MORRER COM
DIGNIDADE
APRESENTAÇÃO
JOÃO SEMEDO,
Médico
TEMPO DE DECIDIR
Se tivesse
de escolher uma data que simbolizasse a origem deste livro ela seria, sem
qualquer dúvida, o dia 14 de novembro de 2015. Uma data que pouco ou nada diz a
muita gente mas que, ao contrário, diz muito à centena de pessoas que, nessa
tarde, reunidas numa sala da Ordem dos Médicos, no Porto, decidiram avançar com
o movimento cívico «Direito a Morrer com Dignidade» e lançar uma ampla
discussão e mobilização popular que conduzisse à consagração, na sociedade e na
lei portuguesa, da despenalização da morte assistida.
É justo,
neste preciso momento de rápida evocação do passado mais recente deste
movimento, recordar aqueles a cuja lucidez, coragem e humanismo se ficou a
dever o principal impulso para aquela convocatória: a professora Laura Ferreira
dos Santos, docente da Universidade do Minho, e o médico urologista João
Ribeiro Santos. Aos dois, na diversidade das suas personalidades tão distintas
- ela mais estudiosa e reflexiva, de perfil mais científico, e ele, mais
prático e mobilizador, de perfil mais organizador -, devemos os passos
pioneiros que nos trouxeram até aqui, às vésperas da discussão e votação no
Parlamento dos projetos de lei que vão despenalizar a morte assistida. Sem o seu
labor, a sua convicção e entusiasmo contagiantes, sem a força e razão que transmitiam
no que escreviam ou diziam, não teríamos chegado tão longe e a despenalização
continuaria a ser uma «utopia eternamente adiada» como foi, ao longo das
últimas décadas, apesar das múltiplas tentativas entretanto realizadas para a
fazer entrar na agenda dos grandes debates nacionais. Hoje, como sabemos, o
tempo já é outro e bem diferente: é o tempo da decisão.
Naquela
tarde de 14 de novembro, nem o mais otimista dos presentes imaginou ser possível
concretizar tão complexa mudança neste intervalo de tempo. E, no entanto, não
teria sido impossível admiti-lo: os portugueses podem não falar muito da morte,
podem até dar a ideia de que as problemáticas com ela relacionadas são
problemas menores que pouco ou nada os preocupam num tempo em que o seu
quotidiano é dominado por uma avalanche de outras limitações, adversidades e
dilemas que lhes ensombram a vida, mas é um erro tremendo acreditar que não pensam no que será o
seu «fim».
Com efeito,
ao longo destes dois anos, os problemas do fim de vida revelaram-se para uns e
confirmaram-se para outros como fonte das suas maiores preocupações. Esta é,
talvez, a primeira e grande lição a tirar deste complexo processo, para o qual
o debate também identificou uma principal explicação, porventura tão simples
quanto cruel: morre-se mal em Portugal. Em
geral, a morte traz consigo um intenso sofrimento, tão excessivo como inútil,
porque dele nada resulta a não ser mais sofrimento até que a morte, pondo termo
à vida, ponha igualmente termo ao sofrimento. O que deveriam constituir
momentos de maior tranquilidade e serenidade transforma-se, num elevadíssimo
número de casos, num suplício, numa tortura, numa violência, numa lenta e
sofrida agonia, agravadas pela solidão, o isolamento, a dependência e a
degradação física que, de uma forma geral, estão presentes no contexto que
acompanha o final das nossas vidas. Não há argumento que torne razoável e
aceitável tanto sofrimento absolutamente fútil e, daí, a sua recusa ser tão
generalizada.
Dois meses
depois daquela reunião fundadora, o movimento lança, em fevereiro de 2016,
através dos jornais Expresso e Público, o «Manifesto pela Despenalização da
Morte Assistida», subscrito por cem figuras públicas, ilustres cidadãs e
cidadãos, com ou sem partido, com ou sem religião, homens e mulheres de todas
as idades e profissões. A amplitude do apoio recolhido pelo "Manifesto"
e traduzido quer na pluralidade dos seus signatários, quer no tempo recorde de
que necessitou para garantir a sua discussão no plenário da Assembleia da
República, antecipavam o vastíssimo suporte popular que a causa da
despenalização viria a conquistar junto da opinião pública portuguesa, ao longo
destes dois anos de intensa troca de ideias e enriquecedora controvérsia. Ao
contrário do que alguns admitiam, fosse por genuíno receio fosse por mal
escondido desejo, a discussão travada em torno da morte assistida só contribuiu
para alargar o campo dos seus apoiantes. Não há melhor instrumento que a democracia
para dar corpo a uma causa, a uma ideia, a uma proposta.
