O CONFLITO LAICAL
A responsabilidade evangelizadora dos leigos
Introdução
O «Instituto Diocesano de Teologia e Pastoral»
(diocese de Bilbao-Bizkaia) teve desde as suas origens uma preocupação especial
em acompanhar, com uma reflexão teológica, os problemas suscitados nesta
diocese em torno da presença — e da ausência — do laicado na acção pastoral
evangelizadora da Igreja. Várias foram as actividades levadas a cabo. Uma delas
é esta que agora damos à luz.
Nos finais de 1987, colocou-se, no seio do
Instituto, a conveniência de dar início a um seminário de reflexão sobre a
problemática de fundo do laicado na nossa diocese («Seminario sobre la teologia del laicado»). Uma equipa de doze
pessoas, leigos e sacerdotes, lançou mãos à obra.
Não se pretendiam tiradas espectaculares ou grandes
inovações ao nível teórico ou teológico, sobretudo nesta área em que a
eclesiologia já está atascada. Tratava-se de realizar um debate e uma reflexão
acerca da práxis diocesana actual, mediante a aplicação dos princípios
eclesiológicos conhecidos às realidades da vida laical já existentes entre nós.
Os membros do grupo julgaram, desde o princípio, que o objecto central do
seminário deveria centrar-se, mais do que no aprofundamento de questões
estrictamente teológicas — realidades que pertencem aos especialistas ou aos
teólogos profissionais —, na reflexão crítica sobre algumas práxis que
certos grupos e movimentos vêm levando a cabo na nossa diocese.
Parecia-nos ser este um assunto de capital interesse
para esta Igreja local, igreja empenhada na recepção de uma Assembleia
Diocesana, a iniciar um Plano Diocesano de Evangelização de carácter quinquenal
e enfrentando uma
grave problemática relacionada com a incorporação das responsabilidades
evangelizadoras do laicado adulto.
Uma vintena de sessões – de debate – e duas outras
mais – de síntese – constituíram o amplo período da nossa reflexão. Cada sessão
contava com um palestrante previamente designado, palestrante que exporia de
maneira concisa os pontos-chave do respectivo tema que lhe fora distribuído. Só
em alguns casos foram convidados palestrantes estranhos ao grupo de trabalho.
Um breve questionário, previamente conhecido, centrava a reflexão comum,
enquadrava o debate e impunha limites às eventuais dispersões.
Um primeiro levantamento de ideias colocou diante de
nós uma panóplia de questões, qual delas a mais cativante. Sendo impossível
tratá-las a todas com mediana profundidade, tomou-se a decisão de se
circunscrever o trabalho a um tema considerado nevrálgico à volta do qual
parecia que se agrupava a maior parte dos problemas que hoje em dia se colocam
ao laicado.
Descrevê-lo-íamos
assim:
A
condição secular como traço específico dos baptizados leigos – significado desta
afirmação tendo em atenção as formas concretas sob as quais os leigos terão de
viver a relação da Igreja com o mundo. Ou, dito de outra maneira: a presença
eclesial no mundo e a autonomia do temporal – como salvaguardar
a originalidade da missão salvífica da Igreja no mundo, bem como a peculiar
especificidade que compete aos leigos dentro dessa missão.
O seminário estendeu os seus debates ao longo de
dois anos e meio (desde os começos de 1988 até meados de 1990). Sem que fosse
previsível, a marcha espontânea do debate levou-nos através de um processo que,
no fim, desenhou três pilares que, agora, oferecemos ao leitor: (1) reflexão
teórica sobre o sentido da secularidade
própria dos crentes e sobre o
conflito que nasce dessa secularidade; (2) análise do conflito resultante
da dupla pertença do leigo cristão, a
partir de várias experiências concretas; (3) alguns processos formativos para a inserção dos leigos nas realidades da
vida secular.
Sintetizámos e reordenámos a matéria dos nossos
diálogos à volta destes três pilares. Podámos os ramos colaterais que
espontaneamente brotaram dos debates. É o que de seguida vos apresentamos,
seguindo as três fases de reflexão, na esteira da sua lógica própria. Não uma lógica a priori, mas aquela que nasceu
indutivamente do contacto e da interpretação de problemas reais existentes
na diocese de Bilbao.
Ao dar à luz estas páginas, esperamos e desejamos
prestar um serviço a muitos crentes que, individualmente ou agrupados, procuram ser testemunhas
de Jesus Cristo e servidores do Reino de Deus na sociedade de
Bizkaya.
Páscoa da Ressurreição de 1991.
PRIMEIRA FASE
À VOLTA DO
TEMA CENTRAL
Enquadramento
do tema central
Desde o começo das nossas sessões, o grupo percebeu
que o debate tinha de se centrar na questão da secularidade.
O Concílio Vaticano II afirmou de modo muito claro
que o elemento positivo e específico que caracteriza o leigo na Igreja é a sua
condição secular (cf. LG 31; AA 2).
