teologia para leigos

11 de dezembro de 2023

A Invenção de Deus 2

 

“A curto ou médio prazo, o tema do fundamentalismo

entrará na agenda daquelas igrejas cristãs

que demonstrem responsabilidade

pelo modo como seus fiéis leem os textos

[bíblicos] e entendem sua fé.

O que se verifica hoje é uma maré de interpretações irresponsáveis

e injustificadas de textos evangélicos e bíblicos em geral,

a inundar os campos confessionais.

Há de se erguer um dique seguro, que só pode ser construído

por meio de interpretações justificadas dos textos fundantes,

que respeitem o contexto em que eles foram redigidos,

as intencionalidades próprias de seus escritores,

a cultura e os condicionamentos históricos concretos.”

 

Eduardo Hoornaert, 2017

Fundação Ameríndia

 

Sítio arqueológico de Khirbet Qeiyafa

(I. Finkelstein, «O Reino esquecido - Israel Norte», PAULUS, p. 78)

 

A ENTRADA DE YHWH EM JERUSALÉM

 

 

A prova de que YHWH não tinha conseguido ser o deus de Israel antes da transição do segundo para o primeiro milénio a.e.c. é confirmada pelos topónimos de Judá ou de Israel, os quais não só datam muito provavelmente do segundo milénio como nunca incluem o nome de YHWH. Esses topónimos referem divindades tais como Anat (Anatot, Jeremias 1,1: o lugar de origem do profeta Jeremias), Baal (Baal Perasín, 2 Samuel 5,20: o lugar onde David venceu os filisteus), Dagón (Bet Dagón, Josué 15,41: uma localidade situada no território de Judá), El (Bet El: um dos santuários mais importantes de Israel), Yarihu (Jericó, Josué 6: o nome desta cidade conquistada por Josué fica a dever-se ao nome de um deus lunar), Shalimu (Jerusalém), Shamash (Bet Semes ou Bet-Chémes, 1 Samuel 6: lugar dedicado ao deus solar, próximo de Jerusalém, onde ficou instalada a Arca da Aliança). Estes nomes demonstram um facto: veneraram-se toda uma série de divindades vinculadas à fertilidade, às colheitas e à recoleção.

 

1.      YHWH EM SILO

O santuário de Silo surge pela primeira vez no livro de Josué[1], o qual narra de forma completamente lendária a conquista do país de Canaã pelos israelitas[2]. Segundo Josué 18,1, os israelitas depois de se apoderarem do país erigiram nele o primeiro santuário, bem como o «óhel mó ‘éd», a «tenda do encontro». Este versículo pertence a uma passagem recente, pois pressupõe a ideia sacerdotal de um santuário móvel construído no deserto e de um lugar de encontro entre Moisés e YHWH. A mesma ideia está subjacente a Josué 22,29, em que as tribos da Transjordânia se recusam a construir um altar dizendo que o único altar legítimo se encontra diante da sua morada, o «miskãn», o santuário. Este «lugar sagrado» seguramente é também uma alusão a Silo[3]. Esse lugar volta a surgir nos últimos capítulos do livro dos Juízes (18-21), os quais são hoje em dia considerados ‘um apêndice’. Juízes 18,31 evoca uma época em que a casa de Deus (‘elohîm) se encontrava em Silo.

Estes textos tardios parecem ter conservado a memória de um santuário yahvista nesta localidade situada em Efraim, cuja importância na época da transição do Bronze recente para o Ferro foi confirmada pela arqueologia. Silo, um lugar ocupado já desde o segundo milénio, voltou a ser muito importante entre meados do século XII até o século XI. Por volta do ano 1050 a.e.c. foi destruído – aparentemente pelo fogo – talvez pelos filisteus e muito pouco repovoado até ao século VIII e VII[4]. A importância do lugar (Silo) e a sua destruição devem ter tido um significativo impacto na mente dos autores bíblicos; o facto de Silo ter albergado, outrora, um santuário de YHWH seguramente terá constituído uma memória de valor precioso. Posteriormente, alguns autores bíblicos interpretaram a sua destruição como tendo sido provocada pelo próprio YHWH (Jeremias 7; 26)[5]. No século VI a.e.c., altura em que estas narrativas foram fixadas por escrito, a memória de Silo enquanto santuário permanecia muito viva ainda.

Na Bíblia, Silo (1 Sam 1,3) desempenha um papel muito importante. Tem a ver com o profeta Samuel, a quem – segundo os primeiros capítulos do livro que ficou conhecido pelo seu nome – YHWH encarregará de ungir Saul como o primeiro rei de Israel. Segundo o relato bíblico, Samuel é oferecido pela sua mãe ao santuário de Silo. Este santuário não é descrito como se fosse uma tenda, mas como um templo murado[6], ou seja, um santuário yahvista ao qual se faziam peregrinações e onde YHWH se revelou a Samuel (1Samuel 3). O carácter neutral – eventualmente até positivo –, como é apresentado o templo de Silo na Bíblia, explica-se pelo facto de ser uma tradição antiga, por certo, relacionada com a memória de um facto histórico. Tudo leva a crer que Silo foi um santuário yahvista importante, que inclusivamente possuía uma estátua de YHWH. É provável que YHWH tenha passado a ser o deus de Saul a partir deste lugar santo ou, inclusivamente, desde o começo da acção do próprio profeta Samuel.

 

2.      YHWH, DEUS DE SAUL E DEUS DE DAVID

O problema da historicidade dos três primeiros reis de Israel e de Judá é complexo pelo que, para ser aqui apresentado, necessitaria de ser tratado de uma forma demasiado longa e demorada[7]. Contentemo-nos com as seguintes observações. Fora da Bíblia não temos nenhum testemunho directo destes reis. A única excepção é a famosa estela de Tel Dan, datada do século VIII a.e.c. [Nota 2, atrás: cf. André Lemaire, p. 28], da qual foram encontrados três fragmentos muito importantes. A inscrição – em aramaico – provavelmente celebra a vitória de Hazael[8], rei de Damasco, sobre uma coligação de Israel com Judá. Nela podemos ler: «[…] rei de Israel e matei [A´haz] “yahú” filho de [Yoram r]ei (de) “btdwd”. E coloquei […][9]». A maioria dos investigadores acham que a expressão «btdwd» significa «casa de David»[10], apesar da estela nada referir a respeito da personagem histórica David; por outro lado, revela que no século VIII os arameus chamavam ao reino de Judá «casa de David[11]» e os assírios ainda designavam o reino de Israel com o nome de «casa de Omrí».

