teologia para leigos

15 de fevereiro de 2025

O Deus falsificado

 


 

O DEUS FALSIFICADO

Thomas Ruster

 

 

«A presença de pessoas de outras religiões no espaço ocidental

anteriormente monopolizado pelo cristianismo ao nível

do religioso, mas sobretudo o surgimento consolidado a partir dos anos 80

de “Novas Religiões” ou de uma nova religiosidade,

exigem mais do que nunca uma comparação entre as religiões.»

Thomas Ruster

 

(traduzi apenas as últimas palavras com que o autor encerra o seu muito estimulante livro de 254 páginas…)

 

RESULTADOS DESTA INVESTIGAÇÃO e PRIMEIRAS CONSEQUÊNCIAS

1. A contingência de poder ser e não ser religião acompanha a tradição bíblico-judaico-cristã desde o início. Trata-se de saber se o que existe a realidade socialmente configurada corresponde ou não à vontade de Deus.

2. Esta questão é esclarecida a nível teológico, em cada época, pelo modo como Deus é concebido em relação aos poderes reais. Se colocarmos Deus numa relação positiva com esses poderes geralmente na forma de superação e de absolutização a religião emerge. Se não o fizerem, o que aparece é uma ‘marginalidade’ que actualiza a crítica bíblica da religião e vê o mundo imerso no erro e na loucura. A diferença na concepção de Deus decide, portanto, se o cristianismo é ou não é uma religião.

3. Surge hoje em dia uma situação nova: o cristianismo já não tem condições para querer ser uma religião. Com o capitalismo, a experiência de uma realidade que tudo determina e que está essencialmente relacionada com o dinheiro já não pode ser reconciliada com o Deus da fé cristã... a não ser à custa de se ter de reescrever toda uma nova Bíblia. Schmitt viu isso correctamente. A actual perda de relevância do cristianismo, entendido como uma religião, confirma à sua maneira que a era da religião cristã já passou (o que poderá atingir o seu cume dentro de cem ou mil anos, não sabemos…); e esta perda de relevância explica-se pelo desaparecimento do cristianismo como religião.

4. Depois de séculos de interdependência entre o cristianismo e a religião para o bem e para o mal estamos hoje, na teologia, confrontados com a tarefa de os delimitar aos dois. Uma teologia que não faça essa delimitação está orientada para algo que já não existe (o ‘cristianismo como religião’) e, portanto, será vazia de conteúdo. Delimitar o cristianismo e a religião é uma tarefa que deve ser recuperada teologicamente, tanto mais que isso já aconteceu há muito tempo.[1]

5. A base e o critério objetivo da delimitação do cristianismo e da religião é a controvérsia entre o culto divino e o culto idólatra.

6. A teologia da distinção entre cristianismo e religião deve revelar “o sentido anti-idolátrico da fé em Cristo”. Deve mostrar que, para os cristãos, a fé na divindade de Jesus evita confundir Deus com ídolos, tal como o fez a Torá para os judeus.[2]

7. Crítica da idolatria significa “crítica da religião”: primeiro, da religião que o próprio cristianismo foi e muitas vezes quer continuar a ser; depois, crítica das chamadas religiões; por fim, crítica à religião do capitalismo, uma religião até agora sem nome. ‘Crítica’ significa diferenciação, não mera rejeição ou condenação; os teólogos cristãos conseguem saber, por experiência própria e através da Bíblia, até onde vai o Mandamento e onde começam as fronteiras da Religião.

8. A delimitação do cristianismo e da religião coloca a teologia católica numa nova relação com ‘a experiência’. Uma vez que a experiência por natureza tende para a religião, ela não pode ser o ponto de partida do conhecimento cristão de Deus sem que com isso crie problemas. Reabre-se, assim, o debate sobre a Natureza e a Graça.

9. Face à religião do capitalismo, urge repensar em que consiste a Redenção. A delimitação do cristianismo e da religião, assumida teologicamente, é o pressuposto para esse repensar.

