A SERPENTE E O MONOTEÍSMO JUDAICO[1]
"Liberdade, essa
palavra que
o sonho humano
alimenta,
que não há ninguém que
explique
e ninguém que não
entenda."
Cecília Meirelles
Com Milton Schwantes, meu mestre em
exegese bíblica, aprendi que um estudo sobre Génesis 3 deve começar com uma
postura de respeito, como aliás se deve ter em relação a qualquer texto
sagrado. Numa ‘velha sebenta’ dos tempos das aulas de Antigo Testamento na
Faculdade de Teologia, em São Leopoldo [Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil],
nos idos de 80 do século passado, Milton Schwantes escreveu as palavras “com
temor e tremor” no topo do estudo sobre os capítulos 2 e 3 de Génesis. “Estes
capítulos estão marcados por uma longa história de interpretação”[2].
Para ele, a “escuta e o diálogo” são fundamentais para um bom trabalho
exegético[3].
Mas ele também reconhece que o sentido do texto de Génesis 3, em geral, está "poluído" pelas afirmações dogmáticas da
teologia cristã. Rebater tais consensos é tarefa demasiado difícil.
Como a “boa exegese” se faz em diálogo crítico, o presente estudo insere-se
nesta tradição de análise crítica de um texto muito conhecido.
A narrativa do Génesis é bem
conhecida. É uma narrativa simples[4],
construída fundamentalmente com quatro personagens (YHWH, Adão, Eva e a Serpente)
integrados no cenário do jardim do Éden. YHWH dá uma ordem explícita ao
primeiro casal para não comer do fruto da árvore do bem e do mal, situada no
centro do jardim. Esta ordem é transgredida por Eva e Adão após um diálogo
tentador entre a serpente e Eva. Dessa transgressão, resultam castigos impostos
por YHWH a cada um dos outros três personagens.
No presente estudo, pretendo
estabelecer uma conexão entre a simbólica da serpente em Génesis 3 e a história
do desenvolvimento do monoteísmo no antigo Israel. Basicamente, a minha
hipótese explicativa é a seguinte: a serpente,
como elemento catalisador da simbólica do mal, é
uma construção relativamente tardia na história da religião do
Israel antigo. No meu entender, a serpente, como símbolo do mal, pode ser rigorosamente
situada no período do pós-exílio, isto é, no decorrer do século V a.C. É nesse
momento histórico (séc. V a.C.) que a fé em YHWH, como credo no Deus único de Israel, recebe a sua
formatação mais decisiva e incisiva como “credo oficial” de Israel. Qualquer
outra expressão de fé em Israel, dissonante deste credo monoteísta “oficial”,
passará a ficar ‘marcada’. Inicia-se, assim, um processo de diabolização de
outras divindades, isto é, das representações de outras divindades. É uma
hipótese de trabalho para qual ainda não tenho todos os elementos de comprovação,
uma vez que se levantam muitos outros problemas. Aqui, pretendo expor as ideias
principais, no sentido de continuar a investigar e a “fertilizar” essa hipótese[5].
Para dar suporte a essa hipótese, procuro
expor com brevidade alguns pontos distintos entre si: (1) Breves aspectos da
história do desenvolvimento do monoteísmo bíblico. (2) Questionamentos acerca
da datação tradicional de Génesis 3 pela “teoria das fontes”. (3) Conteúdos no
horizonte do texto. (4) Horizonte dos redactores do texto: pós-exílio, influência
persa e afirmação do monoteísmo.
Aspectos da história do monoteísmo
bíblico
Numa leitura sincrónica da Bíblia
Hebraica, tem-se a sensação de que ‘o credo monoteísta’ está presente desde as
primeiras páginas desta obra histórica e teológica. Essa impressão ganha os
contornos de que a crença monoteísta pura e verdadeira das origens do povo
hebreu passou por processos de degenerescência no decorrer da história de
Israel. Há autores de nomeada que têm produzido trabalhos em linha com esta
perspectiva. O célebre exegeta alemão Gerhard von Rad situava as origens do
monoteísmo nos tempos primaveris do período pré-estatal[6].
Da mesma forma, Norman Gottwald, ainda que com outros pressupostos, situava ali
o seu monojavismo[7].
Na última década, a partir de vários
acessos e impulsos distintos, tem-se feito, porém, um caminho diferente na pesquisa
sobre o monoteísmo. Houve uma reviravolta. Passou-se a enfatizar um desenvolvimento
da religião israelita a partir de formas plurais
politeístas rumo a uma singularidade monoteísta, sendo esta
concebida como uma forma tardia no processo histórico de Israel[8].
Um aspecto que teve o seu perfil alterado
foi a imagem dos inícios de Israel. Divergindo da ideia da origem monoparental,
isto é, a partir de um ancestral comum, proposta pela historiografia bíblica,
gradativamente foi-se afirmando a ideia de uma diversidade de grupos humanos na
constituição do Israel das origens[9].
Consoante a tal diversidade social,
impunha-se o reconhecimento de uma diversidade religiosa,
que foi sendo gradativamente afunilada para a constituição de um credo monoteísta.
Desse processo podem-se postular várias fases[10]:
(a) Estudos sobre os inícios da
religião hebraica mostram que, numa primeira etapa, a divindade YHWH, que se
tornou principal e única no final de um longo processo, foi um elemento religioso trazido de fora para dentro do
contexto cananeu. Em Canaã, o Deus “EI” provavelmente ocupava a
primazia no panteão divino bem como na religiosidade popular. Por motivos diversos,
este YHWH do deserto[11]
passou por processos de sincretização com o Deus “El”, sem, contudo, negar a
diversidade religiosa reinante. Esse sincretismo há de ter continuado com a incorporação
da cidade jebusita de Jerusalém [local onde estava uma fortaleza jebusita conquistada
pelo rei Davi, cuja origem provavelmente é anterior à chegada dos antigos
israelitas] no
conjunto das cidades israelitas. A dinâmica de sincretização de tradições
religiosas recebeu força justamente a partir da capital e do futuro santuário
central de Jerusalém.
(b) Num segundo momento, pode-se
postular conflitos em torno de representações religiosas conflitantes. Emblemático
para isso é o conflito entre YHWH e o Deus cananeu Baal. Este conflito é
projetado pelos redatores bíblicos para o Reino do Norte no período dos séculos
IX a VIII a.C. e protagonizado pelas figuras proféticas de Elias e Oseias. Por
trás destas polémicas, podem-se postular conflitos entre grupos sacerdotais distintos,
sendo que a perspectiva do que seja “certo” ou “oficial” é tomada a partir de
reconhecimentos posteriores dos momentos de coleção e canonização dos referidos
textos. Nas polémicas contra Baal, trata-se, sobretudo, de transferir para o Deus
YHWH atribuições de fertilidade, as quais, no imaginário religioso cananeu-israelita
popular, são celebradas como funções próprias de Baal. Assim, por meio de polémicas
e de textos quase-catequéticos do chamado «ciclo de Elias» (1 Reis 19 a 2 Reis
2), aliado a acções bélicas como a revolução de Jeú (2 Reis 9), no século IX a.C., o Deus YHWH, originalmente um deus do deserto e da
batalha, passa a ser afirmado também como “Deus da fertilidade”[12].
Textos do Livro de Oseias indicam um aprofundamento destas polémicas no século
VIII a.C.[13].
(c) Outro momento importante na
história da afirmação do monoteísmo israelita situa-se no Reino do Sul, no
período do final do século VIII até ao final do século VII a.C. Neste período,
deve-se localizar a consolidação dos corpos de leis mais incisivos de Israel,
ou seja, o “Código da Aliança” (Êxodo 20,22-23;19) e o “Código Deuteronómico” (Deuteronónio 12; Dt 26)[14].
Ambos os códigos operam com a tese básica da centralidade da fé em YHWH e da, daí
decorrente, necessidade de depreciação da fé em outras divindades. Chegamos
agora, então, a um patamar mais desenvolvido. A fé monoteísta javista é
afirmada num “contexto nacionalista” de afirmação da soberania do Reino de Judá,
num tempo de fortes embates com os impérios mesopotâmicos[15].
Como exemplo de instituições fundamentais do Reino de Judá, estão presentes a
monarquia e o templo. Rei e Sacerdote operam historicamente por meio das instituições
com reconhecimento popular, que, no caso de Judá, são feitas mediante políticas
de casamento de membros da família real davídica com membros de famílias
importantes do interior. O templo e o seu sacerdócio,
sob o comando do rei, procuram normalizar as práticas religiosas.
A diversidade religiosa passa a ser objeto de ações persecutórias oficiais, procurando
sempre a cumplicidade dos homens de Israel, os quais devem denunciar quem se
desvia do credo oficial afirmado a partir de Jerusalém. Neste contexto, duas
expressões religiosas entendidas como concorrentes ou indesejadas são desqualificadas:
por um lado, relata-se a destruição de Neustan (2 Reis 18,4), uma divindade
mágico-terapêutica do deserto instalada no Templo e simbolizada na serpente de
bronze[16];
por outro lado, a deusa Asherah passa por tabulação gradativa[17].
Textos proféticos são funcionalizados a posteriori para este
processo de desqualificação da diversidade rumo à singularidade monoteísta
nacional. Cabe aqui registar que, ao longo deste processo, que basicamente ocorreu
no século VIII a.C., se verificou também o desenvolvimento de concepções de
divindades telúricas visando representações de cariz celestial.
Uma panorâmica da iconografia do período o revela muito bem[18].
(d) O período do Exílio, isto é, o
tempo entre 597 e 538 a.C. (datas referentes à primeira deportação para a Babilónia
e ao regresso dos deportados à “terra prometida”) há-de ter sido um período
marcado por duplicidade ou multiplicidade de perspectivas. É muito provável
que, durante este período, na terra em Israel, após a destruição do Templo e do
desmantelamento do poder político e religioso central, tenham prevalecido formas plurais e mais sincréticas da fé em
YHWH, enquanto que, entre os exilados, no contexto babilónico, o javismo tenha
ganhado contornos mais exclusivistas,
embora também com evidentes traços sincréticos com a religiosidade babilónica.
No exílio, os judeus deportados precisaram de coadunar as suas crenças
tradicionais de cunho nacionalista com a supremacia da religiosidade babilónica,
que tinha em Marduk a representação do Deus imperial
maior.
(e) A perspectiva da “golá”,
isto é, dos judeus deportados para a Babilónia que gradualmente regressam a
Judá a partir de 538 a.C., certamente foi a mais sofrida (duramente vivida, a
mais sentida), no que diz respeito à fórmula da fé monoteísta típica do povo
judeu. No regresso da “golá” e no processo de reconstrução do ‘novo
Israel’ no século V a.C., tratou-se de afirmar ou reafirmar a exclusividade de
YHWH, o seu sacerdócio masculino, a sua residência oficial no Templo de
Jerusalém e a incompatibilidade deste credo com a fé em qualquer outra divindade.
Esse traço da afirmação do credo monoteísta será marcante para a constituição
da identidade do “Judaísmo pós-exílico”. Contudo, apesar da centralidade do Templo
e do Sacerdócio masculino, este tempo é também marcado por dissidências e práticas dissonantes da oficial.
É nesse contexto pós-exílico que tentamos
situar a narrativa de Génesis 3, que trata do conflito entre YHWH e a serpente.
Com isso, vamos chegando ao segundo argumento: a datação do texto de Génesis 3
(Eis o texto - «Cap.3, v.1 A serpente era o mais astuto de todos os animais
selvagens que o SENHOR Deus fizera; e disse à mulher: «É verdade ter-vos Deus
proibido comer o fruto de alguma árvore do jardim?» 2A mulher respondeu-lhe:
«Podemos comer o fruto das árvores do jardim; 3mas, quanto ao fruto da árvore
que está no meio do jardim, Deus disse: ‘Nunca o deveis comer, nem sequer tocar
nele, pois, se o fizerdes, morrereis.‘ 4A serpente retorquiu à mulher: ‘Não, não
morrereis; 5porque Deus sabe que, no dia em que o comerdes, abrir-se-ão os
vossos olhos e sereis como Deus, ficareis a conhecer o bem e o mal‘.» 6Vendo a
mulher que o fruto da árvore devia ser bom para comer, pois era de atraente
aspecto e precioso para esclarecer a inteligência, agarrou do fruto, comeu, deu
dele também a seu marido, que estava junto dela, e ele também comeu. 7Então,
abriram-se os olhos aos dois e, reconhecendo que estavam nus, coseram folhas de
figueira umas às outras e colocaram-nas, como se fossem cinturas, à volta dos
rins. 8Ouviram, então, a voz do SENHOR Deus, que percorria o jardim pela brisa
da tarde, e o homem e a sua mulher logo se esconderam do SENHOR Deus, por entre
o arvoredo do jardim. 9Mas o SENHOR Deus chamou o homem e disse-lhe: «Onde
estás?» 10Ele respondeu: «Ouvi a tua voz no jardim e, cheio de medo, escondi-me
porque estou nu.» 11O SENHOR Deus perguntou: «Quem te disse que estás nu?
Comeste, porventura, da árvore da qual te proibi comer?» 12O homem respondeu:
«Foi a mulher que trouxeste para junto de mim que me ofereceu da árvore e eu
comi.» 13O SENHOR Deus perguntou à mulher: «Por que fizeste isso?» A mulher
respondeu: «A serpente enganou-me e eu comi.» CASTIGO E ESPERANÇA - 14Então, o
SENHOR Deus disse à serpente: «Por teres feito isto, serás maldita entre todos
os animais domésticos e entre os animais selvagens. Rastejarás sobre o teu
ventre, alimentar-te-ás de terra todos os dias da tua vida. 15Farei reinar a
inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta
esmagar-te-á a cabeça e tu tentarás mordê-la no calcanhar.» 16Depois, disse à
mulher: «Aumentarei os sofrimentos da tua gravidez, entre dores darás à luz os
filhos. Procurarás apaixonadamente o teu marido, mas ele te dominará.» 17A
seguir, disse ao homem: «Porque atendeste à voz da tua mulher e comeste o fruto
da árvore, a respeito da qual Eu te tinha ordenado: ‘Não comas dela‘, maldita
seja a terra por tua causa. E dela só arrancarás alimento à custa de penoso
trabalho, todos os dias da tua vida. 18Produzir-te-á espinhos e abrolhos, e
comerás a erva dos campos. 19Comerás o pão com o suor do teu rosto, até que
voltes à terra de onde foste tirado; porque tu és pó e ao pó voltarás.» 20Adão
pôs à sua mulher o nome de Eva, porque ela seria mãe de todos os viventes. 21O
SENHOR Deus fez a Adão e à sua mulher túnicas de peles e vestiu-os. 22O SENHOR
Deus disse: «Eis que o homem, quanto ao conhecimento do bem e do mal, se tornou
como um de nós. Agora é preciso que ele não estenda a mão para se apoderar também
do fruto da árvore da Vida e, comendo dele, viva para sempre.» 23O SENHOR Deus
expulsou-o do jardim do Éden, a fim de cultivar a terra, da qual fora tirado.
24Depois de ter expulsado o homem, colocou, a oriente do jardim do Éden, os
querubins com a espada flamejante, para guardar o caminho da árvore da Vida.»)
A datação de Génesis 3
Essa datação começou a cair em
descrédito com a descrença académica em relação à “teoria das fontes”,
especialmente a partir de meados dos anos 70 do século passado. Assim, impunha-se
a necessidade de buscar outras alocações para este texto[21].
Milton Schwantes, por exemplo, no seu
livro «Projetos de Esperança», escrito na década de 1980 e recentemente reeditado,
descrente da datação tradicional do texto de Génesis no século X a.C., tenta
situar a origem do texto no século VIII a.C., no contexto das polémicas
proféticas contra a idolatria[22].
A serpente seria símbolo do Estado opressor, catalisando
diversas experiências opressoras, inclusive a dominação do Egipto sobre a região
de Canaã e Israel. O Deus YHWH, por meio dos seus porta-vozes, os profetas,
seria a expressão da verdadeira fé contra a sedução idolátrica[23].
Chegados aqui, poderíamos citar
outros autores e outras tentativas de situar o texto; alguns deles chegaram a
pensar em datações tardias[24].
Fica a percepção de que, com o descrédito do argumento tradicional da “teoria das
fontes”, recentemente fortalecida com a tendência de não mais se aceitar a
datação tradicional da fonte “Javista” na época do pré-exílio, abre-se caminho
para a busca de novas alocações do texto. A minha proposta é datar o texto de Génesis 3 no período do pós-exílio,
isto é, no século V a.C.. Assim, vários elementos do texto poderiam ser melhor
entendidos no contexto geral do desenvolvimento da religião hebraica. Isso
refere-se, quer ao que diz respeito à serpente como ‘simbólica do mal’, quer ao
horizonte da produção da narrativa. De qualquer forma, Génesis 3 é um texto
complicado e sobrecarregado de sentidos, e, por isso, a exposição deve ser
cadenciada.
Transgressão e simbólica do mal: o
horizonte do texto
Génesis 3 é um texto onerado por
grande carga interpretativa. É um texto usado e até abusado como fundamento
para determinadas ênfases teológicas dentro do Cristianismo, destacando-se a
doutrina da chamada “queda” e a do “pecado original”[25].
A aceitação do convite da serpente por parte de Eva e Adão teria provocado a
ruptura na suposta relação direta e harmónica entre Deus e o primeiro casal.
Isso constituiria o “pecado original”,
isto é, uma mácula hereditária, para a qual somente a Igreja pode
oferecer “remédio” por meio do batismo. Por isso, impôs-se no Ocidente uma “antropologia
negativa”, no que tange à avaliação do ser humano[26].
Ambas as crenças teológicas teriam sua fundamentação neste texto do Génesis.
Pelo menos assim é afirmado desde o século V d.C., com a decisiva influência de
Santo Agostinho, o famoso teólogo de Hipona, cidade do Norte da África.
Nesta linha “dogmática” de leitura, o
texto de Génesis 3 não teria muito mais para contar. Restaria apenas ir
repetindo, com pequenas variações, o que a dogmática cristã já incorporou no
senso comum. Mas, com isso, a leitura deste texto bíblico esgotar-se-ia
aqui. Não haveria chance de descobrir novos sentidos. Porém, em termos hermenêuticos, isso não é e não pode ser
assim. A leitura de textos é sempre um acto criativo, em que novos
sentidos vão sendo vislumbrados e ensaiados a partir de novas experiências e
novas perguntas.
Por isso, “com temor e tremor”, como
o ensinou Schwantes, buscaremos assinalar algumas outras perspectivas, que podem
ajudar a entender o texto de outra forma.
Génesis 3 não opera ao nível de
conflitos “históricos” contra outras divindades específicas, como era o caso
das polémicas contra Baal (1 Reis 19), Neustan (2 Reis 18), Asherah (2 Reis 22-23),
e a Rainha dos Céus (Jeremias 45). Assim como os demais capítulos da unidade de
Génesis cap. 1 a cap. 11, está construído em
linguagem mítica. Em Génesis 3 trata-se de um conflito situado fora da temporalidade
histórica. Os eventos narrados passam-se noutra dimensão, no nível do mito.
Junto com o saudoso e memorável biblista argentino Severino Croatto, pode-se
dizer que Génesis 3 é um "mito hebraico"[27].
Antes de ver melhor o conteúdo da
narrativa mítica, é necessário recordar algumas questões teóricas para melhor
compreensão do assunto. Primeiro, há que ter presente que textos em linguagem
mítica atingem mais profundamente o imaginário ou a “alma” das pessoas e das
comunidades, porque tais narrativas trabalham com símbolos e arquétipos.
Em segundo lugar, textos míticos são instauradores de sentido; projetam
determinada construção imaginária de uma realidade (pretensamente) originária que se quer que seja assumida como verdadeira
ou como correta. O sentido do texto projetado no mundo, quer-se que seja tomado
como verdadeiro no tempo presente
daqueles que formularam o texto mítico. Muitos querem fazer com que certas acções,
consideradas “oficiais” ou normativas, sejam realizadas pelos ouvintes
ou leitores no tempo presente da elaboração ou reelaboração do mito. Quem
formula o texto de um mito quer influenciar os ouvintes ou leitores em
determinada direção, pois o mito é uma projeção hermenêutica da realidade[28].
Uma boa definição é dada por Croatto: “o mito é
o relato de um acontecimento originário, no qual os Deuses agem e cuja
finalidade é dar sentido a uma realidade significativa”[29].
Com essa determinação do género
literário, fica claro que o texto não pode
ser considerado histórico[30],
no sentido de que “realmente aconteceu”. O enredo ou o conteúdo da
narrativa mítica é imaginário ou fictício. Se em relação a este texto queremos
falar de “histórico”, então devemos aplicar isso ao facto de o texto em si
haver sido produzido em algum tempo e espaço histórico como representação cultural
ou religiosa desse tempo. Histórica é também a situação dos produtores da
narrativa mítica em questão.
Neste contexto mítico idealizado, a
narrativa de Génesis 3 debruça-se sobre o tema de uma “ruptura”. Procura falar
de ruptura a partir de uma suposta relação
íntima e quase umbilical entre o “casal original” e o Criador YHWH.
Para isso, os autores introduzem na narrativa um novo personagem, até então não
nominalmente presente. Trata-se da serpente.
O texto diz que a serpente é o “mais sagaz [...] animal selvagem que YHWH Deus
havia feito” (Génesis 3,1). Portanto, na óptica dos produtores do texto, a
serpente é um ser que faz parte do universo criado por Deus; na estrutura das
relações, a serpente também tem dimensão criatural.
Génesis 3 é um texto carregado de elementos
simbólicos: árvores (da vida, do bem e do mal), jardim, água, adam, e,
claro, a serpente[32].
Importante, porém, é destacar que, no texto de Génesis 3, a “serpente”, além de
ser animal selvagem criado, e por isso existente no mundo fenoménico, é símbolo. Como se sabe pelo ensino dos
estudiosos no assunto, os símbolos são sempre polissémicos. Os símbolos podem
ter vários sentidos[33].
No mundo do antigo Oriente, a
serpente podia simbolizar várias coisas. No Egipto, era símbolo de poder e de sabedoria.
A chamada “alta sabedoria” egípcia era difundida através do símbolo ‘serpente’.
Mas também os faraós governavam sob o símbolo da serpente. Por isso, alguns
pesquisadores afirmam que o problema de fundo em Génesis 3 seria o domínio dos faraós, reproduzido em Israel
pelo domínio dos Reis de Israel. Quem seguisse a serpente estaria assumindo a
dominação estrangeira[34].
É uma leitura possível, mas não a única.
Também em Canaã, a serpente era
símbolo de sabedoria e fertilidade. Alguns estudiosos até afirmam que, na
Palestina daquela época, havia cultos de fertilidade, nos quais o símbolo da
serpente estava presente. Em vários sítios arqueológicos, foram encontrados
artefactos e objetos representativos de serpente. As interpretações vão no
sentido de dizer que se trata de objetos cúlticos e que as mulheres estariam especialmente relacionadas
com este culto.
A apresentação inicial da serpente
como o animal “mais sagaz”, em si, não é negativa, pois trata-se provavelmente
de mera analogia com o mundo natural: diz-se do
símbolo “serpente” o que a serpente é no mundo natural. É o que se
pode chamar de "transferência por analogia"[35].
A ruptura com o mundo da natureza, contudo, é dada com a indicação de que a
serpente “fala”. Ela conversa com a mulher e, nesse diálogo de alto nível[36],
ela questiona ordens dadas pelo Criador YHWH. Aí, sim, desponta a dimensão de ‘ser
astuto’ da serpente, agora, porém, no universo simbólico. A serpente conversa
com a mulher sobre coisas que exigem sabedoria e discernimento. Por exemplo, a
conversa gira à volta de como saber o que é bom para comer e o que pode ajudar
no desenvolvimento intelectual. Na conversa, predomina o léxico relativo ao que
é “bom” e ao que é “mau”, aspecto típico das tradições sapienciais do antigo
Israel[37].
Trava-se um verdadeiro diálogo entre a serpente e a mulher. Neste diálogo, as
ordens de YHWH ao casal originário são devolvidas criticamente e relativizadas.
O diálogo acaba levando à acção de comer o fruto de uma árvore proibida, a
chamada "árvore do conhecimento"[38].
A mulher come deste fruto e também o dá ao homem para que ele coma. E assim se
consuma a transgressão das ordens de YHWH. E assim a serpente é justamente considerada
como a causadora dessa transgressão. Assim, na narrativa de Génesis 3, a
serpente, como símbolo, perdeu a sua polissemia intrínseca e opera na
"isotopia do negativo"[39].
Com esta apresentação, a serpente é simbolicamente
representada como um ser ou uma grandeza que se interpõe entre o Criador YHWH e
as criaturas humanas, neste caso, o casal original no “illud tempus” das
origens. E essa interposição, na óptica de quem construiu o texto, é vista fundamentalmente
como negativa, gerando a “isotopia do negativo”, da qual fala Croatto.
No horizonte imaginário do “mundo do
texto”, o questionamento e a relativização das
ordens de YHWH são vistas de forma negativa, ou, pelo menos, são menos
ambíguas. Há uma reação da parte de YHWH e fica claro quem se expressa por meio
deste personagem do enredo mítico, a serpente. É o próprio YHWH quem interpela
o homem e não interpela a mulher. O diálogo de Deus dá-se inicialmente com o
representante masculino, que é questionado por causa da acção da mulher e da
serpente, que o envolveram nesta mesma acção de comer do fruto (árvore da
sabedoria) (v. 9-12). O homem transfere a responsabilidade para a mulher (v. 12),
a qual, por sua vez, remete-a para a serpente (v. 13). Há, assim, uma lógica de
transferência de responsabilidade.
Desta interpelação e do repasse de
responsabilidade (“passa-culpas”) seguem-se, no texto, indicações de
consequências ou “castigos” diferentes para os três personagens, além de YHWH,
envolvidos no enredo.
Primeiramente, a serpente é maldita e
logo condenada a ser o que naturalmente ela já era: um animal que rasteja sobre
o ventre: “rastejarás sobre o teu ventre e comerás pó todos os dias da tua vida”
(v. 14). A isso se acrescenta a afirmação de uma inimizade programática entre a
mulher a serpente (v. 15).
Depois disso, vem o castigo para a
mulher (v. 16). Ela é condenada a ter sofrimentos na gravidez e dores no dar à
luz. Sobre essa “condenação” tem-se feito muitas interpretações, até no sentido
de afirmar que, no tempo antes da transgressão, ou na linguagem tradicional,
"antes da queda", a mulher dava à luz sem dores de parto. Deve-se,
contudo, observar que a condenação remete a mulher para a sua condição usual e
natural: multiplicar a prole com sofrimento e dor na gravidez. A indicação
seguinte de que a mulher terá seu desejo voltado para o homem e este dominará
sobre ela (v. 16) é a instauração mítica de uma ordem binária pretendida pelos
formuladores do enredo mítico. Pretende-se a validação do domínio do masculino
sobre o feminino e a canalização do desejo da mulher para o seu marido. Por
trás disso, está a concepção da estrutura
familiar patriarcal típica para a sociedade do antigo Israel. Nessa
projeção de relação binária entre masculino e feminino, estão, em si, excluídas
as formas de relação entre pessoas que não se encaixam nela[40].
Neste sentido o texto projeta como ideal-e-castigo a “ordem patriarcal” em
geral dominante no mundo vetero-oriental.
Ao homem cabe, em terceiro lugar, a
mais “amena” das condenações, embora também seja penosa (v. 17-19). Por dar
ouvidos à mulher e ter colaborado na transgressão, assumindo
corresponsabilidade, a terra a trabalhar será maldita, e, em fadiga, o homem,
projetado como agricultor, terá de obter o seu sustento ao longo de toda a sua
vida (v. 17). O homem deve matar-se a trabalhar e ganhar o pão com o suor do seu
rosto, no meio de cactos e espinhos (v. 18). "O túmulo do trabalhador é
o seu trabalho. O lavrador vai suando para dentro da terra (v. 19). Ele vai-se
cavando para dentro do chão, até morrer, até virar pó. Tanto mexe no pó que ele
se faz pó"[41].
Essa já é, em si, a sina do agricultor tradicional debruçado sobre o solo árido
da Palestina. A dimensão transitória de haver sido formado do pó e ao pó voltar
(v. 19) pode querer expressar a condição humana de ‘ser mortal’, embora
contenha também os elementos de ‘alienação pelo
trabalho’ e da ‘submissão ao Estado’, conforme propõe
Schwantes.
Seguem-se ainda outros elementos
míticos típicos de mitos civilizacionais, como, por exemplo, a questão do uso
de vestuário. Se Deus fez uma vestimenta para o primeiro casal, isso significa
que os descendentes devem andar vestidos. Com isso, a nudez assume conotação
negativa, devendo ser coberta com vestimentas. Também a indicação de que Eva é
a mãe de todos os viventes está neste nível. Eva, como "mãe de toda
vida", recebe aí conotação positiva.
O desenlace mais profundo na
narrativa mítica é indicado no final do texto com a expulsão do homem e da
mulher do jardim. Antes, porém, há ainda a menção de que, com a ação da
transgressão das ordens de YHWH, o ser humano se tornou sábio como Deus,
conhecedor do bem e do mal (v. 22). Por isso, é lançado fora do jardim para
"lavrar a terra de que fora formado", isto é, para se dedicar à sua
função principal de cultivador da terra. Com este desenlace, há uma condenação
da busca da sabedoria. Na óptica de quem formula o enredo mítico imaginário, a autonomia e o conhecimento não deveriam ser
“democratizados”, mas restritos a YHWH ou a quem se expressa em seu
nome.
A entrada do jardim é guarnecida por
um querubim com a função de guardar o «caminho da árvore da vida» (v. 24). Essa
"árvore da vida" não é referida em nenhum momento ao longo da
narrativa; ela deve ser diferenciada da "árvore do conhecimento", da
qual se fala no início do texto (v. 3). Há que prestar atenção que, em Génesis 3,
há duas árvores: a árvore do conhecimento e a árvore da vida! Ambas têm funções simbólicas distintas.
A expulsão do jardim costuma ser
interpretada como castigo “depois da queda”. Os editores da «Bíblia de Jerusalém» afirmam, numa nota: «Mas o
grande castigo será a perda da familiaridade com Deus (v. 23). Estamos
perante penas hereditárias»[42].
Combinado com afirmações do apóstolo Paulo na Carta aos Romanos, o africano
Agostinho de Hipona, na sua luta contra os donatistas, que defendiam uma antropologia
positiva, formulou, com base na sua interpretação do texto, a doutrina da “queda”
e do “pecado original”. Contra esta interpretação dominante e com ampla “história
dos efeitos”, prefiro interpretar a passagem no sentido de que há um castigo
por conta da transgressão humana. Há um castigo, mas um “castigo” necessário! É o castigo que remete o ser
humano para sua condição mais profundamente humana. Pois somente por meio da
transgressão à ordem constituída pode nascer uma vivência em autonomia e em
liberdade. Somente por meio da transgressão pode haver o discernimento em
autonomia e em liberdade, que são, ambos, elementos constitutivos do ser
humano. Transgressão é o gradual ou repentino corte do cordão umbilical,
necessário a todo desenvolvimento humano sadio, livre!
O texto mítico de Génesis 3, apesar
de apresentar o enredo em tonalidades negativas, é, pois, um texto que guarda
uma ambiguidade necessária. Ao falar negativamente da desobediência e da
transgressão dos humanos em relação a YHWH, apresenta simultaneamente este salto,
isto é, a própria transgressão como necessária
para que o ser humano se constitua como ser livre e autónomo[43].
Até aqui falamos do enredo mítico, do
ambiente, dos personagens e do desenlace que sucede no “horizonte do texto”. Agora
precisamos voltar a nossa atenção para o horizonte da «produção do texto», colocando
a pergunta: quem formulou este texto e com que objetivos e interesses o fez?
Dualismo incipiente e afirmação do
Monoteísmo:
- o horizonte dos produtores do texto
Trabalhamos com a hipótese de que o
texto do Génesis 3 deve ser lido como uma construção literária da época do
pós-exílio[44].
Definimos o género como uma “narrativa com estrutura mítica” ou simplesmente
como um “mito”. Agregamos a perspectiva de que a linguagem mítica é muito incisiva na afirmação e na internalização
de conteúdos pretendidos; o mito opera com uma frequência altamente simbólica e
com recursos arquetípicos.
Com este texto, podemos estar, no
plano do desenvolvimento da história da religião de Israel, num momento em que
começa a existir um “dualismo teológico”. Lembramos que, no enredo mitológico
do horizonte do texto, há uma interposição da serpente na relação direta entre
YHWH e o primeiro casal humano. Embora sendo afirmada como criatura, a serpente
passa a ser afirmada como contraposta a YHWH. A serpente é utilizada para simbolizar
tudo o que possa significar concorrência (religiosa) ao Deus YHWH, sendo este afirmado
como protagonista último no enredo.
Entendo que o texto de Génesis 3 se
situa na época mais tardia da história de Israel, provavelmente no período do
pós-exílio, quando a fé monoteísta chega ao ponto máximo das suas sínteses
doutrinárias, correspondendo à afirmação do Credo Monoteísta sob a influência
direta do Sacerdócio do Segundo Templo e este sob a influência do Império Persa.
Quem formulou o texto viu a concorrência a YHWH como negativa; promove a sua tabulação
por meio da simbólica do mal, cristalizada na figura da serpente.
Entendemos que a afirmação da
serpente como simbólica do mal no texto de Génesis 3 provavelmente é de
influência persa. A serpente é um elemento telúrico, isto é, ligado à terra. No
sistema religioso do Zoroastrismo, de origem e desenvolvimento persa, há uma
valorização dos elementos astrais em contraposição aos elementos telúricos. Os
produtores da narrativa podem ter tido essas influências religiosas por causa
do intercâmbio direto com o sistema persa, tanto por meio do contacto in
loco, isto é, durante a permanência dos exilados judeus na Babilónia, como
por influência indireta na sobreposição de interesses persas na administração
da província de Yehud no período do pós-exílio, a qual
teve, no santuário central de Jerusalém,
o seu elemento cristalizador e formatador, quer da identidade, quer da
ideologia.
Com isso, procuramos afirmar que,
provavelmente, os formuladores do enredo mítico de Génesis devem estar entre os
círculos da chamada “golah”, isto é, entre os deportados para a Babilónia.
Com o final do exílio, simbolicamente marcado com o “decreto de Ciro” (2 Crónicas 36,22-23; Esdras 1) e com o regresso dos deportados, estes assumem o comando da vida
política e religiosa na província de Yehud. Esdras e Neemias, bem como Zorobabel,
são expressões nominais desta liderança da “golah”. Neste contexto, dá-se
a afirmação do monoteísmo como marca identitária oficial do “Judaísmo”[45].
O templo funciona como espaço de outorga e garantia dessa formulação religiosa
e política.
A partir daí torna-se compreensível
que os articuladores do texto se expressem, ao nível hipostático do enredo, por
meio da figura de YHWH. O Deus YHWH e os formuladores do texto operam como
protagonistas, porém em níveis distintos. YHWH é o protagonista ao nível da
construção literária. Os autores do texto são protagonistas ao nível das
relações políticas e religiosas, interditando e tabulando a concorrência
religiosa. Simbolizada na serpente, a concorrência religiosa ao monoteísmo,
afirmado como oficial, engloba todas as formas possíveis de práticas religiosas
dissonantes do Credo monoteísta, o qual se expressa em práticas monolátricas
excludentes ligadas ao santuário central. Assim, qualquer diversidade religiosa
possível e divergente fica anulada, negativada.
Afirma-se a binariedade de uma opção entre YHWH e a serpente.
Os produtores da narrativa querem levar os ouvintes ou leitores a optar por
YHWH contra a serpente. No meu entender, a serpente não simboliza somente uma
determinada expressão religiosa desviante. A simbólica da serpente, na “isotopia
do negativo”, engloba todas as formas religiosas desviantes possíveis. Assim, através
do símbolo “serpente”, é possível fazer uma referência ao culto a Asherah, mas
também podiam ser abarcadas práticas de reverência e adoração a Neustan, à
serpente de bronze, bem como à Rainha dos Céus ou mesmo a Baal ou outras
divindades dos povos vizinhos cananeu-israelita. Neste sentido, a serpente
acaba adquirindo novamente uma dimensão polissémica. Ao ser incluída no relato
mítico, a serpente foi alocada na isotopia do negativo; neste espaço designado
pelos formuladores do texto, o símbolo “serpente”, agora negativado, volta a
operar de forma polissémica, porém, aberto a abarcar todas as formas religiosas
possíveis remissíveis ao âmbito do negativo. Neste sentido, a ordem estática do
mundo do texto mítico torna-se dinâmica por meio da inserção de novos sentidos
dentro da simbólica negativa.
Com essa constelação, a narrativa
opera com uma concepção dual, que prefiro chamar “dualismo incipiente”. Este
dualismo incipiente proposto pela narrativa de Génesis 3 corresponde a outras
simbólicas do mal produzidas provavelmente no mesmo período. Penso, por
exemplo, na representação de Satan, Leviatan e Beemont no Livro de Job (cap. 1-2 e 38-42). Estas figuras míticas, assim como a serpente, igualmente são
indicativas das dimensões do mal fora de YHWH e fora do ser humano. Estamos assim
no mesmo nível de simbolizações do negativo. Assim, pois, a partir de
Gênesis 3, a serpente passa a ser o elemento catalisador de toda expressão
religiosa concorrente a YHWH, ao nível hipostático e no concorrente à
formulação do credo monoteísta oficial a partir do templo em Jerusalém. Assim, no
meu entender, o texto de Génesis 3 pode ser melhor
entendido se o texto for interpretado como ponto culminante da história do
monoteísmo hebraico ou judaico[46].
A hipótese básica deste texto é,
pois, esta: a serpente como simbolização do mal está relacionada com a história
do monoteísmo judaico, representando, no meu entender, um estadio avançado da
história da afirmação do credo monoteísta ‘oficial e identitário’. Com o recurso
da linguagem mítica, o elemento simbólico polissémico da serpente é construído
como a simbólica do mal par excellance, abrindo caminho para se ler,
dentro deste símbolo negativado como expressão do mal, toda e qualquer outra
prática religiosa dissonante do credo monoteísta.
Com a aproximação do
elemento feminino no campo imagético desta simbólica do mal, opera-se uma dupla
tabuização: a
tabulação de qualquer divindade passível de ser representada pela
serpente e a tabulação da própria mulher. Algumas pinceladas na
história da arte pictórica sobre Génesis 3 revelam isso muito bem, como logo veremos
abaixo. Com a aproximação da mulher originária ao símbolo ‘desviante e
negativado’ da serpente, operada pelos autores de Génesis 3, a mulher fica
interditada para o exercício de actividades sacerdotais junto a YHWH, deixando
o espaço livre para a exclusividade do sacerdócio
masculino. Este aspecto, no meu entender, está marcado com os
“castigos” diferenciados para a serpente, a mulher e o homem (v. 12-19). Embora também atingido pela carga castigadora de YHWH, o
homem acaba sobrando como o único elemento possível para a prática sacerdotal
no culto a YHWH! Estamos, pois, com este texto de Génesis 3, nas raízes de uma interdição histórica, cuja
história dos efeitos se fará presente ao longo dos séculos posteriores.
Estes elementos correspondem ao conjunto
das práticas da institucionalização do credo monoteísta no período do segundo
templo, durante a dominação persa sobre a pequena província de Yehud. Efetivamente,
quem assume o comando é o grupo sacerdotal proveniente da “golah”. Os
cultos locais, em geral de caráter sincrético, são interditados. No templo
dominam os sacerdotes, e, por meio deles e sobre eles, vigoram os interesses
persas. A diversidade religiosa é interditada.
Trata-se da afirmação de um sistema dominante: o monoteísmo oficial excludente.
Génesis 3 é um texto
programático. Ele
foi fomentador e formulador de um imaginário religioso no Ocidente. Quantas
percepções teológicas já se montaram a partir dos seus conteúdos! Na sua base
programática, o texto quer levar os seus ouvintes ou leitores à pragmática da
monolatria ou do monoteísmo javista. Essa perspectiva dominante no texto foi
assumida também no campo da imagética[47]
pela maioria dos intérpretes, na história da recepção.
Haroldo Reimer, «A serpente e o monoteísmo» in
“Inefável e sem forma - estudos sobre o
monoteísmo hebraico”, pp.
103-126,
©
[1] As ideias básicas do presente capítulo foram expostas
em duas publicações distintas. Uma remonta a uma comunicação científica
apresentada sob o mesmo título no I Congresso Brasileiro de Pesquisa Bíblica,
realizado em setembro de 2004 em Goiânia sob o título “A serpente e o
monoteísmo” e publicado em Haroldo REIMER e Valmor da SILVA, «Hermenêuticas
Bíblicas», São Leopoldo: Oikos; Goiânia: Editora da UCG e ABIB, 2006, p.
115-120. Outras perspectivas estão elaboradas em Haroldo REIMER e CEBI-GO. «Génesis.
Casa comum: espaço de vida, cuidado e felicidade - Encontros bíblicos Génesis 1
a 11», São Leopoldo: CEBI, 2OO7, p.25-29 [Transgressão e autonomia].
[2] Milton SCHWANTES , «Projetos de esperança,
Meditações sobre Génesis 1-11». São Paulo: Paulinas, 2002, p. 103. A mesma
expressão consta no material que deu forma a duas edições distintas dos seus
trabalhos sobre Gênesis 1-11.
[3] Idem.
[4] Ao contrário daquilo que acontece com o Poema Babilónio da Criação (Enuma elish) ou com a Epopeia de Gilgamesh …
[5] Cf. também: “TAMBIÉN YAVÉ BAJO EL NUEVO PARADIGMA
ARQUEOLÓGICO-BÍBLICO. A PROPÓSITO DEL LIBRO DE THOMAS RÖMER, «L’INVENTION DE
DIEU»” - José María VIGIL. (In www.academia.edu)
[6] Von RAD, Teologia do Antigo Testamento, v. 1,
p. 16ss.
[7] GOTTWALD, As tribos de lahweh, p. 595-668,
especialmente p. 622.
[8] LANG, Die Jahwe-allein-Bewegung; Idem, lahwe,
der biblische Gott; DIETRICH e KLOPFENSTEIN, Ein Gott allein?; KEEL,
Monotheismus im Alten lsrael und seiner Umwelt.
[9] Ver p. ex. SCHWANTES, História de Israel.
[10] De forna mais extensa, cf. o primeiro estudo do
presente livro (Haroldo Reimer, «Inefável e sem forma - estudos sobre o
monoteísmo hebraico», OIKOS-Editora UCG): "Da Diversidade à Singularidade” (p. 21-52).
[11] Há várias passagens bíblicas que indicam que o deserto seria o habitat originário
de YHWH. Ver Deuteronómio 33; Habacuc 3; 1
Reis 19, bem como Êxodo
19ss. Cf. a respeito, CRÜSEMANN, «A
Tora», p. 49-92 e Carlos A. DREHER, «A Tradição do Êxodo e do Sinai»,
in “Estudos Bíblicos”, n. 16, Petrópolis, 1988, p. 52-67.
[12] CRÜSEMANN, «Elia ‒ die Entdeckung der Einheit Gottes» e Idem, «Elias e o Surgimento do Monoteísmo
no Antigo Israel».
[13] RIBEIRO, Osvaldo Luiz, «Ela não é minha mulher – O
programa religioso da ‘golah’ em Oseías
2,4-15». Fragmentos de Cultura.
Goiânia, vol. 13, n. 5, p. 1017-1046, 2003.».
[14] Sobre isto, exaustivamente, cf. CRÜSEMANN, «A Torá»,
p. 159-383. Ver também REIMER e RICHTER REIMER, «Tempos de Graça», p. 26-37.
[15] Apesar de se falar em “nacionalismo”, deve-se cuidar
para não retroprojetarmos o conceito de “nação”, dos tempos modernos, para os longínquos
tempos bíblicos.
[16] 2 Reis 18, 1-4. Sobre isso, ver RIBEIRO, Osvaldo
Luiz, «Nehustan. Pesquisa exegética, fenomenológica e
histórico-social sobre a origem, a supressão e o suporte social do culto à
serpente de bronze em Israel com base em Números 21,4-9; Isaías 6,1-7 e 2 Reis
18,4». Dissertação. Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, Rio de
Janeiro, 2002.
[17] Isso acontece durante a reforma político-religiosa
atribuída ao rei Josias e relatada em 2 Reis 22-23. Sobre isso, cf. NAKANOSE,
S. «A Páscoa de Josias. Metodologia do Antigo Testamento a partir de 2 Reis
22,1-23,30». São Paulo. Paulinas, 2000; e ANA LUISA CORDEIRO, «Asherah,
a deusa proibida». In: RICHTER REIMER, Ivone (Org.): «Imaginários da
Divindade». São Leopoldo: Oikos, Goiânia: Editora UCG, 2008, p. 25-48.
[18] KEEL, Othmar e UEHLINGER, Christoph, «Göttinen
Götter, und Gottessymbole», “Neue Erkenntnisse zur Religionsgeschichte
Kanaans und Israels aufgrund bislang unerschlossener ikonographischen Quellen”,
Friburgo, Basileia, Viena, Herder, 1992.
[19] Emblemático, quanto a isso, é o comentário de Gerhard
von Rad, «Das erste Buch Mose. Kap. 1-12,9». Göttingen: Vandenhoeck
& Ruprecht, 1949, p. 69-82.
[20] Sobre isto, é proveitoso ler José Luís Sicre, «Introducción al Antíguo Testamento», cap. 6: “Estado actual de la investigación sobre el
Pentateuco ‒ la teoria de las quatro fuentes”, p. 103-109;
Verbo Divino 2011, ISBN 978-84-9945-141-1. (Em brasileiro, na Editorial VOZES,
Petrópolis, 1996, pp. 76-91)
[21] Para uma panorâmica das discussões, cf. Albert de PURY
(org.), «O Pentateuco em questão. As origens e a composição dos cinco primeiros
livros da Bíblia à luz das pesquisas recentes». Petrópolis, Vozes, 1996;
cf. SKA, Jean Louis, «Introdução à Leitura do Pentateuco. Chaves para a
interpretação dos cinco primeiros livros da Bíblia.», São Paulo, Loyola,
2003.
[22] Milton Schwantes, «Projetos de Esperança –
Meditações sobre Génesis 1-11», São Paulo, Paulinas, 2002, p. 109-110.
[23] Cf. Anselmo Borges, «Quem era a serpente do paraíso?» (1),
Diário de Notícias, OPINIÃO, 20-01-2017. Cito a conclusão: «4. Afinal, "quem
era a serpente do Paraíso?" Houve as interpretações mais díspares: que
era uma víbora autêntica, mas possuída pelo Diabo; uma imagem, símbolo de
Satanás; "um símbolo geral dos maus desejos e dos prazeres sensuais".
De facto, nada disto está no texto, concretamente não há conotações sexuais no
pecado de Adão e Eva. Como não há maçã nenhuma: a confusão veio do facto de em
latim “maçã” se dizer “malum”, e “mau” se dizer “malus”
e “malum”. A serpente é apenas o símbolo da religião cananeia, [e
um escritor] via nela três qualidades: conceder a imortalidade, garantir
a fecundidade, ser o protótipo da sabedoria. Esse escritor anónimo escreveu
sobre os perigos da religião cananeia: [ele verificou que], em vez do paraíso
para todos, estava-se
a viver no meio de injustiças, fome, dores, morte, e a causa da situação estava
na religião cananeia, que levava o povo a refugiar-se numa religião de ritos
exteriores e fetichistas, incluindo a prostituição sagrada, em vez de seguir a
Lei do Deus vivo e "procurar a felicidade numa vida moral justa e honesta,
ao serviço dos irmãos".»
[24] É o caso da proposta de Eckhardt OTTO, «Die
paradieserzählung Genesis 2-3: eine nachpriesterliche Lehrerzählung in ihrem
religionshistorischen Kontext», In: Otto KAISER (Ed.), “Jedes Ding at seine
Zeit” (BZAW 241), Berlin, 1996.
[25] Sob o título de "história da queda", o
texto é interpretado em muitos manuais exegéticos. Cf. Gerhard von RAD, «Das
erste Buch Mose», p, 69-82.
[26] Ver a este respeito, Peter BROWN, «Santo Agostinho
- uma biografia». Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2005.
[27] José Severino CROATTO, «Quem pecou primeiro?
Estudo de Génesis 3 numa perspectiva histórica» ‒ Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, n.
37, Petrópolis, São Leopoldo, 2000, p. 15-27. Ver também as instigantes
formulações do autor em «Crear y amar en libertad ‒ Estudio de Génesis 2:4-3:24», Buenos Aires, La Aurora, 1986.
[28] Sobre isso, ver fundamentalmente Marcel DETIENNE, «A
invenção da mitologia» e José Severino CROATTO «As linguagens da
experiência religiosa. Uma introdução à fenomenologia da religião», São Paulo,
Paulinas, 2001, p. 181-282; também Karen ARMSTRONG, «Uma breve história do mito»,
São Paulo: Companhia das Letras, 2005. Elucidativas são também as elaborações
na tese de doutorado de Osvaldo Luiz RIBElRO, «A Cosmogonia de inauguração
do templo de Jerusalém. O Sitz im Leben de Gn
1,1-3 como prólogo de Gn 1,1-2,4», Rio
de Janeiro, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2008, especialmente
p. 274-280.
[29] «As linguagens da experiência religiosa», p.
209. Ver também Idem, «O mito como interpretação da realidade.
Considerações sobre a função da linguagem de estrutura mítica no Pentateuco».
Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, n. 23, Petrópolis, 1996, p.
16-22.
[30] Esta foi uma das questões que levou à destituição do
padre Eugen Drewermann e mais tarde à sua desacreditação pública, na sequência das suas
homilias e dos livros que
escreveu (por exemplo, «Os funcionários de Deus» e outros mais).
[31] O termo hebraico «gan»
não significa “paraíso”, mas “espaço de vida e trabalho”, Cf. CROATTO,
«Crear y amar en libertad». O carmelita português Armindo
dos Santos Vaz diz, na página 122 da sua Tese de Doutoramento em Teologia
Bíblica na P.U. Gregoriana de Roma (1995), que «à luz do atestado por estas
etimologias, poderia entender-se «‘eden» como uma planície (mais em
conexão com o sumério «edin») de terra arável, luxuriante e fértil,
abundantemente abastecida de água para alimentar o regadio; (…) as fundações
desta raiz [etimológica] exprimem a “abundância de água”, a “fertilidade”, o
“luxuriante”.» Ou seja, em vez de jardim, o texto aponta para a tarefa do trabalho, para o cuidado com a
Casa Comum, o qual, perante as condições naturais descritas, se aproxima mais
de uma promessa de abundância (de frutos) e não tanto uma existência desafortunada
ou sequer uma punição divina… (Cf., Armindo dos Santos
Vaz ocd, «Em vez da “História de Adão e Eva”: O Sentido Último da
Vida Projectado nas Origens», Edições Carmelo, Convento de Avessadas, Apto.
141, 4634-909 Marco de Canaveses - Portugal, 2011. E-mail: editorial@carmelo.pt )
[32] Sobre a pluralidade simbólica do texto, cf. Lyn M.
BECHTEL, «Repensando a interpretação de Génesis 2,4b-3,24», Athalya
BRENNER (Ed.), “Génesis a partir de uma leitura de género”, São Paulo: Paulinas,
2000, p. 87-130.
[33] Ver: Abner COHEN, «O homem bidimensional», Rio
de Janeiro: Zahar Editores, 1978; J. S. CROATTO, «As linguagens», 81-117.
[34] É isto que acontece na magistral interpretação de
Milton SCHWANTES, «Projetos de esperança», p. 117-120.
[35] CROATTO, «As linguagens», p. 91ss.
[36] O “diálogo de alto nível” é apontado em muitas
interpretações do texto. Ver CROATTO, «Quem pecou primeiro», p. 15-27; e
Lyn BECHTEL, «Repensando a interpretação», p. 120ss.
[37] Ver a este respeito o Livro de Provérbios; este
léxico também domina na história de José em Génesis
37-50, o que o grande exegeta Gerhard
von Rad vinculou de forma correcta com a tradição sapiencial em Israel.
[38] No senso comum, este fruto é identificado com a “maçã”.
Essa interpretação deriva da versão latina da Bíblia, feita no século IV por S.
Jerónimo, com o que provavelmente se faz referência tabuladora a narrativas míticas
dos povos, nas quais a maçã era vista como fruto da sabedoria ou da imortalidade.
[39] É isso que defende CROATTO em «Quem pecou primeiro?».
O mesmo autor, em «As linguagens da experiência religiosa», p. 84ss, ao tratar
da “teoria do símbolo”, lembra que um símbolo introduzido num relato tende a
perder a sua polissemia original, passando a indicar apenas uma faceta simbólica.
[40] Sobre isso, ver a interessante obra de Rebecca ALPERT,
«Como pão no prato sagrado. Una leitura lésbico-feminista das sagradas
escrituras e da tradição judaica», Rio
de Janeiro, Rosa dos Tempos, 2000.
[41] SCHWANTES, «Projetos de esperança», p. 116.
[42] Bíblia de Jerusalém, p. 35, nota “1”.
[43] Tendo por base um referencial teórico tomado da
psicologia Junguiana, Elias Mayer VERGARA procurou interpretar positivamente os
elementos da transgressão e da autonomia na sua dissertação de mestrado. Cf. «Fora do jardim – uma leitura psicanalítica de Génesis 3», Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 2004.
[44] Essa datação tardia, partilhada a partir de Eckardt
OTTO, «Die Paradieserzählung» também pode ser sustentada pelo argumento
e pelo silêncio de que nenhuma narrativa bíblica, seja ela profética,
sapiencial ou mesmo um salmo, faz referência explícita ao texto Gen 3. Sobre
isso, cf. também von RAD, «Das erst Buch Mose», p. 82-83.
[45] Entendemos “Judaísmo” como sendo o sistema social,
cultural e religioso formatado no período do pós-exílio como marca identitária
dos habitantes da província de Judá (Yehud). De forma ampla e muito instrutiva,
cf. Erhad S. GERSTENBERGER, «Israel in der Perserzeit. 5. und 4. Jahrhundert»,
Stuttgart, Kohlhammer. 2005. Ver também KESSLER, «Sozialgeschichte», p.
I38-172.
[46] Sobre a simbólica do mal, cf. também Paul RICOEUR, «O Mal. Um desafio à filosofia e à teologia», Campinas: Papirus, 1988. Cito: «Imediatamente o mito deve mudar de registo: é
preciso não apenas contar as origens, para explicar como
a condição humana em geral se tornou o que ela é, mas argumentar, para explicar porquê
ela é assim como é para cada um. É o estado da sabedoria. A primeira e a mais tenaz das
explicações oferecidas pela sabedoria é a da retribuição:
todo sofrimento é merecido porque ele é a punição de um pecado individual ou
coletivo, conhecido ou desconhecido. (…) Nesse sentido, a teoria da retribuição
é a primeira das visões morais do mundo, para retomar uma expressão que Hegel
aplicará a Kant. (…) a resposta da retribuição não poderia satisfazer, sabendo
que pertence a uma ordem jurídica que começa a existir, capaz de distinguir os
bons dos maus e dedicando-se a medir a pena em função do grau de culpabilidade
de cada um. Ao olhar a partir de um sentido até rudimentar da justiça, a
repartição presente dos males só pode parecer arbitrária, indiscriminada,
desproporcional: porquê morre de cancro este em vez de um outro? Porquê a morte
das crianças? Porquê tantos sofrimentos, excessivos face à capacidade de
suportar dos simples mortais?»
[47] Sobre isso, ver: Izak CORNELIUS, «Reception
History of Genesis 3. Journal of the Old Testament Study», Boston, 1994, p.
227-239; Fausto Sanchez MARTINS, «Speculum humanæ salvationis»,
Revista da Faculdade de Letras, Ciências e Técnicas, série 1, v. 1, Porto, 2002,
p. 173-202; e Monika LEISCH-KIESL, «Eva in Kurst und Theologie des
Frühchristentums und des Mittelalters», [tese de doutorado] Salzburg, 1990.
(FIM)