teologia para leigos

11 de novembro de 2018

EUTANÁSIA 5

Eis a nuvem dos que procuram a tua compaixão, Senhor


No filme que por estas alturas se exibe nas salas de cinema — «At War»[1]  —, a cena final — inesperada, chocante e, também por isso, polémica e arrebatadora de ânimos — aproxima-nos da densidade de textos e situações históricas como a dos textos do Evangelho de João, capítulos 18 e 19: suplício e morte de Jesus. Um manto de silêncio envolve-a e uma grossa escuridão pesa sobre as consciências de todos os actores, espectadores e sobre os próprios elementos físicos: à última palavra do moribundo («Tudo está consumado», João 19, 30; e à exalação do Espírito), diante da última imagem seguem-se passos secretos, temor, respeito, silêncio, compaixão, peso e negrume. Pouco antes de tão trágico desfecho, tudo era tumulto, discussão raivosa, exaltação tempestuosa, gritos (João 18, 28-40), mas, em poucos minutos, tudo está consumado.

Parece-me que está aqui a falha maior do depoimento do jesuíta Javier Gafo (1936-2001, Doutorado em Teologia Moral pela Universidade Gregoriana de Roma, 1976; director da Cátedra de Bioética da Universidade Pontifícia de Comillas, Madrid, desde Dezembro de 1987) no que diz respeito à «eutanásia de Ramón Sampedro»: a dificuldade em calçarmos as sandálias do servo sofredor é imensa! A incapacidade de treparmos à cruz para ficarmos silenciosamente ao lado do líder até que tudo esteja consumado, rói-nos! A quase impossibilidade de sermos apenas «seguidores» respeitadores, chaga: é gume e lume! A negatividade de nunca relativizarmos as nossas certezas é pecado.

Gafo cai na tentação de fazer passar tudo pelo pensamento e pela razão (lógica), inclusivamente aquilo que não deve porque não pode passar por aí se não pelo coração e pelas entranhas. Gafo esfacela-se, assim, diante da simples razão, muito misteriosa, de que estamos apenas e totalmente diante de uma «pedra que ainda espera dar flor»… (Raúl Brandão), ou seja, estamos diante da máxima expectação transcendente, alguém que está definitivamente condenado a um sofrimento visceral prometaico sem qualquer esperança hercúlea.

O conteúdo deste livro (Javier Gafo sj, «Eutanasia y ayuda al suicidio – mis recuerdos de Ramón Sampedro», DDB, 1999) é um contributo ao debate sobre a eutanásia e à ajuda ao suicídio. Está repleto de argumentos contra, esmeradamente preparados para derrotar (ou entontecer…) os argumentos pró. O livro foi editado em 1999 e desde então a realidade (intelectual, médica, filosófica, jurídica, teológica, espiritual e sociológica) já mudou muito: os avanços (filosóficos, jurídicos e teológicos) relativizam a maior parte destas armas. Mesmo assim, deve ser lido: ele faz a pedagogia do contra, expondo os argumentos ainda hoje os mais esgrimidos. Peca, porém, por sair das mãos de um cristão sem algo mais que faça a diferença.

Eu penso que ninguém consegue falar (ou escrever) sobre esta situação existencial, que é a eutanásia, sem estremecimento, respeito e pavor. Quem leu o livro, a estas horas estará a murmurar que estou a ser injusto. Na verdade, quer no Prólogo, quer no Epílogo, o Autor refere-se com muita amabilidade e respeito à pessoa de Ramón Sampedro, mas fá-lo, pelo menos mais de uma vez, para lamentar a sua opção final – o suicídio; para contrapor um 'sentido alternativo' à visão da sua vida de tetraplégico (contra as preferências de Ramón); para forçar uma argumentação lógica acerca da eutanásia e para mais uma vez defender a racionalidade da opção "contra"; para opor, à visão não crente da eternidade de Sampedro («en la estrella que en el cielo de las noches parpadea»; permanecer vivo «na estrela que no céu das noites cintila»), o discurso "humano, demasiado humano" dos braços de um Deus bom que o olha; etc.


