“A curto ou médio prazo, o tema do fundamentalismo
entrará na agenda daquelas igrejas cristãs
que demonstrem responsabilidade
pelo modo como seus fiéis leem os textos
[bíblicos] e entendem sua fé.
O que se verifica hoje é uma maré de interpretações
irresponsáveis
e injustificadas de textos evangélicos e bíblicos em
geral,
a inundar os campos confessionais.
Há de se erguer um dique seguro, que só pode ser
construído
por meio de interpretações justificadas dos textos
fundantes,
que respeitem o contexto em que eles foram redigidos,
as intencionalidades próprias de seus escritores,
a cultura e os condicionamentos históricos concretos.”
Eduardo Hoornaert, 2017
Sítio arqueológico de Khirbet Qeiyafa
(I. Finkelstein, «O Reino esquecido - Israel Norte», PAULUS, p. 78)
A ENTRADA DE YHWH EM JERUSALÉM
A prova de que YHWH não tinha conseguido ser o
deus de Israel antes da transição do segundo para o primeiro milénio a.e.c. é
confirmada pelos topónimos
de Judá ou de Israel, os quais não só datam muito provavelmente do segundo
milénio como nunca incluem o nome de YHWH. Esses topónimos referem divindades
tais como Anat (Anatot, Jeremias 1,1: o
lugar de origem do profeta Jeremias), Baal (Baal Perasín, 2 Samuel 5,20: o
lugar onde David venceu os filisteus), Dagón (Bet Dagón, Josué 15,41: uma
localidade situada no território de Judá), El (Bet El: um dos santuários
mais importantes de Israel), Yarihu (Jericó, Josué 6: o nome desta
cidade conquistada por Josué fica a dever-se ao nome de um deus lunar), Shalimu
(Jerusalém), Shamash (Bet Semes ou Bet-Chémes, 1 Samuel 6: lugar
dedicado ao deus solar, próximo de Jerusalém, onde
ficou instalada a Arca da Aliança). Estes nomes demonstram um
facto: veneraram-se toda uma série de divindades vinculadas à fertilidade, às colheitas e à recoleção.
1. YHWH EM SILO
O santuário de Silo surge pela primeira vez no
livro de Josué[1],
o qual narra de forma completamente lendária a conquista do país de Canaã pelos
israelitas[2]. Segundo
Josué 18,1, os israelitas depois de se apoderarem do país erigiram nele o
primeiro santuário, bem como o «óhel mó ‘éd», a «tenda do encontro».
Este versículo pertence a uma passagem recente, pois pressupõe a ideia
sacerdotal de um santuário móvel construído no deserto e de um lugar de
encontro entre Moisés e YHWH. A mesma ideia está subjacente a Josué 22,29, em
que as tribos da Transjordânia se recusam a construir um altar dizendo que o
único altar legítimo se encontra diante da sua morada, o «miskãn», o
santuário. Este «lugar sagrado» seguramente é também uma alusão a Silo[3]. Esse
lugar volta a surgir nos últimos capítulos do livro dos Juízes (18-21), os
quais são hoje em dia considerados ‘um apêndice’. Juízes 18,31 evoca
uma época em que a casa de Deus (‘elohîm) se encontrava em Silo.
Estes textos tardios parecem ter conservado a
memória de um santuário yahvista nesta localidade situada em Efraim, cuja
importância na época da transição do Bronze recente para o Ferro foi confirmada
pela arqueologia. Silo, um lugar ocupado já desde o segundo milénio, voltou a
ser muito importante entre meados do século XII até o século XI. Por volta do
ano 1050 a.e.c. foi destruído – aparentemente pelo fogo – talvez pelos
filisteus e muito pouco repovoado até ao século VIII e VII[4]. A
importância do lugar (Silo) e a sua destruição devem ter tido um significativo impacto
na mente dos autores bíblicos; o facto de Silo ter albergado, outrora, um
santuário de YHWH seguramente terá constituído uma memória de valor precioso.
Posteriormente, alguns autores bíblicos interpretaram a sua destruição como
tendo sido provocada pelo próprio YHWH (Jeremias 7; 26)[5]. No
século VI a.e.c., altura em que estas narrativas foram fixadas por escrito, a
memória de Silo enquanto santuário permanecia muito viva ainda.
Na Bíblia, Silo (1 Sam 1,3)
desempenha um papel muito importante. Tem a ver com o profeta Samuel, a quem –
segundo os primeiros capítulos do livro que ficou conhecido pelo seu nome –
YHWH encarregará de ungir Saul como o primeiro rei de Israel. Segundo o relato
bíblico, Samuel é oferecido pela sua mãe ao santuário de Silo. Este santuário
não é descrito como se fosse uma tenda, mas como um templo murado[6], ou
seja, um santuário yahvista ao qual se faziam peregrinações e onde YHWH se
revelou a Samuel (1Samuel
3). O carácter neutral – eventualmente até positivo –, como é apresentado o
templo de Silo na Bíblia, explica-se pelo facto de ser uma tradição antiga, por
certo, relacionada com a memória de um facto histórico. Tudo leva a crer que
Silo foi um santuário yahvista importante, que inclusivamente possuía uma estátua de YHWH. É provável que YHWH
tenha passado a ser o deus de Saul a partir deste lugar santo ou,
inclusivamente, desde o começo da acção do próprio profeta Samuel.
2. YHWH, DEUS DE SAUL E DEUS DE DAVID
O problema
da historicidade dos três primeiros reis de Israel e de Judá é complexo pelo
que, para ser aqui apresentado, necessitaria de ser tratado de uma forma demasiado
longa e demorada[7].
Contentemo-nos com as seguintes observações. Fora da Bíblia não temos nenhum
testemunho directo destes reis. A única excepção é a famosa estela de Tel Dan,
datada do século VIII a.e.c. [Nota 2, atrás: cf. André Lemaire, p. 28], da qual
foram encontrados três fragmentos muito importantes. A inscrição – em aramaico
– provavelmente celebra a vitória de Hazael[8], rei de
Damasco, sobre uma coligação de Israel com Judá. Nela podemos ler: «[…] rei de
Israel e matei [A´haz] “yahú” filho de [Yoram r]ei (de) “btdwd”. E
coloquei […][9]».
A maioria dos investigadores acham que a expressão «btdwd» significa
«casa de David»[10],
apesar da estela nada referir a respeito da personagem histórica David; por
outro lado, revela que no século VIII os arameus chamavam ao reino de Judá
«casa de David[11]»
e os assírios ainda designavam o reino de Israel com o nome de «casa de Omrí».