É muito difícil discernir os acontecimentos históricos concretos que subjazem nos relatos bíblicos sobre as origens da monarquia. Vemos que os redactores bíblicos descreveram os três reis – Saul, David e Salomão – como sendo todos eles “figuras tipo”: Saul, o rechaçado, o que revela a visão que os redactores do Livro dos Reis possuíam acerca do Reino do Norte; David, o guerreiro, o eleito de YHWH, fundador do Reino e da dinastia; Salomão, o constructor e sábio. No entanto, existem numerosos elementos caracterizadores, que constam dos livros de Samuel e dos Reis, que não podem ser mera invenção. A transição da Idade do Ferro I para a Idade do Ferro II (aproximadamente, a partir do ano 1000 a.e.c.) coincide com a origem dos reinos do Próximo Oriente (Moab, Amón, os reinos amorreus). O facto de um «reino» israelita estar a nascer numa zona de influência dos filisteus é, certamente, um facto histórico. Os relatos dos livros de Samuel mostram que os territórios de Saul e de David se encontram numa região controlada pelos filisteus; mais, David surge representado como um dos seus vassalos, ainda que os textos bíblicos procurem apresentá-lo de forma apologética.

A Bíblia constrói as origens da monarquia em torno das figuras de Samuel e de Saul. Samuel é profeta e, ao mesmo tempo, está ligado ao santuário de Silo. Para além disso, a Bíblia apresenta Samuel como «juiz», o que pressupõe que seria um militar carismático que comandava uma guerra contra os filisteus. Ainda que a Bíblia contenha relatos muito díspares acerca da ascensão ao trono de Saul (1 Samuel 8-12), Samuel está vinculado de várias formas com a investidura de Saul como rei. O seu nome, de etimologia pouco clara («’El’ está no alto», «O seu nome é ‘El’»), contém um elemento teofórico, ao passo que Saul («o que é procurado»; um nome igualmente existente em neo-assírio: “Sa’uli” e em fenício “s’l”) não contém nenhum elemento teofórico.

Quando observamos os nomes dos lugares mencionados na história de Saul damo-nos conta, para além do já referido, de que eles circunscrevem um território muito limitado. No segundo livro de Samuel encontra-se uma notícia bastante antiga que contradiz a versão oficial segundo a qual David teria «sucedido» directamente a Saul: «Sem dúvida, Abner, filho de Ner, chefe do exército de Saul, apoderou-se de Isbaal[12], filho de Saul, e levou-o a Maanain. Estabeleceu-o como rei ‘para’ (‘el) Galaad, com poder sobre os asseritas[13], sobre Jezrael e sobre (‘al) Efrain, sobre Benjamin, ou seja, sobre todo o território de Israel» (2 Samuel 8-9). A mudança de preposição (de «’el» para «’al») pode apontar para uma diferença muito importante: «’al» designa um território sob a soberania directa de Saul, ao passo que «’el» refere-se a territórios que reconhecem essa soberania sem que, contudo, estejam integrados directamente no reino de Saul[14]. Este território de Saul poderá presumivelmente corresponder àquele Israel que a estela de Merneptah contém[15].

Os nomes dos filhos de Saul demonstram que este venerou YHWH: Jónatas («YHWH deu») é um nome yahvista e Isbaal [1 Samuel 14,49: Jisvi] («homem de Baal») contém o elemento teofórico «ba’al» − este mesmo elemento está no nome de um filho de Jónatas chamado Mefibaal («Amado de baal»). Este «Baal» será um deus distinto de YHWH ou o «ba’al» («amo, senhor») foi um título de YHWH? Retomaremos esta questão.

 

3.      YHWH E A ARCA

Segundo o que diz a Bíblia, YHWH, antes de entrar em Jerusalém, está vinculado à «arca» (o termo hebraico «‘ãron» significa «caixa, cofre»). Nas revisões posteriores do texto esta arca passa a ser a «arca da aliança» («’ãron habberît»), mas o nome mais antigo talvez fosse a «arca de YHWH». Segundo os autores provenientes do meio sacerdotal, a arca teria sido feita no Sinai durante a construção do santuário móvel.

A arca, que no relato da conquista recolhido no livro de Josué é transportada pelos sacerdotes, está praticamente ausente do livro dos Juízes, mas surge com frequência em duas secções dos livros de Samuel (1 Samuel 4-6 e 2 Samuel 6). Estes dois capítulos constituem uma unidade aparte e é denominada «história da arca». Será que na sua origem ela fazia parte de uma tradição independente? É muito provável, ainda que não seja nada fácil datar estes relatos[16]. Segundo a história da arca, ela desempenha um papel muito importante nos conflitos militares com os filisteus. Segundo parece, ela serve para revelar a presença de YHWH aquando das guerras dos israelitas contra os filisteus. Quando estes últimos se apoderam dela e a colocam no santuário do seu deus Dagon[17], a estátua desse deus estilhaça-se. É por isso que, de imediato, os filisteus levam a arca de Asdod a Ecron (1 Samuel 5,10), onde os habitantes dessa região acabam por adoecer de tumores pestíferos, maneira de mostrar o poder de YHWH que aparentemente habita a arca ou, então, que a arca materializa a presença de YHWH. Por isso, os filisteus decidem devolver a arca aos israelitas:

“Os filisteus convocaram os seus sacerdotes e adivinhos e perguntaram-lhes: «Que faremos da Arca do SENHOR? Dizei-nos como havemos de a devolver ao seu lugar.» Eles responderam: «Se devolveis a Arca do Deus de Israel, não a deveis mandar sem nada, mas juntai-lhe uma oferta de reparação. Então sereis curados; sabereis por que não se apartava de vós a sua mão.»” (1 Samuel 6,2-3)

O carácter sagrado e perigoso da arca também se pode virar contra os israelitas de Bet-Chémes, tal como a história do regresso da arca o mostra:

“O SENHOR castigou os habitantes de Bet-Chémes porque tinham olhado para a Arca (v.13); e feriu setenta homens (v.19) – cinquenta mil homens[18]. O povo chorou por causa de tão grande castigo com que o SENHOR o havia ferido. Os habitantes de Bet-Chémes disseram: «Quem poderá estar na presença do SENHOR, deste Deus santo?» (1 Samuel 6,19-20)

Por causa disso, os israelitas enviaram a arca para Quiriat Iarim e depositaram-na na casa de um certo Abinadab, cujo filho (Eleázar, Cap. 7,1) consagram para que a guarde. Este filho consagrado adverte para a necessidade de qualidades específicas para todos aqueles que queiram aproximar-se do lugar da presença de deus (1Samuel 7,3-6). A arca foi, antes de mais nada, um santuário de guerra móvel, transportável. A sua perigosidade confirma a ideia de que a arca representava o deus de Israel.

Frequentemente, a arca foi relacionada com os santuários portáteis dos nómadas. A sua presença no santuário de Silo dispensa esta tese. Podemos relacionar a arca com os cofres sagrados atestados na iconografia egípcia ou nos estandartes de guerra assírios ou com outros objectos igualmente representativos da divindade. Por exemplo, os estandartes de Luristan (Irão, território do monte Zagros), que datam do período que vai do século XI ao século VI a.e.c., representam de uma forma estilizada uma divindade sob a forma de um senhor dos animais[19]. Entre os fenícios, parece ter havia registos da existência de “um cofre sobre um carro”. Filon de Biblos (ca. 65 – ca. 140), na «História Fenícia», conta que dois deuses chamados, respectivamente, «Campo» (“agros”, que corresponde a “saddãy”) e «Rústico» (“agrotes”), estavam associados a um cofre (“naos”) e era puxado por dois animais. A imagem ou a estátua de um deus num santuário portátil está igualmente documentada na numismática, numa moeda que procede de Hierápolis, uma fundação termal grega situada na Turquia, e datada do século II a.e.c.

 

4.      QUE CONTINHA A ARCA DE YHWH?

O facto de a arca estar em cima de um carro («novo», ou seja, feito de propósito!) puxado por animais (1 Samuel 6, 7) indica que o objecto era muito importante. Segundo um texto sacerdotal do livro do Êxodo (Ex 25,10), a arca media 112 X 67 X 67 cm. Porém, estamos perante um texto muito tardio, tal como também é tardio o texto do Deuteronómio (Dt 10,1-5) segundo o qual a arca era um cofre que continha as duas tábuas da lei. Do mesmo modo, o primeiro livro dos Reis constata, de um modo apologético, que «na arca não havia nada mais do que as duas tábuas de pedra que lá foram depositadas por Moisés, no Horeb…» (1 Reis 8,9).

Estes textos indicam, com muita clareza, que as tábuas da lei substituem seja lá o que for. Eventualmente, elas ocupam o lugar de duas pedras sagradas, tal como também se encontra em certos cofres de beduínos pré-islâmicos. Em algumas tribos árabes, tratava-se de duas deusas – ‘al-Lat e ‘al-Uzza − que mais tarde foram substituídas por duas cópias do Alcorão. Também existiam cofres contendo apenas uma única divindade. Portanto, podemos imaginar que a arca transportasse dois betilhos (pedras sagradas dos cananeus) ou duas estátuas, as quais representavam YHWH e o seu par feminino Asherá[20], ou, eventualmente, uma estátua apenas que representasse somente YHWH, sem qualquer tipo de acompanhante.

 

5.      DAVID E JERUSALÉM

David, rival de Saul, estabeleceu-se a princípio em Hebron, território de Judá. David teve de se apoderar da cidade de Jerusalém, que nesse tempo tinha uma dimensão muito modesta. A título de comparação, Ascalon ocupava, nessa época, 50 a 60 hectares, Ecron 20 hectares, Jerusalém entre 4 e 6 hectares e o sítio arqueológico de Khirbet Qeiyafa, recentemente escavado, 2,3 hectares; no entanto, a cidade de Jerusalém estava fortificada por dupla muralha. Podemos interrogar-nos porque é que David, que havia vencido os filisteus, não fez de Ascalon a sua capital. A resposta é que, provavelmente, David continuou a ser vassalo dos filisteus durante todo o seu reinado[21].

A cidade de Jerusalém existe desde o século XVIII a.e.c.[22] O seu nome significa provavelmente «fundação de Salem»; ‘Salimu’ está documentado em textos de Ugarit como sendo uma divindade do crepúsculo. Na correspondência de Amarna (umas tabuinhas de natureza diplomática que o faraó do Egipto trocou com soberanos estrangeiros do Próximo Oriente) podemos ver que no século XV a cidade fora governada por um reizete de nome Abdi-Sheba, que fora vassalo do faraó e a quem se queixava de ataques dos hapirus. Jerusalém era, portanto, uma cidade cananeia que na segunda metade do segundo milénio se encontrava em decadência, o que explica a facilidade com que David conseguiu apoderar-se desse lugar. Se David escolhe Jerusalém como capital – a «cidade de David» −, ele fá-lo por razões estratégicas: enquanto cidade cananeia, Jerusalém encontra-se em território «neutro» e, para além disso, Jerusalém não pertence a nenhuma tribo ou clã que tivesse aceitado David como rei. Ao aliar-se à «aristocracia local», David converte Jerusalém na sua cidade (2 Sam 6, 9-10: «E não permitiu que a levassem para sua casa, na Cidade de David»). Na época de David e Salomão, a cidade de Jerusalém consiste unicamente num aglomerado urbano à volta de uma colina que está de frente para o monte das Oliveiras.

Conforme o segundo livro de Samuel, David fez transportar a arca de YHWH de Quiriat Iearin até Jerusalém, uma viagem de cerca de 10 km (2 Samuel 6). O transporte da arca é relatado como uma festa com conotações sexuais e eróticas. A dança de David nu − coberto apenas pela insígnia votiva de linho (o éfode dos sacerdotes[23]) e criticado pela sua mulher (Micol) que por o ter criticado é castigada com a ‘vergonha da esterilidade’ – o relato deste acontecimento reflecte a importância da fertilidade. Se o transporte da arca significa, de facto, a entrada de YHWH em Jerusalém, todos estes pormenores e particularidades que rodeiam o transporte e a chegada não devem surpreender de modo nenhum, porque o que é facto é que estamos perante uma “divindade-tumultuosa” de tipo «baálico». A nudez de David diante de YHWH é equivalente à de Saul. Em 1 Samuel 19, 20-24 ficamos a saber que, aquando de uma perseguição ao seu inimigo David, Saul, ao encontrar-se com um grupo de profetas, entra em êxtase, despe a roupa e fica nu:

 

“[20]Saul mandou homens para prender David, mas, quando viram o grupo dos profetas em êxtase com Samuel à frente, o espírito de Deus veio sobre os enviados de Saul e começaram, também eles, a profetizar. [21]Contaram isto a Saul, que enviou outros mensageiros, mas também estes se puseram a profetizar. Saul mandou um terceiro grupo, aos quais sucedeu o mesmo. (…) [23]Mas, no caminho para Naiot de Ramá, apoderou-se também dele o espírito de Deus, e foi cantando e profetizando pelo caminho, até chegar a Naiot de Ramá. [24]Despiu também as suas vestes e pôs-se a cantar com os outros diante de Samuel, ficando assim despido e prostrado por terra, durante todo o dia e toda a noite. Daí o ditado: «Estará Saul também entre os profetas?»

Não há a mais pequena dúvida de que os redactores bíblicos sugerem um paralelo entre a nudez de Saul e a nudez de David diante de YHWH. Partindo de 1 Samuel 19, podemos imaginar que a dança de David em 2 Samuel 6 é igualmente uma dança de êxtase e que este ‘estado’ desempenhava, quiçá, uma função de legitimação para um rei, o qual, enquanto mediador entre o povo e a sua divindade tutelar, teria de ser capaz de demonstrar que também tinha acesso à «esfera divina».  1 Samuel 19 coloca Saul em relação com a mediação profética; 2 Samuel 6 relaciona David, através do éfode, com a mediação sacerdotal. Quando David se aproxima da arca é igualmente «arrebatado» por YHWH só que, ao contrário do que aconteceu aos filisteus ou às gentes de Bet Semes, David não morre. Ao contrário de certos textos sacerdotais mais recentes, que proíbem os sacerdotes de mostrarem, mesmo sem querer, os seus órgãos sexuais[24], a nudez diante do divino[25] não constitui nenhum problema.

 

6.      YHWH EM JERUSALÉM SEM TEMPLO?

De acordo com a narração bíblica, David, o fundador da dinastia, não erigiu o santuário oficial de Jerusalém. Os livros de Samuel relatam que a arca foi, para começar, albergada numa tenda de campanha, porque o templo ainda não havia sido erguido. É surpreendente que um rei fundador não construa um santuário para a sua divindade tutelar. Não em vão, os textos bíblicos procuram explicar porquê. Segundo 2 Samuel 7, no mesmo momento em que YHWH promete a David que a sua dinastia durará para sempre, o mesmo deus também lhe diz que nunca desejou habitar num templo, mas numa tenda. Esta promessa dinástica faz-se mediante um jogo de palavras: não será David que edificará uma casa para YHWH, é YHWH que edificará uma casa para David, ou seja, uma descendência e uma dinastia. É por isso que quem irá construir um santuário para YHWH não será David, mas o seu filho. Nos livros das Crónicas, escritos duzentos anos mais tarde, dá-se uma outra explicação para o sucedido. Em primeiro lugar, informa-nos que David havia previsto, qual arquitecto, o plano do templo que transmitiu ao seu filho Salomão; mais adiante explica que David estava impedido de construir aquele santuário porque, enquanto homem de guerra, havia derramado demasiado sangue[26].

O facto é que David não construiu o templo porque, quiçá, já existisse um grande santuário em Jerusalém quando ele anexou esta cidade, um santuário evidentemente ocupado por outra divindade. O texto de 2 Samuel 12,20 parece pressupor a existência de um templo em Jerusalém na época de David. Após o adultério com Betsabé (2 Samuel 11), YHWH fez com que morresse o primeiro filho desta união. Quando se inteirou da morte do seu filho, «David levantou-se do chão, lavou-se, perfumou-se, mudou de roupa e entrou na casa de YHWH e prostrou-se [para o adorar].» Das duas, uma: ou se trata de uma notícia anacrónica ou estamos perante uma memória que perdurou e que diz que David, de facto, frequentou um santuário pré-existente. Segundo a tradição bíblica, foi Salomão quem levou a cabo a construção do templo.

 

7.      A CONSTRUÇÃO DO TEMPLO POR SALOMÃO

Tudo o que diga respeito a Salomão, na Bíblia, surpreende-nos pela ambiguidade do respectivo retrato. Salomão é apresentado como ‘o rei sábio’ por excelência que aplica sentenças muito elaboradas, justíssimas e intelectualmente brilhantes (1 Reis 3, 16-28) e que, para além disso, se empenhou em acumular todos os conhecimentos possíveis (1 Reis 5, 9-14). além disso, Salomão é, de entre os que reinam, o homem mais rico: reina sobre um império mundial (1 Reis 5,1) admirado por todos os monarcas até aos confins do mundo (1 Reis 10). Como constructor do templo de Jerusalém, cumpriu fielmente o que o seu pai David não pode realizar, ou seja, erigir em Jerusalém um santuário esplêndido para o deus de Israel (1 Reis 6,8). Deste modo, foi «o maior de entre todos os reis da terra, em riqueza e em sabedoria» (1 Reis 10,23). Na Bíblia não se encontra semelhante comentário dirigido a outro rei de Israel ou de Judá. Contudo, e simultaneamente, encontra-se um comentário que ensombrece esta descrição. A chegada de Salomão ao poder é resultado de intrigas e assassinatos (1 Reis 1-2), isto já para não falar do seu nascimento algo escabroso (2 Samuel 12, 1-25). Este “rei exemplar” incumpre com todas as prescrições do Deuteronómio amando muitas mulheres estrangeiras (1 Reis 11,1-6) e estabelecendo lugares de culto fora de Jerusalém (1 Reis 11, 7-10). Para além disso, submeteu o seu povo a uma dura servidão (1 Reis 5, 27; “corveia” ou “jorna”: trabalho gratuito e obrigatório; esta informação é contraditada em 9,22: «Dos filhos de Israel, Salomão não destinou nenhum à escravatura») e foi o responsável pela divisão do «Reino Unido» (1 Reis 11,6-13). Podemos explicar estas contradições ao nível sincrónico atribuindo ao narrador a vontade de descrever o maior rei de Israel como uma figura de contrastes e, através desta figura assim caracterizada, derramar igualmente as mesmas cores da ambiguidade sobre toda a história da realeza de Judá[27]. No entanto, é mais plausível relacionar estas distintas perspectivas com diferentes momentos da formação da história de Salomão.

Ainda que haja alguns estudiosos que procuram reconstruir uma história de Salomão como se ela decorresse no século X a.e.c., nós somos obrigados a abandonar este ponto de vista. Hoje em dia está mais do que clara a ideia de que o «Império salomónico» é pura ficção e que os capítulos que vão do 3 ao 11 do Primeiro Livro dos Reis reflectem, isso sim, a realidade do Império neo-assírio que, na Bíblia, acaba por ser usada e vertida sobre «Israel» a fim de conferir a Israel um passado glorioso[28]. As fabulosas construções de Haçor, Megido e Gézer (1 Reis 9, 15), que eram vistas como «provas arqueológicas» da existência do império salomónico, provavelmente datam do século IX e não do X[29]. Mesmo que a disputa sobre a «cronologia de base» ainda não tenha sido resolvida definitivamente[30], não se pode negar que o relato bíblico reflecte mais o contexto da época assíria do que o contexto do século X. Neste século, a dimensão de Jerusalém não era a de uma capital de um império.

A relação com os fenícios de Tiro (1 Reis 9, 10-20), que proporcionaram a madeira necessária para as construções salomónicas bem como os numerosos contactos com o Egipto são comparáveis aos do período neo-assírio[31]. Além do mais, o único Hiram de Tiro – a que aludem 1 Samuel, 1 Reis 5,15 e 1 Crónicas – historicamente atestado, surge com o nome de Hirammu nos anais do rei assírio Tiglat Pileser (por volta do ao 739)[32]. Várias etapas do relato da construção do templo de Salomão (1 Reis 6-8) voltam a ser encontradas em numerosos documentos mesopotâmicos, mas a própria história «é particularmente semelhante à dos relatos das construções assírias»[33]. O mesmo se passa quanto às etapas seguintes: a decisão de construir ((1 Reis 5,15-19), a aquisição dos materiais de construção (5,20-26), a descrição da mão-de-obra (5,27-32), a descrição do mobiliário (1 Reis 6-7) e a dedicação do santuário (1 Reis 8).

