teologia para leigos

14 de setembro de 2018

EUTANÁSIA 3



MORRER COM DIGNIDADE

APRESENTAÇÃO
JOÃO SEMEDO, Médico

TEMPO DE DECIDIR

Se tivesse de escolher uma data que simbolizasse a origem deste livro ela seria, sem qualquer dúvida, o dia 14 de novembro de 2015. Uma data que pouco ou nada diz a muita gente mas que, ao contrário, diz muito à centena de pessoas que, nessa tarde, reunidas numa sala da Ordem dos Médicos, no Porto, decidiram avançar com o movimento cívico «Direito a Morrer com Dignidade» e lançar uma ampla discussão e mobilização popular que conduzisse à consagração, na sociedade e na lei portuguesa, da despenalização da morte assistida.
É justo, neste preciso momento de rápida evocação do passado mais recente deste movimento, recordar aqueles a cuja lucidez, coragem e humanismo se ficou a dever o principal impulso para aquela convocatória: a professora Laura Ferreira dos Santos, docente da Universidade do Minho, e o médico urologista João Ribeiro Santos. Aos dois, na diversidade das suas personalidades tão distintas - ela mais estudiosa e reflexiva, de perfil mais científico, e ele, mais prático e mobilizador, de perfil mais organizador -, devemos os passos pioneiros que nos trouxeram até aqui, às vésperas da discussão e votação no Parlamento dos projetos de lei que vão despenalizar a morte assistida. Sem o seu labor, a sua convicção e entusiasmo contagiantes, sem a força e razão que transmitiam no que escreviam ou diziam, não teríamos chegado tão longe e a despenalização continuaria a ser uma «utopia eternamente adiada» como foi, ao longo das últimas décadas, apesar das múltiplas tentativas entretanto realizadas para a fazer entrar na agenda dos grandes debates nacionais. Hoje, como sabemos, o tempo já é outro e bem diferente: é o tempo da decisão.
Naquela tarde de 14 de novembro, nem o mais otimista dos presentes imaginou ser possível concretizar tão complexa mudança neste intervalo de tempo. E, no entanto, não teria sido impossível admiti-lo: os portugueses podem não falar muito da morte, podem até dar a ideia de que as problemáticas com ela relacionadas são problemas menores que pouco ou nada os preocupam num tempo em que o seu quotidiano é dominado por uma avalanche de outras limitações, adversidades e dilemas que lhes ensombram a vida, mas é um erro tremendo acreditar que não pensam no que será o seu «fim».
Com efeito, ao longo destes dois anos, os problemas do fim de vida revelaram-se para uns e confirmaram-se para outros como fonte das suas maiores preocupações. Esta é, talvez, a primeira e grande lição a tirar deste complexo processo, para o qual o debate também identificou uma principal explicação, porventura tão simples quanto cruel: morre-se mal em Portugal. Em geral, a morte traz consigo um intenso sofrimento, tão excessivo como inútil, porque dele nada resulta a não ser mais sofrimento até que a morte, pondo termo à vida, ponha igualmente termo ao sofrimento. O que deveriam constituir momentos de maior tranquilidade e serenidade transforma-se, num elevadíssimo número de casos, num suplício, numa tortura, numa violência, numa lenta e sofrida agonia, agravadas pela solidão, o isolamento, a dependência e a degradação física que, de uma forma geral, estão presentes no contexto que acompanha o final das nossas vidas. Não há argumento que torne razoável e aceitável tanto sofrimento absolutamente fútil e, daí, a sua recusa ser tão generalizada.
