PALAVRA INTRODUTÓRIA AO LEITOR
O objetivo do trabalho que se segue
foi o de reunir e colocar ao alcance dos agentes de pastoral e outras pessoas
interessadas alguns elementos da História da
Igreja dos três primeiros séculos, que se encontram espalhados por
publicações às vezes de difícil acesso. Na bibliografia, que está no final do
volume, indicamos as fontes consultadas, bem como os estudos que nos inspiraram
na redação destas páginas.
Tendo em atenção que o estudo se
limita aos três primeiros séculos, temos de justificar algumas incursões que
fizemos na história ulterior, ao tratar de determinadas figuras históricas ou
movimentos, sobretudo no parágrafo 2 do capítulo II, quando abordamos figuras
como Santo Efrém da Síria ou movimentos como o ‘ciclo missionário etíope’.
Agimos desta maneira por julgar que esses assuntos podem fornecer sugestões
para a nossa atual situação latino-americana. A mesma observação vale para a
"excursão" sobre a mística no parágrafo 3 do capítulo IV.
Usamos bastante os dados colhidos do
Novo Testamento, por serem de fácil acesso, em detrimento dos escritos
específicos dos Padres como Justino, Ireneu, Tertuliano, Clemente, Orígenes,
Hipólito, Cipriano, dos quais nem sempre conseguimos os relatos completos. Mas
pensamos que a grande maioria dos leitores está, neste particular, em condições
iguais à nossa e isso nos confortou na elaboração. Trabalhamos mais intensamente
com os pequenos textos das comunidades, relatados no parágrafo 2 do capítulo
III, do que com os tratados mais amplos, por nos parecer que aqueles
representam melhor a vida das comunidades do que estes.
Afinal, é pensamento nosso que os cristãos
de hoje, para estudar a História da Igreja nos três primeiros séculos, têm que
fazer um esforço no sentido de ‘saber menos’, isto é, de fazer abstracção do
impressionante sistema eclesiástico que se montou ulteriormente em cima da
Tradição cristã dos primeiros séculos. No início o cristianismo não era hegemónico,
mas vivia nas capilaridades mais recônditas da sociedade e se propagava
pelo testemunho de cada dia, entre amigos e vizinhos, nos contatos
pessoais, na pluriformidade do concreto[1].
Existe, na verdade, um
paralelismo surpreendente entre actual experiência das comunidades de base e as
primeiras comunidades cristãs. O pessoal da base não se engana quando exclama com
entusiasmo: "Os primeiros cristãos viviam assim [como nós]".
Foi para enraizar com maior firmeza essa memória histórica do povo cristão na
América Latina que estas páginas foram redigidas, com muito esforço.
Eduardo Hoornaert, Introdução a «Memória do Povo Cristão»,
Vozes (Brasil), Col. Teologia e Libertação, Série I: “Experiência de Deus e
Justiça”, 1986.
©
INTRODUÇÃO
Cristianismo e memória,
ou:
A História da Igreja
como ciência ao serviço da memória histórica do povo cristão
§ 1. CRISTIANISMO E MEMÓRIA
Em contraste com as outras religiões, o
judaísmo e o cristianismo são por excelência religiões
da memória, fundamentadas na recordação de factos históricos que ficam
rememorados ao longo dos tempos. Na sua obra póstuma “As Origens da História”[2], o
historiador inglês Herbert Butterfield demonstra como a consciência histórica
do povo judeu contrasta com a dos outros povos. Essa consciência baseia-se na
convicção de que o próprio Yahvé libertou o povo de Israel da dominação
egípcia, ideia que percorre todo o Antigo Testamento. O Êxodo possibilitou a formação
de uma memória coletiva no povo judeu que não tem igual nos outros povos, e de
uma religião baseada nesta memória. Para os israelitas a História não era
cíclica, baseada num eterno retorno das coisas e dos tempos, mas tinha uma linearidade
e era, por conseguinte, irreversível. Toda a
criação se dirige para um fim apocalíptico. Os judeus eram os primeiros
na História da humanidade a conceber a História como dirigida para um fim. Essa
concepção judia contrastava vivamente com o pensamento grego que era
essencialmente anti-histórico e baseado no "eterno retorno de situações
iguais", de sorte que - para os gregos - nada de realmente novo
acontecia sob o sol: “nihil novi sub sole”.