 

Vou aprofundar um pouco mais os pontos 7, 8 e 9 antecedentes. É necessário referir pelo menos as primeiras consequências derivadas da diferença quanto à noção de Deus: questões derivadas da relação do cristianismo com outras religiões; a questão da relevância das experiências religiosas e a questão da redenção, questões que desempenham hoje em dia um grande papel no ensino religioso e, portanto, na pedagogia religiosa. Por conseguinte, adaptá-los-ei aos problemas que eles apresentam na minha área profissional (a formação de professores de religião). Vou dar apenas algumas indicações muito breves.

 

a. Não transformar Deus num ser indistinto: no encontro com as religiões, refinar o sentido da idolatria

Entre os estudantes de teologia é quase unânime que todas as religiões adoram o mesmo Deus. Esta forma de pensar não costuma ser corrigida pelos seus professores; até os livros para o ensino da religião a transmitem.[3] As religiões (diferente em Raimon Panikkar) são concebidas como caminhos diferentes que levam ao mesmo cume. E como ninguém ainda o alcançou, ninguém pode saber, em princípio, como e o que é Deus. É por isso que também não é correto julgar as imagens de Deus propostas por outros povos e religiões. Subjacente a esta concepção está um grande respeito pela relação com Deus que as outras pessoas mantêm e, eventualmente, um interesse em conhecer outras religiões. Por outro lado, essas pessoas são antecipadamente consideradas culpadas de conivência. É sobejamente conhecido onde a intolerância religiosa, o exclusivismo e o fanatismo nos conduzem! Todos sabemos como é difícil abordar o tema da “missão” no cristianismo primitivo dentro das aulas de religião. Mas o certo é que é costume manifestar compreensão para com os primeiros cristãos quando, enquanto crentes recém-convertidos entusiasmados, falam da sua fé a outros e, por vezes, criticam o carácter primitivo das antigas religiões pagãs. Mas é frequente afirmar que hoje evoluímos para uma mentalidade tolerante, pelo menos em relação às religiões vivas. É comum que os estudantes de teologia peçam aos seus professores que, para além de explicar o cristianismo, levem em conta outras religiões. Muitos nem sequer entendem por que é que o cristianismo ocupa um lugar tão importante no estudo da teologia. Será missão do ensino religioso iniciar os alunos no mundo das religiões ou da experiência religiosa em geral … tanto mais quando esses alunos já não possuem qualquer marca cristã?

Esta concepção tem sido sistematicamente expressa na chamada "teologia pluralista das religiões", que goza de grande popularidade. As suas ideias básicas podem resumir-se rapidamente: face ao “exclusivismo” (apenas uma religião é verdadeira) e ao “inclusivismo” (na minha religião estão contidos os elementos de verdade de todas as outras religiões), aspiramos a um pluralismo religioso atualizado.[4] Segundo esta concepção, por trás de todas as religiões está a experiência de uma realidade infinitamente maior e superior que nos ultrapassa. Tal realidade pode ser designada pelos mais diversos nomes (Kick propõe «o Transcendente, a Realidade Fundamental, o Princípio Supremo, o Divino, o Único, o Éter, o Real»[5]). Todas as religiões sabem que a «realidade fundamental» é incompreensível e misteriosa. De facto, é-lhe intrínseco que ela não possa ser plenamente compreendida em nenhuma religião. As diferentes concepções da realidade suprema (pessoa/não-pessoa, plenitude/vazio, etc.) não são contraditórias, mas nascem das diferentes situações em que se realiza a experiência de Deus. Todas as religiões propõem, em princípio, a mesma ética: passar da auto-centralidade à centralidade na realidade. A única experiência da realidade suprema só pode ser vivida na pluriformidade dos seres humanos e das culturas. “É verdade que todos os seres humanos são referidos à mesma realidade transcendente, mas também é verdade que são extremamente diversos”.[6] É por isso que nenhuma religião pode aspirar a ser absoluta. As religiões nada mais são do que formas relativas e diversas de criptografar as experiências do inominável. Conteúdos da fé, como a corporificação e a filiação divina de Jesus, a Trindade, etc., devem ser incluídos no relato da legítima pluriformidade das religiões; não podem ser elevados ao status de condições para a salvação. Pelo contrário, deve haver uma nobre competição entre as religiões quanto à que oferece o melhor e mais fácil caminho de salvação. Este seria, então, o objeto do diálogo inter-religioso, diálogo no qual, na opinião de D. Tracy, só podem participar os representantes que estejam dispostos a “combater o obscurantismo, o pensamento de casta ou de classe e o fanatismo moral dentro das suas próprias tradições religiosas”.[7] É bem conhecido nos círculos desta teologia da religião aquilo de que uma religião aceitável precisa. Também sobre a realidade indecifrável do ser supremo há informação suficiente para poder excluir pelo menos falsas imagens de Deus. O conhecimento de Deus é adquirido empiricamente a partir do menor denominador comum de todas as religiões. Se (quase) todas as religiões dizem que o ser supremo só quer o bem para nós, então ele não pode também querer o mal. Com este argumento, Hick contestou, por exemplo, a doutrina de Agostinho e da Reforma sobre a Dupla Predestinação.[8]