É muito difícil discernir os acontecimentos
históricos concretos que subjazem nos relatos bíblicos sobre as origens da
monarquia. Vemos que os redactores bíblicos descreveram os três reis – Saul,
David e Salomão – como sendo todos eles “figuras tipo”: Saul, o rechaçado,
o que revela a visão que os redactores do Livro dos Reis possuíam acerca do
Reino do Norte; David, o guerreiro, o eleito de YHWH, fundador do Reino
e da dinastia; Salomão, o constructor e sábio. No entanto, existem
numerosos elementos caracterizadores, que constam dos livros de Samuel e dos
Reis, que não podem ser mera invenção. A transição da Idade do Ferro I para a
Idade do Ferro II (aproximadamente, a partir do ano 1000 a.e.c.) coincide com a
origem dos reinos do Próximo Oriente (Moab, Amón, os reinos amorreus). O facto
de um «reino» israelita estar a nascer numa zona de influência dos filisteus é,
certamente, um facto histórico. Os relatos dos livros de Samuel mostram que os
territórios de Saul e de David se encontram numa região controlada pelos
filisteus; mais, David surge representado como um dos seus vassalos, ainda que
os textos bíblicos procurem apresentá-lo de forma apologética.
A Bíblia constrói as origens da monarquia em
torno das figuras de Samuel e de Saul. Samuel é profeta e, ao mesmo
tempo, está ligado ao santuário de Silo. Para além disso, a Bíblia apresenta
Samuel como «juiz», o que pressupõe que seria um militar carismático que
comandava uma guerra contra os filisteus. Ainda que a Bíblia contenha relatos
muito díspares acerca da ascensão ao trono de Saul (1 Samuel 8-12),
Samuel está vinculado de várias formas com a investidura de Saul como rei. O
seu nome, de etimologia pouco clara («’El’ está no alto», «O seu nome é ‘El’»),
contém um elemento
teofórico, ao passo que Saul («o que é procurado»; um nome igualmente
existente em neo-assírio: “Sa’uli” e em fenício “s’l”) não contém
nenhum elemento teofórico.
Quando observamos os nomes dos lugares
mencionados na história de Saul damo-nos conta, para além do já referido, de
que eles circunscrevem um território muito limitado. No segundo livro de Samuel
encontra-se uma notícia bastante antiga que contradiz a versão oficial segundo
a qual David teria «sucedido» directamente a Saul: «Sem dúvida, Abner, filho de
Ner, chefe do exército de Saul, apoderou-se de Isbaal[12], filho
de Saul, e levou-o a Maanain. Estabeleceu-o como rei ‘para’ (‘el)
Galaad, com poder sobre os asseritas[13], sobre
Jezrael e sobre (‘al) Efrain, sobre Benjamin, ou seja, sobre todo o
território de Israel» (2 Samuel 8-9). A
mudança de preposição (de «’el» para «’al») pode apontar para uma
diferença muito importante: «’al» designa um território sob a soberania
directa de Saul, ao passo que «’el» refere-se a territórios que
reconhecem essa soberania sem que, contudo, estejam integrados directamente no
reino de Saul[14].
Este território de Saul poderá presumivelmente corresponder àquele Israel que a
estela de Merneptah contém[15].
Os nomes dos filhos de Saul demonstram que
este venerou YHWH: Jónatas («YHWH deu») é um nome yahvista e Isbaal
[1 Samuel 14,49:
Jisvi] («homem de Baal») contém o elemento teofórico «ba’al» − este
mesmo elemento está no nome de um filho de Jónatas chamado Mefibaal («Amado de
baal»). Este «Baal» será um deus distinto de YHWH ou o «ba’al» («amo,
senhor») foi um título de YHWH? Retomaremos esta questão.
3. YHWH E A ARCA
Segundo o que diz a Bíblia, YHWH, antes de
entrar em Jerusalém, está vinculado à «arca» (o termo hebraico «‘ãron»
significa «caixa, cofre»). Nas revisões posteriores do texto esta arca passa a
ser a «arca da aliança» («’ãron habberît»), mas o nome mais antigo
talvez fosse a «arca de YHWH». Segundo os autores provenientes do meio
sacerdotal, a arca teria sido feita no Sinai durante a construção do santuário
móvel.
A arca, que no relato da conquista recolhido
no livro de Josué é transportada pelos sacerdotes, está praticamente ausente do
livro dos Juízes, mas surge com frequência em duas secções dos livros de Samuel
(1 Samuel 4-6 e 2 Samuel 6). Estes dois capítulos constituem uma unidade aparte
e é denominada «história da arca». Será que na sua origem ela fazia parte de
uma tradição independente? É muito provável, ainda que não seja nada fácil
datar estes relatos[16].
Segundo a história da arca, ela desempenha um papel muito importante nos
conflitos militares com os filisteus. Segundo parece, ela serve para revelar a
presença de YHWH aquando das guerras dos israelitas contra os filisteus. Quando
estes últimos se apoderam dela e a colocam no santuário do seu deus Dagon[17], a
estátua desse deus estilhaça-se. É por isso que, de imediato, os filisteus
levam a arca de Asdod a Ecron (1 Samuel 5,10),
onde os habitantes dessa região acabam por adoecer de tumores pestíferos,
maneira de mostrar o poder de YHWH que aparentemente habita a arca ou, então,
que a arca materializa a presença de YHWH. Por isso, os filisteus decidem
devolver a arca aos israelitas:
“Os filisteus convocaram os seus sacerdotes e
adivinhos e perguntaram-lhes: «Que faremos da Arca do SENHOR? Dizei-nos como
havemos de a devolver ao seu lugar.» Eles responderam: «Se devolveis a Arca do
Deus de Israel, não a deveis mandar sem nada, mas juntai-lhe uma oferta de
reparação. Então sereis curados; sabereis por que não se apartava de vós a sua
mão.»” (1 Samuel 6,2-3)
O carácter sagrado e perigoso da arca também
se pode virar contra os israelitas de Bet-Chémes, tal como a história do
regresso da arca o mostra:
“O SENHOR castigou os habitantes de Bet-Chémes
porque tinham olhado para a Arca (v.13); e feriu
setenta homens (v.19)
– cinquenta mil homens[18]. O povo
chorou por causa de tão grande castigo com que o SENHOR o havia ferido. Os
habitantes de Bet-Chémes disseram: «Quem poderá estar na presença do SENHOR,
deste Deus santo?» (1 Samuel 6,19-20)
Por causa disso, os israelitas enviaram a arca
para Quiriat Iarim e depositaram-na na casa de um certo Abinadab, cujo filho
(Eleázar, Cap. 7,1)
consagram para que a guarde. Este filho consagrado adverte para a necessidade
de qualidades específicas para todos aqueles que queiram aproximar-se do lugar
da presença de deus (1Samuel 7,3-6). A
arca foi, antes de mais nada, um santuário de guerra móvel, transportável. A
sua perigosidade confirma a ideia de que a arca
representava o deus de Israel.
Frequentemente, a arca foi relacionada com os
santuários portáteis dos nómadas. A sua presença no santuário de Silo dispensa
esta tese. Podemos relacionar a arca com os cofres sagrados atestados na
iconografia egípcia ou nos estandartes de guerra assírios ou com outros
objectos igualmente representativos da divindade. Por exemplo, os estandartes
de Luristan (Irão, território do monte
Zagros), que datam do período que vai do século XI ao século VI a.e.c.,
representam de uma forma estilizada uma divindade sob a forma de um senhor dos animais[19]. Entre
os fenícios, parece ter havia registos da existência de “um cofre sobre um
carro”. Filon de Biblos (ca. 65 – ca. 140), na «História Fenícia», conta que
dois deuses chamados, respectivamente, «Campo» (“agros”, que corresponde
a “saddãy”) e «Rústico» (“agrotes”), estavam associados a um
cofre (“naos”) e era puxado por dois animais. A imagem ou a estátua de
um deus num santuário portátil está igualmente documentada na numismática, numa
moeda que procede de Hierápolis, uma fundação termal grega situada na Turquia,
e datada do século II a.e.c.
