teologia para leigos

20 de novembro de 2017

O CONFLITO DOS LEIGOS



O CONFLITO LAICAL
A responsabilidade evangelizadora dos leigos


Introdução

O «Instituto Diocesano de Teologia e Pastoral» (diocese de Bilbao-Bizkaia) teve desde as suas origens uma preocupação especial em acompanhar, com uma reflexão teológica, os problemas suscitados nesta diocese em torno da presença — e da ausência — do laicado na acção pastoral evangelizadora da Igreja. Várias foram as actividades levadas a cabo. Uma delas é esta que agora damos à luz.

Nos finais de 1987, colocou-se, no seio do Instituto, a conveniência de dar início a um seminário de reflexão sobre a problemática de fundo do laicado na nossa diocese («Seminario sobre la teologia del laicado»). Uma equipa de doze pessoas, leigos e sacerdotes, lançou mãos à obra.

Não se pretendiam tiradas espectaculares ou grandes inovações ao nível teórico ou teológico, sobretudo nesta área em que a eclesiologia já está atascada. Tratava-se de realizar um debate e uma reflexão acerca da práxis diocesana actual, mediante a aplicação dos princípios eclesiológicos conhecidos às realidades da vida laical já existentes entre nós. Os membros do grupo julgaram, desde o princípio, que o objecto central do seminário deveria centrar-se, mais do que no aprofundamento de questões estrictamente teológicas — realidades que pertencem aos especialistas ou aos teólogos profissionais —, na reflexão crítica sobre algumas práxis que certos grupos e movimentos vêm levando a cabo na nossa diocese.

Parecia-nos ser este um assunto de capital interesse para esta Igreja local, igreja empenhada na recepção de uma Assembleia Diocesana, a iniciar um Plano Diocesano de Evangelização de carácter quinquenal e enfrentando uma grave problemática relacionada com a incorporação das responsabilidades evangelizadoras do laicado adulto.

Uma vintena de sessões – de debate – e duas outras mais – de síntese – constituíram o amplo período da nossa reflexão. Cada sessão contava com um palestrante previamente designado, palestrante que exporia de maneira concisa os pontos-chave do respectivo tema que lhe fora distribuído. Só em alguns casos foram convidados palestrantes estranhos ao grupo de trabalho. Um breve questionário, previamente conhecido, centrava a reflexão comum, enquadrava o debate e impunha limites às eventuais dispersões.

Um primeiro levantamento de ideias colocou diante de nós uma panóplia de questões, qual delas a mais cativante. Sendo impossível tratá-las a todas com mediana profundidade, tomou-se a decisão de se circunscrever o trabalho a um tema considerado nevrálgico à volta do qual parecia que se agrupava a maior parte dos problemas que hoje em dia se colocam ao laicado.

Descrevê-lo-íamos assim:

A condição secular como traço específico dos baptizados leigos – significado desta afirmação tendo em atenção as formas concretas sob as quais os leigos terão de viver a relação da Igreja com o mundo. Ou, dito de outra maneira: a presença eclesial no mundo e a autonomia do temporal – como salvaguardar a originalidade da missão salvífica da Igreja no mundo, bem como a peculiar especificidade que compete aos leigos dentro dessa missão.

O seminário estendeu os seus debates ao longo de dois anos e meio (desde os começos de 1988 até meados de 1990). Sem que fosse previsível, a marcha espontânea do debate levou-nos através de um processo que, no fim, desenhou três pilares que, agora, oferecemos ao leitor: (1) reflexão teórica sobre o sentido da secularidade própria dos crentes e sobre o conflito que nasce dessa secularidade; (2) análise do conflito resultante da dupla pertença do leigo cristão, a partir de várias experiências concretas; (3) alguns processos formativos para a inserção dos leigos nas realidades da vida secular.

Sintetizámos e reordenámos a matéria dos nossos diálogos à volta destes três pilares. Podámos os ramos colaterais que espontaneamente brotaram dos debates. É o que de seguida vos apresentamos, seguindo as três fases de reflexão, na esteira da sua lógica própria. Não uma lógica a priori, mas aquela que nasceu indutivamente do contacto e da interpretação de problemas reais existentes na diocese de Bilbao.

Ao dar à luz estas páginas, esperamos e desejamos prestar um serviço a muitos crentes que, individualmente ou agrupados, procuram ser testemunhas de Jesus Cristo e servidores do Reino de Deus na sociedade de Bizkaya.

Páscoa da Ressurreição de 1991.




PRIMEIRA FASE

À VOLTA DO TEMA CENTRAL


Enquadramento do tema central

Desde o começo das nossas sessões, o grupo percebeu que o debate tinha de se centrar na questão da secularidade.

O Concílio Vaticano II afirmou de modo muito claro que o elemento positivo e específico que caracteriza o leigo na Igreja é a sua condição secular (cf. LG 31; AA 2).