Incorporado em Cristo através do baptismo, partícipe
da sua tríplice missão, membro activo do Povo de Deus, o leigo tem
responsabilidades na missão salvadora, quer na Igreja, quer no mundo. A sua
missão especificamente cristã consiste em promover o processo humanizador do
mundo relativo à salvação em Cristo.
Porém, as afirmações conciliares não dissipam as
dúvidas de índole prática, que, por variadas razões, se colocam hoje aos
leigos.
Esta problemática poderia ser descrita usando os
seguintes quatro
vectores fundamentais:
1 – A mutação antropológica vivida nos últimos
tempos transporta-nos de uma visão do mundo como o grande teatro do mundo onde o Homem representa o seu papel a uma
concepção do mundo como configurador da
realidade corpóreo-espiritual do Homem e como espaço propriamente histórico. Como consequência, a realidade
temporal — o
secular — é o lugar onde o leigo vive e constrói, dia-a-dia, a
sua fidelidade ao Evangelho.
2 – A missão da Igreja entende-se como «consagração do
mundo», missão que diz respeito ao
Povo de Deus na sua totalidade (cf. LG 10).
Isso significa que a inserção no mundo não é um
traço característico do leigo, mas faz parte da condição normal da Igreja toda.
Isso muda a relação da Igreja com o mundo: a secularidade afecta a totalidade
do ser eclesial. A Igreja não serve o mundo a partir de fora do mundo, mas está
«in mundo huius temporis» (GS) como
sacramento de salvação. A natureza da Igreja tem de se estruturar em coerência
com a sua missão.
Um enfoque correcto dessa missão rejeita qualquer
tentativa sacralizadora; deve respeitar a condição profana do temporal. O
reconhecimento da autonomia do temporal dinamiza a procura, por parte da
Igreja, de uma posição mais correcta do que a de antanho, não esquecendo que
foi o próprio mundo moderno quem obrigou a Igreja a resituar-se, ele que, com
as suas roturas radicais, colocou a Igreja no lugar que lhe compete.
Esta mudança obriga a definir novamente o sentido do
secular face à evangelização e a
esclarecer os termos «intraeclesial»
e «extraeclesial», enquanto referidos
à actuação dos leigos. O papel do laicado terá de ser entendido a partir de uma
consciência clara da missão e da presença transformadora da Igreja no mundo.
3 – A eclesiologia de comunhão oferece a
possibilidade de superação da bipolaridade hierarquia-laicado transformando-a
numa outra visão em termos de comunidade,
carismas e ministérios. Pois bem, esta nova visão eclesiológica, unida à
reflexão anterior, permite aclarar os territórios de uns e de outros. O mundo
é, sem dúvida, o espaço próprio de actuação do leigo, portanto é o espaço de
actuação da Igreja toda. Mas, por outro lado, o leigo que trabalha em tarefas
comunitárias, não deixa de ser leigo. Então, onde está o específico do
ministério, onde está a sua presença qualificada dentro desta missão?
Uma Igreja concebida como comunhão exige plataformas
de diálogo e de codecisão, bem como expressões de corresponsabilidade de todos
os baptizados na acção evangelizadora.
4 – A questão agudiza-se quando o laicado, quer por
influência do desenvolvimento da sociedade moderna, quer pela sua própria
maturidade no seio da Igreja, levanta insistentemente a questão da sua condição de
sujeito
eclesial adulto e recusa ser ignorado pela hierarquia na hora das
decisões ou orientações doutrinais, morais, etc. que lhe digam respeito.
A tentativa de viver a experiência laical como
dialéctica entre fé (oração, celebração, compromisso, etc.) e mundo (dinheiro,
competitividade, profissão, sexualidade, política, etc.) realiza-se, por vezes
quase esquizofrenicamente, debaixo de fortes tensões, e, outras vezes, à custa
de renúncias à primeira ou à segunda daquelas realidades. A este leigo, cidadão do mundo
e membro da Igreja que inexoravelmente já está no mundo, coloca-se um
problema: o de estar no mundo como se deve estar mas «como se não estivesse» no
mundo (1 Cor 7, 30-31; «os que usam deste mundo, como se não o usufruíssem plenamente»).
As tensões agravam-se ao constatar a dicotomia por
vezes existente entre as mensagens que a hierarquia dirige e o que os cristãos
comuns vivem de facto.
Donde a pergunta: que mecanismos articular de modo a
que o leigo possa encontrar luz e formar critérios pessoais de actuação? Que
apoios poderão encontrar na comunidade eclesial para caminhar como crente num
mundo também trabalhado pelo pecado?
Sente-se a necessidade de incorporar grupos eclesiais
que ajudem a viver a fé dessa maneira comprometida. Surgem, então, novos
problemas: incapacidade das paróquias para atender aos crentes que pretendam
assumir a dita dialéctica anterior; crise dos movimentos especializados;
dispersão e desconhecimento de grupos informais entre si, etc.
