O
catolicismo europeu do século XIX deixou-se enredar numa falsa questão e acabou vítima desse
seu "erro modernista": os filhos dos «pensadores de 1789» tinham como
meta «o desterro de Deus para fora da existência humana», o que fazia antever
uma civilização que, segundo Candide
de Voltaire, separava Deus do Homem. De facto, no Jardim de Candide não se encontra nenhum templo ou
capela, na medida em que a questão já não é a relação do Homem com Deus, mas do
Homem com o Mundo: a indústria passa a ocupar o lugar da oração e Deus, sem ser
propriamente suprimido, é afastado. (Josep Hereu i Bohigas, «Ilustración, Revolución, Romanticismo y
Cristianismo»). Perante essa nascente "comunidade de valores" que
apela ao secularismo, à humanidade, ao cosmopolitismo e à liberdade, a Igreja
católica tranca-se a sete chaves por trás dos conceitos de autoridade e hierarquia.
A Igreja confunde a mensagem central de Jesus (As Bem-aventuranças) com uma questão filosófica, agora ameaçada:
"Deus como conceito filosófico estruturante" e não como Projecto de
Vida Plena, como insurreição ética questionadora de toda a injustiça. A Igreja aceita
alinhar, assim, na torrente do século XIX, que, segundo D’Alembert, é o século da
filosofia. Este é o grande erro da Igreja católica: confundir Deus
com um conceito, esquecendo a referência à mediação histórica da mensagem por
parte de Jesus de Nazaré («Ninguém pode ir até ao Pai senão por mim.
Se ficastes a conhecer-me, conhecereis também o meu Pai.», Jo 14,6-7).
Hoje
em dia, século XXI, – em plena «austeridade destrutiva» do PS-PSD-CDS
– a Igreja continua a portar-se como instituição que tenta, a todo o custo,
reconquistar a sua influência institucional dando-se com Deus e com o Diabo. É
o que também acontece com a sua actividade no âmbito do "ensino" em
Portugal: colégios, escolas, institutos e vários pólos universitários
católicos. Indiferente às questões gravíssimas que lhe subjazem, a Igreja
católica prossegue a sua acção missionária concorrendo com o ensino público.
Impressiona-me que não se auto-questione se é essa a missão que Jesus Cristo
lhe inspira no século XXI. São públicos os ganhos de imagem social que a Igreja
recolhe por via dos famigerados rankings, bem como a competição desprovida de
qualquer sentido evangélico pelo número de alunos que se consegue meter em
medicina…
A
abrir o ano lectivo de 2011-2012, perante uma numerosa assembleia de
encarregados de educação (onde eu, por direito próprio, também estava), o padre
Taveira, director do antigo Colégio dos Órfãos[1],
anunciava (entre outras advertências, p. ex.: proibição absoluta de uso de leggings, do uso de calções-curtos para as
meninas, etc.) que, no ano anterior, tinha conseguido «meter em medicina um
aluno» e que esperava incrementar essa pretensão! E aproveitava para nos
apresentar o padre-ecónomo, que viera visitar o Colégio, para dotá-lo de
infra-estruturas «que fariam dele a melhor escola da cidade do Porto»[2]!
O
espírito de competitividade, a selecção da população inscrita a partir do seu
poder de compra, a cultura da imagem do «melhor de todos», alguns epifenómenos
de eficácia moral duvidosa estão – como diz a carta de apresentação desta
instituição - apoiados «inquestionavelmente nos valores do Evangelho de Jesus»?
E que têm a dizer este e todos os outros Colégios católicos que passaram a viver de
ajudas do Estado provenientes de verbas públicas retiradas aos mais carenciados
(e transferidas para estas instituições privadas)?
ANOTEM BEM: «Entre 2011 e 2014, as transferências para Colégios e Escolas Privadas –
apenas na modalidade relativa aos contratos de associação, [foram] da ordem dos
660 milhões de euros – representam mais
do dobro dos "cortes" efetuados nos cursos CEF, PIEF e
no ensino profissional público (que perderam receitas orçamentais acumuladas de
cerca de 140 milhões de euros); nas atividades de enriquecimento
curricular (menos 46 milhões); no ensino especial (cortes acumulados de 30
milhões de euros), na educação e formação de adultos (menos 20 milhões);
e na Ação Social Escolar (que, nas rubricas relativas ao apoio socioeconómico aos
alunos e alimentação e nutrição, perde cumulativamente cerca de 13 milhões
de euros).» PECADO MORTAL!
(cf. Reportagem TVI, jornalista Ana Leal,
em baixo)
Não se
discute que possa haver ensino privado ou cooperativo (laico ou religioso) em
Portugal, mas, quanto ao religioso, há questões de natureza ética que colidem antagonicamente
com o Evangelho de Jesus.