Dois meses depois daquela reunião fundadora, o movimento lança, em fevereiro de 2016, através dos jornais Expresso e Público, o «Manifesto pela Despenalização da Morte Assistida», subscrito por cem figuras públicas, ilustres cidadãs e cidadãos, com ou sem partido, com ou sem religião, homens e mulheres de todas as idades e profissões. A amplitude do apoio recolhido pelo "Manifesto" e traduzido quer na pluralidade dos seus signatários, quer no tempo recorde de que necessitou para garantir a sua discussão no plenário da Assembleia da República, antecipavam o vastíssimo suporte popular que a causa da despenalização viria a conquistar junto da opinião pública portuguesa, ao longo destes dois anos de intensa troca de ideias e enriquecedora controvérsia. Ao contrário do que alguns admitiam, fosse por genuíno receio fosse por mal escondido desejo, a discussão travada em torno da morte assistida só contribuiu para alargar o campo dos seus apoiantes. Não há melhor instrumento que a democracia para dar corpo a uma causa, a uma ideia, a uma proposta.
Não me recordo de algum outro tema cuja discussão tivesse persistido tanto tempo no debate nacional e que tanto interesse e mobilização tenha gerado, dentro e fora dos média. A morte assistida - e, de uma forma geral, as problemáticas com ela relacionadas - está muito longe de ser uma causa minoritária, animando apenas pequenos grupos mais ou menos marginais e radicais, divorciados dos interesses mais comuns da população portuguesa. Ao contrário do que dizem os que rejeitam a despenalização, sobretudo aqueles círculos conservadores mais extremistas, a morte assistida - seja a eutanásia, seja o suicídio assistido - é uma causa muito popular, à qual os portugueses dão a máxima importância. Quantas vezes ouvi o desabafo «Já basta o que sofremos ao longo da vida!...».
Foram os dois anos de debate que conduziram à ideia de fazermos este livro. Um livro que toma partido aberto e claríssimo a favor da despenalização. Não nos escondemos, dizemos frontalmente ao que vimos e o que pretendemos: queremos despenalizar a morte assistida e impedir que ajudar a morrer um doente terminal mergulhado no maior sofrimento continue a ser crime e motivo de prisão. Consideramos ser este o tempo de tomar essa decisão: a discussão está feita, os argumentos são conhecidos, não faltou nem debate nem controvérsia, a «má morte» persiste, não há mais tempo a perder, falta apenas decidir e a decisão cabe à Assembleia da República, o órgão legislativo por excelência. Quem hoje defende que a discussão continua por fazer esconde o seu verdadeiro propósito: impedir a despenalização da morte assistida.
Parte significativa do livro é ocupada com a resposta às perguntas, questões, opiniões e comentários que vimos e ouvimos desde que o movimento se lançou, com maior insistência ou de análise mais sofisticada. Pensámos este livro como se ele fosse um ABC sobre a morte assistida, que nos dissesse tudo o que devemos saber sobre a morte assistida e nos preparasse para uma decisão séria, informada, consciente e responsável. Não temos a pretensão de ter dado resposta a todos os problemas, sabemos que não fizemos nem pretendíamos fazer uma obra perfeita. Pretendemos apenas ajudar a que cada um fique a saber o que está em causa, a facilitar o encontrar das respostas que melhor o satisfazem, sem que, para isso, tivéssemos de recorrer à adulteração da realidade ou à deturpação da opinião dos que não pensam como nós, esclarecendo com verdade o que está em causa, o que se pretende permitir e não permitir - como é o caso da exclusão dos menores e dos portadores de doença ou perturbação mental -, avaliando com rigor e objetividade a experiência daqueles que já legalizaram a morte assistida - vários países europeus e da América Latina e diversos estados norte-americanos -, não para copiar mas precisamente para aprender e saber evitar erros ou precipitações que existem em alguns desse exemplos estrangeiros. Não recorremos nem a truques nem a habilidades retóricas para impor a nossa razão. A força da nossa razão está nos nossos argumentos.
