liberdade positiva que os compromete num projecto de emancipação. Tal como estes dois entendimentos da liberdade política são sobretudo sensíveis à simpatia ou à aversão pela pretensão programática, também os dois entendimentos de Estado Social, que tipificámos acima, se demarcam um do outro sobretudo por razões de compromisso, ou não, com uma dimensão programática.

Clarificadas estas distinções conceptuais, importa em seguida notar dois aspetos relacionados com o nosso país. Em primeiro lugar, o Estado social que se implantou em Portugal desde 1974, caraterizado pelos valores da universalidade, da igualdade de acesso e da solidariedade, foi um Estado social programático. Portugal apostou em ser um Estado social, intrínseca e não acessoriamente, implicado nas suas funções sociais. Em primeiro lugar, as transformações abruptas a que tem sido sujeito o Estado social desde que as políticas de austeridade vigoram em Portugal obstam a esse compromisso de regime, sem que, no entanto, o regime e os seus compromissos democráticos tenham sido rejeitados e alterados. Esta ação decorre diretamente dos constrangimentos orçamentais determinados pelo Memorando de Entendimento de Maio de 2011, mas não menos de um conjunto de imputações sistematicamente feitas ao Estado social e que visam claramente a sua desvalorização, ou mesmo a suspeição sobre a sua pertinência. Com efeito, o argumento recorrente de que "o serviço público faz pior do que o privado" — de que, por exemplo, as administrações hospitalares privadas conseguem uma melhor racionalização dos meios públicos empenhados, ou a de que as escolas públicas, alegadamente mais dispendiosas para o erário público, nem sequer conseguem competir em termos de qualidade com os colégios privados — não se limita a questionar que tipo de Estado social se quer para o país - se programático ou assistencialista - mas, a montante dessa escolha, põe em causa o alicerce de qualquer um destes entendimentos do Estado social. Com efeito, é o próprio princípio de uma provisão pública para a gestão pública de bens sociais que é contestado.

A partir desta contestação, que faz do Estado social, na melhor das hipóteses, um mal necessário, a opção defendida é transferir para a lógica do mercado todas as componentes do Estado social que possam adequar-se a ela. Em conformidade com esta perspetiva, ou se elimina a provisão pública para bens sociais, entregando-os por inteiro à iniciativa privada, ou se mantém alguma provisão pública para certos bens sociais mas, em todo o caso, sob gestão privada e em concorrência com a oferta privada dos mesmos bens no mercado.

A proposta é, então, o Estado retirar-se da organização e gestão dos bens sociais na exata proporção em que ceda o lugar organizador ao mercado. A mercantilização não significa necessariamente que o Estado abdique de desempenhar funções sociais. Aliás, nem sequer significa, pelo menos de um ponto de vista conceptual, que abdique de qualquer uma das perspetivas focadas, seja programática ou assistencialista. Com efeito, o Estado pode dispensar, por crer nas maiores virtudes organizadoras do mercado, esse papel, e, contudo, salvaguardar e até concentrar-se no seu papel redistributivo, designadamente através de uma fiscalidade notoriamente progressiva e de políticas de apoio social.

Este tipo de ponto de vista é, contudo, profundamente pernicioso. Fundamentalmente, em vez de dispensar o mercado em matérias sociais sensíveis, ou ao menos pô-lo ao serviço do Estado social, pelo contrário põe o Estado social na dependência do mercado e da iniciativa privada. Em vez de aliviada, a dependência do Estrado é agudizada. Esta inversão da ordem dos meios e dos fins, com vincada vassalagem do Estado social aos critérios e condicionalismos inerentes à lógica de mercado, redunda em deixar o Estado social nas mãos de uma iniciativa privada cuja racionalidade intrínseca tem como critério reitor das decisões alcançar-se rendibilidades satisfatórias no quadro geral de uma atividade concorrencial em vista do maior rendimento possível. Este, por princípio, é um critério […].

André Barata


[pp. 17]