Tais paralelos fazem pensar que terá havido uma primeira versão da história de Salomão que dataria do período neo-assírio, mas foi re-redigida muito provavelmente no século VII a.e.c.[34] É muito provável que os escribas tenham tido à sua disposição alguns documentos muito antigos, mas não uma história de Salomão já estruturada. A reconstrução dos documentos antigos é uma tarefa difícil. No palácio de Jerusalém podiam ter ficado por lá os anais de Salomão, que são referidos em 1 Reis 11,41 («O resto das palavras de Salomão, tudo o que ele fez, a sua ciência, está escrito no Livro dos Anais de Salomão.»). As tradições antigas acerca de Salomão encontram-se eventualmente nalgumas listas que constam de 1 Reis 4[35]. O relato da construção do santuário, que culmina com a sua inauguração (1 Reis 6-8), em grande parte é obra dos redactores denominados deuteronomistas; no entanto, podem conservar memórias muito mais antigas.

Não entraremos, aqui no debate acerca da historicidade de Salomão, o qual, ao contrário de David, não é mencionado fora da Bíblia. É claro que existem alguns argumentos a seu favor, sobretudo a escabrosa história do seu nascimento. Segundo Timo Veijola e Ernst Knauf, é possível que Salomão fosse um usurpador e que a história do adultério com Betsabé fora inventada para mostrar que ele, de todas as formas, descendia de David, ainda que não por via «oficial», ou seja, através das mulheres «destinadas» ao rei[36]. Se Salomão nunca chegou a ser filho biológico de David, toda a dinastia davídica seria então uma construção mítica, o que no fundo não alteraria grande coisa.

 

8.      UM TEMPLO PARA YHWH?

O centro da apresentação (bíblica) pública do rei Salomão está constituído pelo longo relato da construção e da inauguração do templo (1 Reis 6-8). Este relato muito detalhado nem sempre é de fácil entendimento. Por outro lado, o texto grego apresenta diferenças face ao texto massorético, pelo que podemos sugerir que os tradutores gregos tiveram dificuldades para compreender o texto hebreu ou então porque dispunham de um texto hebraico diferente daquele que nós encontramos agora na Bíblia hebraica.

Em primeiro lugar, podemos interrogar-nos se o relato da «construção» em 1 Reis 6-7 não se referirá antes a uma renovação ou modificação de um santuário existente previamente[37]. Konrad Rupprecht demonstrou que parte da introdução do relato − (1 Reis 6,2-3) que indica as dimensões do templo −, de seguida, e num surpreendente e absurdo golpe de rins, mete-se a falar da construção de um anexo: «Adoçou ao muro uns anexos à Casa, à volta de todo templo e do debir[38], e fez algumas habitações laterais à volta: «Encostados aos muros do templo, mesmo à volta, construiu andares que rodeavam os muros do templo, o pórtico e o santuário; deste modo cercou toda a casa de andares laterais.» (v. 5). O versículo 7 não faz qualquer sentido, tanto mais que se trata de um edifício já construído, já existente: «Na construção do templo só se empregaram pedras lavradas na pedreira; deste modo, durante os trabalhos de construção, nenhum ruído se ouvia, nem de martelo, nem de cinzel, nem de qualquer outra ferramenta.». Por conseguinte, é bastante provável – tal como acontece aquando da «construção» de outros santuários do Próximo Oriente antigo – que o edifício salomónico assentasse sobre um santuário previamente existente. Poderíamos também pensar que Salomão transformara um santuário sem cobertura num templo. Porém, o relato de 1 Reis 6-7 contém indícios muito mais a favor da hipótese anterior.

O núcleo antigo do relato da inauguração do templo em 1 Reis 8 encontra-se provavelmente nos versículos 1 a 13[39], e talvez ele dissesse o seguinte[40]: «(2*) [41] Todos os homens de Israel se reuniram na presença do rei Salomão no mês de Etanim, que é o sétimo mês, durante a festa solene. (3*)Quando todos os anciãos de Israel acabaram de chegar, os sacerdotes transportaram a Arca. (6*) Os sacerdotes levaram a Arca da aliança do SENHOR para o seu lugar no santuário do templo, o ‘debir’ [Santo dos Santos], sob as asas dos querubins.» Esta versão antiga terminava com a dedicação do templo pronunciada pelo rei.

No texto massorético, a dedicação encontra-se nos versículos 12-13. Na versão grega, está situado num lugar muito diferente: no versículo 53 (3 Reis 8, 53a), após a longa oração de Salomão. É muito provável que a versão grega esteja baseada num texto hebraico bem diferente e mais antigo[42]. Este texto grego poderá eventualmente ser traduzido deste modo:

 

Nesta altura e a respeito da casa acabada de ser construída por ele, Salomão disse:

«O sol (COD) fez com que o Senhor fosse visível no céu,

disse que queria habitar na obscuridade,

construí a minha casa, uma casa magnífica/de governo para ti,

para [o Senhor] voltar a habitar sempre aí».

Não será isto que está escrito no livro do canto?

 

O texto massorético, presente na Bíblia hebraica, parece algo mais claro:

 

Então Salomão disse: «YHWH disse que permaneceria numa espessa obscuridade.

Assim, pois, como construção, contruí uma casa de governo, um lugar para ti, para que nela habites para sempre.”

 

O texto grego é complicado e podemos interrogar-nos se o tradutor entendeu bem o que estava a traduzir. A primeira frase a seguir à introdução é abstrusa. Se o grego traduz as seguintes palavras da Vorlage[43] em hebreu, podemos perguntar-nos se YHWH (o Senhor) não deveria vir depois das palavras ‘sol’ e ‘obscuridade’ tal como vem no texto massorético. Deste modo, o sol deixaria de ser o complemento directo (que é o que crê o tradutor), mas o sujeito, passando o texto hebraico antigo a ser deste modo:

 

O sol (Shamash) deu a conhecer YHWH a partir do céu:

«YHWH dissera que queria habitar na obscuridade».”

 

Esta reconstrução permite concluir que a casa que Salomão contruiu ou renovou fora em primeiro lugar uma casa para Shamash (o que curiosamente até coincide com a orientação este-oeste do Templo de Jerusalém que é referida em 1 Reis 6,8; 7,39: «Colocou cinco pedestais do lado direito [= sul] da Casa, e os outros cinco, do lado esquerdo [= norte] da Casa»). Neste templo, reservou-se uma espécie de capela lateral, um segundo “debîr” [o lugar mais sagrado do Santuário; cf. Link] para YHWH. Ou seja, o santuário albergaria não um, mas dois deuses.

 


Planta tradicional de um Templo (de menor dimensão)

ao lado de planta de um Palácio Real (Próximo Oriente)

 

 Um indício suplementar de que no templo de Jerusalém coabitam dois deuses procede também do relato da sua construção presente no texto grego. Segundo o texto massorético, o templo fora construído segundo o modelo tradicional de construção no Próximo Oriente[44], e estaria constituído por três partes: a entrada (coberta ou não), a divisão principal (“hêkãl”) e a última divisão (“debîr”) ou o Santo dos Santos (“qõdes há-qodãsîm”). Esta concepção é sugerida nos textos referentes a um santuário situado no Sinai na segunda parte do livro do Êxodo e nos capítulos 40-48 do livro de Ezequiel.

