teologia para leigos

27 de outubro de 2010

COM QUE PÃO REPARTE O SEU SORRISO?

A Sala de Cima, o lugar do lume
Lucas 22:7-16 – (Preparação da Ceia Pascal) - Chegou o dia dos Ázimos, em que devia sacrificar-se o cordeiro, e Jesus enviou Pedro e João, dizendo: «Ide preparar-nos o necessário para comermos a ceia pascal.» Perguntaram-lhe: «Onde queres que a preparemos?» Respondeu: «Ao entrardes na cidade, virá ao vosso encontro um homem transportando uma bilha de água. Segui-o até à casa em que entrar e dizei ao dono da casa: ‘O Mestre manda dizer-te: Onde é a sala, em que hei-de comer a ceia pascal com os meus discípulos?’ Mostrar-vos-á uma grande sala mobilada, no andar de cima. Fazei aí os preparativos.» Partiram, encontraram tudo como lhes tinha dito e prepararam a Páscoa.Quando chegou a hora, pôs-se à mesa e os Apóstolos com Ele. Disse-lhes: «Tenho ardentemente desejado comer esta Páscoa convosco, antes de padecer, pois digo-vos que já não a voltarei a comer até ela ter pleno cumprimento no Reino de Deus.» [Bíblia, da Difusora Bíblica]