A filosofia grega se dirigia de preferência para o eterno e imutável. Os estoicos ensinavam
que incêndios periódicos destruíam tudo e que tudo
tinha que começar do nada, periodicamente. Quando os gregos, como
Heródoto e Tucídides, se interessavam pela História era para dela tirar lições
políticas. Podemos, por conseguinte, qualificar a historiografia grega de pragmática.
Ela não tocava no âmago da existência humana, não tinha uma dimensão religiosa.
O cristianismo herdou do judaísmo
o seu carácter memorial. Contudo, centrou
a sua memória na encarnação, vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus
Cristo, o Libertador não só do Egipto, - como fora Moisés - mas de
todas as formas de dominação. Em contraste com o judaísmo, no seio do qual nasceu,
o cristianismo coloca o centro da História em Cristo. Os judeus continuam esperando
o Messias, enquanto os cristãos já realizam no tempo o Reino de Deus iniciado
com Jesus. Para a visão histórica dos cristãos, há três momentos: a criação, o acontecimento
Jesus e a parusia. O olhar dos cristãos está fixo em Cristo.
Daí o tema cristão da esperança estar ligado ao tema da memória: a memória carrega a esperança, sem memória cristã desvanece
a esperança. Disso provém, entre os cristãos, a necessidade da
lembrança como tarefa religiosa fundamental, como se verifica no ensino cristão
que afinal é memória, na liturgia cristã que é rememoração. O ano litúrgico
comemora através dos tempos o evento Jesus: do Advento ao Pentecostes, passando
pelo Natal, pela Quaresma, Páscoa e Ascensão. O dia litúrgico comemora - a cada
missa celebrada - as palavras da grande lembrança: "Fazei
isto em memória de mim" (Lc 22,19). O calendário dos santos não
opera de maneira diferente, pois apresenta a memória dos santos, imitadores de
Cristo na prática diversificada dos tempos e dos espaços. Os calendários, os
martirológios, os livros memoriais (“libri memoriales”) da Idade Média,
as horas canônicas, tudo é rememoração.
Os cristãos bem sabem que sua religião fica em
pé ou cai com a veracidade de sua memória. Assim podemos compreender como desde
cedo eles procuraram substituir a memória puramente oral pela documentação
escrita. O escritor Ireneu de Lião, no final do século II, iá é testemunha desta
evolução. Mesmo assim os cristãos continuaram a prestigiar os idosos, que eram
homens da memória por excelência, sobremaneira úteis para a comunidade cristã.
Essa veneração pelos idosos atravessa toda a Idade Média e só desaparece com os
tempos modernos e com a autossuficiência das ciências modernas. Assim, o uso
das letras "foi descoberto para conservar a memória das coisas”, como se
dizia na Idade Média. Dizia-se também que "o aluno deve registar tudo na
sua memória" e que as três "dignidades" da alma, segundo Santo
Anselmo, eram a inteligência, a vontade e a memória. O
grande escolástico Santo Tomás de Aquino atribuiu eminente papel à memória no
estudo da teologia e elaborou sofisticados métodos mnemotécnicos.
Este cuidado cristão pela memória, afinal de
contas, provém especificamente das tradições rabínicas veiculadas nas sinagogas. Os rabinos avivavam a memória
através de expressões lapidares, parábolas, factos significativos, exemplos,
provérbios, comparações. O sistema religioso baseado na proliferação de
sinagogas numa vasta diáspora apresentava neste ponto vantagens diante do
sistema centralizado em torno do templo de Jerusalém, por arquivos e escritos,
no qual havia o perigo de os "donos da memória" se tornarem
"donos do esquecimento", isto é, no qual os compromissos dos detentores
do poder do templo com os donos do poder na sociedade como um todo
podiam comprometer a fidelidade da transmissão de uma
memória tão perigosa como era a da libertação da escravidão e do
poderio de uma potência estrangeira. Os
sacerdotes do templo podiam se lembrar de alguma coisa e esquecer muitas outras! As sinagogas estavam mais livres deste tipo
de manipulação da memória e conseguiram com meios precários preservar a mensagem
através dos tempos, aperfeiçoando técnicos de memorização e de comunicação. Jesus
usou admiravelmente os recursos rabínicos na sua comunicação com os apóstolos e
com o povo: ele era uma pessoa de fala penetrante e contundente, usava as
parábolas, as respostas fulminantes, as expressões tão lapidares que foram facilmente
registradas pelo seu público e conservadas até hoje. Ele reagiu contra
esquecimentos típicos por parte dos detentores do poder religioso: os silêncios, em torno da mulher, do
samaritano, do centurião, da prostituta, do estrangeiro, do publicano, dos “am ha'ares” ou "gente da terra" em
geral [gente comum], dos pobres e marginalizados. Jesus declarou em alta
voz que eles existem, que estão por aí e que vivemos no meio deles. Os esquecidos na memória social manipulada pelo Templo foram
lembrados por Jesus. A perspicácia de Jesus neste ponto era incrível
e permanece insuperada até os nossos dias, pois certos cristãos conseguiram
imitar a Jesus em certos pontos, mas fracassaram redondamente na imitação de
outros.