4. QUE CONTINHA A ARCA DE YHWH?
O facto de a arca estar em cima de um carro
(«novo», ou seja, feito de propósito!) puxado por animais (1 Samuel 6, 7)
indica que o objecto era muito importante. Segundo um texto sacerdotal do livro
do Êxodo (Ex 25,10),
a arca media 112 X 67 X 67 cm. Porém, estamos perante um texto muito tardio,
tal como também é tardio o texto do Deuteronómio (Dt 10,1-5) segundo
o qual a arca era um cofre que continha as duas tábuas da lei. Do mesmo modo, o
primeiro livro dos Reis constata, de um modo apologético, que «na arca não
havia nada mais do que as duas tábuas de pedra que lá foram depositadas por
Moisés, no Horeb…» (1
Reis 8,9).
Estes textos indicam, com muita clareza, que
as tábuas da lei substituem seja lá o que for. Eventualmente, elas ocupam o
lugar de duas pedras sagradas, tal como também se encontra em certos cofres de
beduínos pré-islâmicos. Em algumas tribos árabes, tratava-se de duas deusas – ‘al-Lat
e ‘al-Uzza − que mais tarde foram substituídas por duas cópias do
Alcorão. Também existiam cofres contendo apenas uma única divindade. Portanto,
podemos imaginar que a arca transportasse dois betilhos
(pedras
sagradas dos cananeus) ou duas estátuas, as quais representavam YHWH e o
seu par feminino Asherá[20], ou,
eventualmente, uma estátua apenas que representasse somente YHWH, sem qualquer
tipo de acompanhante.
5. DAVID E JERUSALÉM
David, rival de Saul, estabeleceu-se a
princípio em Hebron, território de Judá. David teve de se apoderar da cidade de
Jerusalém, que nesse tempo tinha uma dimensão muito modesta. A título de
comparação, Ascalon ocupava, nessa época, 50 a 60 hectares, Ecron 20 hectares,
Jerusalém entre 4 e 6 hectares e o sítio arqueológico de Khirbet Qeiyafa,
recentemente escavado, 2,3 hectares; no entanto, a cidade de Jerusalém estava
fortificada por dupla muralha. Podemos interrogar-nos porque é que David, que
havia vencido os filisteus, não fez de Ascalon a sua capital. A resposta é que,
provavelmente, David continuou a ser vassalo dos
filisteus durante todo o seu reinado[21].
A cidade de Jerusalém existe desde o século
XVIII a.e.c.[22]
O seu nome significa provavelmente «fundação de Salem»; ‘Salimu’
está documentado em textos de Ugarit como sendo uma divindade do crepúsculo. Na
correspondência de
Amarna (umas tabuinhas
de natureza diplomática que o
faraó do Egipto trocou com soberanos estrangeiros do Próximo Oriente)
podemos ver que no século XV a cidade fora governada por um reizete de nome
Abdi-Sheba, que fora vassalo do faraó e a quem se queixava de ataques dos hapirus.
Jerusalém era, portanto, uma cidade cananeia que
na segunda metade do segundo milénio se encontrava em decadência, o
que explica a facilidade com que David conseguiu apoderar-se desse lugar. Se David escolhe Jerusalém como capital – a «cidade de
David» −, ele fá-lo por razões estratégicas: enquanto cidade
cananeia, Jerusalém encontra-se em território «neutro» e, para além disso,
Jerusalém não pertence a nenhuma tribo ou clã que tivesse aceitado David como
rei. Ao aliar-se à «aristocracia local», David converte Jerusalém na sua cidade (2 Sam 6, 9-10: «E não permitiu
que a levassem para sua casa, na Cidade de David»). Na época de
David e Salomão, a cidade de Jerusalém consiste unicamente num aglomerado
urbano à volta de uma colina que está de frente para o monte das Oliveiras.
Conforme o segundo livro de Samuel, David fez
transportar a arca de YHWH de Quiriat Iearin até Jerusalém, uma viagem de cerca
de 10 km (2 Samuel 6). O transporte da arca é relatado como uma festa com
conotações sexuais e eróticas. A dança de
David nu − coberto apenas pela insígnia votiva de linho (o éfode dos sacerdotes[23]) e criticado
pela sua mulher (Micol) que por o ter criticado é castigada com a ‘vergonha da
esterilidade’ – o relato deste acontecimento reflecte a importância da fertilidade. Se o
transporte da arca significa, de facto, a entrada de YHWH em Jerusalém, todos
estes pormenores e particularidades que rodeiam o transporte e a chegada não
devem surpreender de modo nenhum, porque o que é facto é que estamos perante
uma “divindade-tumultuosa” de tipo «baálico». A nudez de David diante de YHWH é
equivalente à de Saul. Em 1 Samuel 19, 20-24
ficamos a saber que, aquando de uma perseguição ao seu inimigo David, Saul, ao
encontrar-se com um grupo de profetas, entra em êxtase, despe a roupa e fica
nu:
“[20]Saul mandou homens para prender David,
mas, quando viram o grupo dos profetas em êxtase com Samuel à frente, o
espírito de Deus veio sobre os enviados de Saul e começaram, também eles, a
profetizar. [21]Contaram isto a Saul, que enviou outros mensageiros, mas também
estes se puseram a profetizar. Saul mandou um terceiro grupo, aos quais sucedeu
o mesmo. (…) [23]Mas, no caminho para Naiot de Ramá, apoderou-se também dele o
espírito de Deus, e foi cantando e profetizando pelo caminho, até chegar a
Naiot de Ramá. [24]Despiu também as suas vestes e pôs-se a cantar com os outros
diante de Samuel, ficando assim despido e prostrado por terra, durante todo o
dia e toda a noite. Daí o ditado: «Estará Saul também entre os profetas?»
Não há a mais pequena dúvida de que os
redactores bíblicos sugerem um paralelo entre a nudez de Saul e a nudez de
David diante de YHWH. Partindo de 1 Samuel 19, podemos imaginar que a dança de
David em 2 Samuel 6 é igualmente uma dança de êxtase e que este ‘estado’
desempenhava, quiçá, uma função de legitimação para um rei, o qual, enquanto
mediador entre o povo e a sua divindade tutelar, teria de ser capaz de
demonstrar que também tinha acesso à «esfera divina». 1 Samuel 19 coloca Saul em relação com a mediação
profética; 2 Samuel 6 relaciona David, através do éfode, com a mediação
sacerdotal. Quando David se aproxima da arca é igualmente «arrebatado» por YHWH
só que, ao contrário do que aconteceu aos filisteus ou às gentes de Bet Semes,
David não morre. Ao contrário de certos textos sacerdotais mais recentes, que
proíbem os sacerdotes de mostrarem, mesmo sem querer, os seus órgãos sexuais[24], a nudez diante do divino[25] não constitui nenhum
problema.
