teologia para leigos

26 de agosto de 2016

AMOR CRISTÃO E LUTA DE CLASSES [GIULIO GIRARDI]

Giulio Girardi



AMOR CRISTÃO E LUTA DE CLASSES


Os privilegiados do sistema capitalista vigente procuram defender esse sistema, pelo que, para destruir o sistema, há que o combater. Nesta batalha, um dos aspectos mais importantes é a luta de classes. Talvez, na situação social actual, seja necessário repensar a tese segundo a qual o papel revolucionário principal incumbe a uma determinada classe, pelo que a questão mais importante talvez seja integrar a luta de classes numa perspectiva mais ampla: os que defendem o sistema versus os que rejeitam o sistema. Mesmo assim, a questão que nos incomoda mantém-se intocável: como conciliar o amor com a luta de classes? Se devemos amar todos os homens, como lutar contra uma parte deles? O ideal do amor, não será, porventura, um elemento mais duma sociedade baseada numa harmonia colaboracionista? O universalismo cristão será compatível com uma ética classista?

Perguntas deste género são frequentemente colocadas em ambientes cristãos, ao mesmo tempo que, ao método da «luta de classes» – classificado pejorativamente como um "método marxista" –, se contrapõe um «interclassismo cristão».

A afirmação plena do amor e a superação da luta de classes constituem, certamente – como já se disse atrás – uma dimensão essencial do ideal da cidade futura, não apenas para o cristão, mas também para o marxista, que também aspira a uma sociedade sem classes.

Ora, o problema em debate não deve ser em que consistirá esse ideal [«cidade futura»], mas como se deve trabalhar para realizar esse ideal. Não se trata de inquirir sobre o modo como o amor actuará na sociedade futura, mas na actual. Uma acção realista deve adequar os seus métodos às situações concretas e não a situações imaginárias. Não é aceitável um dualismo entre leis morais e possibilidades históricas.

Portanto, a nossa questão antes de ser ética é histórica: quer queiram quer não, a luta dá-se na história. Não podemos escolher entre admitir ou não admitir a luta de classes, mas saber de que lado nos colocarmos. A superação da luta passa necessariamente pela luta. Negar este facto ou «fazer de conta que ele não existe» é, ao cabo e ao resto, colocar-se do lado da ordem constituída, do lado dos poderosos. Não se pode amar os pobres seriamente sem lutar a seu lado. Quem não está a favor dos pobres está contra os pobres.

Sem dúvida que o Evangelho manda que até amemos os nossos inimigos, mas não nos diz que não os tenhamos ou não os combatamos. De facto, os evangelhos nunca poderiam dizer tal coisa, porque não se pode amar no concreto sem nunca se ter pelo menos alguns inimigos. Pelo que, dado que os evangelhos nos impelem a amar a todos, somos forçados a abandonar a neutralidade, a criar inimigos e a combatê-los. Assim, paradoxalmente, a luta de classes não apenas não contradiz a universalidade do amor, como se torna numa exigência desse mesmo amor universal.

O cristão deve amar a todos, mas não a todos do mesmo modo: ama-se o oprimido, defendendo-o e libertando-o; ama-se o opressor, acusando-o e combatendo-o. O amor exige que lutemos a fim de libertar todos os que vivem em condição de pecado objectivo. A libertação dos pobres e dos ricos acontece ao mesmo tempo [ao longo do mesmo processo].

A luta de que falamos deve ser sistemática, revolucionária e internacional. Não pode resumir-se a uma simples tomada de consciência de uma situação conflitual pontual, nem de uma reacção ocasional diante de abusos ocasionais. A uma injustiça incorporada no sistema deve ser dada uma resposta sistémica, ou seja, uma resposta baseada na solidariedade organizada das massas e orientada para um objectivo global: o da libertação.

É certo que existe um tipo de luta que não é revolucionário, mas reformista. Em vez de uma alternativa ao sistema, aquilo que ela procura é conseguir, para os trabalhadores, melhores posições dentro do sistema. Não há dúvida que aceitar definitivamente o papel de «oposição de sua majestade», circunscrevendo a luta aos limites sindicais significa, para os trabalhadores, contribuir para uma racionalização de um sistema corrompido, e, para os proletários das regiões tecnologicamente mais avançadas, alienarem-se ao lado dos patrões e abandonarem os seus companheiros de destino. Por isso mesmo, a autenticidade da luta de classes é definida, a longo prazo, pelos seus objectivos revolucionários.

Contudo, a universalidade do amor que desencadeia a luta de classes impõe a cada ser humano que não se considere livre enquanto existir um irmão seu que esteja escravo. A luta de libertação, ainda que se desenrole num terreno local e com objectivos intermédios parciais, atraiçoar-se-ia a si mesma se não aspirasse a converter-se em mundial.