https://www.youtube.com/watch?v=UkDIhkdv3NA


Também é verdade que procura, por mais de uma vez, esquivar-se à crítica de que poderá estar a «fazer o jogo de Sampedro» (o que seria muito mal visto por Roma…), mas, para evitar isso, serve-se da pior das estratégias: sem se colocar totalmente do lado dos críticos de Ramón Sampedro (Gafo de facto diz: «eu não me atrevo a dizer tanto», referindo-se aos decepcionados de última hora com Sampedro, quando começaram a divulgar – a tornar público – que alguém ouvira Ramón confessar que, com a decisão de se eutanasiar, estava a «encontrar o sentido da sua vida através da luta pela sua própria morte»…), Javier Gafo confessa: «Eu não tencionava tornar públicas estas minhas reflexões, caso não tivesse acontecido esta espécie de canonização – quase maioritariamente − nos meios de comunicação social. É verdade que é sempre legítimo dizer que cada pessoa é uma pessoa única, com poder para tomar as suas próprias opções de vida ou de morte — ainda que, nesta circunstância, a opção nunca é tomada sozinha e conta sempre com a ajuda de um terceiro —, mas devemos sempre resistir à sacralização da figura de uma pessoa que não foi capaz de tomar em mãos a sua situação – indiscutivelmente difícil – na qual, contudo, era sempre possível uma certa forma de realização pessoal.» Esta machadada final (que destila uma certa má relação com a imprensa espanhola e que também lança um julgamento moralista e culpabilizador sobre Ramón Sampedro…), quase a despedir-se dos leitores, é de tom muito pouco cristão. Mas, para Javier Gafo, pior é ainda a ideia de ir buscar dois exemplos de tetraplégicos que escreveram a Gafo e a Sampedro a dar o seu testemunho — «ALTERNATIVO!» —, a fim de serem usados por J. Gafo neste seu livro como prova demonstrativa de que a eutanásia não é a única saída. Ao tomar conhecimento desses testemunhos, a resposta de Ramón Sampedro não poderia ser mais elevada: «De facto, somos todos diferentes…».

A nossa condição de seguidores cristãos de Jesus de Nazaré, ainda que não seja nada fácil, deve-nos fazer lembrar que (na feliz expressão de Fray Marcos op, Madrid) «a atitude interna é a única atitude espiritual válida para Jesus». Em circunstâncias terríveis, duríssimas (como a de um assassinato colectivo iminente…), o Irmão Christophe Lebreton, monge trapista de Tibhirine (Argélia), escreve no seu livro "Aime":

«Creio profundamente numa proximidade misteriosa entre o monge e o delinquente, o prisioneiro, os nossos amigos da Arche, os torturados. Penso que tenho de receber dos mais pobres a permissão de ser monge, monge da miséria». (Edição Consolata, Fátima, p. 51)

«Être serviteur, afin d’entendre l’Appel en Le vivant car telle est «ma» vocation. Souffrance : expression de l’amour, purification de l’amour. La Croix : Jésus tout amour tout donné… Le temps prend la dimension de Dieu : il exprime l’appel de Dieu quel que soit mon travail, il se nourrit d’amour et je veux le gaver [encher] de moi, de mes ambitions, désirs, projets ou souvenirs. Trappiste: si Dieu veut.» (Diário, 24.10.1973, cit. de «Moines de Tibhirine – Heureux ceux qui espèrent – autobiographies spirituelles», CERF, Abbaye de Bellefontaine, p. 512)

Fico com a sensação que o jesuíta sempre viajou a Porto do Son (Coruña) não para procurar estar com e conhecer Ramón, mas para o con/vencer, com os bolsos cheios de discursos e catequese. Fico com a sensação que o jesuíta Gafo foi incapaz daquele silêncio compassivo e acolhedor, «ombro com ombro», junto de Ramón, o sofredor humilhado pelo terrível abandono e pela humilhação que a incompreensão sempre produz: incompreensão da família, da Igreja católica local, do Rei e do Estado espanhol; o jesuíta despachou essa compaixão silenciosa e mistérica que é própria dos santos e que fora destinada ao 'aqui e agora', transferindo-a para os ombros de Deus… quando Ramón Sampedro fosse já cadáver. Ele, que também já morreu, perdeu a oportunidade única de se converter ao pobre, de ser também «servo sofredor» e salvar-se. «Monge da miséria»? Infelizmente, miséria de monge, por não ter pedido permissão (ao Servo Sofredor) para o ser. Por ser auto-suficiente demais.