Não me recordo de algum outro tema cuja
discussão tivesse persistido tanto tempo no debate nacional e que tanto
interesse e mobilização tenha gerado, dentro e fora dos média. A morte
assistida - e, de uma forma geral, as problemáticas com ela relacionadas - está
muito longe de ser uma causa minoritária, animando apenas pequenos grupos mais
ou menos marginais e radicais, divorciados dos interesses mais comuns da
população portuguesa. Ao contrário do que dizem os que rejeitam a
despenalização, sobretudo aqueles círculos conservadores mais extremistas, a
morte assistida - seja a eutanásia, seja o suicídio assistido - é uma causa
muito popular, à qual os portugueses dão a máxima importância. Quantas vezes
ouvi o desabafo «Já basta o que sofremos ao longo da vida!...».
Foram os
dois anos de debate que conduziram à ideia de fazermos este livro. Um livro que
toma partido aberto e claríssimo a favor da despenalização. Não nos escondemos,
dizemos frontalmente ao que vimos e o que pretendemos: queremos despenalizar a morte assistida e impedir
que ajudar a morrer um doente terminal mergulhado no maior sofrimento continue
a ser crime e motivo de prisão. Consideramos ser este o tempo de tomar
essa decisão: a
discussão está feita, os argumentos são conhecidos, não faltou nem debate nem
controvérsia, a «má morte» persiste, não há mais tempo a perder,
falta apenas decidir e a decisão cabe à Assembleia da República, o órgão
legislativo por excelência. Quem hoje defende que a discussão continua por
fazer esconde o seu verdadeiro propósito: impedir a despenalização da morte
assistida.
Parte
significativa do livro é ocupada com a resposta às perguntas, questões,
opiniões e comentários que vimos e ouvimos desde que o movimento se lançou, com
maior insistência ou de análise mais sofisticada. Pensámos este livro como se
ele fosse um ABC sobre a morte assistida, que nos dissesse tudo o que devemos
saber sobre a morte assistida e nos preparasse para uma decisão séria,
informada, consciente e responsável. Não temos a pretensão de ter dado resposta
a todos os problemas, sabemos que não fizemos nem pretendíamos fazer uma obra
perfeita. Pretendemos apenas ajudar a que cada um fique a saber o que está em
causa, a facilitar o encontrar das respostas que melhor o satisfazem, sem que,
para isso, tivéssemos de recorrer à adulteração da realidade ou à deturpação da
opinião dos que não pensam como nós, esclarecendo com verdade o que está em
causa, o que
se pretende permitir e não permitir - como é o caso da exclusão dos menores e
dos portadores de doença ou perturbação mental -, avaliando com
rigor e objetividade a experiência daqueles que já legalizaram a morte
assistida - vários países europeus e da América Latina e diversos estados
norte-americanos -, não para copiar mas precisamente para aprender e saber
evitar erros ou precipitações que existem em alguns desse exemplos
estrangeiros. Não recorremos nem a truques nem a habilidades retóricas para
impor a nossa razão. A força da nossa razão está nos nossos argumentos.
E, este
trabalho, fizemo-lo com extremo cuidado devido à natureza da problemática em
causa. A
morte é o terreno do absoluto desconhecido e é fácil manipular o desconhecido.
A morte é o momento de todos os receios e é fácil usar o medo - e até o horror - para granjear mais
alguns apoios. Repito, não foi esse - nem será - o nosso caminho.
Conduzimo-nos apenas pela racionalidade dos nossos argumentos, convictos de que
nem a ignorância, nem o medo vencerão a razão. E convictos, também, de que à
complexidade do tema se responde de forma exigente e elaborada, fugindo a
simplificações e recusando adiar sine die
a resposta que é indispensável encontrar para um problema que repercute de
forma tão direta e intensa na vida de todos e de cada um.