6. YHWH EM JERUSALÉM SEM TEMPLO?
De acordo com a narração bíblica, David, o
fundador da dinastia, não erigiu o santuário oficial de Jerusalém. Os livros de
Samuel relatam que a arca foi, para começar, albergada numa tenda de campanha,
porque o templo ainda não havia sido erguido. É surpreendente que um rei
fundador não construa um santuário para a sua divindade tutelar. Não em vão, os
textos bíblicos procuram explicar porquê. Segundo 2 Samuel 7, no
mesmo momento em que YHWH promete a David que a sua dinastia durará para
sempre, o mesmo deus também lhe diz que nunca desejou habitar num templo, mas
numa tenda. Esta promessa dinástica faz-se mediante um jogo de palavras: não
será David que edificará uma casa para YHWH, é YHWH que edificará uma casa para
David, ou seja, uma descendência e uma dinastia. É por isso que quem irá
construir um santuário para YHWH não será David, mas o seu filho. Nos livros
das Crónicas, escritos duzentos anos mais tarde, dá-se uma outra explicação
para o sucedido. Em primeiro lugar, informa-nos que David havia previsto, qual
arquitecto, o plano do templo que transmitiu ao seu filho Salomão; mais adiante
explica que David estava impedido de construir aquele santuário porque,
enquanto homem de guerra, havia derramado demasiado sangue[26].
O facto é que David não construiu o templo
porque, quiçá, já existisse um grande santuário em Jerusalém quando ele anexou
esta cidade, um santuário evidentemente ocupado
por outra divindade. O texto de 2 Samuel 12,20
parece pressupor a existência de um templo em Jerusalém na época de David. Após
o adultério com Betsabé (2 Samuel 11),
YHWH fez com que morresse o primeiro filho desta união. Quando se inteirou da
morte do seu filho, «David levantou-se do chão, lavou-se, perfumou-se, mudou de
roupa e entrou na casa de YHWH e prostrou-se [para o adorar].» Das duas, uma: ou
se trata de uma notícia anacrónica ou estamos perante uma memória que perdurou
e que diz que David, de facto, frequentou um santuário pré-existente. Segundo a
tradição bíblica, foi Salomão quem levou a cabo a construção do templo.
7. A CONSTRUÇÃO DO TEMPLO POR SALOMÃO
Tudo o que diga respeito a Salomão, na Bíblia,
surpreende-nos pela ambiguidade do respectivo retrato. Salomão é apresentado
como ‘o rei sábio’ por excelência que aplica sentenças muito elaboradas,
justíssimas e intelectualmente brilhantes (1 Reis 3, 16-28)
e que, para além disso, se empenhou em acumular todos os conhecimentos
possíveis (1 Reis
5, 9-14). além disso, Salomão é, de entre os que reinam, o homem mais rico:
reina sobre um império mundial (1 Reis 5,1)
admirado por todos os monarcas até aos confins do mundo (1 Reis 10). Como
constructor do templo de Jerusalém, cumpriu fielmente o que o seu pai David não
pode realizar, ou seja, erigir em Jerusalém um santuário esplêndido para o deus
de Israel (1 Reis
6,8). Deste modo, foi «o maior de entre todos os reis da terra, em riqueza
e em sabedoria» (1
Reis 10,23). Na Bíblia não se encontra semelhante comentário dirigido a
outro rei de Israel ou de Judá. Contudo, e simultaneamente, encontra-se um
comentário que ensombrece esta descrição. A chegada de Salomão ao poder é
resultado de intrigas e assassinatos (1 Reis 1-2), isto
já para não falar do seu nascimento algo escabroso (2 Samuel 12, 1-25).
Este “rei exemplar” incumpre com todas as prescrições do Deuteronómio amando
muitas mulheres estrangeiras (1 Reis 11,1-6) e
estabelecendo lugares de culto fora de Jerusalém (1 Reis 11, 7-10).
Para além disso, submeteu o seu povo a uma dura servidão (1 Reis 5, 27; “corveia”
ou “jorna”: trabalho gratuito e obrigatório; esta informação é contraditada em 9,22: «Dos filhos
de Israel, Salomão não destinou nenhum à escravatura») e foi o responsável pela
divisão do «Reino Unido» (1 Reis 11,6-13).
Podemos explicar estas contradições ao nível sincrónico atribuindo ao narrador
a vontade de descrever o maior rei de Israel como uma figura de contrastes e,
através desta figura assim caracterizada, derramar igualmente as mesmas cores
da ambiguidade sobre toda a história da realeza de Judá[27]. No
entanto, é mais plausível relacionar estas distintas perspectivas com
diferentes momentos da formação da história de Salomão.
Ainda que haja alguns estudiosos que procuram
reconstruir uma história de Salomão como se ela decorresse no século X a.e.c., nós
somos obrigados a abandonar este ponto de vista. Hoje em dia está mais do que
clara a ideia de que o «Império salomónico» é
pura ficção e que os capítulos que vão do
3 ao 11 do Primeiro Livro dos Reis reflectem, isso sim, a realidade do
Império neo-assírio que, na Bíblia, acaba por ser usada e vertida sobre
«Israel» a fim de conferir a Israel um passado glorioso[28]. As
fabulosas construções de Haçor, Megido e Gézer (1 Reis 9, 15),
que eram vistas como «provas arqueológicas» da existência do império
salomónico, provavelmente datam do século IX e não do X[29]. Mesmo
que a disputa sobre a «cronologia de base» ainda não tenha sido resolvida
definitivamente[30],
não se pode negar que o relato bíblico reflecte mais o contexto da época assíria do que o contexto do século X. Neste século, a dimensão de Jerusalém não era a de uma capital
de um império.
A relação com os fenícios de Tiro (1 Reis 9, 10-20),
que proporcionaram a madeira necessária para as construções salomónicas bem
como os numerosos contactos com o Egipto são comparáveis aos do período
neo-assírio[31].
Além do mais, o único Hiram de Tiro – a que aludem 1 Samuel, 1 Reis 5,15 e 1
Crónicas – historicamente atestado, surge com o nome de Hirammu nos anais do rei assírio
Tiglat Pileser (por volta do ao 739)[32]. Várias
etapas do relato da construção do templo de Salomão (1 Reis 6-8) voltam a ser encontradas
em numerosos documentos mesopotâmicos, mas a própria história «é
particularmente semelhante à dos relatos das construções assírias»[33]. O
mesmo se passa quanto às etapas seguintes: a decisão de construir ((1 Reis
5,15-19), a aquisição dos materiais de construção (5,20-26), a descrição da
mão-de-obra (5,27-32), a descrição do mobiliário (1 Reis 6-7) e a dedicação do
santuário (1 Reis 8).