O "pecado" de Gafo está em ter presumido que sabia tudo o que Ramón tinha vivenciado. Não só nunca o havia experienciado… como nunca o havia sabido todo, porque um ser humano como Ramón (um pescador galego que entretanto — sendo tetraplégico há décadas — adquirira uma cultura muito elevada…) são muitíssimos seres humanos num só. Quem algum dia poderá dizer que Ramón Sampedro nunca «procurou o grande ausente»? Quem, de entre os humanos, poderá julgar os sentimentos e as hesitações mais íntimas de Ramón Sampedro? Quem senão «quem é terrível entre as coisas grandiosas», «a mandrágora perfumada» (Cântico dos Cânticos 6, 4.7, 14)?

Procurava-te nas estrelas
quando em criança as interrogava.
Pedi-te às montanhas,
mas só me deram em poucas ocasiões
solidão e breve paz.
Porque faltavas, nas longas noites
cismei no disparate insensato
de que o mundo era um erro de Deus,
eu um erro do mundo.
E quando, diante da morte,
Gritei que não com todas as fibras,
que ainda não terminara,
que tinha ainda muito a fazer,
tu comigo a meu lado, tal como hoje sucede,
um homem uma mulher sob o sol.
Voltei porque tu existias.

[Primo Levi]



Eis a nuvem dos incompreendidos, dos humilhados e aflitos que entregamos à mortal solidão dum sofrimento atroz e sem sentido, apenas porque, burguesmente, desistimos deles, meu Deus, e nos afligimos muito mais com os rígidos Princípios, as Normas mornas e as Regras de mármore. Para quem acredita na força curadora de Jesus de Nazaré,

«A pedra ainda espera dar flor»…


Paulo Bateira, 11 de Novembro de 2018.






«Quem acreditou no nosso anúncio? A quem foi revelado o braço do Senhor?»


«O servo cresceu diante do Senhor como um rebento, como raiz em terra árida, sem figura nem beleza. Vimo-lo sem aspecto atraente, desprezado e abandonado pelos homens, como alguém cheio de dores, habituado ao sofrimento, diante do qual se tapa o rosto, menosprezado e desconsiderado. Na verdade, ele tomou sobre si as nossas doenças, carregou as nossas dores.

Nós o reputávamos como um leproso, ferido por Deus e humilhado. Mas foi ferido por causa dos nossos crimes, esmagado por causa das nossas iniquidades. O castigo que nos salva caiu sobre ele, fomos curados pelas suas chagas. Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas perdidas, cada um seguindo o seu caminho. Mas o Senhor carregou sobre ele todos os nossos crimes. Foi maltratado, mas humilhou-se e não abriu a boca, como um cordeiro que é levado ao matadouro, ou como uma ovelha emudecida nas mãos do tosquiador.

Sem defesa, nem justiça, levaram-no à força. Quem é que se preocupou com o seu destino? Foi suprimido da terra dos vivos, mas por causa dos pecados do meu povo é que foi ferido. Foi-lhe dada sepultura entre os ímpios, e uma tumba entre os malfeitores, embora não tenha cometido crime algum, nem praticado qualquer fraude.

Mas aprouve ao Senhor esmagá-lo com sofrimento, para que a sua vida fosse um sacrifício de reparação. Terá uma posteridade duradoura e viverá longos dias, e o desígnio do Senhor realizar-se-á por meio dele. Por causa dos trabalhos da sua vida verá a luz. O meu servo ficará satisfeito com a experiência que teve. Ele, o justo, justificará a muitos, porque carregou com o crime deles. Por isso, ser-lhe-á dada uma multidão como herança, há-de receber muita gente como despojos, porque ele próprio entregou a sua vida à morte, e foi contado entre os pecadores, tomando sobre si os pecados de todos, e sofreu pelos culpados.» (Isaías 53)










[1] «Em Guerra», «At War» de Stéphane Brizé (Maio de 2018):