O valor pragmático da chamada teologia pluralista da religião é indiscutível. Pode permitir que as pessoas pratiquem pacificamente várias religiões. Mas não devemos esquecer as notáveis deficiências desta teologia, deficiências que, no final, nos levam a perguntar qual é a qualidade da paz religiosa que se pretende alcançar. A crítica pode ser resumida da seguinte forma: (1) primeiro, esta doutrina não é pluralista, pois pluralismo significa «a adoção de vários princípios díspares e autónomos que não são deriváveis uns dos outros ou de um único princípio» (enciclopédia Brockhaus); na realidade, a teologia pluralista da religião não passa de um inclusivismo universalizado; (2) em segundo lugar, não se trata de uma doutrina sobre religiões, uma vez que não está de todo interessada na vida real das religiões no que diz respeito à sua singularidade histórica e cultural, mas, antes, as toma com base numa ideia preconcebida; é fácil reconhecê-la como uma segunda versão da metafísica cristã outrora abandonada; (3) por fim, ela não é teologia, pelo menos teologia cristã, cujo fundamento é a revelação de Deus na Escritura, dum Deus que quer ser diferenciado dos ídolos.[9]

A chamada Teologia Pluralista da Religião [TPR], como exemplo mais actual de um discurso indiferenciado sobre Deus, leva à indistinção de Deus. Digo isto a partir das experiências com aqueles que defendem que em todas as religiões se adora o mesmo Deus; mas também decorre da simples observação de que, se todos os deuses são igualmente válidos, eles também se revelam indistintos. O impulso ético que brota desta corrente é fraco, incapaz de fazer uma crítica às religiões, mas sobretudo incapaz de confrontar a religião que hoje organiza «a Realidade Fundamental»: o capitalismo. Não é surpreendente que o diálogo religioso seja considerado um tanto mercantilista: vários “vendedores da mesma mercadoria” estão frente a frente, mas com embalagens diferentes no colo. Na chamada «teologia pluralista da religião», as religiões devem ser apresentadas de tal forma que possam ser toleradas dentro dos limites do sistema económico: deverão ser guias de mercado para um produto impalpável e difuso, que, no entanto, ainda encontra clientes. Entretanto, «a religião dominante» [o capitalismo] pode continuar a agir sem ser perturbada.

