de um lado o deus dos «primeiros», do outro «o Deus dos últimos»…
«O que diria Jesus hoje?»
Os dias de Natal são especiais. Há uma atmosfera diferente, e o melhor de nós pode revelar-se: mais
proximidade, mais intimidade, mais amor, mais solidariedade. Directa ou
indirectamente, há uma presença inegável: o nascimento de um Menino, com
"a mensagem mais bela e revolucionária da história mundial", no dizer
de Heiner Geissler que foi ministro do
Governo Federal da Alemanha e que escreveu um livro admirável, precisamente com
o título: "O que diria Jesus hoje?"[1]
Mesmo se muitas vezes os que se reclamam de Jesus fizeram da sua mensagem
um Disangelho, como disse Nietzsche,
ela é real e verdadeiro Evangelho, notícia boa e felicitante.
Essa mensagem tem na sua base a afirmação de que é o ser humano, com a sua
dignidade inviolável e fundamentada em Deus, que ocupa o centro de toda a
actividade política e económica. Essa dignidade e os direitos que dela derivam
constituem o
critério de todas as leis, mesmo das leis "divinas", e o
fundamento para a convivência em igualdade de todos os seres humanos,
independentemente do sexo, cultura, etnia, religião, classe, nação, estatuto
social ou jurídico.
O amor a Deus sem amor ao
próximo é uma ilusão, e este amor ao próximo não é platónico, pois tem de ter
tradução prática concreta - dar de comer, de beber, de vestir, visitar o doente
e o preso -, e supera as barreiras culturais, nacionais, religiosas. Próximo é o próprio inimigo em dificuldade.
Os seres humanos e os seus interesses estão antes dos interesses do
capital. O
capitalismo neoliberal não está de acordo com o Evangelho e "constitui um
crime contra milhares de milhões de pessoas que têm de viver na
pobreza, na doença e na ignorância". "Quem transforma o valor na Bolsa
e a cotação das acções de uma empresa
em algo absoluto e quem atribui importância, em termos económicos, apenas aos
interesses do Capital faz parte das pessoas que, como diz Jesus, possuem muito
dinheiro e para as quais será difícil
entrar no Reino de Deus." (p.76) Os mais de dois mil milhões de
cristãos têm, pois, de formar uma força impulsionadora de uma nova ordem
económica mundial com base na justiça.
A mulher tem de ser tratada na plenitude da sua dignidade
humana em igualdade com o homem. Qualquer discriminação, na sociedade ou na
Igreja, está em contradição com o Evangelho. "A proibição da ordenação das mulheres
e o celibato obrigatório não têm fundamento evangélico".
Jesus não excluiu os estrangeiros - curou o servo
do centurião romano e a filha da mulher siro-fenícia (Mt 15,21; Mc 7,24).
Portanto, a xenofobia não é compatível com o Evangelho. Os romanos, enquanto
potência ocupante, podiam obrigar um judeu a transportar a bagagem na distância
de uma milha, sendo neste contexto que se percebe o que Jesus diz:
"Faz uma segunda milha de livre vontade." Talvez o romano comece a conversar,
e quem sabe se não acabarão por beber um copo juntos? Aí está: "A
reconciliação, o desanuviamento e a solução pacífica dos conflitos são
preferíveis à violência e à guerra."
Quando se olha para o comportamento de Jesus, por palavras e obras, com as
mulheres, os estranhos, os samaritanos (hereges), os pobres, os doentes, os
leprosos, os inimigos (romanos e cobradores de impostos), entende-se como a nova imagem
do ser humano constituía um acto revolucionário, com significado
político-religioso explosivo.
O conflito foi mortal por causa de duas
imagens de Deus. De um lado, o deus do sistema do Templo e do Império de Roma, em cujo nome as autoridades sacerdotais e
o prefeito romano oprimiam e exploravam o povo. Do outro, o Deus dos últimos. Jesus acaba por ser crucificado, porque a sua mensagem
e a sua acção abalavam, na sua raiz, um sistema organizado ao serviço dos
poderosos da religião do Templo e do Império.
E hoje? Jesus é o modelo da credibilidade, na harmonia entre ideias e actos. [Jesus] "Hoje,
seria o deputado e o porta-voz ideal do povo, uma vez que, no seu tempo, defendeu
as pessoas - de forma independente, aberta e corajosa - contra os detentores do
poder."
Anselmo Borges, sacerdote missionário da
Boa Nova.