Como é possível que entre as massas cristãs tenha crescido – e ainda exista – a sensação de oposição entre amor e luta de classes? Para lá das causas ligadas a uma versão individualista e «contemplativa» do cristianismo a que já fizemos referência, creio que há que assinalar a intuição acerca da constitucional ambiguidade de todo o tipo de luta humana. Efectivamente, ocorre em qualquer luta, no plano psicológico e sociológico, uma certa lógica que gravita em torno do ódio, ou, pelo menos, da hostilidade interior. Isso desencadeia antipatias, ressentimentos, rivalidades pessoais ou de grupo, formas instintivas de agressividade, o que favorece uma moral sectária predisposta a qualquer atitude ou instrumento. Em suma: a guerra tende sempre a converter-se em total e a exigir uma mobilização geral.

Por conseguinte, a luta de classes está revestida de uma certa ambiguidade moral: o seu valor e a sua real incidência revolucionária dependem também do contexto em que é assumida e dos métodos que são empregues. Verdadeiramente revolucionário é somente o amor: o vício radical do sistema é o egoísmo e enquanto este não for atacado ele tenderá a falsear o sentido de todas as transformações estruturais. O amor é que desencadeia a luta, mas também é quem a julga. A distinção entre luta e ódio, se teoricamente é bastante óbvia, psicologicamente é uma lenta e fastidiosa conquista: pressupõe uma grande maturidade humana. É por isso que é necessário que o cristão mantenha, na luta de classes, uma constante capacidade de autocrítica face aos fins e aos meios que se usem. Importa que seja uma contestação a partir do seu interior não para neutralizar a luta mas para a tornar mais autêntica e vigorosa. Se é verdade que luta sem amor se converte em algo estéril e contrarrevolucionária, o amor sem luta é ilusório e serve para mascarar o egoísmo e a preguiça. Não existe educação para a paz sem educação para a luta. A paz não pode ser fruto da resignação dos escravos, mas da libertação dos escravos.

A ambiguidade constitutiva da luta é habilmente explorada pelos privilegiados do sistema, os quais a procuram apresentar com uma face obscura, anárquica e sanguinária. Também aqui como em outros domínios, a reacção dos cristãos continua a estar fortemente condicionada pelos esquemas da cultura dominante.

É por isso que a exortação cristã sobre o amor provoca frequentemente um sentimento de desconfiança e isso surge aos olhos dos outros como moralista, ilusório e alienante. Na verdade, acaba por o ser, na medida em que é uma exortação separada da luta ou frequentemente em oposição à luta. Porém, tal exortação deixa imediatamente de ser moralista, ilusória e alienante quando se converte em motor dessa luta. A missão histórica do cristianismo não é opor-se à luta, mas potenciá-la e garantir a sua autenticidade animando-a com o espírito do amor.

O carácter militante da vida e do amor cristão não é novidade alguma. No plano histórico, não é possível promover o bem sem combater o mal. Porém, este belicismo foi, através da história, assumindo diversas formulações, à medida que a consciência ética e religiosa ia mudando. Algumas das suas expressões, tal como as guerras santas, as cruzadas, as santas alianças, a repressão violenta das heresias, a inquisição, a atitude polémica da teologia e da filosofia perante outras confissões, religiões ou ideologias parecem-nos hoje em dia estranhas e alheias às exigências profundas do cristianismo. Por outro lado, uma nova tomada de consciência das formas que o pecado assume no mundo de hoje prescreve a esta luta novos objectivos e novos métodos. De uma «defesa dos direitos de Deus» esta luta passa agora à defesa dos direitos do ser humano, especialmente dos mais pobres. Secularização? Certamente, mas também maturação de um sentido religioso mais profundo, individuação dos mais autênticos «direitos de Deus». Assim, muitos cristãos que no passado nunca estariam dispostos a dar a vida pela defesa dos "lugares santos" libertando-os dos «infiéis», estão dispostos, agora, a dar a sua vida para salvar da miséria irmãos que sofrem.

Perceber esta união histórica entre amor e luta nas novas formas impostas pela nossa época é uma das componentes essenciais de uma consciência revolucionária.

Um aspecto da luta de classes demasiado preocupante para um cristão é que ela divide a Igreja, quer a católica, quer as diversas confissões religiosas. Pior: dada a urgência dos problemas que ela tem de gerir, aquela divisão poderá ser vivida com maior intensidade emotiva que a unidade da fé; e, também é terrível, por nos sentirmos mais próximos dos que estão do nosso lado, na luta, do que dos nossos companheiros de fé.