O eixo
desta edição é a morte assistida e foi disso que pretendemos tratar, razão pela
qual não desenvolvemos nem valorizamos outros domínios que «contaminam» esta
problemática, nomeadamente de natureza jurídico-constitucional, a mais
flagrante das quais respeita à constitucionalidade ou inconstitucionalidade da
despenalização, controvérsia que não deixará de ser levantada mas que, nesta
fase e em abono da verdade, adianta muito pouco ao esclarecimento sobre o que é
e o que se pretende com a despenalização da morte assistida. Ainda assim, quem
nos ler encontrará dois excelentes textos redigidos à luz desta abordagem de
pendor mais jurídico.
No momento
em que esta edição estava a ser preparada, dois partidos - o PAN e o BE - já
tinham entregado no Parlamento os respetivos projetos de lei e o PS confirmava
a sua intenção de apresentar o seu próprio projeto. Também o PEV manifestou a
sua intenção de avançar com um projeto de lei da sua autoria que, à data desta
edição, se encontra ainda por apresentar. Este livro ficaria incompleto se nele
não houvesse espaço para que cada um desses partidos expusesse as linhas gerais
da sua proposta, as suas motivações e a forma como cada um propõe chegar ao que
é o grande objetivo comum
de todos eles: a despenalização da morte assistida.
A causa da
morte assistida não respeita as tradicionais fronteiras partidárias, nem
outras, nomeadamente religiosas. Gente de todos os partidos, da direita à esquerda,
ou mesmo sem partido, crentes de todas as confissões religiosas ou mesmo não
seguindo qualquer religião, encontram-se de um lado ou do outro desta
controvérsia. Sublinhamos esta particularidade, tão rara na vida política
portuguesa, transcrevendo alguns testemunhos pessoais de figuras públicas
portuguesas, dos mais variados quadrantes ideológicos, políticos e partidários.
Esta
amplitude, este pluralismo são a razão da força adquirida pela causa da
despenalização e traduz a sua profunda essência democrática: a despenalização
consagrada na lei como um direito a que todos podem recorrer permite que
cada pessoa assuma a opção que entender sobre os últimos momentos da
sua vida: continuar a sofrer ou acabar com essa agonia, encurtando uma vida de
que nada mais pode esperar que não seja a continuação do martírio.
As decisões possíveis são igualmente
dignas, se corresponderem à vontade do próprio.
A
despenalização da morte assistida é a mais humanitária e democrática opção que
podemos aprovar para o final da vida: ninguém é obrigado e ninguém é impedido, o
único critério é a escolha de cada um. Afinal de contas, não é isto a
democracia?
PREFÁCIO
GILBERTO
COUTO, médico
Este livro
pode repelir-nos, logo de início, porque fala de um tema tabu: a morte. Mais
ainda, fala de ajudar a morrer quem precisa. A perplexidade atenua-se, quero
crer, quando folheamos o livro e nos apercebemos que é o primeiro livro escrito
em Portugal a favor da despenalização da eutanásia a muitas mãos, por autores
dos mais diversos quadrantes políticos e culturais da nossa sociedade.
Um aspeto
fundamental, aqui retratado, é o da liberdade e responsabilidade que cabem ao
doente que pede para ser ajudado e à sociedade que tem os meios para o ajudar.
A relação médico-doente tem sido a pedra angular das leis da eutanásia em
diversos lugares do mundo: na Holanda, a avaliação e realização desta ajuda por
um médico é mesmo considerada garantia da sua justeza e adequação, «aprovada»
pelos tribunais ainda antes de existir lei.
Precedem-nos,
na Holanda, mais de quarenta anos de debate, e uma lei de 2001, ainda hoje incontestada
pelas comissões de avaliação e pelo número exemplar de médicos condenados por
desrespeito da lei: zero. Tanta confiança nos médicos holandeses,
por parte das autoridades e da sociedade holandesas, deveria dar que pensar aos
nossos dirigentes médicos, para quem a relação médico-doente só parece ter um
sentido. Em que argumentos se funda a sua sageza, que subalterniza alguns dos
países mais desenvolvidos do mundo, como a Holanda, a Bélgica ou o Canadá?