Tais paralelos fazem pensar que terá havido uma primeira versão da história de Salomão
que dataria do período neo-assírio, mas foi re-redigida muito provavelmente no
século VII a.e.c.[34] É muito
provável que os escribas tenham tido à sua disposição alguns documentos muito
antigos, mas não uma história de Salomão já estruturada. A reconstrução dos
documentos antigos é uma tarefa difícil. No palácio de Jerusalém podiam ter
ficado por lá os anais de Salomão, que são referidos em 1 Reis 11,41 («O resto
das palavras de Salomão, tudo o que ele fez, a sua ciência, está escrito no
Livro dos Anais de Salomão.»). As tradições antigas acerca de Salomão
encontram-se eventualmente nalgumas listas que constam de 1 Reis 4[35]. O
relato da construção do santuário, que culmina com a sua inauguração (1 Reis 6-8), em
grande parte é obra dos redactores denominados deuteronomistas; no entanto,
podem conservar memórias muito mais antigas.
Não entraremos, aqui no debate acerca da
historicidade de Salomão, o qual, ao contrário de David, não é mencionado fora
da Bíblia. É claro que existem alguns argumentos a seu favor, sobretudo a
escabrosa história do seu nascimento. Segundo Timo Veijola e Ernst Knauf, é
possível que Salomão fosse um usurpador e que a história do adultério com
Betsabé fora inventada para mostrar que ele, de todas as formas, descendia de
David, ainda que não por via «oficial», ou seja, através das mulheres «destinadas»
ao rei[36]. Se
Salomão nunca chegou a ser filho biológico de David, toda a dinastia davídica
seria então uma construção mítica, o que no fundo não alteraria grande coisa.
8. UM TEMPLO PARA YHWH?
O centro da apresentação (bíblica) pública do
rei Salomão está constituído pelo longo relato da construção e da inauguração
do templo (1 Reis
6-8). Este
relato muito detalhado nem sempre é de fácil entendimento. Por outro lado, o
texto grego apresenta diferenças face ao texto massorético, pelo que podemos
sugerir que os tradutores gregos tiveram dificuldades para compreender o texto
hebreu ou então porque dispunham de um texto hebraico diferente daquele que nós
encontramos agora na Bíblia hebraica.
Em primeiro lugar, podemos interrogar-nos se o
relato da «construção» em 1 Reis 6-7 não se referirá antes a uma renovação ou
modificação de um santuário existente previamente[37]. Konrad
Rupprecht demonstrou que parte da introdução do relato − (1 Reis 6,2-3) que
indica as dimensões do templo −, de seguida, e num surpreendente e absurdo
golpe de rins, mete-se a falar da construção de um anexo: «Adoçou ao muro uns
anexos à Casa, à volta de todo templo e do debir[38],
e fez algumas habitações laterais à volta: «Encostados aos muros do templo,
mesmo à volta, construiu andares que rodeavam os muros do templo, o pórtico e o
santuário; deste modo cercou toda a casa de andares laterais.» (v. 5). O versículo 7 não faz qualquer sentido, tanto
mais que se trata de um edifício já construído, já existente: «Na construção do
templo só se empregaram pedras lavradas na pedreira; deste modo, durante os
trabalhos de construção, nenhum ruído se ouvia, nem de martelo, nem de cinzel,
nem de qualquer outra ferramenta.». Por conseguinte, é bastante provável –
tal como acontece aquando da «construção» de outros santuários do Próximo
Oriente antigo – que o edifício salomónico assentasse
sobre um santuário previamente existente. Poderíamos também pensar
que Salomão transformara um santuário sem cobertura num templo. Porém, o relato
de 1 Reis 6-7 contém indícios muito mais a favor da hipótese anterior.
O núcleo antigo do relato da inauguração do
templo em 1 Reis 8 encontra-se provavelmente nos versículos 1 a 13[39], e
talvez ele dissesse o seguinte[40]: «(2*)
[41] Todos
os homens de Israel se reuniram na presença do rei Salomão no mês de Etanim,
que é o sétimo mês, durante a festa solene. (3*)Quando todos os
anciãos de Israel acabaram de chegar, os sacerdotes transportaram a Arca. (6*)
Os sacerdotes levaram a Arca da aliança do SENHOR para o seu lugar no santuário
do templo, o ‘debir’ [Santo dos Santos], sob as asas dos querubins.» Esta
versão antiga terminava com a dedicação do templo pronunciada pelo rei.
No texto massorético, a dedicação encontra-se
nos versículos 12-13. Na versão grega, está situado num lugar muito diferente:
no versículo 53 (3 Reis 8, 53a), após a longa oração de Salomão. É muito provável que a versão grega esteja baseada
num texto hebraico bem diferente e mais antigo[42]. Este
texto grego poderá eventualmente ser traduzido deste modo:
“Nesta altura e a respeito da casa acabada
de ser construída por ele, Salomão disse:
«O sol (COD) fez com que o Senhor fosse
visível no céu,
disse que queria habitar na obscuridade,
construí a minha casa, uma casa magnífica/de
governo para ti,
para [o Senhor] voltar a habitar sempre aí».
Não será isto que está escrito no livro do
canto?”
O texto massorético, presente na Bíblia
hebraica, parece algo mais claro:
“Então Salomão disse: «YHWH disse que
permaneceria numa espessa obscuridade.
Assim, pois, como construção, contruí uma casa
de governo, um lugar para ti, para que nela habites para sempre.”
O texto grego é complicado e podemos interrogar-nos
se o tradutor entendeu bem o que estava a traduzir. A primeira frase a seguir à
introdução é abstrusa. Se o grego traduz as seguintes palavras da Vorlage[43] em
hebreu, podemos perguntar-nos se YHWH (o Senhor) não deveria vir depois das
palavras ‘sol’ e ‘obscuridade’ tal como vem no texto massorético. Deste modo, o
sol deixaria de ser o complemento directo (que é o que crê o tradutor),
mas o sujeito, passando o texto hebraico antigo a ser deste modo:
“O sol (Shamash) deu a
conhecer YHWH a partir do céu:
«YHWH dissera que queria habitar na
obscuridade».”
Esta reconstrução permite concluir que a casa
que Salomão contruiu ou renovou fora em primeiro lugar uma casa para Shamash (o
que curiosamente até coincide com a orientação este-oeste do Templo de
Jerusalém que é referida em 1 Reis 6,8; 7,39: «Colocou
cinco pedestais do lado direito [= sul] da Casa, e os outros cinco, do lado
esquerdo [= norte] da Casa»). Neste templo, reservou-se uma espécie de capela
lateral, um segundo “debîr”
[o lugar mais sagrado do Santuário; cf. Link]
para YHWH. Ou seja, o santuário albergaria não
um, mas dois deuses.
ao
lado de planta de um Palácio Real (Próximo Oriente)
Comparemos os relatos em 1 Reis 6 (hebraico)
e 3 ‘Reinos’ 6 (grego):
Texto massorético: 1 Reis 6, 16-19
[16] Em seguida revestiu com placas de cedro,
desde o solo aos tectos, o espaço de vinte côvados que forma o fundo do templo.
Ele transformou o interior do edifício em lugar santíssimo, o Santo dos Santos
(dêbîr). [17] Os restantes quarenta côvados, esses, constituíam a Casa,
ou seja, o Templo. [18] Todo o interior da Casa era revestido de cedro em
tábuas entalhadas com flores e frutos; tudo era de cedro, não se via pedra
alguma. [19] Construiu o santuário ao fundo, no interior do templo, para
colocar lá a Arca da aliança do SENHOR.