Sendo assim, será que teremos de regressar ao exclusivismo cristão, à difamação e às guerras religiosas? Antes de chegarmos aí, devemos banir, no plano teológico, a ideia de que o diálogo das religiões consiste em procurar o equilíbrio entre todas as diferentes reivindicações relacionadas com a posse da verdade, isto de acordo com o modelo da concorrência mercantil. À luz da Bíblia, os cristãos foram encarregados de algo bem diferente: primeiro identificar a idolatria dentro de casa, nas suas próprias fileiras. Portanto, encontrar-se com pessoas de outras religiões exige saber que a idolatria é a tentação e a realidade mais natural da própria religião. A idolatria é um reconhecimento da «realidade fundamental» e, enquanto outras religiões possam transmitir algo dessa realidade idolátrica, o encontro inter-religioso pressupõe a prévia autocrítica cristã urgente. Portanto, os cristãos deverão procurar nesses encontros inter-religiosos a radioscopia crítica da sua própria religião de modo a poderem cumprir melhor o Primeiro Mandamento. Talvez outras religiões tenham profecias-surpresa para os cristãos, do mesmo modo como aconteceu às religiões de outros povos quando enfrentaram os profetas bíblicos, e assim, através deles, conseguiram uma análise mais fina da idolatria de Israel. Portanto, do ponto de vista bíblico-cristão, não se trata de impor a minha verdade aos outros, mas de me deixar levar por eles a um aprofundamento da minha própria verdade, isto é, do conhecimento de Deus, que só se realiza em referência aos seus opostos. As religiões, especialmente a própria, oferecem a melhor perspectiva para o oposto de Deus. Isto é verdade para a “ala cristã” nos diálogos inter-religiosos; o resultado de um debate realizado dentro deste espírito para a “outra ala” é, se favorável, o testemunho a favor de uma religião que pode renunciar ao espírito de contradição e de imposição em detrimento dos outros. Os cristãos da Primeira Carta de Pedro suplicaram, neste sentido, pela sua própria causa entre os pagãos. Em todo o caso, qualquer encontro de pessoas biblicamente letradas com pessoas de outras religiões está sujeito, como não poderia deixar de ser, aos ditames do Primeiro Mandamento. O mandamento deve ser observado mesmo contra os deuses da própria religião. Se neste processo de autopurificação os deuses de outras religiões são descobertos como ídolos, eles ficam sujeitos ao mesmo ditame do primeiro mandamento. Os cristãos podem envolver pessoas de outras religiões na força esclarecedora da distinção entre Deus e os ídolos. Na observância do Primeiro Mandamento, não devem deixar-se conquistar por ninguém. Assim, o conhecimento de Deus pode ser difundido de acordo com o preceito de Deus [Primeiro Mandamento] e com a busca da justiça de Deus. O diálogo inter-religioso pode contribuir para desvelar o sentido do “culto idolátrico” dos seus participantes e, assim, reforçar o combate a esse culto. Chegados aí, será então possível vermos pessoas de diferentes religiões a agir juntas contra a idolatria da “realidade fundamental” [o Capitalismo Financeirizado e Globalizado], a realidade que hoje tudo determina e que, como todos os ídolos, ameaça a justiça.

 

 b) Não se fie nas suas próprias experiências, participe das experiências de outras pessoas, experiências bíblicas

A pedagogia religiosa, tão rica em perspectivas e sempre aberta a novas ideias, tem, no entanto, um dogma que, de facto, incorre numa contradição: no ensino da religião é necessário partir da experiência dos alunos. Este princípio parece indemonstrável, tanto pedagogicamente como dialeticamente; mas também pode ser fundamentado teologicamente referindo-se ao “existencial sobrenatural” (K. Rahner) ou ao “a priori da relação de cada pessoa com Deus”.[10] De facto, através da teologia de Karl Rahner, que chega mesmo a falar de «cristão anónimo»[11], a categoria da experiência foi grandemente revalorizada na teologia católica. Com ela foi possível afirmar que é possível demonstrar, através da experiência, a orientação de cada pessoa para o mistério de Deus como fundamento e meta da sua existência. Deste modo, a pedagogia religiosa mostrou o caminho para sair da estreiteza de uma transmissão eclesial-querigmática da fé e abriu-lhe o vasto campo da experiência religiosa, que também poderia ser trabalhada com uma boa consciência teológica nos tempos pós-cristãos. A recente pedagogia religiosa católica, que encontrou um notável defensor em H. Halbfas, é basicamente inspirada em Rahner.[12]

Entretanto, que dizer da experiência religiosa na era do «capitalismo como religião»? Sem querer subestimar o seu impressionante trabalho teológico, K. Rahner não soube enfrentar esta questão. Mas a resposta a esta pergunta é dada tendo em conta os alunos que hoje recebem instrução religiosa. Eles são fiéis seguidores da religião capitalista, que também permeia todas as suas experiências, o seu ambiente, os objetivos de vida que estabelecem para si mesmos.[13] A sua prática religiosa, que indubitavelmente herdaram dos pais, marcados pelo milagre económico, é invulgar. O facto de a teologia católica falar apenas da experiência num sentido geral e não específico terá consequências. A experiência, de facto, muda de acordo com as circunstâncias. A sua estrutura formal é indubitavelmente idêntica: a experiência do real é determinada pelo que determina a realidade. A experiência, na medida em que se orienta para a realidade que tudo determina, é sempre religiosa. Contudo, hoje em dia, já não se refere ao Deus da fé cristã, caso estejamos de acordo que Deus e “a realidade que tudo determina” aparecem hoje definitivamente divididos. Assim, a abordagem de Rahner, embora formalmente correcta, não favorece a fé cristã.