Comparemos os relatos em 1 Reis 6 (hebraico) e 3 ‘Reinos’ 6 (grego):

 

Texto massorético: 1 Reis 6, 16-19

[16] Em seguida revestiu com placas de cedro, desde o solo aos tectos, o espaço de vinte côvados que forma o fundo do templo. Ele transformou o interior do edifício em lugar santíssimo, o Santo dos Santos (dêbîr). [17] Os restantes quarenta côvados, esses, constituíam a Casa, ou seja, o Templo. [18] Todo o interior da Casa era revestido de cedro em tábuas entalhadas com flores e frutos; tudo era de cedro, não se via pedra alguma. [19] Construiu o santuário ao fundo, no interior do templo, para colocar lá a Arca da aliança do SENHOR.

 

Septuaginta, texto original[45]: 3 Reinos 6,16-19

Edificou um lado (tô pleurón) de vinte codos de altura, o único [lado] desde o chão até às vigas do tecto; e fez o dabir, o Santo dos santos. E o santuário (naos) media à frente do dabir 40 codos, dentro, no centro da Casa, para aí ser colocada a arca da aliança do Senhor.

 

Esta descrição, algo complexa, poderia eventualmente sugerir que YHWH (a sua estátua?) no princípio fora colocada na capela lateral do templo; no entanto, há que reconhecer que este texto grego é demasiado confuso…

Na Mesopotâmia, existe algo paralelo, no qual o deus Marduk mandou construir um santuário para o deus lunar. No cilindro de Nabónides de Sippar (i.8-ii.25) existe um texto em que o rei Nabónides de Sippar (556-537 a.e.c.) descreve o restauro de três templos. O texto diz o seguinte: «Marduk disse-me […] constrói Ehulhul e faz com que Sin, o grande senhor, estabeleça aí a sua morada»[46]. Segundo 3 ‘Reinos’ 8, 53a, o deus solar informa Salomão de que YHWH quer habitar nas «nuvens espessas», nas «trevas» (grego, gnóphõi; hebraico, ‘ãrãpel), as quais constituem o domínio, o reino onde YHWH reina como deus da tempestade e da guerra, tal como está atestado, por exemplo, no Salmo 18,8-15Inclinou os céus e desceu, com densas nuvens debaixo dos seus pés»).

Passemos, agora, à segunda parte desta ‘dedicação’. É legítimo interrogarmo-nos sobre quem é o sujeito da frase «para que viva para sempre ali[47]»: o deus solar, YHWH ou o rei? É provável que a ambiguidade tenha sido deliberada. O templo também era um santuário real, o lugar santo e centro do reino. Se o rei for considerado o filho de deus, a casa de deus, de algum modo, também é a casa do rei. Sendo assim, a ideia de «voltar a habitar para sempre ali» pode referir-se também à sucessão dos reis e, nesse caso, reflectir a ideia de uma dinastia eterna. Os massoretas corrigiram esta proximidade entre rei e divindade deixando claro que YHWH é o único que pode habitar no templo de Jerusalém[48]. Provavelmente, também eliminaram toda e qualquer menção a uma divindade solar: a vontade de habitar na obscuridade passa, então, a proceder exclusivamente do próprio YHWH. A expressão do texto massorético «para que habites para sempre» retoma um Salmo presente no livro do Êxodo: «Fá-lo-ás entrar e plantá-lo-ás na montanha que é a tua herança, lugar que fizeste para Tu habitares, SENHOR, santuário que as tuas mãos, Senhor, estabeleceram.» (Êxodo 15,17) Este texto não deixa dúvidas de que se trata claramente de uma casa para o trono de YHWH, e não para o rei.

Em resumo. Parece bastante claro que a versão grega pressupõe uma forma mais antiga de dedicação do templo, donde se conclui que este santuário pertencera primeiramente a uma divindade solar à qual, mais tarde, se associou YHWH. Os cultos ao sol existiam em toda a Mesopotâmia e no Egipto, com facetas diversas: o sol como criador e garante da vida, mas também como juiz das acções boas e más dos seres humanos. Um selo encontrado em Jerusalém num túmulo do século VII a.e.c. mostra um Deus Solar ladeado por dois deuses menores: o “Direito” e a “Justiça”[49].

A concepção de um deus solar justiceiro encontra-se num certo número de Salmos da Bíblia, tal como se encontra na história de Sodoma e Gomorra, na qual o castigo divino advém no momento em que o sol irrompe e se ergue. Apetece pensar que os ‘dois mensageiros’ mais a ‘divindade’ – que fazem parte desse relato do capítulo 19 do Génesis –, juntos, representam um deus solar com os seus dois acólitos.

No primeiro capítulo do livro do profeta Isaías (1,21; cf. também v. 26), Jerusalém surge como a cidade na qual residia o Direito e a Justiça: «Como se tornou numa prostituta a cidade fiel! Outrora, cheia de direito, nela a justiça tinha morada …». Estes textos podem conservar memórias da presença, em Jerusalém, de um deus solar que, rapidamente, foi assimilado por YHWH.

A ideia de uma veneração conjunta de um deus solar e um deus da tempestade encontra também suporte na iconografia, não só no Sul, mas também em várias estelas do norte da Síria (Til Barsip/Tell Ahmar: primeiros séculos do primeiro milénio a.e.c.) e da Anatólia, nas quais se pode ver um deus da tempestade munido dos seus atributos e, acima dele, o disco solar.

Em suma, YHWH, quando entra em Jerusalém e ocupa o seu lugar no templo, não passa a ser a partir desse instante, num estalar de dedos, a divindade principal. Virá a sê-lo, sim, mas mais tarde, nos séculos que lhe seguirão, quando dois reinos o disputarem, o passarem a reivindicar como sendo o seu e o único deus verdadeiro.


Estela do norte da Síria:

deus da tempestade empunhando um trovão (arma?) e um raio;

por cima, o símbolo do deus solar

 

 



[1] Em Josué 18,1.8-10; 19,51; 21,2; 22,9.12.

[2] Como veremos mais adiante, o livro de Josué foi composto pela primeira vez no século VII a.e.c. Na verdade, nunca existiu uma conquista do país de Canaã pelos israelitas segundo o modo realista que o relato bíblico adopta, pois, tal como já sublinhámos, a entidade «Israel» começa a constituir-se a partir de uma população autóctone à qual se unem diversos elementos shasu e hapiru, processo de evolução que acabará por levar a que o deus YHWH venha a ser adoptado por «Israel». O livro de Josué poderá, isso sim, reflectir alguns desses confrontos militares que muito provavelmente existiram entre «Israel» e certas cidades cananeias. Uma boa e muito resumida iniciação à História do Povo Hebreu (do ponto de vista histórico-arqueológico e não teológico… mas com múltiplas e imprescindíveis referências bíblicas) é, de André Lemaire, a «Histoire du Peuple Hébreu», Ed. “Que sais-je?” Presses Universitaires de France / Humensis, 2023, avril, Paris; ISBN 978-2-7154-1583-6; ISSN 0768-0066. [?15: livro de bolso, 127 páginas]

[3] T. C. Butler, «Joshua», Waco 1983, 249-250.