Em
suma, a haver Escolas Católicas, elas deveriam seguir o ensinamento de Jesus:
−
serem financeiramente autónomas face ao Estado
(«Dai a César o que é de César»);
−
optarem preferencialmente pelos estratos sociais mais
excluídos – a actual «Roda dos Expostos» − oferecendo, a partir
dessa opção, modelos de inclusão e socialização anti-dualistas («Não é verdade que, então, fazeis distinções entre vós mesmos
e julgais com critérios perversos? Ouvi, meus amados irmãos: porventura não escolheu Deus os "pobres
segundo o mundo" para
serem herdeiros do Reino», Tg 2,4-5);
− destinarem-se, antes
de tudo, a formar cidadãos esclarecidos e dispostos a
afrontar todo o tipo de império iníquo, maléfico, opressor, pecaminoso e tirano
denunciando a "mercadorização do saber" subjacente à destruição do ensino
público universal e gratuito, o utilitarismo das pedagogias armazenistas de
crescimento juvenil (excesso de horas de estudo) e o monolitismo ideológico da
escola («…Jesus de Nazaré, que andou de lugar em lugar, fazendo o bem e libertando
todos os que eram oprimidos», Act 10, 38).
pb\
EDUCAÇÃO:
OS AVANÇOS NUM CAMINHO
AINDA A PERCORRER
A escola pública e a escolarização da
população portuguesa
Em menos de cinco
décadas, a sociedade portuguesa registou progressos impressionantes em matéria
de educação. Em 1960, cerca de quatro em cada dez portugueses eram
analfabetos e a frequência escolar, além de reduzida,
concentrava-se nos primeiros anos de ensino. A taxa real de escolarização
pré-escolar limitava-se a cerca de 1%, situando-se em torno de 80% no 1º ciclo
do ensino básico, 8%
no 2º ciclo, 6% no 3º ciclo e em
apenas 1% no ensino
secundário (GEPE/INE, 2009). As habilitações escolares da
população portuguesa eram pois, em termos internacionais, extremamente baixas,
com a taxa de participação no sistema de ensino a refletir e a reproduzir,
expressivamente, essa mesma realidade.
Quando se
comparam os principais indicadores disponíveis para a atualidade com esta
fotografia rápida de há pouco mais de 40 anos, os avanços na recomposição
qualificacional da população portuguesa tornam-se de facto muito nítidos
(Gráfico 1). Isto apesar de, tal como no passado, o perfil escolar do país se
encontrar ainda distante do que se observa na maioria dos países da União
Europeia e da OCDE.
De facto, a taxa
real de escolarização
no ensino pré-escolar situava-se, em 2011, em cerca de 86%, enquanto no 1º ciclo do
básico rondava os 99% (tendo atingido os 100% no período de 1981-2010).
A taxa real de escolarização no 2º ciclo do básico era de cerca de 92% em 2011 e rondava os 73% no ciclo do básico e no ensino secundário.
No seu conjunto, estes dados evidenciam a tendência para a crescente
universalização do acesso à educação num curto espaço de tempo, potenciada pelo
sucessivo aumento do número de anos de escolaridade obrigatória. (…)
O sistema de
ensino público em Portugal tem, assim, contribuído não só para impulsionar o
desempenho dos alunos, mas para mitigar, em parte, o efeito das desigualdades
sociais na distribuição desse desempenho – tal como é sugerido pelos
indicadores de «resiliência» dos alunos portugueses provenientes de famílias
mais desfavorecidas apresentados no estudo PISA. (…)
A análise dos
dados disponíveis permite concluir que, embora concedendo oportunidades
desiguais aos jovens de diferentes classes sociais, o sistema educativo
português gerou nas últimas décadas um processo
efetivo de democratização das oportunidades educativas e de mobilidade social.
Se, na geração de trabalhadores nascidos antes de 1970, a probabilidade de um
filho de profissionais técnicos e de enquadramento (professores, engenheiros,
jornalistas, etc.) obter uma licenciatura era 20 vezes superior à de um
descendente de trabalhadores desqualificados (agrícolas, empregadas domésticas,
serventes da construção civil, vendedores ambulantes, etc.), esta proporção reduziu-se para
sete vezes, para aqueles que nasceram entre 1970 e 1985, isto é,
para aqueles que frequentaram o sistema educativo já nas décadas de 1980 e
1990. Contudo, a
educação portuguesa continua a ser mais reprodutiva de desigualdades do que
outras sociedades europeias, o que parcialmente se pode explicar
pelo facto de os desníveis materiais e simbólicos serem ainda muito vincados.
Na média europeia, essa mesma probabilidade reduziu-se quatro vezes, na
geração mais velha, para três vezes, na geração mais jovem (Abrantes, 2012).
O acesso
generalizado à educação potenciou, portanto, uma alteração significativa da
estrutura socioprofissional da sociedade portuguesa e contribuiu fortemente
para os processos de mobilidade social, apesar da existência, paralela, do fenómeno da reprodução
das desigualdades sociais no interior da escola. É, no entanto,
inquestionável que o acesso à educação e aos seus níveis mais avançados de
escolaridade teve impactos significativos nas oportunidades e percursos dos
cidadãos no mercado de trabalho.