É necessário, portanto, rever o dogma denominado ”A Experiência na Pedagogia Religiosa”. As experiências dos alunos já não devem ser invocadas numa pedagogia da religião cristã. Além disso, a experiência religiosa de todos nós já não é digna de confiança, porque nos remete para uma falsa religião. Ou, caso ainda haja cristãos, essa experiência impede a correta distinção entre Deus e os deuses. A experiência feita com o verdadeiro Deus não é nossa. É uma experiência estranha para nós hoje, e como o princípio de que ‘a fé precisa de experiência’ ainda é válido, para isso o importante é saber se ela pode participar de uma experiência estranha. A estranha experiência com o verdadeiro Deus é certamente encontrada na Bíblia. É por isso que eu considero a principal tarefa do ensino actual da religião induzir as crianças em idade escolar a participar da experiência acumulada na Bíblia. Isso significa introduzir a Bíblia, imergir por todos os meios possíveis no mundo da Bíblia, narrar, narrar, narrar, mas não como se costuma fazer hoje, conectando-se com as experiências das crianças em idade escolar. Devemos abandonar o princípio da “didática bíblica correlata” que domina o campo da pedagogia religiosa, segundo o qual os textos bíblicos podem ser transmitidos desde que ajustados às experiências dos alunos. Há que reforçar a natureza estranha, inderivável, insuspeita das experiências bíblicas e, na minha opinião, sem qualquer medo de que os alunos não as compreendam. Hoje em dia, todos os tipos de meios de comunicação social introduzem as crianças, em idade escolar, em experiências de mundos estranhos, em mundos primitivos, míticos ou de ficção científica, e elas entram alegremente neles. Por que não fazer o mesmo no mundo da Bíblia? Uma vez lá, podem comparar as experiências dos outros com as suas. O resultado desta comparação deve permanecer em aberto. Em qualquer caso, terão feito uma experiência a partir da a sua própria experiência.

Para esclarecer isso, tomemos como exemplo um tema central da catequese e do ensino religioso: os sacramentos, que também podem ser compreendidos e ensinados enquanto forma de participação numa experiência estranha. Sim, os cristãos não foram libertados da escravidão do Egipto pela água, mas através do batismo eles podem participar dessa experiência dos começos de Israel. No sacramento da Penitência, os cristãos podem partilhar a experiência de Israel de que a culpa e a desobediência não os separam de Deus e que a realidade da Aliança permanece intacta. Na Eucaristia, participam na experiência de um Deus que, mesmo sob o domínio da morte, permanece fiel ao seu desejo de comunhão; etc. Os sacramentos são o caminho adequado a cristãos-pagãos, que não tiveram tais experiências, de modo também eles poderem partilhar a experiência de Israel. Os sacramentos vêm substituir a função que a Memória da sua história desempenhou em Israel. Em Cristo é-nos oferecida esta participação, Ele é o sacramento de Israel entre as nações. Talvez seja possível compreender, neste sentido, o que disse Tomás de Aquino sobre a tripla temporalidade dos sinais sacramentais: evocam o acontecimento soteriológico passado (“signum rememorativum”), significam a salvação presente (“signum demonstrativum”) e preparam a plenitude futura (“signum prognosticum”).[14] Considero este um dos pensamentos mais profundos e fecundos da antiga teologia dos sacramentos. Importa olhar para a relação dos cristãos com Israel como sendo participação numa experiência alheia. Ela é muito mais do que o habitual acesso simbólico-teológico aos sacramentos aquando da catequese e durante a instrução religiosa: é acesso que, no entanto, deve permanecer no plano do conteúdo simbólico dos sinais sacramentais.

 

c. Pensar a redenção à luz da economia da salvação: salvação mediante a fé no único Deus de todos os humanos

A mensagem cristã sobre a Redenção não vive o seu melhor momento. De facto, converteu-se numa «oferta gratuita não veementemente desejada».[15] Acreditar que ‘Deus salva hoje’ não parece viável e quase não se verbaliza. «As fórmulas teo-esotéricas estabelecidas sofrem uma perda progressiva de realidade... na soteriologia estamos enterrados nos rudimentos do entendimento.»[16] É óbvio que isso corrói seriamente a relevância do cristianismo. Qual poderá ser o contributo da fé se ela não souber transmitir confiança na libertação do mal?