Os cristãos que conseguiram de maneira mais convincente realizar a prática de Jesus no seu tempo e no lugar onde viviam, sentiam a necessidade de preservar a memória. O santo mais simpático e mais importante da ldade Média, São Francisco de Assis, mandou escrever no seu testamento: "Para que em sinal da memória de minha bênção e de meu testamento eles (os irmãos) sempre se amem uns aos outros"[3].
Ora, a experiência vivida pelos cristãos mostrou de maneira convincente que a memória do evento Jesus não se transmite de maneira tranquila, que existe uma árdua luta pela memória cristã. Um estudo do século II demonstra que uma linguagem dura, ofensiva, odiosa invade a literatura cristã no referido século. Donde vem esta veemência? Manifestamente, da ânsia em preservar a memória cristã no meio de tradições sempre mais divergentes e confusas. Podemos seguir a evolução em Papias de Hierápolis (130 d.e.c.)[4], Hegesipo (154-166 d.e.c.)[5], Justino da segunda metade do século II[6] e lreneu de Lião, já no final do século[7]. Até Papias, a tradição oral ainda é a preferida pelos cristãos, pois ainda não se "canonizou" a tradição escrita. Papias se diz ouvinte do apóstolo João e colega de Policarpo de Esmirna, e o que recolhe deles não forma uma doutrina coesa, mas uma sequência de "ditos" (“logia”). Já Hegesipo revela uma nova preocupação diante das numerosas tradições aberrantes e apela para a tradição apostólica codificada. Justino também dá testemunho da insegurança entre os cristãos em relação à veracidade de sua memória. Ele se apoia nas memórias "que foram redigidas pelos apóstolos e por aqueles que os seguiram" (Diálogo, 103) e informa que estas lembranças dos apóstolos juntamente com os escritos dos profetas (que, para ele, constituem a Escritura Sagrada) são lidas e rememoradas nos serviços dominicais das comunidades (1 Apol. 67). Estas "lembranças" apostólicas recebem o nome de ‘evangelhos’. Percebe-se que a evolução vai no sentido da elaboração de textos escritos, sem desprezar a tradição oral. Finalmente, a evolução se completa com lreneu, que opta definitivamente pela tradição escrita. Foi sobretudo diante do desafio dos escritos dos marcionitas (Marcião de Sinope) que os cristãos foram forçados a pensar num cânone de escritos aceites por todos e que constituíssem um ponto seguro de referência. Desta forma lreneu já se encontra diante da memória cristã numa posição análoga à nossa: a referência é o cânone de livros do Novo Testamento, baseado nas memórias dos apóstolos, ou, dito de outro modo, na Tradição apostólica. Resta saber como essa Tradição se conserva inalterada, o que aprofundaremos ao tratarmos da comunidade de base. A Tradição apostólica codificada e escrita conviveu durante muito tempo com tradições elaboradas por grandes líderes heréticos como Marcião de Sinope ou Montano da Frígia. Foi só após o seu reconhecimento como lgreja imperial que o cristianismo passou a eliminar até aos últimos vestígios as numerosas "heresias" com as quais tinha convivido anteriormente. A "danação da memória" («damnatio memoriӕ») foi tão drástica que não conseguimos hoje ter em mãos uma só folha escrita por Marcião, considerado pai dos hereges. Mais tarde o sacerdote de Alexandria, Ario, (260-337), fundador do arianismo, foi vítima da mesma "danação da memória". Uma gravura medieval o apresenta ao lado de Judas e Lúcifer ao ser engolido pelo dragão do inferno, em baixo dos pés do Juiz Jesus Cristo. Ao cair no inferno Judas segura o cajado de apóstolo: trata-se de uma condenação cósmica, para todo o sempre. Essa reação muito violenta diante das heresias trouxe irreparáveis prejuízos para o nosso conhecimento das origens cristãs.