[4] I. Finkelstein, «Seilun, Khirbet», Anchor Bible Dictionnary V, 1992, 1069-1072.

[5] Encontra-se esta mesma ideia no Salmo 78,58-62: «[58] Irritaram-no nos lugares altos, provocaram os seus ciúmes com o culto dos ídolos. [59] Deus ouviu isto e indignou-se, e repudiou Israel com veemência. [60] Abandonou o santuário de Silo, a tenda onde morava entre os homens. [61] Entregou ao cativeiro a sua fortaleza e o seu esplendor na mão dos inimigos. [62] Entregou o seu povo à espada, irritou-se contra a sua herança.»

[6] J. Hutzli, «Die Erzählung von Hanna und Samuel: textkritische und literarische Analyse von 1 Samuel 1-2 unter Berücksichtigung des Kontextes», Zurich 2007, 213.

[7] Pode consultar-se I. Finkelstein – N. A. Silbermann, «Les Rois sacrés de la Bible. À la recherche de David et Salomon», Paris 2006. Idem em castelhano, «David y Salomón», Ed. SIGLO XXI, 2007, p. 116.118: “UM POVO, UM TEMPLO” (a Religião ao serviço do Poder Político-Militar): «A história bíblica de David e Salomão insiste muito no empenho de ambos em centralizar o culto israelita na sua capital, bem como na especial santidade desse lugar (2Reis 18,4-5). A David ordena que se transporte a santa Arca da Aliança em alegre procissão (2 Samuel 6) e a Salomão atribui a construção do Templo como ponto central do culto de Israel unificado. A insistência na centralidade de Jerusalém foi um processo teológico que duraria ainda vários séculos (…) a começar no séc. VIII a.e.c.» [p. 118] (…) «Judá experienciará uma reforma arrasadora das práticas cultuais durante a qual se aboliram, destruíram e enterraram santuários de zonas rurais como parte, provavelmente, de uma campanha para centralizar o culto do Estado em Jerusalém. Este processo deve ser encarado do ponto de vista socioeconómico e político – e não tanto religioso. O seu objectivo mais provável foi reforçar os elementos unificadores do Estadoa autoridade central do rei e da elite da capital – e debilitar a antiga liderança regional das zonas rurais organizadas segundo o regime de clãs.» [p. 118].

[8] Segundo G. Athas, «The Tel Dan Inscription. A Reappraisal and a New Interpretation», London – New York 2003, que apresenta o dossiê e as diferentes interpretações de uma maneira muito completa, concluindo que se trataria do filho de Hazael, a saber, Bar Hadad.

[9] Fragmento A, linhas 8-9.

[10] Eu (conjuntamente com Albert de Pury e Axel Knauf) já insisti nas dificuldades desta leitura; pelo contrário, propus «Beth Dôd»: Dôd («o Tio, o Amado»), conforme é nomeado na estela de Mesa o deus tutelar de alguém. Cf. Ernst Axel Knauf, A. de Pury e T. Römer, «*Baytdawid ou *baytdwd? Une relecture de la nouvelle inscription de Tel Dan»: Biblische Notizen 72 (1994) 60-69. Porém, perante um consenso quase geral, não vou voltar aqui a insistir no meu ponto de vista. [PB: o Link sob Ernst Axel Knauf contém uma fabulosa informação bibliográfica…]

[11] Segundo George Athas, «Tel Dan», a expressão refere-se a Jerusalém. Contudo, tendo em atenção o paralelismo com a «casa de Omrí», é mais plausível a opinião maioritária.

[12] É o nome do filho de Saul: “Ish Baal” («Homem de Baal»), na versão grega. Os massoretas alteraram o texto hebraico para lhe conferirem um sentido pejorativo: “Ish Boshet” («Homem da vergonha»).

[13] No texto massorético está «assuritas». O nome é pouco claro. Será uma alusão aos assírios? A sê-lo, seria uma glosa anacrónica. As versões secundárias não compreenderam a versão original e procuraram emendá-la. Juízes 1,32 menciona a existência de um clã de asseritas, o qual provavelmente teria estado presente na versão original do texto.

[14] D. V. Edelman, «The ‘Ashurites’ of Eshbaal’s State»: Palestine Exploration Quarterly 117 (1985) 85-91 (VASTA LITERATURA: nesta listagem está EDELMAN, D V); E. A. Knauf, «Saul, David, and the Philistines: from geography to history»: Biblische Notizen 109 (2001) 15-18.

[15] O espantoso sítio de Khirbet Qeiyafa, recentemente escavado por Yosef Garfinkel, que  se situava [à época] na esfera de influência dos filisteus, poderia, segundo a opinião de Israel Finkelstein, fazer parte da zona de influência do reino de Saul: “o vale dos terebintos”, mencionado em 1 Samuel 17-2 (cf. Israel Finkelstein, «Le Royaume biblique oublié», Paris 2013, 90-99, ou a edição brasileira intitulada «O Reino Esquecido – Arqueologia e História de Israel Norte», Paulus 12015, pp. 76-81, São Paulo (BR), ISBN 978-85-349-4239-3. Cf. a página (o blog) do Professor brasileiro: Ayrton’s Biblical Page. A hipótese de I. Finkelstein não foi unanimemente aceite. A propósito da leitura-interpretação do sítio arqueológico de Khirbet Qeiyafa por Garfinkel, a qual demonstra soberbamente que a Arqueologia pode reservar surpresas ao historiador e ao biblista, confira Yosef Garfinkel et al. (Universidade Hebraica de Jerusalém), «Khirbet Qeiyafa 2009 (Notes and News)»: Israel Exploration Journal 59 (2009-2011) 214-222.

[16] A linguagem típica dos autores deuteronomistas está ausente em 1 Samuel 4-6. Sendo assim, tanto pode ser uma tradição mais antiga que posteriormente foi integrada na história deuteronomista como se pode tratar de uma adição mais recente, ainda que posterior à revisão deuteronomista.

[17] Dagon (Dagan) é uma divindade do Próximo Oriente (ligada à fertilidade e quiçá à agricultura). Na Bíblia surge como o deus dos filisteus. Se isto for verdade, esta atribuição proporcionaria um indício suplementar da rápida adopção das divindades autóctones por parte dos filisteus.

[18] Em vários manuscritos, o final do versículo está ausente e fala de «cinquenta mil homens». Noutros manuscritos está gramaticalmente mal ligado ao precedente. Trata-se, indubitavelmente, de uma glosa que, no princípio, se encontrava na margem do rolo e que funcionava como proposta a fim de sublinhar o poder do golpe destruidor de YHWH. Mais tarde, foi introduzido no texto por um copista, texto que no princípio continha apenas a expressão «setenta homens».

[20] Voltaremos a esta questão mais adiante: à questão da existência de uma deusa associada a YHWH.

[22] Desta época, foram encontrados pedaços de uma muralha. Existem marcas de ter sido habitada por volta do ano 3100 a.e.c.