Este problema é um aspecto particular que pertence a um outro mais geral: a convivência, no seio do cristianismo, de seres humanos que o interpretam e, portanto, o vivem, em sentidos profundamente diversos. O pluralismo, como consequência de múltiplas orientações filosóficas e teológicas, não é hoje em dia algo apenas puramente teórico, mas compromete com atitudes de fundo na vida pessoal e social. No preciso momento em que o diálogo se revela possível e fecundo com seres humanos de outras confissões, religiões e ideologias, paradoxalmente parece tornar-se impossível com os companheiros da mesma fé que a nossa. Actualmente, este é o problema da Igreja no seu todo, de todas as instituições e de todas as comunidades. A grande dificuldade da Igreja não está em dialogar com «os outros», mas em dialogarmos entre nós.

Esta questão da luta de classes é particularmente dramática. Quando um cristão se une na luta a tantos não cristãos e não crentes, separa-se de muitos cristãos, divide a Igreja. Propugnar a luta de classes significa propugnar a luta – e não só o pluralismo – na Igreja; significa armar cristãos contra cristãos; significa colocar em crise multidões inteiras de fiéis que assim sentem que a Igreja não está com eles e se passou para o lado do inimigo; significa levantar novas barreiras entre os crentes, precisamente na altura em que, depois de séculos de espera, se vêem cair as antigas; significa destruir, aos olhos do mundo, o sinal que incansavelmente se vinha reconstruindo. Será necessário renunciar à luta de classes para não quebrar a unidade entre os cristãos? O amor aos pobres estará, portanto, em confronto com o amor à Igreja?

Estas interrogações não podem ser minimizadas como se se tratassem de divergências secundárias entre pessoas que concordam no «essencial». Tudo depende daquilo que se considere essencial, mas o que divide é precisamente o essencial. É difícil negar que, quando os cristãos se colocam dum lado ou do outro do conflito social, os cristãos estão a dar ao cristianismo no seu todo e ao próprio nome de Deus um significado "distinto".

Mas, também aqui, a questão, antes de ser religiosa ou ética, é histórica. O facto de haver cristãos que adiram à luta de classes, isso não significa que introduzam divisão na Igreja, mas que estão conscientes duma profunda divisão previamente existente: cristãos, há-os dos dois lados da barricada - os que estão do lado dos pobres e os cristãos que estão do lado dos ricos. A visão que têm do cristianismo está condicionada por esta situação e, além do mais, esta situação contribui a torná-la mais consistente. Uma vez mais, a questão não está em "combater cristãos", mas "que cristãos combater". Tolerar opressores porque são cristãos significa – porque são cristãos – renunciar a condenar e a combater o seu pecado objectivo e, portanto, significa ser cúmplices com esse pecado. Seria uma aliança entre trono e altar, uma forma de alienação religiosa. Por outro lado, lutar contra pessoas e estruturas que legitimam, com a sua condição cristã, a manutenção do social, para além de ser um dever ético, é um dever religioso. Libertar cristãos ricos dos seus privilégios é criar as condições efectivas para uma fidelidade ao evangelho, a qual, face à sua condição de privilégio, será objectivamente irrealizável. Quanto às atitudes subjectivas, só Deus é juiz.

Esta luta de classe não só é exigida por amor aos seres humanos como também por amor a Cristo e à Igreja cujo nome deve ser urgentemente dissociado de todo o tipo de escravidão social e de todas as versões de religiosidade que canonizam essa escravidão. Esta é a causa do drama que se desencadeia onde quer que a Igreja institucional esteja comprometida com os poderosos, enquanto os fiéis e os sacerdotes estejam na dilacerante condição de terem que optar pela fidelidade aos pobres ou pela fidelidade às instituições eclesiásticas, e se interrogarem sobre qual é a opção que lhes impõe o amor a Cristo.

Seja como for, uma unidade assim conquistada a tal preço, seria sinal de quê? De tudo menos do amor, de tudo menos sinal de Cristo. Paradoxalmente é a divisão da Igreja que, neste momento, se constitui em «sinal». Com efeito, o facto de a Igreja estar em condição de rotura coloca o problema de Cristo e da Igreja em termos novos e enche de esperança aqueles que estavam habituados a pensar numa Igreja compacta em matéria de ordem instituída e a encontrar, nesta «unidade», razões para «escândalo».

O problema da unidade da Igreja não pode ser dissociado do problema da unidade do mundo. Os dois caminhos de unidade passam pela libertação dos pobres.

Giulio Girardi, [1926-2012] padre salesiano, teólogo, filósofo, perito convidado ao Concílio Vaticano II, professor universitário de renome mundial, promotor do diálogo entre cristãos e marxistas.


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