Importa referir muitos factores intra-teológicos a fim de explicar esta situação.  De entre eles o mais importante é sem dúvida a decadência da escatologia cristã, sobre a qual Friedrich Beisser disse, com razão: «De todos os artigos da fé cristã, aquele que parece estar hoje em dia no estado mais ruinoso é, quiçá, a doutrina acerca do final dos tempos, a Escatologia».[17] Os temas do ensino tradicional sobre o totalmente novo céu, inferno, purgatório, etc. estão hoje sob grave suspeita de ‘mitologia’ e de ‘projeção’; e, para além disso, um ensinamento sobre coisas do além está fora do âmbito da ciência. Os ensaios teológicos no campo da escatologia há muito que oscilam entre, por um lado, uma existencialização morna dos conteúdos tradicionais e, por outro, uma tentativa de consolar-se com formas de esperança intramundana, especialmente o “princípio da esperança” de Ernst Bloch. Nenhuma das atitudes pode levar a um resultado satisfatório, e os testemunhos cristãos sobre promessas futuras também não se saem bem. Então, como falar de Bem-Aventurança e de Salvação num mundo infeliz?

A meu ver, a crise da Soteriologia provém fundamentalmente do estatuto do ‘cristianismo como religião’. Em primeiro lugar, pelo papel que é atribuído à religião numa sociedade moderna, tão diferenciada e segmentada. Os vários sistemas parciais da sociedade funcionam de acordo com as suas próprias leis e é muito difícil, para eles, influenciarem-se uns aos outros; isto é referido sempre que se fala da “ingovernabilidade” das sociedades modernas. Ninguém espera do sistema “religioso” que ele transvase para outras esferas. Espera-se do sistema religioso que reduza a complexidade, controle a contingência, etc., mas que, de forma alguma, modifique os processos económicos ou políticos. O cristianismo tem funcionado muito bem no domínio que lhe foi atribuído. Mas não tem suficiente credibilidade para proclamar a redenção do mal que é produzido nos outros âmbitos estranhos ao seu âmbito. «Salvar-se através das relações»[18] - eis o que se lê na mais recente obra dedicada à soteriologia católica. O seu título indica em que área o cristianismo ainda pode falar de Redenção (e aqui ele encontra-se em competição desconfortável com outros conselheiros e redentores relacionais). Os começos da soteriologia cristã pertencem ao tempo em que a influência da Igreja e da fé se estendia a toda a vida pública e privada. Foi então possível desenvolver as fórmulas a que já me referi brevemente a propósito de Walter Benjamin.[19] Caracterizavam-se por atacar dialeticamente a estrutura económica dominante. As fórmulas reflectiam a necessidade de libertação da estrutura económica dominante na sociedade (escravatura: resgate; sistema feudal e associativo: reparação; economia monetária: méritos de Cristo).[20] O conceito de economia da salvação pode agora ser acompanhado por um novo e diferente significado: a salvação só deve ser concebida em relação à economia, nela tem o seu objecto, neste objecto concretiza-se apresentando-se como seu adversário. Mas tal economia de salvação é proibida ao cristianismo de hoje, na medida em que se apresenta e é percebida como uma religião. A delimitação do cristianismo e da religião é, portanto, obrigatória também no aspecto soteriológico. Assim, também é possível redescobrir o significado escatológico concreto dos preceitos da Torá, como Marquardt fez de forma exemplar (também) para a esfera económica: a boa acção decide sobre as possibilidades do futuro e as possibilidades de participação no mundo vindouro.[21]