Um dos aspetos
mais interessantes do recente relatório da OCDE, «Education
al a Glance 2013», ["Educação
num Relance 2013"], prende-se justamente com os benefícios que a
qualificação escolar comporta para o próprio Estado. (…)
Os resultados
alcançados pela escola pública e pelo investimento realizado no ensino superior
e ciência, ao longo das últimas décadas, traduzem não só uma capacidade notável
para recuperar – num curto espaço de tempo – uma parte muito significativa dos
atrasos estruturais de Portugal nestes domínios, mas também o esforço de
inserção progressiva de Portugal nas modernas economias das sociedades
ocidentais, baseadas no conhecimento, na qualificação e na inovação. As
políticas educativas levadas a cabo na presente legislatura comprometem,
contudo, a consolidação e o aprofundamento do caminho já trilhado.
O
programa de ajustamento e a regressão em educação
Tal como sucede
noutros domínios do Estado Social, designadamente na saúde e segurança social, a educação tem sido um dos alvos
preferencial da política do atual governo PSD/CDS. Nos dois últimos anos, os
cortes orçamentais no Ministério da Educação e Ciência foram-se tornando cada
vez mais relevantes: face a 2010, estamos a falar de perdas acumuladas na ordem dos 1700 milhões
de euros (ou seja, menos 18% do que no OE desse ano), sendo sobretudo
ao nível das despesas com pessoal que incidem os principais cortes. De facto, entre 2010 e
2014, a diminuição cumulativa destes encargos ronda os 25%,
refletindo-se os mesmos de modo muito particular no ensino básico e secundário
(e afetando essencialmente docentes e auxiliares de educação).
Esta voragem
orçamental não estava, contudo, inscrita na configuração inicial do Programa de
Assistência Económica e Financeira, de maio de 2011. As medidas
então previstas, para os cerca de três anos de vigência do Memorando, diziam essencialmente
respeito à contração da despesa através da «racionalização da rede escolar,
criando agrupamentos
escolares», da diminuição da «necessidade de contratação de
recursos humanos», da centralização dos «aprovisionamentos» e da redução e
racionalização das «transferências
para as escolas privadas com contratos de associação».
Globalmente, estimava-se que estas medidas apontassem para um corte de 370
milhões de euros em 2012 e 2013, podendo a Lei de
Orçamento de Estado de 2014 reforçar, eventualmente, medidas introduzidas
nesses anos em diferentes setores, tendo como objetivo «exercer moderação na
despesa primária, com vista a obter um rácio descendente de despesa pública em
percentagem do PIB»[3].
Sendo certo que o
governo PSD/CDS, eleito em Junho de 2011, tratou também, aqui, de ir bastante
«além da troika» em termos de cortes
e despesa, a verdade é que o Programa de Ajustamento serviu, sobretudo, para
proteger e sustentar uma agenda de profunda transformação e de desmantelamento
gradual do sistema público de ensino. Uma mudança que, assentando em
fundamento de natureza essencialmente ideológica, transcende de forma muito
clara a ideia do simples contributo financeiro do setor da educação para o
«equilíbrio das contas públicas», e que, de outro modo, dificilmente colheria o
necessário apoio eleitoral para a sua implementação.
De fato, a
coberto do Memorando
de Entendimento, o ministro Nuno Crato encetou um amplo processo de
contração, degradação e dualização da escola pública, que não só promove a sua
descaracterização (ao perverter muitos dos princípios essenciais em que a mesma
assenta), mas também lhe retira capacidade de resposta, afirmação e qualidade, em benefício das escolas do ensino particular e cooperativo, que
adquirem deste modo condições mais favoráveis para se posicionarem no desejado «mercado da educação».
(…)
A destruição gradual do sistema público de ensino,
seja através das sucessivas constrições em termos orçamentais, seja pelas
medidas qualitativas que adulteram o seu papel e os princípios que o enformam,
deixa antever o duplo objetivo que move o atual Ministério da Educação.
Trata-se, por um lado, de degradar, dualizar e encolher a oferta pública de
educação, favorecendo assim, como já referido, as escolas privadas, que começam
de resto a poder beneficiar de um processo experimental de introdução do «cheque-ensino»,
que permitirá sustentar financeiramente – com dinheiros públicos – a procura de
muitos dos alunos que, entretanto, deixaram de as poder pagar. E, trata-se, por
outro lado, de sincronizar
a educação de massas com o modelo económico medíocre e
subdesenvolvido em que o governo está a apostar, assente na desqualificação dos
recursos humanos, no empobrecimento generalizado e na mercadorização de todas as esferas da
vida social.[4]
[…]
Frederico Cantante, Nuno Serra, Pedro Abrantes e Renato Miguel
do Carmo
in «ESTADO SOCIAL - DE TODOS PARA
TODOS», Lisboa, TINTA-da-CHINA, ISBN 978-989-671210-5
«DINHEIROS
PÚBLICOS, VÍCIOS PRIVADOS»
Reportagem TVI – jornalista Ana Leal
[2] «Foi na
cidade do Porto que existiu a primeira Roda dos Expostos»:
[3] Cf. «Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades de
Política Económica» (pp. 2 a 6), de 17 de Maio de 2011:
[4] Prof. Manuel Couret Branco [Univ.
de Évora], «The Case Against the Commodification of
Social Protection», UNRISD website; cf.: