OS PEIXES E O LAGO ENVENENADO
As relações do Pe. B. Häring com “O Santo Ofício”
Pe. Bernhard Häring
‒ Como outros teólogos da maioria conciliar, também o P.
Häring teve relações muito difíceis com o Santo Ofício, em primeiro lugar, e
depois com a «Congregação para a Doutrina da Fé». Ultrapassando uma certa
crítica fundada em preconceitos, que não tem sentido para quem aceita com
convicção não só crescer na sua fé, mas também permanecer na Igreja-instituição
e dar o seu contributo mais autêntico para o aperfeiçoamento dessa instituição,
queria que abordasse este problema de modo concreto. Concorda?
Reflecti muito antes de me decidir a
revelar acontecimentos que tinha decidido manter secretos até agora, e que me
tocaram até ao mais profundo de mim mesmo. Esta hesitação estava ligada não
somente ao medo das consequências que poderiam entristecer os últimos meses ou
os últimos anos da minha vida, mas principalmente pela perturbação que poderiam
provocar nos crentes. Contudo, finalmente, senti a necessidade de provocar um escândalo,
que espero seja salutar, precisamente na medida em que pode contribuir para
curar uma situação tornada patológica.
Sempre me impressionou favoravelmente
a dimensão terapêutica da teologia da liberalização e foi no espírito
não-violento de Gandhi que quis enfrentar as injustiças sofridas, até porque
serei provavelmente também em parte responsável por algumas delas.
É nesta referência à transparência e à
força da verdade gandhiana que hoje pretendo, por seu intermédio,
revelar os aspectos que tinha mantido na sombra, sem
nenhum rancor, antes pelo contrário num espírito de benevolente compreensão
para com os que me fizeram sofrer, porque sei muito bem que certamente eles
também sofreram.
‒ Por outro lado, sendo a Igreja uma instituição, é natural
que tenha sombras e luz. Porquê, então, não falar de tudo, sem procurar o escândalo,
mas também sem nada esconder?
Concordo. Na verdade, é preciso
lembrar que Jesus Cristo sofreu por causa dos
discípulos e dos Apóstolos. E até previu para a cristandade
sofrimentos motivados pelos comportamentos condicionados por algumas estruturas
eclesiais. Abordo este assunto com um espírito sinceramente construtivo,
considerando-o até como o meu contributo para esta reforma que me fala tanto ao
coração: a unidade das Igrejas.
Durante a sua visita a Roma, o Patriarca Dimitrios I (1914-1991), dirigindo-se à Cúria romana, propôs que
a Igreja de Roma tomasse por guia a exigência ecuménica[1]. É nessa perspectiva que situo a
minha intervenção.
‒ Que reflexão fundamental lhe inspirou esta experiência
certamente pouco exaltante?
Trata-se de uma experiência que me
trouxe grandes sofrimentos. O
processo que a «Congregação para a Doutrina da Fé» intentou contra mim, em
1975, acabou em 1979. Depois começaram imediatamente as minhas dificuldades com
a «Congregação para a Educação Católica». Foram
oito anos de verdadeiro suplício na minha vida, os quais, ainda
por cima, coincidiram com o desenvolvimento
inesperado de um cancro na garganta, tendo sido submetido a sete
intervenções cirúrgicas e a terapias de cobalto, além de outros cuidados muito
constrangedores. E, contudo, numa certa perspectiva, foram anos fecundos, que
viram a conclusão da minha obra principal “Livres e Fiéis em Cristo”, e a ocasião de poder sofrer pela
Igreja. Quem não sofre com a Igreja, por causa da Igreja e pela Igreja não poderá
nunca pronunciar uma palavra credível. Penso nos grandes teólogos do passado,
como São Tomás, Santo
Afonso, Rosmini, Newman e também K. Rahner, De Lubac, Y. Congar e tantos outros.
Dirijo-me igualmente à nova geração para que saiba seguir-lhes o exemplo.
‒ Este processo começou, portanto, quando redigia a sua
obra principal. De que maneira foi por ele influenciado?
Exactamente. A partir do Concílio, os
homens do Santo Ofício tinham aproveitado todas as ocasiões para me intimidar, o
que me tornou mais vigilante e me obrigou à transparência do pensamento e da reflexão.
Recordo-me de um encontro com esse octogenário intrépido, Máximos IV, Patriarca dos melquitas. Agradecia-lhe a coragem e
franqueza que tinha demonstrado. Ele respondeu-me: «Meu
caro padre, como estou tão perto do tribunal de Deus, não me posso permitir
agradar aos homens». No decorrer destes anos sinto-me também neste
estado. Por isso, a minha última obra devia ser de uma transparência e de uma
franqueza proféticas.
‒ Antes e depois de ter sido posto directamente em causa
pelo «Santo Ofício», o senhor partilhou os sofrimentos de muitos dos seus
colegas, por causa de algumas implicações. Pode falar dessas experiências?
Essas experiências foram diferentes,
mas tiveram todas um denominador comum: o isolamento total a que estavam
reduzidos ‒ como leprosos ‒ os autores de livros inscritos no “Índice”. Neste ponto posso-me considerar
feliz, não só por não ter sido condenado pelos meus Superiores religiosos, como
veremos, mas até por ter podido contar sempre com a sua grande solidariedade
nos momentos difíceis. Mas recordo-me da amargura que me causou, quando era
jovem teólogo, o relato que me fizera um veterano da exegese sobre as suas
próprias dificuldades. Estava-se no tempo em que vigorava
um terrível ostracismo contra os exegetas. Foi por isso que um homem
tão competente como Franz Schreibmayr Klemens Tilmann abandonou voluntariamente
esta disciplina e se dedicou à Moral que então ainda não estava na linha de
fogo; e pôde desta forma contribuir para a sua actualização. Que amargura pude
descobrir em numerosos teólogos e pastores de almas, vítimas da profunda
contradição entre a competência «legal» do Santo Ofício e a incompetência
absoluta de muitos dos seus membros! Um douto e santo cardeal definiu o Santo
Ofício como a «adequação perfeita entre ignorância e arrogância»! Mas não
quero generalizar. Falarei, sobretudo, de alguns casos de colegas professores, cujas
penas partilhei por causa do ostracismo, pois me tinham escolhido como ponto de
referência.
O primeiro, Herbert Doms, padre e docente de teologia moral
na Universidade de Munster, autor (entre outras) de uma obra profética para a
época (1935): «O Sentido e os Fins do Matrimónio», posto no Índice dos livros
proibidos.
Encontrei-o pela primeira vez num congresso
no Luxemburgo, em 1952. Nos compridos passeios que fizemos a pé, contou-me o seu longo cativeiro na Rússia, a sua fuga, os
sofrimentos que teve de suportar: «Que nada são ‒ acrescentou ele ‒ comparáveis com os que os homens e
as estruturas do Santo Ofício me têm feito viver». Ainda revivo o drama da sua
luta íntima ‒ de que me fez confidente quando fui seu hóspede ‒ para «suportar a enorme incompetência da Altíssima Competência».
Destituído, antes da Guerra, da
cátedra de Breslau, teve, depois do conflito, ocasião de ocupar a de Múnster
pela qual teve de continuar ainda a combater contra as suspeitas espalhadas em
Roma a seu respeito por F. X. Hürth. Apesar de tudo, a sua fidelidade à
Igreja nunca fraquejou.
E como não me lembrar do caso de Bernardino Krempel, autor de uma outra obra: «A Questão dos Fins do Matrimonio à Luz de um Novo Dia»
posta no Índice sem o autor ter sido, não digo interrogado, sequer
recebido no Santo Ofício? Em Roma e em toda a parte sentiu-se completamente isolado.
Aquando da primeira edição, em 1954,
da minha «Lei de Cristo», ele escreveu-me e, desde então, mantivemos sempre
contacto. Num momento de grande depressão, Krempel encontrou conforto numa
mulher compreensiva que tinha conhecido e casou com ela civilmente. Perdeu então
todos os privilégios e ganhou a excomunhão.
Mas foi uma experiência breve, porque
bem depressa decidiram ambos, de comum acordo, separar-se. Krempel, apoiado
pelos seus amigos, conseguiu finalmente a autorização para celebrar de novo e
ensinar num seminário para refugiados em Koenigstein. Morreu antes do Concílio,
deixando às Irmãs suíças que lhe assistiram um exemplo edificante de fé e de
dignidade moral: a aceitação serena da morte na espera alegre do Senhor.
Vivia-se já a preparação do Concílio e contei isto a Tromp e a Hürth, seus
acusadores implacáveis. Vi então o P. Hürth
chorar copiosamente. As suas lágrimas, embora tardias, foram para
mim um bálsamo, porque eram o sinal de uma vivíssima compunção.
‒ Foi testemunha de outros casos significativos?
Volto agora a pensar na experiência
terrível do meu confrade, o holandês W. Duynstee, («Duynstee, Willem Jacobus Antonius
Joseph; 1886-1968») professor de Direito na Universidade Católica de Nimega,
que, por haver, num espírito de compreensão, prestado assistência a uma
psicoterapeuta convertida, teve de aguentar numa visita canónica os “raios e
coriscos” do próprio Padre Tromp, que foi a Nimega com preconceitos bem
determinados. Sem sequer falar com o Pe.
Duynstee, interrogou alguns pacientes (pessoas indubitavelmente
doentes) sobre um ponto bem determinado e significativo: ‘se o Padre Duynstee, em confissão ou em conversas privadas,
lhes tinha dito claramente e sem equívoco possível que a masturbação era um
pecado grave’. Como a resposta foi, ao que parece, ‘negativa’, o
Santo Ofício, sem fornecer a mínima explicação, ordenou ao nosso Superior Geral
que exilasse imediatamente para Roma o Pe. Duynstee. Ninguém conhecia aqui
(Roma), na Casa Generalícia, a razão da sua presença, excepto o Superior Geral
e eu, pois fui escolhido para seu director espiritual.
Foi proibido durante anos de visitar
a Holanda; interdição depois atenuada, graças ao cardeal
Alfrink e ao nosso Superior
geral, tendo-lhe sido desde então proibido apenas entrar em Nimega. Sofri com
ele esta medida injusta e fiquei edificado com o seu exemplo. Recordo-me, como
se fosse hoje, da pergunta exacta que um dia ele me fez: «Acredita que os
homens do Santo Ofício compreenderam a injustiça que cometeram contra mim,
impedindo-me de entrar na minha cidade?» Quando morreu, o Osservatore
Romano fez o seu elogio, sublinhando a seu grande zelo pastoral e os seus
grandes dons terapêuticos.
Lembro-me também da confusão do meu
confrade, o arcebispo Hermaniuk, de
rito romeno, um grande exegeta escolhido para ser membro da Comissão Preparatória
do Concílio. Foi o primeiro que ousou levantar o problema da colegialidade,
ainda em termos moderados, tendo provocado um verdadeiro furor theologicus nos
teólogos «romanos» da Comissao, furor que se concretizou abertamente em censuras
proferidas sem nenhuma discrição em plena assembleia.
Um outro caso que me impressionou profundamente
foi o do Pe. Joseph Kentenich, fundador de congregações
florescentes e principal promotor do movimento Schoenstatt, também condenado a um longo exílio.
Foi proibido de voltar a Alemanha, sua pátria, e de ter contactos com as fundações.
A pedido insistente de alguns bispos alemães, estudei atentamente os seus
livros e manuscritos, não tendo encontrado neles nenhuma heresia, ou erro digno
de sanção ou de censura grave. Escrevi um relatório sobre o assunto e enviei-o
a Paulo VI, que, pouco depois, lhe levantou todas as sanções, de forma que pode
regressar à Alemanha sem nenhuma restrição. Foi um homem muito santo e cheio de
zelo e o seu amor pela Igreja nunca fraquejou, apesar das suas duras provas. Espero que um dia tenha as honras dos altares.
‒ E que pode dizer da luta que a Universidade de Latrão
moveu contra o Instituto Bíblico do reitor Bea e de que o senhor foi testemunha
qualificada?
Fiquei particularmente admirado e
escandalizado com a campanha de difamação lançada e mantida, em boa coordenação
com o Santo Ofício, pelos professores e pela Universidade de Latrão contra o
Instituto Bíblico. Esta luta mostrou-me ainda mais claramente que há um perigo
real e temível de fazer da palavra «Magistério» um mito susceptível de um «uso político».
De facto, nesses círculos, quando dominam a ambição e o carreirismo, fala-se
muito de obediência ao Magistério, embora se use depois a palavra muito selectivamente.
Neste sentido, o caso da grandiosa encíclica Divino afflante Spiritu, sobre o estudo da Sagrada Escritura
foi um teste muito revelador. Este texto não foi
redigido pelo Santo Ofício; saiu directamente do pensamento de Pio XII que escolhera, a propósito, para seu conselheiro o
Pe. Agostino Bea (futuro cardeal).
Logo depois da morte do Papa, a
Universidade de Latrão, instigada pelo cardeal Ernesto Ruffini, de Palermo,
velho especialista da teologia romana, encetou a luta contra a encíclica. Era
evidente que se queria demolir o «Instituto Bíblico», para se poder abrir um
instituto semelhante em Latrão. O Reitor Piolanti falou sem rodeios d'«Esses cães jesuítas». Um número da revista
Divinitas de Latrão, consagrado ao cardeal Ruffini, publicou um artigo
de Mons. Antonino Romeo: «A encíclica Divino afflante
Spiritu e as "opiniones novæ"» (cf. Divinitas, 1960, p.
387-456). O ataque ao Instituto Bíblico era frontal e violento e o seu grito de
guerra: «Magistério». Sapienti sat!
Aos meus estudantes do Instituto Pastoral de Latrão que me pediam a opinião
sobre o artigo, não respondi directamente, mas com uma nova oração no fim da
aula: «Oremos, a furore theologorum», e um Coro unânime respondeu: «Libera
nos, Domine». E ficou tudo esclarecido.
Lembro-me também que o Santo Ofício
tinha suspendido do ensino os dois melhores professores do Instituto Bíblico, Lyonnet e Zerwiek,
dois gigantes da exegese que eram atacados por Mons. Romeo e pelos seus
poderosos apoiantes. Falando em 1974 deste caso com Paulo VI, observei: ‒ «Esta sansão pesa ainda sobre o Concílio e constitui um
escândalo de dimensões ecuménicas». O Papa respondeu-me: «Ainda não tive tempo de estudar o
caso». E eu, depois de longo suspiro: «Santíssimo Padre, não é essa a
vossa missão. Porque não confia a solução a alguém conhecedor da questão no seu
conjunto, por exemplo o cardeal Bea ou o Superior Geral dos Jesuítas?». O
Papa aprovou e, passados poucos dias, a questão foi regularizada.
Depois disso, no decorrer da sua
primeira visita a Latrão, Paulo VI, aludindo claramente ao caso, a dada altura
exclamou com firmeza: «Nunca mais». Os dois eminentes professores suspensos
retomaram o seu insubstituível ensino e mais
tarde o Pe. Lyonnet foi nomeado pelo Papa consultor da Congregação para a Doutrina
da Fé. Quem julgar que pode tentar uma aproximação terapêutica à Cúria
romana, da Congregação para a Doutrina da Fé, do meio eclesiástico romano em
geral, deveria estudar minuciosamente este caso muito significativo. Há um
perigo real de que o magistério do Sumo Pontífice se torne, nas mãos de
carreiristas e manipuladores, um mito capaz de lhe minar a autoridade. Não é por
acaso que na minha obra «Livres e Fiéis» me servi com muita insistência da
categoria da ‘sociologia do conhecimento’, que distingue entre conhecimento salvador, conhecimento abstracto e o daqueles
que pensam no poder.
‒ Até os teólogos artífices do Concílio continuaram a ser
atacados pelo Santo Ofício, não foi?
É absolutamente verdade. Basta pensar
na carta de chamada à ordem que o arcebispo Pietro Parente, secretário da
Congregação, enviou a Giovanni Rossi, fundador da «Pro Civitate Christiana»
e director de Rocca, por causa
de um artigo favorável a Yves Congar, publicado nesta revista e pelo anúncio de
um outro sobre De Lubac: «É, pelo menos, pouco
prudente publicar em Rocca os panegíricos de teólogos como Congar, cujas publicações
suscitaram equívocos e reservas, apesar das suas qualidades intelectuais e da
sua erudição[2]».
E isto, depois de Paulo VI ter
claramente reabilitado Congar, fazendo publicamente o seu elogio durante o Concílio.
«Foi por isso, ‒ confiou-me então o grande teólogo
dominicano, sempre presente em São Pedro com o seu sorriso ‒ que os dominicanos me deram um quarto normal no convento, em
vez do quarto arruinado que ocupava até agora!»
‒ Ultimamente apoiou também Gutiérrez. O fundador da
teologia da libertação, não é verdade?
Gutiérrez esteve aqui comigo na véspera do seu encontro
com o cardeal Ratzinger. Oramos juntos e relemos a carta‒documento de acusação, assim como um
estudo da Faculdade de Teologia Ecuménica de Berkeley, Califórnia. Documentos
incríveis ‒ da Congregação para a Doutrina da Fé ‒ que provavam, quer uma malevolência diabólica, quer uma inacreditável
e arrogante superficialidade. De facto, tratava-se de uma montagem de frases de
Gutiérrez, tiradas do seu contexto, para justificar a acusação de ‘marxismo’ e
de ‘heresia’ de que era objecto. E tratava-se de um homem muito humilde, zeloso,
fisicamente provado por inúmeras doenças. Eu estava tanto mais à altura de o
ajudar quanto havia em mim mesmo experimentado um sofrimento espiritual e físico
semelhante ao seu; experiência que, graças a Deus, pus frequentemente ao serviço
dos outros e que me permitiu compreender e confortar os que sofriam o peso duma
rude prova.
‒ Noutros casos assumiu a função de defensor oficial?
Muitos procuraram-me para receber
conforto e conselho; seria muito longo falar de todos e expor os seus casos.
Vou falar do último caso, o do Pe. Charles Curran, que resume todos muito bem. Curran foi meu aluno e pude acompanha-lo ao longo da sua difícil
caminhada.
‒ Charles Curran foi afastado da sua cátedra de teologia
moral na Universidade Católica de Washington pelo dicastério do Vaticano, como
se pode ler numa carta do cardeal Ratzinger com data de 25 de Julho de 1986.
Como se chegou a tomar esta medida?
Li todos os documentos sobre este
caso, como amigo, conselheiro espiritual e defensor do acusado. O primeiro acto
acusatória remonta a 1979, quando se declarou a minha doença e também eu tinha
sido processado. A partir desse momento, tornei-me para ele un apoio e un ponto
de referência, ajudando-o a conservar a sua serenidade. Desde o princípio, foi
acusado de estar em desacordo com a doutrina da Igreja sobre os problemas do
divórcio, da homossexualidade, da masturbação, das relações sexuais pré-conjugais
e de ter fomentado tais desvios. Acusação absurda, injusta, tanto do ponto de
vista humano, como pastoral. De facto, Curran tinha-se limitado a tentar, para
cada um destes problemas, soluções mais diferenciadas, mais próximas da
realidade da vida dos nossos dias. É a famosa «flexibilidade» de algumas normas
antigas.
‒ E como se chegou então à condenação, apesar da entrevista que ele teve
na sua companhia com o Prefeito e o Secretário da Congregação no dia 8 de Março
de 1986? Como se desenrolou essa entrevista e que pontos abordaram?
Curran pediu-me que fosse com ele à convocação
de que falei. Tratava-se para mim de uma decisão grave e mortificante no plano
humano, pois tinha decidido nunca mais pôr os pés naquele Palácio. No entanto, aceitei, na perspectiva
de um bem superior. Fui novamente ao Santo Ofício com Curran, convencido de que
estava a prestar um serviço necessário, não ao meu amigo, mas também à Igreja
e, em particular, à Congregação para a Doutrina da Fé.
Fomos acompanhados até à antecâmara
de Ratzinger pelo deão da Faculdade de Teologia dos Dominicanos, e por George
Higgins, talvez o padre mais célebre da América por ser secretário da Conferência
Episcopal dos Estados Unidos, jornalista e professor. Enquanto esperávamos, orávamos
todos, exprimindo espontaneamente cada um as suas intenções. Quando o último de
nós dizia: «Senhor, ajuda-nos a procurar menos a nossa vitória pessoal do que a da
Santa Igreja», chegou Ratzinger. Saudou-nos cordialmente,
enquanto o convidávamos a unir-se a nós nesta intenção de oração.
O cardeal sentou-se entre o Secretário,
Mons. Bovone, e um notário encarregado de organizar o processo verbal. Fui o
primeiro a tomar a palavra, dizendo as coisas mais difíceis, com a intenção de
facilitar a tarefa de Curran. «Quem é que está em desacordo com a doutrina da
Igreja: a Congregação ou Curran? A história ensina inequivocamente ‒ continuei ‒ que sobre pontos importantes,
relativos à Bíblia ou ao dogma, foram muitas vezes o Santo Ofício e a
Inquisição que se revelaram em profundo desacordo com todos os outros fiéis e a
maioria dos teólogos", e citei dois exemplos. Mas Ratzinger
interrompeu-me: «Saiba que a decisão sobre o
caso presente já foi tomada e que esta entrevista não poderá modificá-la».
‒ Então porquê esta convocatória meramente formal?
Para uma conversa de homem a homem,
responderam-nos. «Mas nesse caso ‒ repliquei ‒ renunciamos já ao diálogo, pois não teríamos a
possibilidade de mostrar a verdade, já que tudo está decidido e nada pode ser
mudado». Ratzinger, que talvez
não tenha percebido o sentido da minha observação, respondeu: «Queremos
ouvir-vos», e a atmosfera serenou.
Nesta altura, Curran apresentou
a proposta que tinha preparado: ‒ renunciava voluntariamente ao ensino da ética sexual, que de resto já não ensinava há mais de quinze anos,
e comprometia-se a não fazer nenhum seminário sobre este tema.
«Porque é que eu, que sou tudo menos
um extremista ‒ perguntou ele ao cardeal Prefeito ‒ tenho de servir de “bode expiatório”? E eu prossegui: «Não
só não queremos prestar-nos a isso, mas o cardeal Ratzinger deveria pensar que
também Curran poderá ser transformado em “bode expiatório” pela opinião
pública. Para evitar a um e a outro essa experiência ‒ disse eu para concluir ‒ impõe-se a procura de um compromisso
aceitável e definitivo». Pedi então ao cardeal que apreciasse nesta perspectiva
a proposta de Curran, atendendo sobretudo a sua humildade. Nenhum teólogo, vítima de acusações grosseiras, mostrou,
tanto quanto sei, uma tão grande humildade perante o Santo Ofício.
‒ E como terminou a sessão?
Cordialmente e, pareceu-me, de
maneira frutuosa. Com efeito, Ratzinger prometeu apresentar a proposta à assembleia
da Congregação. Alguns meses mais tarde, entretanto, a resposta foi negativa: proibição de ensinar como teólogo católico em qualquer
instituto controlado juridicamente pela Igreja[3].
Atendendo a que numerosas cátedras
lhe foram oferecidas pelas melhores faculdades de teologia ecuménicas do mundo,
Curran, de acordo com a Comissão da Universidade Católica de Washington,
confirmou a sua preferência pelo ensino de ética no Instituto desta
universidade, que não é controlada juridicamente pela Cúria, e parecia que
havia essa possibilidade.
Infelizmente, poderosos
opositores tornaram impossível o
compromisso proposto pelos seus colegas: se lhe fosse oferecida uma cátedra
numa faculdade de sociologia, dariam o seu assentimento caso Curran prometesse
«não ensinar a Teologia católica».
Entretanto, foi-lhe confirmado o
convite da Conferência Episcopal Alemã, feito ainda antes da sua condenação. Eu
sugeri-lhe que renunciasse. «Pelo contrário ‒ responderam os bispos alemães ‒ agora é que estamos interessados
na sua presença». Na altura desta visita, esteve comigo dois dias, e ambos
pudemos uma vez mais reflectir sobre o caso.
O meu contributo para a sua defesa,
embora parcialmente negativo, esclareceu algumas realidades que a Congregação
nunca mais poderá esquecer.
‒ Problemas como a eutanásia, a masturbação, a contracepção
artificial, as relações sexuais pré-conjugais, a homossexualidade beneficiam,
sobretudo actualmente, dos estudos em evolução constante, tanto mais que outras
ciências ligadas a tais problemas também se interessam por eles. Pode um
teólogo especialista na matéria colaborar, na sua universidade e em
publicações, numa tal evolução a fim de se conseguir uma relação sempre
melhorada entre doutrina, verdade e ciência?
Trata-se de um problema de fundo. De
facto, é preciso interrogar-nos sempre: somos uma Igreja que possui nos seus
arquivos a resposta segura para todos os novos problemas, ou, pelo
contrário, uma Igreja que reconhece que nem
sempre tem respostas, sobretudo certas e definitivas? E essa procura
não deverá ser conduzida com um grande sentido das responsabilidades e num
grande respeito pela consciência?
‒ Mas até agora o método da Congregação para a Doutrina da
Fé não tem sido a de travar a pesquisa séria?
Na verdade, ela não favorece. Pessoalmente ‒ que as coisas fiquem bem claras ‒, não
partilho de todas as opiniões expressas pelo Pe. Curran a
este respeito. Mas ele foi meu aluno. É, portanto, mais jovem do que eu e enfrenta os problemas com coragem e com uma
grande sinceridade. Além disso, ele próprio notou que as suas respostas não se
deviam considerar categóricas e definitivas, por serem apenas tentativas sempre
susceptíveis de serem reexaminadas.
‒ Estes problemas revelaram-se o verdadeiro
«calcanhar de Aquiles» da moral oficial, como ficou bem demonstrado no
Concílio. Porque é que as universidades e os teólogos católicos não deveriam
contribuir para a reflexão sobre estes problemas, numa total liberdade pela
qual verdadeiramente o Magistério e a Igreja se desenvolvem?
Nem sempre necessitamos de
respostas imediatas e decisivas. Neste caso, então, porque é que não se organiza em Roma,
de tempos a tempos, um encontro entre as diversas escolas e pessoas
competentes para estudar um determinado problema? O resultado poderia revelar-se melhor do que aquele a
que chegou o grupo habitual de conservadores que depressa chega à resposta
«desejada», nascida da presença ainda, em parte dominante, de uma eclesiologia
da força, defendida por homens convencidos de «possuir toda a verdade». «Será
verdade?», pergunto. É aqui que está o problema com os seus aspectos ecuménicos
inegáveis. Se, na verdade, a Congregação para a Doutrina da Fé não favorece um
diálogo aberto, respeitador e paciente entre os católicos, como poderá ela
entrar no diálogo ainda mais aberto com todas as Igrejas cristãs?
O perigo de um bloqueio de todas as nossas esperanças ecuménicas não é certamente fantasioso.
‒ Como acolheu Curran a proibição de ensinar?
Com um espírito de não-violência
realmente exemplar. Escreveu um artigo muito belo, como comentário: «Porque amo a Igreja?», em que relativizava o seu próprio caso e acentuava a
continuação diligente do seu sacerdócio.
‒ Qual a sua opinião sobre o conteúdo da
carta de Ratzinger e a autodefesa de Curran?
Era Curran quem tinha toda a razão. Na
verdade, tanto a carta de Ratzinger como o artigo do Osservatore
Romano (cf. Osservatore Romano, de 21 de Agosto de 1986) não lhe
fizeram justiça como até poderiam ser um sério obstáculo à sua credibilidade
pastoral. Podiam ser a caixa de ressonância da tese (errónea), segundo a qual a
sua teologia fomentava o laxismo moral.
Exactamente como as acusações que me tinham atingido.
‒ Pode-se estabelecer uma relação entre este caso e o
clima, certamente nada idílico, que se instalou entre os bispos americanos e a
Santa Sé?
A Igreja é, doravante,
muito diferente.
Basta pensar que Curran, depois da sua condenação, recebeu em poucas semanas
testemunhos de solidariedade da parte de 750 doutores e professores de teologia
e de direito canónico de numerosas universidades dos Estados Unidos e também de
alguns bispos. Quase ao mesmo tempo, rebentava o
caso do bispo Hunthausen (Cf. «Hunthausen scagionato», in Il Regno, Att. nº. 2, 1986, p. 30) que Roma
tentou destituir para depois aceitar um compromisso perante a solidariedade da
grande maioria do episcopado americano. Certamente em Roma já estaria tudo
a postos para ultrapassar o obstáculo nomeando bispos conservadores. E, se a manobra
resultasse, o corte entre a hierarquia e o povo
dos fiéis tornar-se-ia um abismo.
‒ Passemos aos casos nos quais o Pe. Häring não esteve directamente
implicado. A Hans Küng, que a Congregação acusara de estar «entre os teólogos
que alteram a fé na infalibilidade da Igreja …[4]»,
apenas tiraram a cátedra de teologia católica. Este comportamento do Congregação
não revelava uma certa incerteza da parte dela?
Não se trata de incerteza, mas de uma
opção deliberada que preferia uma atitude clemente mais de acordo com a maneira
de ser de João XXIII e Paulo VI. E talvez também de prudência, por causa das
possíveis reacções da opinião pública. Trata-se de uma posição intermédia para
controlar a doutrina. O caso de Küng e de Curran são fundamentalmente
diferentes: enquanto que no primeiro se tratava de questões
que mexiam com o dogma, no segundo o desacordo referia-se a pontos que em nada tocavam na infalibilidade.
Esta forma de desacordo tornou-se, entretanto, um delito que o novo Código de
Direito Canónico prevê sancionar. Eis uma situação explosiva, para a hora
presente.
‒ Embora se tratem de casos fundamentalmente diferentes, a
condenação é a mesma nos dois, não é verdade?
O que significa que, no interior da Igreja,
se deterioraram as relações. Na Comissão de
redação do novo Código de Direito Canónico, não havia nenhuma proposta de
inserção da norma que o caso de Küng ilustra. Foi aí introduzida no
último momento por vontade da Cúria ou do Papa. E uma novidade que, mais do que
outra qualquer, contradiz o espírito eclesiológico do Vaticano II.
‒ Dois pesos, duas medidas: parece-me ser o método
empregado pela Congregação a um outro teólogo, o Pe. Jacques Pohier, dominicano («Quand je dis Dieu»; Cf. Il
Regno. Att n.º 18, 1979, p. 397). Através de um processo urgente, foi
simplesmente privado do direito de presidir à Eucaristia e de ensinar e fazer
conferências. Tudo isto no período de um ano. Que pensa a propósito?
Procurei informar-me, li muito sobre o
assunto, mas não estou em condições de lhe responder.
‒ A Congregação intentou igualmente um processo em relação
a algumas teses sobre a humanidade de Cristo defendidas pelo dominicano
holandês Edward Schillebeeckx, eminente perito conciliar. As
explicações fornecidas no decorrer da entrevista em Dezembro de 1979 mostraram
os limites muito estreitos que Roma pretende impor à pesquisa teológica. Ora o
teólogo holandês sempre se dedicou à investigação científica e a sua linha não
é fazer oposição para chamar a atenção. Que pensa?
Trata-se de um dominicano, tomista
integral e padre exemplar. Somente posso acrescentar que a sua saúde foi
terrivelmente provada com acusações imerecidas. É incrível que, numa Igreja tão
atormentada como a Igreja holandesa, se ataque o melhor teólogo profundamente
enraizado na tradição de São Tomás. E, embora não tenha sido condenado, foi certamente
admoestado, o que lhe causou graves sofrimentos: O Santo Ofício tem sempre
razão…
‒ O outro processo deste último decénio foi o do teólogo da
nova geração, o brasileiro Leonardo Boff, que procurou enunciar, através da
experiência quotidiana do Brasil, os princípios de uma evangelização adaptada.
Trata-se de uma das aplicações da teologia da libertação. Pela primeira vez, a
hierarquia eclesiástica local, na pessoa dos cardeais Aloísio Lorscheider e Paulo Evaristo Arns, que acompanharam Boff ao
interrogatório romano, lhe demonstraram a sua inteira solidariedade. Como julga
esta tomada de posição tão aberta de bispos tão eminentes?
Trata-se de um acontecimento maravilhoso para toda a Igreja
brasileira porque, exceptuando alguns tradicionalistas, todos estavam solidários com a pessoa do incriminado:
Boff. E Roma certamente compreendeu que tinha cometido um erro
crasso de avaliação. Os cardeais que acompanharam Boff e que intervieram por ele
com toda a autoridade vieram depois a pagar caro
o seu gesto. Um visitador apostólico, na pessoa do cardeal Hoeffner (de
Colónia), recentemente desaparecido, chegou inesperadamente a São Paulo e, sem
visitar o arcebispo, o cardeal Arns, nem o avisar, dirigiu-se ao seminário.
Depois mandou substituir o reitor. Mas, uma vez mais,
Arns se solidarizou com o acusado e impediu a sua destituição. No
entanto, eu soube da destituição do reitor de um seminário canadiano e de um deão
da faculdade de teologia, que foram afastados sem sequer saberem o motivo; e
sempre depois da passagem de um visitador: tudo isto, vinte e cinco anos depois do Concílio!
Os dois vieram procurar-me em Roma e
aceitaram este acontecimento com verdadeiro espírito gandhiano.
‒ Boff declarou abertamente que aceitava as observações
formuladas pela Congregação e que preferia caminhar com a Igreja a avançar
sozinho com a sua teologia. O que não quer dizer que Boff tenha renunciado à
sua linha. Que reflexões lhe inspiram esta atitude?
Eu teria respondido da mesma maneira.
Convém, no entanto, notar que Boff não cedeu uma polegada. Permaneceu sereno,
não-violento, mas forte na sua transparência e na sua sinceridade. Temos realmente necessidade de teólogos como ele.
‒ Depois da sua participação nas dificuldades dos outros,
foi também directamente implicado num processo que a Congregação lhe moveu.
Quer começar a falar dele?
Reflecti muito ‒ repito uma vez mais ‒ sobre a oportunidade de tornar
público o que me concerne pessoalmente e que foi até agora mantido no segredo
mais absoluto, por decisão minha. Por outro lado, estava preocupado com as
possíveis implicações que poderiam daí resultar para a própria estrutura da
nossa casa, a Igreja.
Mas, finalmente, fiquei convencido de que o conhecimento da minha dor poderia
constituir uma ajuda eficaz na caminhada que conduz a corresponsabilidade na
Igreja. Esta corresponsabilidade deve levar ao exercício credível e eficaz da
autoridade segundo o espírito do Concílio que, além de não poder ser abafado,
deve espalhar-se sempre cada vez mais.
Tive provas de confiança de
personalidades do interior da Igreja, e, antes de mais, as dos dois Papas do
Vaticano II: João XXIII, que quis que me comprometesse e pusesse toda a minha competência
ao serviço deste grande acontecimento; Paulo VI, que confirmou a minha participação,
e foi meu amigo e me apoiou até ao fim da sua vida.
Não me inspira nenhum preconceito anti-romano, tanto mais que vivi quase quarenta
anos em Roma, perfeitamente à vontade tanto na sua Igreja como na de Itália.
‒ Por outro lado, a sua colaboração que durou mais de dez
anos na «Famiglia Cristiana», foi uma referência para um grande número de fiéis
da Itália, não foi?
Tratou-se de uma colaboração que me permitiu
entrar pela capilaridade de inúmeros problemas e que me abriu as portas de
muitas salas nas maiores cidades da Itália para conferências seguidas por uma
multidão numerosa e, em particular, por jovens. Daí os milhares de cartas que
me foram enviadas por pessoas de classe e cultura diferentes, onde me exprimiam
amizade e reconhecimento pela acessibilidade da minha teologia que afirmavam
ter-lhes sido de grande proveito. Entre todas estas cartas recordo-me da de um operário agradecido, por ter podido aproximar-se
sem dificuldade ‒ embora tivesse frequentado a escola
primária ‒ de textos que o tinham enriquecido espiritualmente.
Pude experimentar uma Igreja aberta à
compreensão e à disponibilidade humanas no mundo inteiro, Roma incluída, onde
tive e continuo a ter excelentes amigos, e até na Cúria, de que alguns membros
continuam a ser meus amigos. Pretendo relatar os abusos e as distorções da
verdade, não os atribuindo à Cúria como instituição, mas a alguns responsáveis do Santo Ofício, hoje Congregação
para a Doutrina da Fé, que abusaram e continuam a abusar da sua autoridade.
De facto, o Concílio, acontecimento
estranho a essa mentalidade, não só lhes provocou um traumatismo, mas assinou a derrota
definitiva da sua concepção de Igreja como era apresentada pelos
setenta Esquemas [‘base de trabalho’] que tinham preparado na
mira de uma aprovação e que, pelo contrário, foram completamente rejeitados
pela Assembleia conciliar.
“Corruptio optimi pessima est” (1º
Barão Acton, 1834-1902)
Daí a resistência,
o ressentimento e também o sofrimento,
compreensíveis, daqueles que, agarrados à defesa de uma fé que parecia afundar-se,
não chegaram a aprovar corajosamente posições inovadoras e a compreender as
suas motivações. Eis porque hoje olho para esse drama compreensivamente e
talvez até com uma certa compaixão. Por isso, a acusação de heresia, com que
eles quiseram condenar a teologia que a maioria conciliar acabou por aprovar,
suscita mais amargura do que espanto.
Já lhe contei algumas reacções de
altos dirigentes do Santo Ofício a propósito da minha obra «A Lei de Cristo» em 3 volumes (original alemão editado em 1954):
as provocações
e os espiões lançados
no meu encalço para controlar sem tréguas a minha actividade.
Quero aqui referir, para confirmar
essa atitude, o que soube pelo Pe. Hurth.
Encontrara-o novamente na sede da Comissão preparatória do Concílio e
mostrava-se, a princípio, muito hostil às minhas teses. Confiou-me: «Há
alguns anos tivemos de examinar os seus três volumes, “A Lei de Cristo”, obra que não agradou nada a
Roma, mas não encontramos nenhuma heresia».
‒ Já se referiu anteriormente a uma intervenção do delegado
apostólico nos Estados Unidos da América num caso que o atingia. De que se
tratou?
Já durante o Concílio pudera
confirmar a hostilidade crescente a meu respeito. Um dia o bom cardeal F. Cento
advertiu-me explicitamente: «Padre, há
manobras perigosas para o desacreditar na Igreja; deve defender-se». Respondi-lhe: «Tenho coisas mais importantes em
que pensar: anunciar o Evangelho». Mas o cardeal insistiu: «Deve reagir
contra essas manobras». Foi João XXIII que quis nomear-me perito da
Comissão preparatória e depois confirmar a minha participação no Concílio, apesar
das oposições. Paulo VI, ao convidar-me a pregar os exercícios espirituais no
Vaticano, como já referi, exortara-me à franqueza. Começava, então, a
compreender melhor e a tronar-me vigilante. De forma que, quando soube que os
tradicionalistas faziam pressão sobre o delegado
apostólico nos Estados Unidos, Egidio Vagnozzi, para me desacreditar
e que ele tinha enviado para Roma certas informações, decidi tomar as precauções
que se impunham. Foi assim que encarreguei um dos meus confrades de me
acompanhar no cicIo de conferências que tive nos Estados Unidos no Verão de
1964 e gravar em fita magnética todas as minhas intervenções, tanto públicas
como privadas. De regresso a Roma, o cardeal Cento pôs-me ao corrente do
agravar da minha situação. De facto, pouco depois, o arcebispo Pietro Parente, Secretário do Santo Ofício,
convocou-me pelo telefone (refiro
aqui que ele nunca me escreveu uma única letra, preferindo sempre convocar-me
telefonicamente … para não deixar o seu rasto em
nada). Desde que cheguei, tratou-me sempre com dureza,
censurando-me declarações que eu teria feito durante a minha passagem pelos
Estados Unidos da América do Norte, contra o magistério do Papa: «O senhor
defendeu ‒ exclamou ele ‒ que uma pessoa com juízo nunca
dará atenção ao magistério; o senhor negou o magistério do Papa».
‒ E que replicou?
«Quero dizer-lhe duas coisas ‒ respondi com calma. Em primeiro lugar, estou ao corrente da
missão que o Santo Ofício ordenou aos seus “espiões” que me seguissem no meu
périplo americano; em segundo lugar, sei que a cardeal Ottaviani já referiu ao
Papa tudo o que o senhor me censura e que a sua resposta foi um convite para me
ouvir. Porque me acusa, sem sequer me deixar falar?
Não é nem prudente nem justo. Saiba que, seja como for, foram gravadas
todas as palavras que pronunciei em terras americanas». Parente encaixou o
golpe e convidou-me a remeter-lhe as fitas, o que fiz. Três meses mais tarde,
como não tivesse notícia, solicitei uma resposta. O Secretário Pietro Parente assegurou-me
pelo telefone que depois da escuta das gravações, o caso tinha sido
definitivamente esclarecido. E até precisou: «Todos
ficaram maravilhados com o equilíbrio das suas palavras.», e, por fim,
textualmente: «Um dos auditores observou que se tratava de textos dignos de
serem publicados!». Parente nunca mais falou do episódio, mas também não achou
oportuno enviar-me uma linha de desculpas! São estes os métodos do Santo Ofício!
‒ Teve outras relações com Pietro Parente?
Uma outra vez, disse-me com um tom irónico:
«Se continuar assim, nunca fará carreira». E eu: «Gostaria de saber se se trata
de uma expressão de admiração feita a um homem da Igreja que não tem a ambição
de fazer carreira ou se de uma manipulação skinneriana: ameaças, promessas, chantagem, para
que eu mude». Respondeu imediatamente: «Não, admiro-o muito», declaração que eu
deveria classificar de hipócrita, mas não fiz.
Numa breve entrevista na Rocca,
em 1967, a uma pergunta sobre as decisões que poderiam ser tomadas depois do
relatório final da Comissão sobre a população, eu respondi: «É ao Papa que
compete tomar as decisões; por isso, não tenho nada a dizer. De qualquer modo,
estou certo de que Paulo VI decidirá no espírito do Concílio».
«O senhor nega a supremacia do Papa
sobre o Concílio», exclamou Parente, no decurso de um encontro para que me
tinha convocado.
«Exprimir a minha confiança de que o
Papa será coerente com o espírito de tudo o que foi promulgado pelo Concílio,
repliquei, é muito diferente de negar a sua supremacia sobre o Concílio. Agora compreendo bem qual é o seu verdadeiro objectivo...», disse eu em
conclusão.
‒ Não teve mais relações com Pietro Parente?
Fui de novo convocado pelo poderoso
Secretário; já não me lembro exactamente por que motivo. O facto é que, aquando
das suas ulteriores recriminações, eu respondi, mostrando sem fazer
comentários, as cópias das cartas oficiais da Congregação, assinadas pelo seu
punho: a primeira dirigida ao director de Rocca, don Giovanni
Rossi, em que manifestava contrariedade por
causa de um artigo a favor de Congar e do anúncio de outro artigo sobre De
Lubac. Aí se afirmava que os dois, «pelas suas publicações tinham
provocado equívocos, e por isso, reservas». A segunda carta era endereçada a um
bispo e, entre outras coisas, dizia mal de mim.
Ao vê-Ias, o prelado empalideceu e perguntou imediatamente: «Quem é
que lhas deu?». «Não se inquiete, respondi, que não tenho o costume de espiar:
foram elas que aterraram em minha casa. Quer que as publique?». Quase
cambaleou, pois teve de se sentar e receei um desmaio. Então, apressei-me a
garantir-lhe: «Não tenha medo, não tenho nenhuma intenção de publicar seja o
que for. No entanto, desejo que me peça desculpa pela injustiça que sofri». Ele
respondeu: «Peço que me desculpe, perdoe-me». Acrescentei: «Quer continuar a
lutar contra os teólogos que fizeram o Concílio?». Ele replicou: «Prometo não
continuar por esse caminho. Pelo contrário, vou reunir uma conferência para
manifestar a estima que tenho por si». E fê-lo. Desde então, não mais me inquietou.
E o Santo Ofício deixou-me em paz até 1975.
‒ Depois Seper e Hamer substituiram Ottaviani e Parente[5].
Seper sempre me tratou com humildade
e dele tenho boas recordações, embora a sua assinatura apareça em quase todos
os documentos do meu processo. De facto, na minha opinião, a iniciativa não
partiu dele.
‒ A carta que abria o seu processo tem a data de 16 de
Dezembro de 1975; nela a Congregação para a Doutrina da Fé comunicava ao seu
Superior Geral censuras bem determinadas ao seu livro «Ética Médica» publicado
em França com o título: «Perspectives chrétiennes pour une
medecine humaine». Pedia-se ao seu Superior Geral que convidasse o Pe. Häring
a responder.
Conforme o costume da Congregação, o
cardeal Prefeito Seper comunicou ao meu Superior Geral a abertura de um
processo doutrinal contra mim, aprovado pelo Papa em 13 de Junho de 1975. Este
intervalo de seis meses entre a contestação e a decisão é significativo.
‒ Não tinha já sentido antes que algo se tramava contra si,
sobretudo depois do acolhimento pouco entusiasta que deu à Humanae Vitae?
Conhecendo, repito, a hostilidade que
me votaram alguns homens da Cúria, descansava na confiança de Paulo VI, que era
muito meu amigo, e na prudência do cardeal Seper com quem tinha colaborado na Comissão
doutrinal durante o Concílio. Embora os mal-entendidos se fossem agravando por
causa de algumas entrevistas que deformavam o meu pensamento, nunca esperava um
processo. Por isso, foi como um trovão num céu azul, que me atingiu ainda mais
profundamente quando li as motivações (como se pode verificar claramente da
resposta que o teólogo enviou ao cardeal Prefeito a 5 de Fevereiro de 1976 ‒ doc. n.º 2, anexo).
‒ Nunca pôde encontrar-se com os seus acusadores?
Recusaram sempre peremptoriamente as
minhas exigências de conhecer os redactores do documento de acusação e de
indicar um defensor oficial.
‒ O senhor respondeu, ponto par ponto, à Acta de acusação,
numa longa carta, a que a Congregação para a Doutrina da Fé entendeu responder
globalmente (Carta do cardeal F. Seper de 5 de Março de 1976 - doc. n.º 3,
anexo). Soube o que se passou nos bastidores?
Só sabia que as suas respostas
repetiam a insatisfação da Congregação e insistiam para que eu esclarecesse e
aprofundasse o meu pensamento, particularmente sobre o Magistério autêntico.
Respondi com uma breve exposição teológica sobre o conceito de autenticidade e
suas condições; não insistiram.
Por outro lado, a minha situação
agravou-se depois de um artigo na “Famiglia Cristiana”, no qual eu me
referia à posição expressa pelos bispos franceses em caso de conflitos graves (Cf.
«Famiglia Cristiana», 23 de Maio de 1976, p. 9; 20 de Junho de 1976,
p.5-6).
Reacção imediata no Osservatore
Romano, de G. B. Guzzetti que ignorava totalmente que o artigo «incriminado»
não era mais do que uma citação literal do pensamento do episcopado francês
(Cf. G. B. Guzzetti, «Nuovi attachi alla Humanæ Vitæ», in Osservatore Romano, de
14 de Julho de 1976, p. 2). A este propósito, é realmente significativa a carta
que o cardeal Seper me dirigiu em francês: fazendo claramente referencia à
Conferência episcopal, o Prefeito da Congregação observava-me que o cardeal
Renard, presidente do Episcopado francês, tinha enviado esclarecimentos a Roma,
dos quais eu já tivera conhecimento. Tratava-se, de facto, de três formulações
diferentes, tendo-me servido de uma no meu artigo em «Famiglia Cristiana»
(Cf. carta do cardeal F. Seper de 3 de Julho de 1976 e resposta do P. Häring de
14 de Setembro de 1976, doc. n.º 5, anexo). Apesar disso e sem me ouvir, a
Congregação pediu ao meu Superior Geral que tomasse novas medidas contra mim.
Para agravar as coisas, um semanário
alemão inventou uma pseudo-entrevista, limitando-se, contudo, a transcrever o
texto de “Famiglia Cristiana”. Novas recriminações contra mim (Cf. carta
do cardeal F. Seper de 11 de Novembro de 1976), que não deram lugar a desculpas
quando provei que se tratava duma falsificação, remetendo ao Santo Ofício toda
a documentação, juntamente com a carta do director do semanário que dizia estar
consternado com este equívoco jornalístico. Contentaram-se com tomar
conhecimento (Cf. carta do cardeal J. Hamer de 22 de Março de 1977).
Por fim, a minha reacção ao documento da Congregação «Persona Humana» foi
a terceira ocasião de um agravamento das nossas relações (Cf. Osservatore
Romano, de 16 de Janeiro de 1976, p. 2: «Alcune questioni de etica
sessuale»).
Telefonaram-me diversas agências
noticiosas a pedir a minha opinião. Disse-lhes que se tratava de um documento
que se baseava na doutrina tradicional e que se devia apreciar a sua solicitude
pastoral. Até o Osservatore Romano publicou a minha opinião na primeira
página (Cf. Osservatore Romano, 28 de Janeiro de 1976). Contudo, não se pode negar que o
documento continha afirmações inaceitáveis para muitos dos meus
colegas moralistas, como a declaração solene de que o Magistério transmitiu sem
erros a doutrina de Cristo em matéria de moral, ou a conclusão do texto que afirma
a certeza de que tudo o que nele é exposto é a doutrina de Cristo e reflecte
exactamente a lei natural. Um tal infalibilismo era, e continua a ser, incompreensível e foi por
isso que não faltaram recções, até mesmo violentas.
Senti-me, por isso, obrigado, em consciência,
a intervir com moderação num artigo em alemão, em que precisava o valor e os
limites do documento, enviando antecipadamente o texto à Congregação para a Doutrina
da Fé, a fim de evitar as críticas e para que tudo ficasse bem claro. Apesar
disso, não faltaram as censuras, e até bem pesadas, particularmente do
Secretario Hamer. Todavia, não me impediram de publicar o texto que retomava os
pontos positivos do documento na perspectiva da pastoral e relativizava o seu
infalibilismo.
Recebi muitas cartas entusiastas,
como a do teólogo moralista alemão mais cotado, o professor R. Egenter, que
apreciou especialmente o realce dado aos motivos pastorais (Cf. carta do
professor R. Egenter de 7 de Maio de 1976). Apesar de saber que a minha
intervenção crítica só iria agravar ainda mais a minha situação, não podia
renunciar a ela por honestidade para comigo próprio.
‒ Da leitura dos documentos do seu processo, verifica-se
que se desenrolou essencialmente por escrito. Exceptuando o encontro de
Fevereiro de 1979, teve outros com os dirigentes da Congregação?
Depois de três intervenções cirúrgicas
para a extração do meu tumor na garganta, a última das quais parecia anunciar o
meu fim, recebi em minha casa a visita de Mons. Bovone, subsecretário da Congregação.
Vinha-me apresentar os cumprimentos do cardeal e as suas desculpas por não me
visitar. Além disso, convidava-me para um encontro amistoso na sede do Santo Ofício,
convite que imediatamente recusei não só porque estava esgotado, mas também porque
sentia em mim uma espécie de alergia ao Palácio. Mas,
depois, reflectindo na não-violência em que fundara a
minha vida, acabei por aceitar o convite.
Fui recebido muito cordialmente pelo
cardeal Seper, que me confessou humildemente a
sua falta de preparação específica
para a importante responsabilidade que lhe fora confiada e igualmente em relação
à minha competência especial em Teologia Moral.
Foi para mim um dia muito particular. Naquela manhã, a
corda vocal que me tinham enxertado recomeçara a funcionar, confirmando assim o sucesso do
enxerto. Nesse dia pude recomeçar a falar com a minha própria voz.
‒ Depois deste encontro privado, foi a vez do encontro
oficial com todos os dirigentes da
Congregação por causa do seu processo, não foi?
Exactamente. Fui convocado no dia 27
de Fevereiro de 1979 para responder na Congregação, cujo fim era fazer-me «ir a Canossa» (como soube de fontes particulares). Exigiam que me comprometesse solenemente
a abster-me, doravante, de qualquer crítica sobre os comunicados ou sobre os
documentos da Congregação. Na prática, exigia-se
que eu fizesse uma declaração servil. Mas declarei imediata e
claramente que de forma nenhuma estava disposto a executar-me (a suicidar-me),
convencido de que todo o acto contrário à
própria consciência deve ser considerado pecado. Foi com estes
antecedentes que me apresentei à convocação (Cf. carta de 1 de Fevereiro de
1979 do cardeal Seper ao P. Häring - doc. n.º 11, anexo).
O cardeal Seper, que presidia,
manifestou-me novamente a sua cordialidade. Além disso, não me fez nenhum reparo;
essa tarefa, desempenharam-na «impecavelmente» os dois colaboradores, o Secretário
Jérôme Hamer e o subsecretário Bovone, que, logo de início, me notificaram com
toda a firmeza ser impossível a um teólogo estar
em desacordo com o seu magistério.
Extenuado e indignado, repliquei que,
graças a Deus, nunca tinha conseguido confundir a Igreja com a Congregação para
a Doutrina da Fé, doutra forma não poderia permanecer ali sequer um minuto. E
que, ademais, sempre acreditara na Igreja, mesmo como Instituição, e era por
causa dela que levava a sério o meu processo doutrinal, apesar das incompetências dos «peritos», autores do meu
libelo de acusação. Convidei, então, a Congregação a lembrar-se de
todas as sombras que a Inquisição romana tinha, no decorrer dos tempos,
acumulado naquele Palácio. Então, o arcebispo Hamer replicou que não sentia
nenhuma vergonha desse passado. Saí, depois de cerca de duas horas de
interrogatório e de «sermões» que me fizeram parecer um rapazinho diante do
mestre; esgotado e enojado, com a cabeça oca, mas interiormente feliz e agradecendo a Deus por me ter
ajudado a não me vergar a nenhum acto de servilismo.
‒ Depois deste encontro, recebeu a carta de 2 de Abril de
1979 que é, de facto, a conclusão do processo ...
O encontro foi depois da saída do primeiro volume de «Livres e Fiéis em Cristo»,
que eles imediatamente estudaram, e acabou com uma admoestação para que
cortasse radicalmente todo o desacordo público com a Congregação; a carta de
que falou confirmou isso mesmo (Cf. carta do cardeal F. Seper de 2 de Abril de
1979 - doc. n. 12, anexo).
Depois disso, deixaram-me em paz,
talvez porque também o novo agravamento do meu cancro parecesse indicar a iminência
da minha morte. Acontecimentos posteriores à minha cura inesperada confirmaram
que a atitude tida a meu respeito não mudou, mas, em certo sentido, voltou ao
que era antes. De facto, fui injustamente atacado pela Congregação para a Educação
Católica por causa do meu artigo publicado em «Studia Moralia»
intitulado «25 anos de ética sexual»,
que me valeu uma apreciação injusta e caluniosa, a que respondi com a minha
habitual franqueza (Cf. o ensaio crítico, in Studia Moralia, n.9 XX/1 de
1982, e, em particular, o ensaio do Pe. B. Häring: Observações do teólogo
moralista à Congregação da Educação Católica, de 3 de Marco de 1983, em virtude
da falta de resposta ao seu pedido para uma confrontação aberta - doc. nºs 13 e
14, anexo). Este ataque não só não teve desenvolvimentos ulteriores, como também
o próprio dicastério mostrou melhor disposição para com a Academia Alfonsina,
embora (como sempre em tais casos) não reconhecesse os seus erros nem me
pedisse desculpa.
O Osservatore Romano,
publicou, por fim, uma recensão muito positiva do meu tratado em três volumes «Livres e fiéis em Cristo», sinal evidente de paz e de
reconciliação da parte da Cúria. Iniciativa que, penso eu, veio da Secretaria
de Estado.
‒ A partir de Fevereiro de 1979, portanto, nunca mais foi
objecto de contestação por parte da Congregação para a Doutrina da Fé e da
Cúria Romana?
Tudo acalmou. O próprio cardeal Baum,
prefeito da Educação Católica, mostrou-se muito cordial comigo aquando da
defesa de uma tese de doutoramento que um estudante americano tinha preparado
comigo. O cardeal Baum foi assistir, em companhia do cardeal B. Dearden, ex-arcebispo
do candidato. O Papa enviou-me várias vezes cumprimentos durante a minha doença,
a qual, repito, parecia permitir poucas esperanças.
‒ Depois da experiência que viveu, que reforma gostaria de
ver na Congregação?
Uma autêntica
maturidade exige uma assimilação completa da experiência do passado que todos nós
temos no inconsciente.
Sobre o Palácio da antiga Inquisição romana pesa o fardo incrível de um passado
que, de modo nenhum, honra a Igreja e que é mais um obstáculo ao ministério do
sucessor de Pedro. O cardeal Frings,
de Colónia, no memorável discurso que fez no Concílio, falou do Santo Ofício
como de um escândalo para todo o mundo. No decorrer da conferência de imprensa,
em inglês, a que era habitualmente convidado, todos os jornalistas me pediram um
comentário a essa intervenção, porque estavam persuadidos de que tinha sido eu o
seu redactor. Quando os desmenti, alguns perguntaram-me quais seriam, na minha
opinião, os remédios que deveriam estar na base de uma reforma do Santo Ofício.
Respondi com uma paIavra: «discontinuity», «ruptura». Embora assumindo o
seu passado, a Congregação deve separar-se dele corajosamente.
O primeiro passo nesse sentido,
parece-me, deveria ser uma pausa para uma reflexão de alguns anos, durante os
quais deveria suspender a toda a sua actividade: um verdadeiro período sabático.
A Igreja aguenta bem sem essa estrutura, como o prova a Igreja ortodoxa que tão
bem conservou a sua fé e uma grande espiritualidade, não tendo semelhante
instituição.
‒ É, portanto, favorável à extinção deste dicastério?
Não afirmo isso, porque não sou anti-institucionalista.
Mas proporia, depois dessa pausa, uma nova estrutura mais leve, sobretudo no
concernente à competência relativa a matérias estranhas à doutrina da fé, como
as relativas a delitos ligados ao sacerdócio, que deveriam ser entregues a
outro organismo. Urna estrutura, em que estariam reunidas todas as escolas
existentes na Igreja universal, a fim de tornarem a doutrina da fé e a doutrina
moral inteligíveis e credíveis a todas as culturas, para além da mera conservação
de conceitos abstractos. Tudo isso, num espírito ecuménico, com uma grande
competência no conhecimento sociológico das diferentes culturas, da arte da
comunicação, da história da Igreja e, muito particularmente, da Inquisição. Em
segundo lugar, é necessário fixar normas de procedimento muito precisas, hoje
totalmente insuficientes para não dizer inexistentes. Antes de mais, estabelecer uma nítida distinção entre acusador e juiz,
como em qualquer tribunal que se preze, e dar uma publicidade total a ambos.
Efectivamente, como será possível continuar com o costume actual (como se
conclui igualmente dos documentos do meu processo) que prevê que o acusador
deva permanecer secreto? Mas, ao pertencer ao mesmo organismo, torna-se
também juiz num processo, sem defensor nem regras claras. Em terceiro lugar, é necessário
um colégio de peritos que tenha como tarefa a conciliação
preventiva, para evitar, se possível, o processo propriamente dito,
permitindo um diálogo livre e franco em completa igualdade. Esse organismo
teria certamente permitido evitar o meu processo.
‒ Existe presentemente um tribunal autónomo que julga as acusações
formuladas pela Congregação?
É precisamente isso que falta. Pensei
sempre num tribunal que estivesse à altura da
cultura moderna, com diversos níveis de juízo, e com a possibilidade
de recusar o juiz designado. A propósito, penso com interesse na competência
dos juízes italianos. Mas para já (porque seria utópico pensar na realização
imediata de uma tal reforma), poder-se-ia conceber uma espécie de «Amnistia
Internacional», que desempenharia a sua missão no interior da Igreja católica
com a transparência que o mundo hodierno exige, insistindo muito
particularmente no anúncio do Evangelho. É que
isto, com toda a certeza, não pode continuar assim!
Desejo tudo isto, porque estou
convencido da necessidade da autoridade da Igreja. Não se trata de um discurso
contra o magistério do Papa e do Colégio dos bispos; quero apenas contribuir
para uma transparência e para uma abertura sempre mais conformes com o
testamento de Cristo: «Que todos sejam um». Na verdade, a perspectiva ecuménica
deve inspirar a reforma desejada, precisamente para uma melhor compreensão recíproca,
entravada pela prática actual que, pelo contrário, suscita um clima patológico de suspeitas e de denúncias
injustas e caluniosas. Seja como for, devemos todos acreditar na
inevitabilidade de uma transformação. E é exactamente neste optimismo que
enraíza a minha decisão de tornar público o meu caso, que é bastante
sintomático.
‒ Presentemente, o responsável da Congregação para a
Doutrina da Fé é o teólogo Joseph Ratzinger. O senhor, que nunca teve
aborrecimentos com este novo Prefeito, como é que vê neste lugar um teólogo de
uma escola muito especial?
Muito bem. Mas o problema continua a
ser o da reforma da instituição: os peixes não
poderão viver com muita saúde num lago envenenado. Portanto, antes de mais, uma instituição
nova, sem a funesta continuação do passado, aberta a todas as escolas
teológicas para um desenvolvimento positivo da comunicabilidade do Evangelho.
(Capítulo 5)
©
“A Igreja que eu amo” (Ed. Figueirinhas,
Porto/Lisboa 1992, com Prefácio de Dom Manuel da Silva Martins) é o título da
edição portuguesa do livro «Quelle morale pour l’Église», CERF (1989),
por sua vez traduzido a partir da versão italiana das “Edizioni Borla” (1989),
intitulada «Fede storia morale».
O link abaixo oferece a Entrevista na
íntegra, a qual anda também à volta das “tensões” ante-, durante
e pós-conciliares; da questão da polémica encíclica «Humanæ Vitæ»; dos Documentos da Congregação para
a Doutrina da Fé emitidos durante os vinte anos pós-conciliares; da questão do
Papado, bem como de algumas perspectivas para a Moral do Terceiro Milénio (isto
para além das relações do Pe. Bernhard Häring com o Santo Ofício, acima
editadas). No final do livro existe o «Manifesto de Colónia», as conclusões do «Congresso
dos Moralistas em Latrão» e as peças do «Processo» movido pela Congregação da
Doutrina da Fé contra B. Häring.
©
Teólogo Eugen
Drewermann®
A PSIQUE CLERICAL VAI
ALÉM DO GÉNERO…
“Não haverá homilia por ocasião da tomada de hábito de uma religiosa ou da ordenação de um sacerdote que deixe passar a oportunidade sem recordar as palavras pronunciadas por Jesus na última Ceia: «Vós não me escolhestes a mim, eu vos escolhi a vós» (João 15,16) ou as da parábola da videira e dos ramos: «Sem mim, nada podeis fazer» (João 15,5). Do ponto de vista teológico, faz parte integrante que cada eclesiástico considere estas palavras como a chave da sua nova existência ‘vivida dentro da função’: ser eclesiástico agora não é uma coisa a mais dentro da sua vida, mas aquilo que é decisivo de toda a sua existência, algo que ele deve não a si mesmo, mas única e exclusivamente à graça divina.
“Daí que seria um sinal de altivez, orgulho e insurreição que alguém pense que foi a sua própria pessoa que escolheu a função eclesiástica, que a revestiu e lhe deu realização. Pelo contrário: o que um eclesiástico é, e o que marca no tempo e na eternidade, é a circunstância de Deus actuar nele e por ele. Por si, nada é ‒ eis o que deve construir o parecer máximo da sua vida; somente a sua função como eclesiástico o determina e distingue. (…) A «graça de estado» que assim lhe é comunicada impõe e estimula a que se despoje da sua existência inteira e da inteira consciência do seu valor pessoal, em favor do valor objectivo da função. (…)
“Só quem sentir a necessidade interior de deixar que a sua existência seja virada do avesso e de consentir que o campo pessoal seja transmutado para o institucional e ainda por cima veja em tudo isso a graça da libertação não só de si mesmo como em vista de si mesmo, só esse é que corresponde totalmente ao estado ideal da psique clerical.
“É o ponto de
vista de uma submissão total, de uma resignação verdadeiramente desesperada; é o autêntico
oposto à filosofia de Sartre, e, em ponderação teológica, é uma ideologia
extrema da astenia e da limitação do ego ‒ contraposição máxima de uma
Psicologia da «realidade pessoal» e do «querer-se ser quem se é».”
Eugen Drewermann,
«Funcionários de Deus», Inquérito, Mem Martins - Portugal 1994, p. 51.
[1]
[2] Carta do assessor do Santo Ofício, Pietro Parente, a don Giovanni Rossi, de 24 de Fevereiro de 1964. Esta carta do Secretário do Santo Ofício confirma posteriormente a distância, e até, por vezes, a oposição, entre certos meios da Cúria e o Papa. H. Fesquet escrevia, em 29 de Outubro de 1963, a propósito de Congar: «Recentemente o Papa, numa das suas audiências privadas, afirmou (não se trata de um boato, mas de uma certeza...): “O P. Congar é um dos teólogos que mais contribuíram para a preparação do Vaticano II e o seu pensamento honra muito os Padres conciliares.”» (Cf. H. Fesquet, «Diário del Concílio», Ed. Mursia, 1967, p. 265; idem, Henri Fesquet, «Diário del Concílio», Ed. Nova Terra, Tamarit, 191 – Barcelona-11, 1967, pp. 320-321).
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[5]