Septuaginta, texto original[45]:
3 Reinos 6,16-19
Edificou um lado (tô pleurón) de vinte
codos de altura, o único [lado] desde o chão até às vigas do tecto; e fez o dabir,
o Santo dos santos. E o santuário (naos) media à frente do dabir
40 codos, dentro, no centro da Casa, para aí ser colocada a arca da aliança do
Senhor.
Esta descrição, algo complexa, poderia
eventualmente sugerir que YHWH (a sua estátua?) no princípio fora colocada na
capela lateral do templo; no entanto, há que reconhecer que este texto grego é
demasiado confuso…
Na Mesopotâmia, existe algo paralelo, no qual
o deus Marduk mandou construir um santuário para o deus lunar. No cilindro
de Nabónides de Sippar
(i.8-ii.25) existe um texto em que o rei Nabónides de Sippar
(556-537 a.e.c.) descreve o restauro de três templos. O texto diz o seguinte: «Marduk
disse-me […] constrói Ehulhul e faz com que Sin, o grande senhor, estabeleça aí
a sua morada»[46].
Segundo 3 ‘Reinos’ 8, 53a, o deus solar informa Salomão de que YHWH quer
habitar nas «nuvens espessas», nas «trevas» (grego, gnóphõi; hebraico, ‘ãrãpel),
as quais constituem o domínio, o reino onde YHWH reina como deus da tempestade
e da guerra, tal como está atestado, por exemplo, no Salmo 18,8-15 («Inclinou
os céus e desceu, com densas nuvens debaixo dos seus pés»).
Passemos, agora, à segunda parte desta
‘dedicação’. É legítimo interrogarmo-nos sobre quem é o sujeito da frase «para
que viva para sempre ali[47]»: o
deus solar, YHWH ou o rei? É provável que a ambiguidade tenha sido deliberada.
O templo também era um santuário real, o lugar santo e centro do reino. Se o
rei for considerado o filho de deus, a casa de deus, de algum modo, também é a
casa do rei. Sendo assim, a ideia de «voltar a habitar para sempre ali» pode
referir-se também à sucessão dos reis e, nesse caso, reflectir a ideia de uma
dinastia eterna. Os massoretas corrigiram esta proximidade entre rei e
divindade deixando claro que YHWH é o único que pode habitar no templo de
Jerusalém[48].
Provavelmente, também eliminaram toda e qualquer menção a uma divindade solar:
a vontade de habitar na obscuridade passa, então, a proceder exclusivamente do
próprio YHWH. A expressão do texto massorético «para que habites para sempre»
retoma um Salmo presente no livro do Êxodo: «Fá-lo-ás entrar e plantá-lo-ás na
montanha que é a tua herança, lugar que fizeste para Tu habitares, SENHOR,
santuário que as tuas mãos, Senhor, estabeleceram.» (Êxodo 15,17) Este
texto não deixa dúvidas de que se trata claramente de uma casa para o trono de
YHWH, e não para o rei.
Em resumo. Parece bastante claro que a versão
grega pressupõe uma forma mais antiga de dedicação do templo, donde se conclui
que este santuário pertencera primeiramente a uma divindade solar à qual, mais
tarde, se associou YHWH. Os cultos ao sol existiam em toda a Mesopotâmia e no
Egipto, com facetas diversas: o sol como criador
e garante da vida, mas também como juiz das acções boas e más dos
seres humanos. Um selo encontrado em Jerusalém num túmulo do século VII a.e.c.
mostra um Deus Solar ladeado por dois deuses menores: o “Direito” e a “Justiça”[49].
A concepção de um deus solar justiceiro
encontra-se num certo número de Salmos da Bíblia, tal como se encontra na
história de Sodoma e Gomorra, na qual o castigo divino advém no momento em que
o sol irrompe e se ergue. Apetece pensar que os ‘dois mensageiros’ mais a ‘divindade’
– que fazem parte desse relato do capítulo 19 do
Génesis –, juntos, representam um deus solar com os seus dois acólitos.
No primeiro capítulo do livro do profeta
Isaías (1,21;
cf. também v. 26), Jerusalém surge como a cidade na qual residia o Direito e a Justiça:
«Como se tornou numa prostituta a cidade fiel! Outrora, cheia de direito, nela
a justiça tinha morada …». Estes textos podem conservar memórias da presença, em Jerusalém, de um deus solar
que, rapidamente, foi assimilado por YHWH.
A ideia de uma veneração
conjunta de um deus solar e um deus da tempestade encontra também
suporte na iconografia, não só no Sul, mas também em várias estelas do norte da
Síria (Til Barsip/Tell Ahmar: primeiros séculos do primeiro milénio a.e.c.) e
da Anatólia, nas quais se pode ver um deus da tempestade munido dos seus
atributos e, acima dele, o disco solar.
Em suma, YHWH, quando entra em Jerusalém e
ocupa o seu lugar no templo, não passa a ser a partir desse instante, num
estalar de dedos, a divindade principal. Virá a sê-lo, sim, mas mais tarde, nos
séculos que lhe seguirão, quando dois reinos o disputarem, o passarem a
reivindicar como sendo o seu e o único deus verdadeiro.
Estela
do norte da Síria:
deus
da tempestade empunhando um trovão (arma?) e um
raio;
por cima, o símbolo do deus solar
[2] Como veremos mais adiante, o livro de Josué foi
composto pela primeira vez no século VII a.e.c. Na verdade, nunca existiu uma conquista
do país de Canaã pelos israelitas segundo o modo realista que o relato bíblico
adopta, pois, tal como já sublinhámos, a
entidade «Israel» começa a constituir-se a partir de uma população autóctone
à qual se unem diversos elementos shasu e hapiru, processo de
evolução que acabará por levar a que o deus YHWH venha a ser adoptado por
«Israel». O livro de Josué poderá, isso sim, reflectir alguns desses confrontos
militares que muito provavelmente existiram entre «Israel» e certas cidades
cananeias. Uma boa e muito resumida iniciação à História do Povo Hebreu (do
ponto de vista histórico-arqueológico e não teológico… mas com múltiplas e
imprescindíveis referências bíblicas) é, de André Lemaire, a «Histoire
du Peuple Hébreu», Ed. “Que sais-je?” Presses Universitaires de
France / Humensis, 2023, avril, Paris; ISBN 978-2-7154-1583-6; ISSN 0768-0066.
[?€15: livro de bolso, 127
páginas]
[3] T. C. Butler, «Joshua», Waco 1983, 249-250.
[4] I. Finkelstein, «Seilun, Khirbet», Anchor
Bible Dictionnary V, 1992, 1069-1072.
[5]
Encontra-se esta mesma ideia no Salmo 78,58-62:
«[58] Irritaram-no nos lugares altos, provocaram os seus ciúmes com o culto dos
ídolos. [59] Deus ouviu isto e indignou-se, e repudiou Israel com veemência.
[60] Abandonou o santuário de Silo, a tenda onde morava entre os homens. [61]
Entregou ao cativeiro a sua fortaleza e o seu esplendor na mão dos inimigos.