Com tudo isso temos que ficar atentos ao carácter
peculiar da memória cristã. Ela foi e continua sendo frequentemente uma memória
de vencidos e humilhados, marginalizados e desprezados e como tal não se
articula numa "história" segundo a tradição hegemónica da historiografia
nas grandes culturas, através de discursos, monumentos, arquivos, documentos, iconografia
e arquitetura. Pelo contrário, ela se transmite de geração em geração como uma
cultura popular, uma tradição oral, uma resistência cultural. Daí podemos perceber
que a memória cristã sobrevive antes de mais nada em comunidades. Existe uma relação íntima entre memória cristã e
comunidade de base. A orientação dada por São Paulo: "A Palavra
de Deus não pode ficar acorrentada", pressupõe a procura, por parte dos
cristãos, de instrumentos institucionais que possam garantir essa liberdade da
Palavra de Deus diante da pressão dos poderes deste mundo. É responsabilidade
básica da prática cristã procurar modelos sociológicos de Igreja que garantem a
liberdade da Palavra de Deus. Os cristãos não podem ficar indiferentes diante
da questão dos modelos de Igreja, pois receberam a missão de guardar e actualizar
a memória de Jesus, dos apóstolos, dos profetas e de toda a história da aliança
de Deus com os homens. O que orienta a prática cristã ao longo dos séculos é
essa questão. Afinal de contas, o "deserto" de Santo Antão, a
"Igreja espiritual" de Joaquim de Fiori, a "vida
evangélica" de São Francisco de Assis, a "apologia por Marta"
(diante de Maria) do mestre Eckhart, a "liberdade cristã" de Lutero –
para mencionar só alguns momentos desta longa procura – esses esforços todos tinham
como finalidade reavivar e reatualizar uma
memória continuamente ameaçada pelas forças dos sistemas que governam o mundo.
Nesta tradição de luta por uma memória cristã verídica inserem-se as atuais
práticas das comunidades de base espalhadas pela América Latina e é em relação a
estas práticas que pretendemos elaborar este estudo. Numa bela expressão, o
historiador francês, H.-I. Marrou, define o historiador como um
"missionário enviado ao passado para estabelecer o traço de união entre
este passado e o presente". Na missão de reavivar a memória junto às
comunidades, a História da Igreja tem o seu papel a cumprir, pois a memória
cristã não é de modo algum uma memória puramente individual (minha fé, minha salvação),
mas também uma memória coletiva, a memória de um povo. Mas assim como a memória
individual não é algo puramente mecânico, mas vivo, objeto de estudo por parte
de psicólogos, biólogos e outros, assim também a memória coletiva é viva e define
a consciência de um grupo social. O historiador tem que perceber isso e
corresponder às perguntas vivas que o povo cristão faz. Ora, o povo cristão que
faz a experiência comunitária pergunta se no início os cristãos também se
reuniram para resolver seus problemas, se eles também eram animados pela mesma
esperança. Existe, pois, um apelo que surge das comunidades e diante deste
apelo se situa a missão do historiador cristão. O que Jacques Le Goff afirma
acerca do historiador em geral vale também para o historiador cristão: "A tarefa do historiador é a de transformar a
memória em ciência".