Eis, aqui, quatro grandes questões nas quais se
inscreve um conjunto de problemas que afectam, hoje, os leigos comprometidos da
nossa diocese (e supomos que, também, os leigos de outras dioceses).
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Ficando assim delimitado o nosso ponto de partida,
achamos ser necessário realizar uma primeira reflexão mais profunda sobre a
questão central anteriormente referida: teologicamente falando, donde nasce o conflito que
lavra na própria carne do leigo, quando ele trata de ordenar, segundo Deus, as
questões temporais? (LG 31)
Utilizando alguns materiais teológicos de qualidade
reconhecida, usamos esses princípios a fim de iluminar a nossa situação e
conseguirmos, assim, um diagnóstico global do conflito que se coloca ao leigo
cristão em virtude da sua dupla pertença à Igreja e ao mundo.
O CONFLITO DA DUPLA PERTENÇA
A relação dialética entre o momento da fé e o
momento da secularidade vivido no coração da vocação laical traduz-se num
autêntico conflito que requer um esclarecimento cuidado e com tempo. Deverá ter
em atenção os seguintes pontos.
Clarificação
conceptual prévia: o que é isso de «o
temporal»?
Ainda há pouco dissemos que o âmbito específico da
actuação do leigo é a realidade temporal. Ora, «temporal» não se opõe a
«espiritual», mas ao «escatológico». O temporal é da ordem da existência
humana: diz respeito à vida na sua relação com a esperança. O «espiritual»
refere-se à obra transformadora do Espírito que, desde a ressurreição de
Cristo, age na História humana.
A oposição é, de algum modo, dialéctica, na medida
em que o além, o futuro, desponta já no aquém, ou seja, no presente. Não há
nada de escatológico que não seja temporal. Na realidade histórica há algo que
supera a história, donde, todo o crente — leigo ou não leigo — deve viver
submetido à máxima: «já, todavia ainda não».
Mesmo que as valorizações sejam diferentes — os
leigos destacam o «já» ao passo que os monges dão mais importância ao «todavia
ainda não» — o grande problema está em viver a tensão entre ambos os polos. A
vocação dos leigos e a vocação dos religiosos são duas formas diferentes mas
complementares de realizar a missão eclesial.
Este conceito de «temporal» assim encarado deveria
levar-nos a recuperar a História da Salvação em que a realidade secular, movida
pelas suas leis próprias, fosse concebida como «lugar teológico»: nos limites
da história do mundo acontece a missão específica da Igreja, missão
estreitamente relacionada com o Reino de Deus.
Portanto, a partir desta perspectiva devemos estudar
a relação e a distinção ou o duplo momento «secularidade-eclesialidade», «fé e
vida» no século que caracteriza a vocação laical.
De
que conflicto específico se trata?
Há, porém, um conflito prévio a este que queremos
tratar aqui. Fazemos referência a ele, porque achamos que ele está na base de
um outro conflito mais específico.
Referimo-nos àquele que é — o leigo consciente dá-se
conta dele — fruto da profunda contradição entre a lógica do Evangelho ou da fé
e a lógica do Sistema, da razão tecnológica, em suma, da Secularidade.
Este é o conflito inerente à vida de todos os
crentes que levam a sério a sua pertença ao mundo. Faz ninho no interior do
cristão que sente no seu coração o cruzamento dos valores do mundo com os valores
próprios do evangelho.
Tendo isto como pano de fundo — este conflito que
sempre existirá e que bem que podemos denominar de «cruz» —,referimo-nos,
agora, a um conflito mais específico do momento histórico que vivemos, momento
em que o leigo cristão quer ser considerado adulto, tanto na Igreja como no
mundo. Este conflito faz com que o leigo chegue a ter a impressão de que muitas vezes nem
é sujeito na Igreja (porque não o deixam agir como adulto dentro
dela) nem é
autónomo no mundo (porque a pertença eclesial o impede de
comprometer-se plenamente no mundo).
Dito de outra maneira: a hierarquia coloca o leigo numa situação
quase contraditória, ou pelo menos paradoxal, curiosamente no terreno que lhe é
específico: no secular. E porquê? Porque, por um lado, considera que
cada crente é sujeito histórico individual em âmbitos que considera matéria
para debate colectivo e eclesial (os problemas sociais, económicos, culturais,
políticos); por outro lado, define de forma muita estrita e sem margens para discussão
os comportamentos dos leigos no âmbito da moral individual.
Tal conflito pode expressar-se de muitas maneiras.
Assinalemos de seguida alguns binómios, sob os quais se esconde essa mesma
problemática: evangelho-cultura, Igreja-sociedade, pertença eclesial-cidadania
do mundo, fé-práxis
histórica.
(…)
Joaquín Perea e colaboradores.
«Fieles a la
tierra y constructores del Reino – el conflicto de los laicos cristianos», Instituto
Diocesano de Teología y Pastoral, Bilbao, Desclée De Brouwer S. A., pp. 9-26,
ISBN 84-330-0914-1.
«Fe y Justicia»