[62] Entregou o seu povo à espada, irritou-se contra a sua herança.»
[6] J. Hutzli, «Die Erzählung von Hanna und Samuel:
textkritische und literarische Analyse von 1 Samuel 1-2 unter Berücksichtigung
des Kontextes», Zurich 2007, 213.
[7] Pode consultar-se I. Finkelstein – N. A. Silbermann,
«Les
Rois sacrés de la Bible. À la recherche de David et Salomon», Paris
2006. Idem em castelhano, «David y
Salomón», Ed. SIGLO XXI, 2007, p. 116.118: “UM
POVO, UM TEMPLO” (a Religião ao serviço do Poder Político-Militar): «A
história bíblica de David e Salomão insiste muito no empenho de ambos em
centralizar o culto israelita na sua capital, bem como na especial santidade
desse lugar (2Reis 18,4-5). A David ordena que se transporte a santa Arca da
Aliança em alegre procissão (2 Samuel 6) e a Salomão atribui a construção do
Templo como ponto central do culto de Israel unificado. A insistência na
centralidade de Jerusalém foi um processo teológico que duraria ainda vários
séculos (…) a começar no séc. VIII a.e.c.» [p. 118] (…) «Judá experienciará uma
reforma arrasadora das
práticas cultuais durante a qual se aboliram, destruíram e enterraram
santuários de zonas rurais como parte, provavelmente, de uma campanha para centralizar o culto do Estado em Jerusalém.
Este processo deve ser encarado do ponto de vista socioeconómico e político
– e não tanto religioso. O seu objectivo mais provável foi reforçar os elementos unificadores do Estado
– a autoridade central do rei e da elite da
capital – e debilitar a antiga
liderança regional das zonas rurais organizadas segundo o regime de clãs.» [p.
118].
[8] Segundo G. Athas, «The Tel Dan Inscription. A
Reappraisal and a New Interpretation», London – New York 2003, que apresenta o
dossiê e as diferentes interpretações de uma maneira muito completa, concluindo
que se trataria do filho de Hazael, a saber, Bar Hadad.
[9] Fragmento A, linhas 8-9.
[10] Eu (conjuntamente com Albert de Pury e Axel Knauf) já
insisti nas dificuldades desta leitura; pelo contrário, propus «Beth Dôd»: Dôd
(«o Tio, o Amado»), conforme é nomeado − na estela de Mesa − o deus tutelar de alguém. Cf. Ernst
Axel Knauf, A. de Pury
e T. Römer, «*Baytdawid ou *baytdwd? Une relecture de la nouvelle inscription de
Tel Dan»: Biblische Notizen 72 (1994)
60-69. Porém, perante um consenso quase geral, não vou voltar aqui a insistir
no meu ponto de vista. [PB: o Link sob Ernst
Axel Knauf contém uma fabulosa informação bibliográfica…]
[11] Segundo George Athas, «Tel Dan», a expressão
refere-se a Jerusalém. Contudo, tendo em atenção o paralelismo com a «casa de
Omrí», é mais plausível a opinião maioritária.
[12] É o nome do filho de Saul: “Ish Baal” («Homem
de Baal»), na versão grega. Os massoretas
alteraram o texto hebraico para lhe conferirem um sentido pejorativo: “Ish
Boshet” («Homem da vergonha»).
[13] No texto massorético está «assuritas». O nome é pouco
claro. Será uma alusão aos assírios? A sê-lo, seria uma glosa anacrónica. As
versões secundárias não compreenderam a versão original e procuraram emendá-la.
Juízes 1,32 menciona a existência de um clã de asseritas, o qual provavelmente
teria estado presente na versão original do texto.
[14] D. V. Edelman, «The
‘Ashurites’ of Eshbaal’s State»: Palestine Exploration Quarterly 117 (1985)
85-91 (VASTA LITERATURA: nesta listagem está EDELMAN, D V); E. A. Knauf,
«Saul, David, and
the Philistines: from geography to history»: Biblische Notizen 109
(2001) 15-18.
[15] O espantoso sítio
de Khirbet
Qeiyafa, recentemente escavado por Yosef Garfinkel, que se situava [à época] na esfera de influência
dos filisteus, poderia, segundo a opinião de Israel Finkelstein, fazer parte da
zona de influência do reino de Saul: “o vale dos
terebintos”, mencionado em 1 Samuel
17-2 (cf. Israel Finkelstein, «Le Royaume
biblique oublié», Paris 2013, 90-99, ou a edição
brasileira intitulada «O Reino
Esquecido – Arqueologia e História de Israel Norte»,
Paulus 12015, pp. 76-81, São Paulo (BR), ISBN 978-85-349-4239-3. Cf. a página (o blog) do Professor brasileiro:
Ayrton’s
Biblical Page. A hipótese de I. Finkelstein não foi
unanimemente aceite. A propósito da leitura-interpretação do sítio arqueológico
de Khirbet Qeiyafa por Garfinkel, a qual demonstra soberbamente que a
Arqueologia pode reservar surpresas ao historiador e ao biblista, confira Yosef
Garfinkel et al. (Universidade Hebraica de Jerusalém), «Khirbet
Qeiyafa 2009 (Notes and News)»: Israel
Exploration Journal 59 (2009-2011) 214-222.
[16] A linguagem típica dos autores deuteronomistas está
ausente em 1 Samuel 4-6. Sendo assim, tanto pode ser uma tradição mais antiga
que posteriormente foi integrada na história deuteronomista como se pode tratar
de uma adição mais recente, ainda que posterior à revisão deuteronomista.
[17] Dagon (Dagan) é uma divindade do Próximo Oriente
(ligada à fertilidade e quiçá à agricultura). Na Bíblia surge como o deus dos
filisteus. Se isto for verdade, esta atribuição proporcionaria um indício
suplementar da rápida adopção das divindades
autóctones por parte dos filisteus.
[18] Em vários manuscritos, o final do versículo está
ausente e fala de «cinquenta mil homens». Noutros manuscritos está
gramaticalmente mal ligado ao precedente. Trata-se, indubitavelmente, de uma
glosa que, no princípio, se encontrava na margem do rolo e que funcionava como
proposta a fim de sublinhar o poder do golpe destruidor de YHWH. Mais tarde,
foi introduzido no texto por um copista, texto que no princípio continha apenas
a expressão «setenta homens».
[19] Existem imagens
destas em E. Haernick, «Bronzes
du Luristan: enigmes de l’Iran ancien, IIIe−Ie
millénaire av. J.-C.», Paris 2008.
[20] Voltaremos a esta questão mais adiante: à questão da
existência de uma deusa associada a YHWH.
[22] Desta época, foram encontrados pedaços de uma
muralha. Existem marcas de ter sido habitada por volta do ano 3100 a.e.c.
[23] Segundo os textos sacerdotais, o éfode é uma espécie
de xaile que o sacerdote levava sobre as vestes. Está relacionado com a função
de prever as decisões divinas (como quem lança dados) através do manuseamento do urim e do
tumim, uma espécie de ossinhos de
adivinhação que se guardam no éfode. Noutros textos bíblicos, o éfode quer
dizer ‘estátua divina’.