[23] Segundo os textos sacerdotais, o éfode é uma espécie de xaile que o sacerdote levava sobre as vestes. Está relacionado com a função de prever as decisões divinas (como quem lança dados) através do manuseamento do urim e do tumim,  uma espécie de ossinhos de adivinhação que se guardam no éfode. Noutros textos bíblicos, o éfode quer dizer ‘estátua divina’.

[24] Em Êxodo 28,42-43 podemos ler: «[42] Farás também calções de linho vulgar, a fim de lhes cobrir a nudez, desde a cinta até às coxas. [43] Aarão e os filhos hão-de usá-los, quando entrarem na tenda da reunião, ou quando se aproximarem do altar para oficiar no santuário; assim, não incorrerão em falta e não morrerão. Esta é uma norma perpétua para Aarão e para os seus descendentes.»

[25] Theodore W. Jennings, «Jacob’s Wound: Homoerotic Narrative in the Literature of Ancient Israel», New York 2005, 83-85.

[26] 1 Crónicas 28, especialmente o versículo 3: «”Não edificarás uma casa ao meu nome, porque és guerreiro e derramaste sangue.”»

[27] É assim que pensa, por exemplo, J. Cazeaux, «Saül, David, Salomon. La Royauté et le destin d’Israël», Paris 2003.

[28] Cf. Israel Finkelstein – N. A Silberman, «Les Rois sacrés de la Bible».

[29] G. J. Wightman (Melbourne, Australia), «The mith of Solomon»: Bulletin of the American Schools of Oriental Research 277/278 (1990) 5-22; I. Finkelstein – N. A. Silberman, «Les Rois sacrés de la Bible», 153-159, 255-261.

[30] Para uma apresentação do debate, cf. J. C. Gertz, «Konstruire Erinnerung. Alttestamentliche Historiographie im Spiegel von Archäologie und literarhistorischer Kritik am Fallbeispiel des salomonischen Königtums: Berliner Theologische Zeitschrift 21 (2004) 3-29.

31 J. Briend, «Un accord comercial entre Hiram de Tyr et Salomon. Études de 1 R 5,15-26», em “Études bibliques et Proche-Orient ancien. Mélanges offerts au Père Paul Feghali», Dekoouaneh-Jouineh 2002, 95-112.

[32] I. Finkelstein – N. A. Silberman, «Les Rois sacrés de la Bible», 164-165.

[34] N. Na’aman, «Sources and composition in the history of Solomon», in L. K. Handy (dir.), «The Age of Solomon. Scholarship at the Turn of the Millenium», Leiden-New York-Köln 1997, 57-80, aqui 76-77; I. Finkelstein – N. A. Silberman, «Les Rois sacrés de la Bible», 167.

[35] Estas listas provavelmente existiam sob diversas formas, tal como mostra a Septuaginta, a qual, ao contrário do texto massorético, conserva duas listas (desiguais) de funcionários de Salomão, nos capítulos 2 e 4 do terceiro livro dos Reis (nas Bíblias gregas, nos dois livros de Samuel e nos dois livros de 1 Reis estão reagrupadas em quatro livros do Reis; assim, o texto hebreu de 1 Reis corresponde ao texto grego de «3 Reinos»). Cf. A. Schenker, «Septante et texte massorétique dans l’histoire la plus ancienne du texte de 1 Rois 2-14», Paris 2000, 34-35.

[36] T. Veijola, «Solomon: Bathsheba’s firstborn», em G. N. Knoppwers – J. G. McConville (dirs.), «Reconsidering Israel and Judah. Recent Studies on the Deuteronomistic History», Winona Lake 2000 [1979], 340-358; E. A. Knauf, «Le roi est mort, Vive le roi! A biblical argument for the historicity of Solomon», em L. K. Handy (dir.), «The Age of Solomon», 81-95.

[37] Konrad Rupprecht, «Der Tempel von Jerusalem: Gründung Salomos oder jebusitisches Erbe?», Berlin 1977.

[38] A parte mais sagrada do templo: o Santo dos Santos.

[39] Este núcleo foi reinterpretado como sendo uma redação de estilo sacerdotal; cf. E. Würthwein, «Die Bücher der Könige. 1 Könige 1-16», Göttingen 1977, 84-91.

[40] Segundo Würthwein, ibid., 84-85.

[41] O asterisco situado atrás de um versículo ou de um conjunto de versículos indica uma forma primitiva restituída, cuja existência se deduz.

[42] Para o assunto que se segue, cf. a bibliografia: A. Schenker, «Septante et texte massorétique dans l’histoire la plus ancienne du texte de 1 Rois 2-14»; O. Keel, «Dersalomonische Tempelweihspruch. Beobachtungen zum religionsgesschichhtlichen Kontext des Ersten Jerusalemer Templs», in O. Keel – E. Zenger (dirs.), «Gottesstadt und Gottesgarten, Zur Geschichte und Theologie des Jerusalemer Tempels», Freiburg-Wien-Basel 2002, 9-22.

[43] Termo técnico que se emprega para designar o texto hebraico que os tradutores têm debaixo dos olhos.

[44] O tamanho foi provavelmente muito exagerado ou então corresponde ao século VII a.e.c., altura em que Jerusalém se converte numa cidade muito importante. O templo hitita de Tell Tayinat, na Anatólia (hoje, na parte sudeste da Turquia), tem um tamanho comparável. Segundo 1 Reis 6,2, a sala principal tinha um comprimento de 60 côvados, o que corresponde a cerca de 30 metros, o que é manifestamente enorme.

[45] A. Schenker, «Une nouvelle lumière sur l’architecture du Temple grâce à la Septante? La place de l’arche de l’alliance selon 1 Rois 6:16-17 et 3 ‘Règnes’ 6:16-17»: Annali di Scienze Religiose 10 (2005) 139-154.

(Nota: Septuaginta é a versão da Bíblia hebraica traduzida em etapas para o ‘grego vulgar’[koiné] entre o século III a.C. e o século I a.C., em Alexandria. De entre outras tantas, é a mais antiga tradução da bíblia hebraica para o grego, língua franca do Mediterrâneo oriental no tempo de Alexandre, o Grande.)

[47] A palavra grega kainótês só surge na Septuaginta em Ezequiel 47,12, onde se refere à Lua Nova. (Ez 46,1.3)

[48] Cf. Também, em Ezequiel 43,8, a crítica aos reis que habitaram porta-com-porta com YHWH: «colocando a sua soleira junto da minha soleira e a sua porta junto da minha porta, estabelecendo um muro comum entre mim e eles. Eles profanavam o meu santo nome pelas práticas abomináveis a que se entregavam. Por isso, em minha ira os aniquilei.» Este oráculo faz alusão ao facto do palácio real se encontrar ao lado do templo (cf. a ilustração supra).

[49] Para uma representação, cf. Othmar Keel, «Die Geschichte Jerusalems und die Entstehung des Monotheismus», Göttingen 2007, 278.