Giulio Girardi |
AMOR CRISTÃO E LUTA DE CLASSES
Os privilegiados do sistema capitalista
vigente procuram defender esse sistema, pelo que, para destruir o sistema, há
que o combater. Nesta batalha, um dos aspectos mais importantes é a luta de
classes. Talvez, na situação social actual, seja necessário repensar a tese
segundo a qual o papel revolucionário principal incumbe a uma determinada
classe, pelo que a questão mais importante talvez seja integrar a luta de
classes numa perspectiva mais ampla: os que defendem o sistema versus os que
rejeitam o sistema. Mesmo assim, a questão que nos incomoda mantém-se
intocável: como
conciliar o amor com a luta de classes?
Se devemos amar todos os homens, como
lutar contra uma parte deles? O ideal do amor, não será, porventura, um
elemento mais duma sociedade baseada numa harmonia
colaboracionista? O universalismo cristão será compatível com uma ética
classista?
Perguntas deste género são frequentemente
colocadas em ambientes cristãos, ao mesmo tempo que, ao método da «luta de
classes» – classificado pejorativamente como um "método marxista" –, se
contrapõe um «interclassismo cristão».
A afirmação plena do amor e a superação da
luta de classes constituem, certamente – como já se disse atrás – uma dimensão
essencial do ideal da cidade futura, não apenas para o cristão, mas
também para o marxista, que também aspira a uma sociedade sem classes.
Ora, o problema em debate não deve ser em
que consistirá esse ideal [«cidade futura»],
mas como se deve trabalhar para realizar esse ideal. Não se trata de inquirir
sobre o modo como o amor actuará na sociedade futura, mas na actual. Uma acção
realista deve adequar os seus métodos às situações concretas e não a situações
imaginárias. Não
é aceitável um dualismo entre leis morais e possibilidades históricas.
Portanto, a nossa questão antes de ser
ética é histórica: quer queiram quer não, a luta dá-se na
história. Não podemos escolher entre admitir ou não admitir a luta de classes,
mas saber de que lado nos colocarmos. A superação da luta passa necessariamente pela luta.
Negar este facto ou «fazer de conta que ele não existe» é, ao cabo e ao resto,
colocar-se do lado da ordem constituída, do lado dos poderosos. Não se pode
amar os pobres seriamente sem lutar a seu lado. Quem não está a favor dos
pobres está contra os pobres.
Sem dúvida que o Evangelho manda que até amemos
os nossos inimigos, mas não nos diz que não os tenhamos ou não os combatamos.
De facto, os evangelhos nunca poderiam dizer tal coisa, porque não se pode amar
no concreto sem nunca se ter pelo menos alguns inimigos. Pelo que, dado que os
evangelhos nos impelem a amar a todos, somos forçados a abandonar a neutralidade, a
criar inimigos e a combatê-los. Assim, paradoxalmente, a luta de classes não
apenas não contradiz a universalidade do amor, como se torna numa exigência
desse mesmo amor universal.
O cristão deve amar a todos, mas não a todos do mesmo modo: ama-se o oprimido,
defendendo-o e libertando-o; ama-se o opressor, acusando-o e combatendo-o. O
amor exige que lutemos a fim de libertar todos os que vivem em condição de
pecado objectivo. A libertação
dos pobres e dos ricos acontece ao mesmo tempo [ao longo do mesmo processo].
A luta de que falamos deve ser sistemática, revolucionária e
internacional. Não pode resumir-se a uma simples tomada de consciência
de uma situação conflitual pontual, nem de uma reacção ocasional diante de
abusos ocasionais. A uma injustiça incorporada no sistema deve ser dada uma resposta sistémica,
ou seja, uma resposta baseada na solidariedade organizada das massas e
orientada para um objectivo global: o da libertação.
É certo que existe um tipo de luta que não
é revolucionário, mas reformista. Em vez de uma alternativa ao sistema,
aquilo que ela procura é conseguir, para os trabalhadores, melhores posições dentro
do sistema. Não há dúvida que aceitar definitivamente o papel de «oposição de
sua majestade», circunscrevendo a luta aos limites sindicais significa, para os
trabalhadores, contribuir para uma racionalização de um sistema corrompido, e,
para os proletários das regiões tecnologicamente mais avançadas, alienarem-se
ao lado dos patrões e abandonarem os seus companheiros de destino. Por isso
mesmo, a autenticidade da luta de classes é definida, a longo prazo, pelos seus
objectivos revolucionários.
Contudo, a universalidade do amor que
desencadeia a luta de classes impõe a cada ser humano que não se considere
livre enquanto existir um irmão seu que esteja escravo. A luta de libertação,
ainda que se desenrole num terreno local e com objectivos intermédios parciais,
atraiçoar-se-ia a si mesma se não aspirasse a converter-se em mundial.
Como é possível que entre as massas cristãs
tenha crescido – e ainda exista – a sensação de oposição entre amor e luta de
classes? Para lá das causas ligadas a uma versão individualista e
«contemplativa» do cristianismo a que já fizemos referência, creio que há que
assinalar a intuição acerca da constitucional ambiguidade de todo o tipo de
luta humana. Efectivamente, ocorre em qualquer luta, no plano psicológico e
sociológico, uma certa lógica que gravita em torno do ódio, ou, pelo menos, da
hostilidade interior. Isso desencadeia antipatias, ressentimentos, rivalidades
pessoais ou de grupo, formas instintivas de agressividade, o que favorece uma
moral sectária predisposta a qualquer atitude ou instrumento. Em suma: a guerra
tende sempre a converter-se em total e a exigir uma mobilização geral.
Por conseguinte, a luta de classes está
revestida de uma certa ambiguidade moral: o seu valor e a sua real incidência
revolucionária dependem também do contexto em que é assumida e dos métodos que
são empregues. Verdadeiramente revolucionário é somente o amor: o vício
radical do sistema é o egoísmo e enquanto este não for atacado
ele tenderá a falsear o sentido de todas as transformações estruturais. O amor é que
desencadeia a luta, mas também é quem a julga. A distinção entre
luta e ódio, se teoricamente é bastante óbvia, psicologicamente é uma lenta e
fastidiosa conquista: pressupõe uma grande maturidade humana. É por isso que é
necessário que o cristão mantenha, na luta de classes, uma constante capacidade
de autocrítica face aos fins e aos meios que se usem. Importa que seja uma
contestação a partir do seu interior não para neutralizar a luta mas para a
tornar mais autêntica e vigorosa. Se é verdade que luta sem amor se converte em
algo estéril e contrarrevolucionária, o amor sem luta é ilusório e serve para
mascarar o egoísmo e a preguiça. Não existe
educação para a paz sem educação para a luta. A paz não pode ser
fruto da resignação dos escravos, mas da libertação dos escravos.
A ambiguidade constitutiva da luta é
habilmente explorada pelos privilegiados do sistema, os quais a procuram
apresentar com uma face obscura, anárquica e sanguinária. Também aqui como em
outros domínios, a reacção dos cristãos continua a estar fortemente
condicionada pelos esquemas da cultura dominante.
É por isso que a exortação cristã sobre o
amor provoca frequentemente um sentimento de desconfiança e isso surge aos
olhos dos outros como moralista, ilusório e alienante. Na verdade, acaba por o
ser, na medida em que é uma exortação separada da luta ou frequentemente em
oposição à luta. Porém, tal exortação deixa imediatamente de ser moralista,
ilusória e alienante quando se converte em motor dessa luta. A missão histórica
do cristianismo não é opor-se à luta, mas potenciá-la e garantir a sua autenticidade
animando-a com o espírito do amor.
O carácter militante da vida e do amor
cristão não é novidade alguma. No plano
histórico, não é possível promover o bem sem combater o mal. Porém,
este belicismo foi, através da história, assumindo diversas formulações, à medida
que a consciência ética e religiosa ia mudando. Algumas das suas expressões,
tal como as guerras santas, as cruzadas, as santas alianças, a repressão
violenta das heresias, a inquisição, a atitude polémica da teologia e da
filosofia perante outras confissões, religiões ou ideologias parecem-nos hoje
em dia estranhas e alheias às exigências profundas do cristianismo. Por outro
lado, uma nova tomada de consciência das formas que o pecado assume no mundo de
hoje prescreve a esta luta novos objectivos e novos métodos. De uma «defesa dos
direitos de Deus» esta luta passa agora à defesa dos direitos do ser
humano, especialmente dos mais pobres. Secularização? Certamente, mas também
maturação de um sentido religioso mais profundo, individuação dos mais autênticos
«direitos de Deus». Assim, muitos cristãos que no passado nunca estariam
dispostos a dar a vida pela defesa dos "lugares santos" libertando-os
dos «infiéis», estão dispostos, agora, a dar a sua vida para salvar da miséria
irmãos que sofrem.
Perceber esta união histórica entre amor e
luta nas novas formas impostas pela nossa época é uma das componentes
essenciais de uma consciência revolucionária.
Um aspecto da luta de classes demasiado
preocupante para um cristão é que ela divide a Igreja, quer a católica, quer as
diversas confissões religiosas. Pior: dada a urgência dos problemas que ela tem
de gerir, aquela divisão poderá ser vivida com maior intensidade emotiva que a
unidade da fé; e, também é terrível, por nos sentirmos mais próximos dos que
estão do nosso lado, na luta, do que dos nossos companheiros de fé.
Este problema é um aspecto particular que
pertence a um outro mais geral: a convivência, no seio do cristianismo, de
seres humanos que o interpretam e, portanto, o vivem, em sentidos profundamente
diversos. O pluralismo, como consequência de
múltiplas orientações filosóficas e teológicas, não é hoje em dia algo apenas
puramente teórico, mas compromete com
atitudes de fundo na vida pessoal e social. No preciso momento em
que o diálogo se revela possível e fecundo com seres humanos de outras
confissões, religiões e ideologias, paradoxalmente parece tornar-se impossível
com os companheiros da mesma fé que a nossa. Actualmente, este é o problema da
Igreja no seu todo, de todas as instituições e de todas as comunidades. A
grande dificuldade da Igreja não está em dialogar com «os outros», mas em
dialogarmos entre nós.
Esta questão da luta de classes é
particularmente dramática. Quando um cristão se une na luta a tantos não
cristãos e não crentes, separa-se de muitos cristãos, divide a Igreja. Propugnar a luta
de classes significa propugnar a luta – e não só o pluralismo – na Igreja; significa armar cristãos contra
cristãos; significa colocar em crise multidões inteiras de fiéis que assim
sentem que a Igreja não está com eles e se passou para o lado do inimigo;
significa levantar novas barreiras entre os crentes, precisamente na altura em
que, depois de séculos de espera, se vêem cair as antigas; significa destruir,
aos olhos do mundo, o sinal que incansavelmente se vinha reconstruindo. Será
necessário renunciar à luta de classes para não quebrar a unidade entre os
cristãos? O amor aos pobres estará, portanto, em confronto com o amor à Igreja?
Estas interrogações não podem ser
minimizadas como se se tratassem de divergências secundárias entre pessoas que
concordam no «essencial». Tudo depende daquilo que se considere essencial, mas
o que divide é precisamente o essencial. É difícil negar que, quando os
cristãos se colocam dum lado ou do outro do conflito social, os cristãos estão
a dar ao cristianismo no seu todo e ao próprio nome de Deus um significado
"distinto".
Mas, também aqui, a questão, antes de ser religiosa ou ética,
é histórica. O facto de haver cristãos que adiram à luta de classes,
isso não significa que introduzam divisão na Igreja, mas que estão conscientes
duma profunda divisão previamente existente: cristãos, há-os dos dois lados da
barricada - os que estão do lado dos pobres e os cristãos que estão do lado dos
ricos. A visão que têm do cristianismo está condicionada por esta situação e,
além do mais, esta situação contribui a torná-la mais consistente. Uma vez
mais, a questão não está em "combater cristãos", mas "que
cristãos combater". Tolerar opressores porque são cristãos significa –
porque são cristãos – renunciar a condenar e a combater o seu pecado objectivo
e, portanto, significa ser cúmplices com esse pecado. Seria uma aliança entre
trono e altar, uma forma de alienação religiosa. Por outro lado, lutar contra
pessoas e estruturas que legitimam, com a sua condição cristã, a manutenção do
social, para além de ser um dever ético, é um dever religioso. Libertar cristãos ricos dos seus
privilégios é criar as condições efectivas para uma fidelidade ao evangelho, a
qual, face à sua condição de privilégio, será objectivamente irrealizável.
Quanto às atitudes subjectivas, só Deus é juiz.
Esta luta de classe não só é exigida por
amor aos seres humanos como também por amor a Cristo e à Igreja cujo nome deve
ser urgentemente dissociado de todo o tipo de escravidão social e de todas as
versões de religiosidade que canonizam essa escravidão. Esta é a causa do drama
que se desencadeia onde quer que a Igreja institucional esteja comprometida com
os poderosos, enquanto os fiéis e os sacerdotes estejam na dilacerante condição
de terem que optar pela fidelidade aos pobres ou pela fidelidade às
instituições eclesiásticas, e se interrogarem sobre qual
é a opção que lhes impõe o amor a Cristo.
Seja como for, uma unidade assim
conquistada a tal preço, seria sinal de quê? De tudo menos do amor, de tudo
menos sinal de Cristo. Paradoxalmente é a divisão da Igreja que, neste momento, se constitui em
«sinal». Com efeito, o facto de a Igreja estar em condição de rotura
coloca o problema de Cristo e da Igreja em termos novos e enche de esperança aqueles
que estavam habituados a pensar numa Igreja compacta em matéria de ordem
instituída e a encontrar, nesta «unidade», razões para «escândalo».
O problema da unidade da Igreja não pode
ser dissociado do problema da unidade do mundo. Os dois caminhos de unidade
passam pela libertação dos pobres.
Giulio
Girardi, [1926-2012]
padre salesiano, teólogo, filósofo, perito convidado ao Concílio Vaticano II,
professor universitário de renome mundial, promotor do diálogo entre cristãos e
marxistas.
[pp. 60]