E, este trabalho, fizemo-lo com extremo cuidado devido à natureza da problemática em causa. A morte é o terreno do absoluto desconhecido e é fácil manipular o desconhecido. A morte é o momento de todos os receios e é fácil usar o medo - e até o horror - para granjear mais alguns apoios. Repito, não foi esse - nem será - o nosso caminho. Conduzimo-nos apenas pela racionalidade dos nossos argumentos, convictos de que nem a ignorância, nem o medo vencerão a razão. E convictos, também, de que à complexidade do tema se responde de forma exigente e elaborada, fugindo a simplificações e recusando adiar sine die a resposta que é indispensável encontrar para um problema que repercute de forma tão direta e intensa na vida de todos e de cada um.
O eixo desta edição é a morte assistida e foi disso que pretendemos tratar, razão pela qual não desenvolvemos nem valorizamos outros domínios que «contaminam» esta problemática, nomeadamente de natureza jurídico-constitucional, a mais flagrante das quais respeita à constitucionalidade ou inconstitucionalidade da despenalização, controvérsia que não deixará de ser levantada mas que, nesta fase e em abono da verdade, adianta muito pouco ao esclarecimento sobre o que é e o que se pretende com a despenalização da morte assistida. Ainda assim, quem nos ler encontrará dois excelentes textos redigidos à luz desta abordagem de pendor mais jurídico.
No momento em que esta edição estava a ser preparada, dois partidos - o PAN e o BE - já tinham entregado no Parlamento os respetivos projetos de lei e o PS confirmava a sua intenção de apresentar o seu próprio projeto. Também o PEV manifestou a sua intenção de avançar com um projeto de lei da sua autoria que, à data desta edição, se encontra ainda por apresentar. Este livro ficaria incompleto se nele não houvesse espaço para que cada um desses partidos expusesse as linhas gerais da sua proposta, as suas motivações e a forma como cada um propõe chegar ao que é o grande objetivo comum de todos eles: a despenalização da morte assistida.
A causa da morte assistida não respeita as tradicionais fronteiras partidárias, nem outras, nomeadamente religiosas. Gente de todos os partidos, da direita à esquerda, ou mesmo sem partido, crentes de todas as confissões religiosas ou mesmo não seguindo qualquer religião, encontram-se de um lado ou do outro desta controvérsia. Sublinhamos esta particularidade, tão rara na vida política portuguesa, transcrevendo alguns testemunhos pessoais de figuras públicas portuguesas, dos mais variados quadrantes ideológicos, políticos e partidários.
Esta amplitude, este pluralismo são a razão da força adquirida pela causa da despenalização e traduz a sua profunda essência democrática: a despenalização consagrada na lei como um direito a que todos podem recorrer permite que cada pessoa assuma a opção que entender sobre os últimos momentos da sua vida: continuar a sofrer ou acabar com essa agonia, encurtando uma vida de que nada mais pode esperar que não seja a continuação do martírio.
As decisões possíveis são igualmente dignas, se corresponderem à vontade do próprio.
A despenalização da morte assistida é a mais humanitária e democrática opção que podemos aprovar para o final da vida: ninguém é obrigado e ninguém é impedido, o único critério é a escolha de cada um. Afinal de contas, não é isto a democracia?



PREFÁCIO
GILBERTO COUTO, médico

Este livro pode repelir-nos, logo de início, porque fala de um tema tabu: a morte. Mais ainda, fala de ajudar a morrer quem precisa. A perplexidade atenua-se, quero crer, quando folheamos o livro e nos apercebemos que é o primeiro livro escrito em Portugal a favor da despenalização da eutanásia a muitas mãos, por autores dos mais diversos quadrantes políticos e culturais da nossa sociedade.
Um aspeto fundamental, aqui retratado, é o da liberdade e responsabilidade que cabem ao doente que pede para ser ajudado e à sociedade que tem os meios para o ajudar. A relação médico-doente tem sido a pedra angular das leis da eutanásia em diversos lugares do mundo: na Holanda, a avaliação e realização desta ajuda por um médico é mesmo considerada garantia da sua justeza e adequação, «aprovada» pelos tribunais ainda antes de existir lei.
Precedem-nos, na Holanda, mais de quarenta anos de debate, e uma lei de 2001, ainda hoje incontestada pelas comissões de avaliação e pelo número exemplar de médicos condenados por desrespeito da lei: zero. Tanta confiança nos médicos holandeses, por parte das autoridades e da sociedade holandesas, deveria dar que pensar aos nossos dirigentes médicos, para quem a relação médico-doente só parece ter um sentido. Em que argumentos se funda a sua sageza, que subalterniza alguns dos países mais desenvolvidos do mundo, como a Holanda, a Bélgica ou o Canadá?
Nós sabemo-lo, funda-se numa conceção particular de «vida boa» que se pretende impor a todos os portugueses. É no diálogo - sustentado na razão - e no compromisso entre indivíduo e comunidade que se forjam as referências morais. Nada de mal me parece existir em responder ao doente que - condenado a uma vida curta e de sofrimento irremediável - me pede para lhe antecipar a morte.
A missão dos médicos não é apenas salvar vidas. Ou prolongar vidas. É aliviar o sofrimento. Há doentes concretos que entendem a morte preferível a uma vida de grande sofrimento. Já o admitimos quando permitimos a recusa de um tratamento vital ou quando criámos o testamento vital. Quem traçou os limites da compaixão médica?
O valor do princípio da ajuda a morrer é autoevidente e irredutível, estabelecendo-se mesmo como um dos pilares da ética humanista, solidária e democrática, dos nossos dias, num mundo mau e contingente. Por isso é um valor constitutivo da nossa humanidade originária e essencial.
Os médicos não deveriam exercer o seu magistério de forma condescendente ou paternalista, mas como iguais ao lado daquele que sofre. O médico deve esclarecer e escutar, mas não deve substituir-se nunca à decisão do próprio doente. Ou seja, a melhor decisão do doente não é quando ele faz o que o médico quer mas, antes, quando ele age de acordo com o que sente e sabe ser o melhor para si ou, pelo menos, com o que sente e sabe ser capaz de suportar. Logo, para o médico, respeitar a dignidade do doente é, antes de mais, um despojar-se de si: despir as roupas de «Moisés com as tábuas», de juiz e de padre, para acolher e servir, unicamente, cada doente na sua singularidade.
A visão própria de uma vida e de uma morte dignas deve ser respeitada pelo médico. Escolher antecipar a morte em certas circunstâncias é uma decisão íntima e pessoal, mas que a todos caberia aceitar, pois, no fundo, todos sentimos ser uma decisão que poderíamos partilhar em iguais circunstâncias.
Nós somos seres para a morte. Sabemo-lo desde que nascemos, como indivíduos e como sociedade. É «humano» e - como dizia Terêncio - nada do que é humano nos é estranho. Então porquê considerar uma aceitação do fim, um planear o fim, como um transtorno da razão? Se a doença altera o nosso estado de espírito, não nos estupidifica necessariamente. Nem nos obriga a suportar um sofrimento indizível. A doença pode dar-nos uma consciência renovada sobre a nossa finitude e, muitas vezes, é demasiado tangível a desintegração de si, que se torna natural que não se queira continuar com uma vida assim.
Deverá o médico consolar? Sim, mas na verdade e na autenticidade. Não cedendo ao pensamento mágico para explicar o mal que é o sofrimento e a morte. Mas respeitando criteriosamente a racionalidade interna do seu doente, nem que as únicas respostas que encontre sejam o silêncio e uma mão no ombro. Pois o médico não tem de ser um dador de sentido. Tem de ser um respeitador dos sentidos.
Por isso, este livro fala de respeito, dignidade e liberdade. Estes são os seus argumentos irredutíveis. Se considerarmos que um qualquer Leviatã ou deus nos diz para morrer de uma determinada forma, ainda que recorramos à cosmética de ficarmos sedados até morrermos, só para tranquilizar a má consciência - e não a razão - de quem manda, então nada se mude.
Reclamamos uma ética democrática e adulta, plural e laica, pois só assim tem fundamento a decisão política. Os médicos não estão imunes a este novo tempo. A eles se pede que usem os seus conhecimentos e competência na sua arte, para continuarem a servir os doentes de acordo com o maior bem divisado pelo doente e mais ninguém.
Diz Grossman que a história da humanidade é a história da sua liberdade. Por isso faz todo o sentido a posição que se defende neste livro. Os médicos têm de escolher o seu lugar nesta história.

«Morrer com dignidade – a decisão de cada um», João Semedo (Org.), Contraponto Editores. ISBN 978-989-666-182-3.