Incorporado em Cristo através do baptismo, partícipe da sua tríplice missão, membro activo do Povo de Deus, o leigo tem responsabilidades na missão salvadora, quer na Igreja, quer no mundo. A sua missão especificamente cristã consiste em promover o processo humanizador do mundo relativo à salvação em Cristo.

Porém, as afirmações conciliares não dissipam as dúvidas de índole prática, que, por variadas razões, se colocam hoje aos leigos.

Esta problemática poderia ser descrita usando os seguintes quatro vectores fundamentais:

1 – A mutação antropológica vivida nos últimos tempos transporta-nos de uma visão do mundo como o grande teatro do mundo onde o Homem representa o seu papel a uma concepção do mundo como configurador da realidade corpóreo-espiritual do Homem e como espaço propriamente histórico. Como consequência, a realidade temporal — o secular — é o lugar onde o leigo vive e constrói, dia-a-dia, a sua fidelidade ao Evangelho.

2 – A missão da Igreja entende-se como «consagração do mundo», missão que diz respeito ao Povo de Deus na sua totalidade (cf. LG 10).


Isso significa que a inserção no mundo não é um traço característico do leigo, mas faz parte da condição normal da Igreja toda. Isso muda a relação da Igreja com o mundo: a secularidade afecta a totalidade do ser eclesial. A Igreja não serve o mundo a partir de fora do mundo, mas está «in mundo huius temporis» (GS) como sacramento de salvação. A natureza da Igreja tem de se estruturar em coerência com a sua missão.

Um enfoque correcto dessa missão rejeita qualquer tentativa sacralizadora; deve respeitar a condição profana do temporal. O reconhecimento da autonomia do temporal dinamiza a procura, por parte da Igreja, de uma posição mais correcta do que a de antanho, não esquecendo que foi o próprio mundo moderno quem obrigou a Igreja a resituar-se, ele que, com as suas roturas radicais, colocou a Igreja no lugar que lhe compete.

Esta mudança obriga a definir novamente o sentido do secular face à evangelização e a esclarecer os termos «intraeclesial» e «extraeclesial», enquanto referidos à actuação dos leigos. O papel do laicado terá de ser entendido a partir de uma consciência clara da missão e da presença transformadora da Igreja no mundo.

3 – A eclesiologia de comunhão oferece a possibilidade de superação da bipolaridade hierarquia-laicado transformando-a numa outra visão em termos de comunidade, carismas e ministérios. Pois bem, esta nova visão eclesiológica, unida à reflexão anterior, permite aclarar os territórios de uns e de outros. O mundo é, sem dúvida, o espaço próprio de actuação do leigo, portanto é o espaço de actuação da Igreja toda. Mas, por outro lado, o leigo que trabalha em tarefas comunitárias, não deixa de ser leigo. Então, onde está o específico do ministério, onde está a sua presença qualificada dentro desta missão?

Uma Igreja concebida como comunhão exige plataformas de diálogo e de codecisão, bem como expressões de corresponsabilidade de todos os baptizados na acção evangelizadora.

4 – A questão agudiza-se quando o laicado, quer por influência do desenvolvimento da sociedade moderna, quer pela sua própria maturidade no seio da Igreja, levanta insistentemente a questão da sua condição de sujeito eclesial adulto e recusa ser ignorado pela hierarquia na hora das decisões ou orientações doutrinais, morais, etc. que lhe digam respeito.

A tentativa de viver a experiência laical como dialéctica entre fé (oração, celebração, compromisso, etc.) e mundo (dinheiro, competitividade, profissão, sexualidade, política, etc.) realiza-se, por vezes quase esquizofrenicamente, debaixo de fortes tensões, e, outras vezes, à custa de renúncias à primeira ou à segunda daquelas realidades. A este leigo, cidadão do mundo e membro da Igreja que inexoravelmente já está no mundo, coloca-se um problema: o de estar no mundo como se deve estar mas «como se não estivesse» no mundo (1 Cor 7, 30-31; «os que usam deste mundo, como se não o usufruíssem plenamente»).

As tensões agravam-se ao constatar a dicotomia por vezes existente entre as mensagens que a hierarquia dirige e o que os cristãos comuns vivem de facto.

Donde a pergunta: que mecanismos articular de modo a que o leigo possa encontrar luz e formar critérios pessoais de actuação? Que apoios poderão encontrar na comunidade eclesial para caminhar como crente num mundo também trabalhado pelo pecado?

Sente-se a necessidade de incorporar grupos eclesiais que ajudem a viver a fé dessa maneira comprometida. Surgem, então, novos problemas: incapacidade das paróquias para atender aos crentes que pretendam assumir a dita dialéctica anterior; crise dos movimentos especializados; dispersão e desconhecimento de grupos informais entre si, etc.

Eis, aqui, quatro grandes questões nas quais se inscreve um conjunto de problemas que afectam, hoje, os leigos comprometidos da nossa diocese (e supomos que, também, os leigos de outras dioceses).



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Ficando assim delimitado o nosso ponto de partida, achamos ser necessário realizar uma primeira reflexão mais profunda sobre a questão central anteriormente referida: teologicamente falando, donde nasce o conflito que lavra na própria carne do leigo, quando ele trata de ordenar, segundo Deus, as questões temporais? (LG 31)

Utilizando alguns materiais teológicos de qualidade reconhecida, usamos esses princípios a fim de iluminar a nossa situação e conseguirmos, assim, um diagnóstico global do conflito que se coloca ao leigo cristão em virtude da sua dupla pertença à Igreja e ao mundo.


O CONFLITO DA DUPLA PERTENÇA

A relação dialética entre o momento da fé e o momento da secularidade vivido no coração da vocação laical traduz-se num autêntico conflito que requer um esclarecimento cuidado e com tempo. Deverá ter em atenção os seguintes pontos.

Clarificação conceptual prévia: o que é isso de «o temporal»?

Ainda há pouco dissemos que o âmbito específico da actuação do leigo é a realidade temporal. Ora, «temporal» não se opõe a «espiritual», mas ao «escatológico». O temporal é da ordem da existência humana: diz respeito à vida na sua relação com a esperança. O «espiritual» refere-se à obra transformadora do Espírito que, desde a ressurreição de Cristo, age na História humana.

A oposição é, de algum modo, dialéctica, na medida em que o além, o futuro, desponta já no aquém, ou seja, no presente. Não há nada de escatológico que não seja temporal. Na realidade histórica há algo que supera a história, donde, todo o crente — leigo ou não leigo — deve viver submetido à máxima: «já, todavia ainda não».

Mesmo que as valorizações sejam diferentes — os leigos destacam o «já» ao passo que os monges dão mais importância ao «todavia ainda não» — o grande problema está em viver a tensão entre ambos os polos. A vocação dos leigos e a vocação dos religiosos são duas formas diferentes mas complementares de realizar a missão eclesial.

Este conceito de «temporal» assim encarado deveria levar-nos a recuperar a História da Salvação em que a realidade secular, movida pelas suas leis próprias, fosse concebida como «lugar teológico»: nos limites da história do mundo acontece a missão específica da Igreja, missão estreitamente relacionada com o Reino de Deus.

Portanto, a partir desta perspectiva devemos estudar a relação e a distinção ou o duplo momento «secularidade-eclesialidade», «fé e vida» no século que caracteriza a vocação laical.

De que conflicto específico se trata?

Há, porém, um conflito prévio a este que queremos tratar aqui. Fazemos referência a ele, porque achamos que ele está na base de um outro conflito mais específico.

Referimo-nos àquele que é — o leigo consciente dá-se conta dele — fruto da profunda contradição entre a lógica do Evangelho ou da fé e a lógica do Sistema, da razão tecnológica, em suma, da Secularidade.

Este é o conflito inerente à vida de todos os crentes que levam a sério a sua pertença ao mundo. Faz ninho no interior do cristão que sente no seu coração o cruzamento dos valores do mundo com os valores próprios do evangelho.

Tendo isto como pano de fundo — este conflito que sempre existirá e que bem que podemos denominar de «cruz» —,referimo-nos, agora, a um conflito mais específico do momento histórico que vivemos, momento em que o leigo cristão quer ser considerado adulto, tanto na Igreja como no mundo. Este conflito faz com que o leigo chegue a ter a impressão de que muitas vezes nem é sujeito na Igreja (porque não o deixam agir como adulto dentro dela) nem é autónomo no mundo (porque a pertença eclesial o impede de comprometer-se plenamente no mundo).

Dito de outra maneira: a hierarquia coloca o leigo numa situação quase contraditória, ou pelo menos paradoxal, curiosamente no terreno que lhe é específico: no secular. E porquê? Porque, por um lado, considera que cada crente é sujeito histórico individual em âmbitos que considera matéria para debate colectivo e eclesial (os problemas sociais, económicos, culturais, políticos); por outro lado, define de forma muita estrita e sem margens para discussão os comportamentos dos leigos no âmbito da moral individual.

Tal conflito pode expressar-se de muitas maneiras. Assinalemos de seguida alguns binómios, sob os quais se esconde essa mesma problemática: evangelho-cultura, Igreja-sociedade, pertença eclesial-cidadania do mundo, fé-práxis histórica.

(…)

Joaquín Perea e colaboradores.
«Fieles a la tierra y constructores del Reino – el conflicto de los laicos cristianos», Instituto Diocesano de Teología y Pastoral, Bilbao, Desclée De Brouwer S. A., pp. 9-26, ISBN 84-330-0914-1.





«Fe y Justicia»