[24] Em Êxodo 28,42-43
podemos ler: «[42] Farás também calções de linho vulgar, a fim de lhes cobrir a
nudez, desde a cinta até às coxas. [43] Aarão e os filhos hão-de usá-los,
quando entrarem na tenda da reunião, ou quando se aproximarem do altar para
oficiar no santuário; assim, não incorrerão em falta e não morrerão. Esta é uma
norma perpétua para Aarão e para os seus descendentes.»
[25] Theodore W. Jennings, «Jacob’s
Wound: Homoerotic Narrative in the Literature of Ancient Israel», New
York 2005, 83-85.
[26] 1 Crónicas 28, especialmente
o versículo 3: «”Não edificarás uma casa ao meu nome, porque és guerreiro e
derramaste sangue.”»
[27] É assim que pensa, por exemplo, J. Cazeaux, «Saül,
David, Salomon. La Royauté et le destin d’Israël», Paris 2003.
[28] Cf. Israel Finkelstein – N. A Silberman, «Les
Rois sacrés de la Bible».
[29] G. J. Wightman (Melbourne, Australia), «The mith of
Solomon»: Bulletin of the American Schools of Oriental Research 277/278
(1990) 5-22; I. Finkelstein – N. A. Silberman, «Les Rois sacrés de la Bible», 153-159, 255-261.
[30] Para uma apresentação do debate, cf. J. C. Gertz,
«Konstruire Erinnerung. Alttestamentliche Historiographie im Spiegel von
Archäologie und literarhistorischer Kritik am Fallbeispiel des salomonischen
Königtums: Berliner Theologische Zeitschrift 21 (2004) 3-29.
31 J.
Briend, «Un accord comercial entre Hiram de Tyr et Salomon. Études de 1 R
5,15-26», em “Études bibliques et Proche-Orient ancien. Mélanges offerts au
Père Paul Feghali», Dekoouaneh-Jouineh 2002, 95-112.
[32] I. Finkelstein – N. A. Silberman, «Les
Rois sacrés de la Bible», 164-165.
[33] V. A. Hurowitz, «I
Have Built You an Exalted House: Temple Building in the Bible in Light of
Mesopotamian and Northwest Semitic Writings», Shefield 1992, 313; para
os detalhes, cf. 130-310.
[34] N. Na’aman, «Sources and composition in the
history of Solomon», in L. K. Handy (dir.), «The Age of Solomon.
Scholarship at the Turn of the Millenium», Leiden-New York-Köln 1997, 57-80,
aqui 76-77; I. Finkelstein – N. A. Silberman, «Les
Rois sacrés de la Bible», 167.
[35] Estas listas provavelmente existiam sob diversas
formas, tal como mostra a Septuaginta, a qual, ao contrário do texto
massorético, conserva duas listas (desiguais) de funcionários de Salomão, nos
capítulos 2 e 4 do terceiro livro dos Reis (nas Bíblias gregas, nos dois livros
de Samuel e nos dois livros de 1 Reis estão reagrupadas em quatro livros do
Reis; assim, o texto hebreu de 1 Reis corresponde ao texto grego de «3 Reinos»).
Cf. A. Schenker, «Septante
et texte massorétique dans l’histoire la plus ancienne du texte de 1 Rois 2-14»,
Paris 2000, 34-35.
[36] T. Veijola, «Solomon: Bathsheba’s firstborn»,
em G. N. Knoppwers – J. G. McConville (dirs.), «Reconsidering Israel and Judah.
Recent Studies on the Deuteronomistic History», Winona Lake 2000 [1979],
340-358; E. A. Knauf, «Le roi est mort, Vive le roi! A biblical argument for
the historicity of Solomon», em L. K. Handy (dir.), «The Age of Solomon»,
81-95.
[37] Konrad Rupprecht, «Der Tempel von Jerusalem:
Gründung Salomos oder jebusitisches Erbe?», Berlin 1977.
[38] A parte mais sagrada do templo: o Santo dos Santos.
[39] Este núcleo foi
reinterpretado como sendo uma redação de estilo sacerdotal; cf. E.
Würthwein, «Die Bücher der Könige. 1 Könige 1-16», Göttingen 1977,
84-91.
[40] Segundo Würthwein, ibid., 84-85.
[41] O asterisco situado atrás de um versículo ou de um
conjunto de versículos indica uma forma primitiva restituída, cuja existência
se deduz.
[42] Para o assunto que se segue, cf. a bibliografia: A.
Schenker, «Septante et texte massorétique dans l’histoire la plus ancienne
du texte de 1 Rois 2-14»; O. Keel, «Dersalomonische Tempelweihspruch.
Beobachtungen zum religionsgesschichhtlichen Kontext des Ersten Jerusalemer
Templs», in O. Keel – E. Zenger
(dirs.), «Gottesstadt und Gottesgarten, Zur Geschichte und Theologie des
Jerusalemer Tempels», Freiburg-Wien-Basel 2002, 9-22.
[43] Termo técnico que se emprega para designar o texto
hebraico que os tradutores têm debaixo dos olhos.
[44] O tamanho foi provavelmente muito exagerado ou então
corresponde ao século VII a.e.c., altura em que Jerusalém se converte numa
cidade muito importante. O templo hitita de Tell Tayinat, na Anatólia (hoje, na
parte sudeste da Turquia), tem um tamanho comparável. Segundo 1 Reis 6,2, a
sala principal tinha um comprimento de 60 côvados, o que corresponde a cerca de
30 metros, o que é manifestamente enorme.
[45] A. Schenker, «Une nouvelle lumière sur l’architecture
du Temple grâce à la Septante? La place de l’arche de l’alliance selon 1 Rois
6:16-17 et 3 ‘Règnes’ 6:16-17»: Annali di Scienze Religiose 10 (2005) 139-154.
(Nota: Septuaginta
é a versão da Bíblia hebraica traduzida em etapas para o ‘grego vulgar’[koiné]
entre o século III a.C. e o século I a.C., em Alexandria. De entre outras
tantas, é a mais antiga tradução da bíblia hebraica para o grego, língua franca
do Mediterrâneo oriental no tempo de Alexandre, o Grande.)
[46] Cf. www.livius.org/pictures/a/tablets/nabonidus-cylinder-from-sippar
(última consulta: 07/12/2023).
[47] A palavra grega kainótês só surge na
Septuaginta em Ezequiel 47,12, onde se refere à Lua Nova. (Ez 46,1.3)
[48] Cf. Também, em Ezequiel 43,8, a
crítica aos reis que habitaram porta-com-porta com YHWH: «colocando a sua
soleira junto da minha soleira e a sua porta junto da minha porta,
estabelecendo um muro comum entre mim e eles. Eles profanavam o meu santo nome
pelas práticas abomináveis a que se entregavam. Por isso, em minha ira os
aniquilei.» Este oráculo faz alusão ao facto do palácio real se encontrar
ao lado do templo (cf. a ilustração supra).
[49] Para uma representação, cf. Othmar
Keel, «Die
Geschichte Jerusalems und die Entstehung des Monotheismus», Göttingen
2007, 278.