Há mais um aspecto em que a mensagem cristã da salvação coincide com a delimitação do cristianismo e da religião. É essencial que a religião represente o «supremo», o mais poderoso, o ‘determinante último’; ela nunca o faz sem referência aos personagens superiores, poderosos e determinantes de uma sociedade. Do conceito de «supremo», que existe numa religião, surge sempre uma certa forma de ordem e de hierarquia, à qual os detentores do poder se agarram tanto quanto possível. O supremo também cria a sua própria imagem. A ordem estabelecida pela religião determina, então, a distribuição do poder e da influência. Desta forma, a religião tem relevância para a distribuição de bens: ela é essencialmente responsável por uma distribuição desigual e geralmente injusta dos bens. Os “deuses das religiões”, que são necessariamente muitos, participam da disputa pelos bens, que são sempre escassos; esses bens são utilizados por aqueles que lhes estão mais próximos. O mesmo acontece com a “religião do capitalismo”: quem tem muito dinheiro goza de privilégios excessivos. O poder que podem exercer (através de prémios de liquidez abusivos, como Keynes viu) não é razoavelmente proporcional à cobertura das necessidades, que é o ‘serviço’ que o dinheiro deveria prestar. A rainha Jezabel (1 Reis 16,29-33), que defende a sua religião, ‘partilha toalha e mesa’ com os profetas de Baal… Acontece que Yahvé é um Deus que se compadece da miséria do seu povo. Yahvé quebra a ordem religiosa e a distribuição do poder, para dar a cada um o seu direito e as suas oportunidades de vida. É por isso que Elias se opôs à expropriação da vinha de Naboth, levada a cabo com violência pelo establishment político-religioso (1 Reis 21). As disposições da Torá garantem a distribuição justa das oportunidades de vida para todos, impondo que, em caso de emergência, os ricos renunciem aos seus direitos em favor dos necessitados. A justiça compassiva da Torá cria uma comunidade na qual todos têm os seus direitos respeitados ao mesmo tempo que a formação de elites religiosas é impedida.[22] Também e antes de tudo, neste sentido o Deus da Bíblia é o Deus de todos os seres humanos, porque ama a justiça. É por isso que Ele quer ser adorado como o único Deus de todos, para lhes proporcionar a felicidade felicidade que nasce da justa distribuição dos bens a qual deve ser sempre reconquistada e defendida, face às pretensões da religião.

 

TEOLOGÍA TRAS LA DELIMITACIÓN DE CRISTIANISMO Y RELIGIÓN, in Thomas Ruster, “El Dios Falsificado – una nueva teologia desde la ruptura entre cristianismo y religión”, Sígueme, Salamanca 2011, 215-232. ISBN 978-84-301-1758-1.

 

 

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[1] Por esta razão, o programa teológico pendente pode ser chamado de "teologia da delimitação mútua do cristianismo e da religião".

[2] «A teologia liberal apresentou o nascimento da Igreja (sobretudo nos Actos dos Apóstolos) como uma necessidade de suprir a não realização da Segunda Vinda de Jesus, a qual era concebida como um acontecimento iminente. Para responder à frustração da não-chegada de Cristo, a ‘segunda geração cristã’ (e com ela, sobretudo Lucas) teve necessidade de criar uma Igreja para esse intervalo de tempo: o tempo que decorrerá entre a ressurreição de Jesus e a sua vinda no final dos tempos. Esta visão, para mim, é falsa, pois des-Historifica a ressurreição de Jesus e des-Escatologiza a Igreja. A Igreja não nasce de uma Parusia frustrada, mas da Presença Gozosa de Jesus vivida dentro da História. A presença de Jesus é histórica, não enquanto “presença visível” e empírica, mas como “presença transcendente” vivida dentro da História concreta.» (Pablo Richard, «El movimiento de Jesús antes de la Iglesia», Sal Teræ, 2000, p.30-31. ISBN 978-84-293-1360-5)

[3] E. Kästner di-lo assim: «Judeu, cristão ou hotentote, todos nós acreditamos em um só Deus».

[4] Para além das obras já citadas de Hick, Knitter e Tracy, confira, em jeito de visão de conjunto, R. Bernhard, «Der Absolutheitsanschpruch des Christentums. Von der Aufklärung bis zur Pluralistischen Religionstheologie", 199-225; P: Schmidt-Leukel, «Skisse einer Theologie der Religionen». Sobre o debate, cf. R. Bernhardt (ed.), «Horizontüberschreitung. Die Pluralistische Theologie der Religionen».

[5] Cf. Bernhard, «Absolutheitsanschpruch», 220.