«Diário de Notícias», OPINIÃO, 8 Janeiro 2011
Jesus, Jericó,
dinheiro, impostos, partilha… e Justiça
«Jesus entrou em Jericó e atravessou a cidade na sua última viagem a
Jerusalém (Lc 19,1-10). Em Jericó vivia um homem muito rico chamado Zaqueu. Era
o chefe dos cobradores de impostos naquela cidade fronteiriça – cidade importante
para Roma - e responsável pela cobrança dos impostos indirectos que tinham de
ser pagos ao imperador por cada província romana. Tratava-se, fundamentalmente,
de impostos como por exemplo: portagens pela utilização de estradas e pontes,
taxas portuárias e direitos aduaneiros de exportação.
«As províncias estavam divididas em distritos, para permitir a cobrança de
impostos. Só na Judeia havia 11 distritos
fiscais deste tipo.
«Enquanto os impostos directos eram cobrados pelos serviços da respectiva
província, a cobrança dos impostos indirectos estava entregue aos arrendatários
que oferecessem mais dinheiro. Assim, o Estado romano recebia uma receita fixa sem qualquer risco, visto
que, fosse como fosse, o arrendatário tinha de entregar o montante previamente
acordado.[2]
«Por seu lado, os arrendatários[3]
cobravam os impostos através de funcionários
inferiores – os chamados «cobradores[4]»
- os quais são várias vezes referidos no Evangelho [Mt 10,3].
Estes cobradores de impostos exploravam muito a população [não para si,
mas para os “de cima”], porque cada arrendatário
esforçava-se por tirar, obviamente, aos contribuintes muito mais do que aquilo
que eles deveriam legalmente pagar como renda [quanto mais “tirassem” mais lucravam:
tudo o que fosse acima do acordado com Roma era “lucro extra”…]. Por isso é que os cobradores de impostos eram extraordinariamente odiados
em Israel.»[5]
[Heiner Geissler, Ibidem, p.
77-78]
«JESUS CRIANÇA, O ROSTO HUMANO DA TERNURA
DE DEUS»
«É NATAL, DEUS VISITOU E LIBERTOU O SEU
POVO»
«O dado capital que o relato destaca é que Jesus surge comprometido com a história, não apenas da pobreza e da marginalização, mas sobretudo com a história da exclusão. O sinal que os anjos nos dão, a fim de se encontrar Jesus, não se situa entre os pobres, mas entre os animais. Jesus, desde o primeiro instante da sua vida neste mundo, deixa claro que a salvação se encontra, antes de mais nada, entre os excluídos e com os últimos. Que significa isto?
«O valor supremo do nosso tempo é o dinheiro. O valor supremo nas sociedades mediterrânicas do século I era a honra (B. J. Malina). Jesus irrompe no mundo rompendo com os valores do sistema desse mundo. Assim diz-nos que a solução para os males de que sofremos não está em querer "subir", mas em querer "baixar-se" e unir-se aos que menos têm. Essa é a maior fonte da felicidade. A «boa notícia», a «grande alegria» não está nos valores que o sistema aprecia. A felicidade está onde se encontra o que há de mais entranhavelmente humano (um menino enfaixado em panos), esteja isso onde quer que esteja, mesmo que esteja onde menos esperávamos poder imaginá-lo». [JM Castillo]
Omelia del NOTTE DI NATALE [«MISSA DO
GALO»: Lc 2,1-14] – Dom Massimo (Bolonha)
Omelia del GIORNO DI NATALE [Jo 1,1-18] –
Dom Massimo (Bolonha)
[1] «O que diria
Jesus hoje?», Ed. Casa
das Letras, Abril 2005, tradç. de Teresa Martinho Toldy e Marian Toldy.
ISBN 972-46-1596-0.
[2] Kroll, «Auf
den Spuren Jesu», Leipzig, 291-292.
[3] archi-telonai
[4] telonai
[5] Heiner Geissler, «O que diria Jesus…». op. cit., p. 77-78. A situação social
dos «cobradores» era terrivelmente angustiante, pois eles estavam entre a
espada (=o povo) e a parede (o seu patrão= arrendatário)… Talvez por isso é que
Jesus tivesse relações de acolhimento (=intimidade) para com eles que não tinha
para com os «arrendatários»! - à excepção de Zaqueu (Lc 19), que, tudo indica,
era um «arrendatário» e não um «cobrador» (Mc 10, 17-22); as traduções bíblicas
não costumam fazer distinção entre estas duas categorias de funcionários das finanças.