A História da Igreja é uma ciência ao serviço
da memória do povo cristão, não só no sentido de captar a memória, mas também
no sentido de transformar a memória do povo em discurso coerente,
baseado em documentos objetivos, num discurso inteligível. O povo tem direito à
história no sentido pleno, não apenas a episódios intermitentes e parciais, ele
deve saber descobrir as causas e os motivos dos acontecimentos. A História da Igreja
ao serviço do povo não é servida por novas lendas, novas apologéticas, novos triunfalismos,
renovados populismos. O povo cristão das comunidades merece saber a verdade
plena, não apenas os aspectos entusiasmantes da verdade, mas também as lutas,
os pecados, as falsas alianças que o cristianismo histórico cometeu por
interesses nem sempre evangélicos. Por outro lado, uma História da Igreja ao serviço
da memória coletiva do povo cristão deve saber evitar
os perigos de um historicismo totalitário
provocado pelos desvios de uma interpretação marxista por demais
dogmática e mecanicista, segundo a qual tudo teria que recomeçar a partir do
ponto zero, a tradição eclesiástica nada teria de bom nem de construtivo, a Igreja
sempre teria ficado do lado errado e a função do clero sempre teria sido a de
domesticar e controlar o povo. Generalizações como estas certamente não ajudam
em nada a reconstrução da memória do povo cristão, pois no fundo procedem de um
anti-intelectualismo que rejeita todo e qualquer esforço de penetração
em assuntos complexos como são os assuntos históricos.
Tudo que foi escrito aqui acerca da memória
cristã está contido num texto clássico que Simone Weil escreveu, em 1943,
acerca do enraizamento: "O
enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma
humana. E uma das mais difíceis de definir. Um ser humano adquire raízes devido
à sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que mantém
vivos alguns tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro. Participação
natural, isto é, criada automaticamente pelo lugar, pelo nascimento, pela
profissão, pelo ambiente. Todo o ser humano precisa de ter múltiplas raízes, precisa
receber a quase totalidade de sua vida moral, intelectual, espiritual, por
intermédio dos ambientes a que naturalmente pertence."[8] As
comunidades de base são instrumentos de enraizamento popular na medida em que
revelam a raiz cristã sobre a qual se erguem as práticas de libertação.
§ 2. EUSÉBIO DE CESAREIA E A HISTÓRIA DA
IGREJA
O intento de elaborar um discurso historiográfico
que possa dar envasamento científico à memória do povo cristão defronta-se
inevitavelmente com uma longa tradição que remonta a um escritor eclesiástico
do século IV, Eusébio de Cesareia (263-339)[9].
Eusébio, bispo de Cesareia na Palestina, escreveu uma “História Eclesiástica”,
em dez volumes, num momento de grandes mudanças para a Igreja. Seu modo de
escrever contrastava com o de escritores eclesiásticos anteriores pela fidelidade
com que transcrevia os documentos da Igreja Antiga, especialmente na Ásia
(Menor), Síria e no Egito, enquanto os anteriores misturavam história com
lenda, narração com exortação. Tendo frequentado a famosa escola fundada por
Orígenes (185-253 d.e.c.) em Cesareia na Palestina, ele foi muito estimado pelo
próprio imperador Constantino por causa de sua erudição e foi mesmo indicado
pelo imperador a pronunciar o discurso oficial comemorando os trinta anos de
governo deste e a glorificação da nova cidade de Constantinopla. A escola de Cesareia
possuía uma biblioteca estimada em trinta mil volumes, pelo que foi
chamada, por Adolfo von Harnack, grande estudioso da helenização do
cristianismo, "a biblioteca-mãe das bibliotecas medievais". A escola
com a biblioteca constituía o mais importante centro de formação da Igreja nos
séculos III e IV, de sorte que a autoridade de Eusébio era reconhecida em toda
a Igreja. Ele significa a passagem definitiva entre a tradição oral na
preservação da memória cristã e a tradição escrita, mais segura e definitiva.
A “História Eclesiástica” dedica sete de seus
dez livros aos acontecimentos anteriores à grande
perseguição de Diocleciano, que começou em 284. Esta data ficou
gravada com tanta força na memória dos cristãos que estes computaram o tempo e
os anos a partir dela. O cômputo a partir do nascimento de Jesus só se impôs
mais tarde, no século IX. Os três primeiros livros de Eusébio tratam de Jesus,
dos apóstolos e da idade pós-apostólica. Os livros quatro a sete oferecem basicamente
quatro itens: listas episcopais das igrejas de Jerusalém, Roma, Antioquia e Alexandria;
as grandes heresias; os principais escritores eclesiásticos; a perseguição por
parte de judeus e gentios. Os livros oito e nove tratam da “perseguição dos
nossos dias”, cuja memória estava viva na mente dos leitores, enquanto o livro
dez conta a "vitória", sob Constantino, e a história dos mártires da
Palestina, assim como a vida de Constantino.