[6] Schmidt-Leukel, «Skizze einer Theologie», 455. Na minha opinião, é o contrário: todos os seres humanos são igualmente religiosos, mas os deuses são extremamente diversos.

[7] Tracy, «Theologie im Gespräch», 126.

[8] Cf. Bernhardt, «Absolutheitsanspruch», 221s.

[9] Cf. K. Wenzel, «Pluralität und Anerkennung».

[10] Como assinala B. Stubenrauch, «Dialogische Dogma. Der christliche Aufrag zur interreligiösen Begegnung», 229, in "Aufnahme des Rahnerschen Theologoumenons". Este trabalho demonstra com particular clareza o caminho da teologia de Rahner para uma afirmação do pluralismo religioso a partir de uma perspectiva cristã. Quando, como faz Stubenrauch, se tenta basear a Revelação na experiência religiosa, de repente nos deparamos com a “natureza comum” de todas as religiões ou percebemos que “cada religião, de uma forma ou de outra, ‘refere-se’ à mesma coisa” (ibid., 242ss.). As noções de «experiência teológica» e de «experiência religiosa» estão sempre interligadas.

[11] K. Rahner, «Los cristianos anónimos», in Escritos de Teología VI, Ediciones Cristiandad Tomo VI, Madrid 2007, pp. 485-493, ISBN 978-84-7057-495-5 (Tomo VI). Obra completa: ISBN 978-84-7057-433-7. Rudolf von Sinner, «Diálogo Inter-religioso: Dos “cristãos anónimos” às teologias das religiões», UNISINOS, São Leopoldo RS, 26 de Maio 2004, Celebrando a memória do centenário de nascimento de Karl Rahner. Cf. tb.: Geraldo Luiz Borges Hackmann, Ezequiel Dal Pozzo, «Investigando o conceito de “Cristianismo anônimo” em K. Ranner», Teocomunicação, Porto Alegre 2007 [a partir da biblioteca particular de Paulo Bateira]

[12]Cf. D. Berger, «Natur und Gnade. In systematischer Theologie und Religionspädagogik von der Mitte des 19. Jahrhunderts bis zur Gegenwart», 253-344; 364-423. O trabalho de Berger conseguiu demonstrar que, na pedagogia religiosa mais recente, a teologia natural do "monismo" finalmente saiu vitoriosa sobre a teologia sobrenatural do "tomismo". A refundação pendente da pedagogia da religião dificilmente pode ignorar as reflexões de Berger (veja também: 'Cuestiones sobre la Fe', Herder).

[13] Cf. I. Waldherr, «Jugend und Geld». Qualquer pessoa facilmente se aperceberá da influência determinante que o dinheiro exerce sobre o mundo juvenil.

[14] Tomás de Aquino, «Summa theologiae» 3 q 60 a 3.

[15] Th. Pröpper, «Erlösunsglaube und Freiheitsgeschichte», 19.

[16] H. Kessler, art. «Erlösung/Soteriologie», 367 e 368.

[17] F. Beisser, «Eschatologie in der Dogmatik der Gegenwart», 49.

[18] D. Sattler, «Beziehungsdenken in der Erlösungslehre», 1997. O trabalho que foi apresentado com o título «Salvar-se através das relações» ocorreu no âmbito de um concurso para uma cátedra universitária. Cito apenas o seu título; não me é permitido qualquer comentário sobre o seu conteúdo.

[19] Cf. supra, p. 146. Deste mesmo livro, cf. Capítulo «IV - O dinheiro como “God-Term”»; cf. as referências a Walter Benjamin («Kapitalismus als Religion»), ao autor John Maynard Keynes e a Martinho Lutero.

[20] É significativo que o Concílio de Trento tenha oferecido uma definição explícita de mérito (DH 1529; 1530) e se tenha referido apenas incidentalmente ao resgate e à satisfação. A relação com o capitalismo primitivo era por demais evidente.

[21] Cf. Friedrich W. Marquardt, «Was dürfen wir hoffen», I, 321-335 (basicamente aqui resumido nestas 14 páginas deste teólogo evangélico…).

[22] Cf. M. Welker, «Gottes Geist. Theologie des Heiligen Geistes», 108-173. (tradução do título: «O Espírito de Deus. Teologia do Espírito Santo»)