Actos dos Apóstolos 1:4-13 – (O grupo dos Apóstolos - Igreja de Jerusalém) - No decurso de uma refeição que partilhava com eles, ordenou-lhes que não se afastassem de Jerusalém, mas que esperassem lá o Prometido do Pai, «do qual - disse Ele - me ouvistes falar. João baptizava em água, mas, dentro de pouco tempo, vós sereis baptizados no Espírito Santo.» Estavam todos reunidos, quando lhe perguntaram: «Senhor, é agora que vais restaurar o Reino de Israel?» Respondeu-lhes: «Não vos compete saber os tempos nem os momentos que o Pai fixou com a sua autoridade. Mas ides receber uma força, a do Espírito Santo, que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria e até aos confins do mundo.» Dito isto, elevou-se à vista deles e uma nuvem subtraiu-o a seus olhos. E como estavam com os olhos fixos no céu, para onde Jesus se afastava, surgiram de repente dois homens vestidos de branco, que lhes disseram: «Homens da Galileia, porque estais assim a olhar para o céu? Esse Jesus que vos foi arrebatado para o Céu virá da mesma maneira, como agora o vistes partir para o Céu. Desceram, então, do monte chamado das Oliveiras, situado perto de Jerusalém, à distância de uma caminhada de sábado, e foram para Jerusalém. Quando chegaram à cidade, subiram para a sala de cima, no lugar onde se encontravam habitualmente. Estavam lá: Pedro, João, Tiago, André, Filipe, Tomé, Bartolomeu, Mateus, Tiago, filho de Alfeu, Simão, o Zelota, e Judas, filho de Tiago. [Bíblia, da Difusora Bíblica]
A Sala de Cima, o lugar do lume
Sempre que as coisas se complicam vou à procura de pistas, sinais, tento refazer a pergunta correcta: «Para quê?», e  virar a cara à pergunta errada: «Porquê?». Não admira, portanto, que me volte para a fonte privilegiada de sentido − a experiência cristã! − quando se pressente que é chegada, mais uma vez, a hora. Há electricidade no ar!, e isso é por de mais evidente, 36 anos depois da ‘revolução dos cravos’.
A experiência cristã (perdão: qualquer experiência humana com H-elástico-e-grande) se impõe a partir de: (1) a percepção exacta da tensão na corda da hora e (2) a necessidade inevitável da explosão do acontecer.
Estes dois textos bíblicos, (partamos do princípio: do punho do mesmo autor) do médico Lucas, possuem Hora e Acção que baste.
Na vida, frequentemente, somos abalrroados pela tensão do momento, atropelados pela agitação ou ruído − torna-se, portanto, difícil o recuo que nos focalize bem a realidade de aqui, a que importa. Somos seres-amantes e a paixão só pode ser abrasadora (aqui – não há um lugar outro para esta lareira…). Bem-aventurados os apaixonados de aqui, pois se «nem quentes, nem frios», se mornos e insípidos, se gelatinosos, se ‘simpáticos’ mas muito diplomáticos, se canas maleáveis a qualquer brisa, se medrosos, se lunáticos, se espiritualistas/irrealistas, se desincarnados, se angelicais, se híbridos, se castos, se conciliadores do inconciliável, se legalistas e patrões mais tarde ou mais cedo serão (seremos) «cuspidos da boca de Deus»… por falta de ‘profetismo-qb’ − sol sem sal…
Nestes dois textos bíblicos, há vários motes que perturbam a nossa queda para adocicar: ‘chegou o dia’, ‘porque estais assim a olhar?’, etc. Porém, cativa-me, sobretudo, o enigma do actor anónimo, o indiferente-sem-nome. Ele é somente «um homem transportando uma bilha de água». Sempre vi Lucas desenhando a sua narrativa como um «seguimento» de muitos atrás de Jesus, rumo a Jerusalém. Só agora (em que alinho as primeiras expressões para este espaço de ‘Graça & Justiça’) me dou conta que é a esse ‘homem sem nome’ que me sinto, extemporaneamente, atraído. É provável que ele nunca tenha existido ou seja apenas uma figura de estilo: pois que seja. Até é bom que assim seja − a figura menor destes relatos (de fugida no primeiro e, completamente na sombra, no segundo relato) − o que apenas foi buscar água e de quem outros (nós) se serviram para encontrar a Sala de Cima, o lugar do lume. Em pessoa, ele é, precisamente, aquela antecipação do Fogo, a luz rasante de que nos vamos sentindo necessitados para aquecer os corações diante dum Inverno repetitivo.
Acaso murmura: «só os Pobres salvarão os Ricos»? Onde esquenta, ele, a marmita da esperança? Com que pão reparte o seu sorriso? O álcool da alegria, bebe-o em que vazante olhar? A luz, luz? Em que noite combura? Com que mão agarra o dia? Saúda a sombra ou o sol que a recorta? Que pássaro solta, ou prende, quando o outono cai? Paga impostos? Sabe meter os dedos aos cantos da boca e assobia? O silêncio dos seus passos, acaso fala? E ouve-se? Que dizem eles? Que inverno matura seus nós, veios e ilhós? Floresce pela primavera? Mas, que primavera? Acaso o fotógrafo o retrata, reclinado sobre o ombro? Quantos meses tem seu ano?
No anonimato deste personagem, que foi à água e agora vem, abre-se um horizonte, sobretudo porque dirigiu seus passos e se deixou sumir na sombra da ausência que afunda. E enraíza. E regressa ao veio e depois ao ventre, no poço. No anonimato deste homem há uma palavra que é um olhar vasto e um socalco mais fundo − um horizonte, um espaço que alarga, feito de altura no coração exacto da atenção mais tocante e emudecida.

«Ao entrardes na cidade, virá ao vosso encontro…».
«Segui-o até à casa…».
«Senhor, é agora…?».
«Quando chegaram à cidade, subiram…».

Olhar assim, com o rosto junto ao rosto da janela da sala de cima é delimitar as cintas de todos os covis e soltar o brilho ou a luz de todos os recantos súbitos. É a novidade de quem observa quem se passeia ao sol face voltada ao vento, num acabamento próprio de números vivos que deambulam, livres, sem medo e dignos, inflexíveis ao golpe das horas. Multiplicando múltiplos.

(que farei,
que farei eu com este espaço que alarga?
Que alargue o ar, o gesto, a palavra e a própria morte…)


 TUDO É NÍTIDO. CONDIZ
com esta felicidade
de estar a ver o confim
de cada coisa. Da tarde.
Não há para além. Há aqui.
Um aqui que tudo sabe
por tudo envolver em si
e na sua dignidade.
Até a gaivota é feliz
no atropelo com que abre
o ponto azul a fugir,
não para além. Pelo grave
ritmo de levar o aqui
e levar também a tarde.

Fernando Echevarría [‘Epifanias’]

para todos, graça e justiça,
Graça & Justiça!, para todos…