Nós
sabemo-lo, funda-se numa conceção particular de «vida boa» que se pretende
impor a todos os portugueses. É no diálogo - sustentado na razão - e no
compromisso entre indivíduo e comunidade que se forjam as referências morais.
Nada de mal me parece existir em responder ao doente que - condenado a uma vida
curta e de sofrimento irremediável - me pede para lhe antecipar a morte.
A missão dos médicos não é apenas salvar
vidas. Ou prolongar vidas. É aliviar o sofrimento. Há
doentes concretos que entendem a morte preferível a uma vida de grande
sofrimento. Já o admitimos quando permitimos a recusa de um tratamento vital ou
quando criámos o testamento vital. Quem traçou os
limites da compaixão médica?
O valor do
princípio da ajuda a morrer é autoevidente e irredutível, estabelecendo-se
mesmo como um dos pilares da ética humanista, solidária e democrática, dos
nossos dias, num mundo mau e contingente. Por isso é um valor constitutivo da nossa
humanidade originária e essencial.
Os médicos
não deveriam exercer o seu magistério de forma condescendente ou paternalista,
mas como iguais ao lado daquele que sofre. O médico deve esclarecer e escutar,
mas não deve substituir-se nunca à decisão do próprio doente. Ou seja, a melhor
decisão do doente não é quando ele faz o que o médico quer mas,
antes, quando ele age de acordo com
o que sente e sabe ser o melhor para si ou, pelo menos, com o que sente e sabe ser capaz de suportar.
Logo, para o médico, respeitar a dignidade do doente é, antes de mais, um
despojar-se de si: despir as roupas de «Moisés com as tábuas», de juiz e de
padre, para acolher e servir, unicamente, cada doente na sua singularidade.
A visão própria de uma vida e de uma
morte dignas deve ser respeitada pelo médico. Escolher antecipar a morte
em certas circunstâncias é uma decisão íntima e pessoal, mas que a todos
caberia aceitar, pois, no fundo, todos sentimos ser uma decisão que poderíamos
partilhar em iguais circunstâncias.
Nós somos
seres para a morte. Sabemo-lo desde que nascemos, como indivíduos e como
sociedade. É «humano» e - como dizia Terêncio - nada do que é humano nos é
estranho. Então porquê considerar uma aceitação do fim, um planear o fim, como
um transtorno da razão? Se a doença altera o nosso estado de espírito, não nos
estupidifica necessariamente. Nem nos obriga a suportar um sofrimento
indizível. A doença pode dar-nos uma consciência renovada sobre a nossa
finitude e, muitas vezes, é demasiado tangível a desintegração de si, que se
torna natural que não se queira continuar com uma vida assim.
Deverá o
médico consolar? Sim, mas na verdade e na autenticidade. Não cedendo ao
pensamento mágico para explicar o mal que é o sofrimento e a morte. Mas respeitando
criteriosamente a racionalidade interna do seu doente, nem que as únicas
respostas que encontre sejam o silêncio e uma mão no ombro. Pois o médico não
tem de ser um dador de sentido. Tem de ser um respeitador dos sentidos.
Por isso,
este livro fala de respeito, dignidade e liberdade. Estes são os seus
argumentos irredutíveis. Se considerarmos que um qualquer Leviatã ou deus nos
diz para morrer de uma determinada forma, ainda que recorramos à cosmética de
ficarmos sedados até morrermos, só para tranquilizar a má consciência - e não a
razão - de quem manda, então nada se mude.
Reclamamos
uma ética democrática e adulta, plural e laica, pois só assim tem fundamento a
decisão política. Os médicos não estão imunes a este novo tempo. A eles se pede
que usem os seus conhecimentos e competência na sua arte, para continuarem a
servir os doentes de acordo com o maior bem divisado pelo doente e mais
ninguém.
Diz
Grossman que a história da humanidade é a história da sua liberdade. Por isso
faz todo o sentido a posição que se defende neste livro. Os médicos têm de
escolher o seu lugar nesta história.
«Morrer com
dignidade – a decisão de cada um», João Semedo (Org.), Contraponto Editores.
ISBN 978-989-666-182-3.