Já se percebe por meio desta simples
enumeração que o eixo em torno do qual se articula a obra de Eusébio é o da dicotomia
"perseguição-vitória", "opressão-liberdade",
"ortodoxia-heresia", e temos que reconhecer que a imagem que o cristianismo
histórico carrega consigo através dos séculos acerca da “era das perseguições” contrastando com os "tempos
cristãos" (“christiana tempora”) é predominantemente formada por
ele. Voltaremos a este ponto, tão importante, após ter lembrado aos nossos
leitores que os méritos de Eusébio, na historiografia cristã, são tão evidentes
que ninguém os contesta: ele supera com maestria a postura historiográfica
cristã anterior e começa a encarar seriamente as estruturas próprias da
História e da "longa duração" desta; ele rompe com a função histórica
do "destino" (“fatum, fato”) − tão típica da historiografia grega
− substituindo-a pela racionalidade da Providência, ou seja, da Razão Divina
que governa o mundo; ele é expressão do
humanismo cristão que tem atenção
e sensibilidade pelo que é pequeno e desprezado aos olhos do mundo (veja, neste
sentido, a página admirável acerca de Blandina, mártir cristã: Hist. Ecl.
5,1,17). Num nível de técnica historiográfica, Eusébio é o primeiro historiador
cristão a citar fielmente o material por ele usado e a indicar corretamente as
fontes. Sua obra demonstra paciência, escrúpulo e excelente organização da
matéria. Em diversos campos de nosso conhecimento acerca dos primeiros três
séculos do cristianismo dependemos inteiramente das informações dadas por
Eusébio, bem como para o conhecimento do "cristianismo rabínico",
também chamado "Igreja da circuncisão"[10]; de Hegesipo em particular, da ida de São Pedro
a Roma − unicamente dada por Eusébio na sua “Hist.
Ecl. 2,14,6”[11]
− ou acerca do montanismo[12] ou
ainda acerca da questão pascal no final do século II, cuja documentação Eusébio
pesquisa exaustivamente[13].
Isso não quer dizer que Eusébio não tenha uma
tese ao escrever a sua História; e essa tese fica patente na dicotomia estabelecida com tanta nitidez entre
a vitória com Constantino e as dificuldades antes deste imperador. A imagem das
perseguições, estabelecida por Eusébio, é altamente simbólica, baseada numa
comparação com as dez pragas do Egito. Assim como houve dez pragas, assim também
dez perseguições. Constantino é apresentado como
libertador, uma espécie de Moisés. A «História Eclesiástica» revela
uma determinada visão da Igreja inspirada num apaixonado entusiasmo pelo
"líder" Constantino[14]. Podemos
crer que esta visão representa um setor das lideranças cristãs da época, o
setor que ficou entusiasmado com as novas relações políticas criadas sob
Constantino e que as projeta no nível do plano divino, faz uma teologia imperial ou uma teologia da História
totalmente nova para a época. Mas é difícil imaginar que, à época, todos os
setores cristãos concordassem com esta visão. Acontece que Eusébio, pelo seu esforço
historiográfico, consegue criar na Igreja o espaço para um novo género literário
cristão que não problematiza a relação entre a memória cristã e a simples
sucessão apostólica no sentido de sucessão de bispos nas igrejas locais. Há uma
evidente preocupação por parte de Eusébio no sentido de estabelecer, para cada
uma das Igrejas locais, listas de bispos que remontam até a idade apostólica.
Assim para Jerusalém ele refere quinze sucessões
de bispos, número considerado excessivo por Daniélou[15], e para
Roma ele traça um quadro hierárquico minucioso (Hist. Ecl. 6,43,44)[16]. Outro exemplo
de uma História complexa − como sabemos por estudos recentes − que Eusébio
simplifica: no início do ‘Livro 3’, Eusébio afirma que depois da queda de Jerusalém
a "terra habitada" (oikumenè)
foi repartida em zonas de influência entre os apóstolos: Tomé para os Partos, João
para a Ásia, Pedro no Ponto e em Roma, André para a Cítia[17]. Essa
imagem da evolução da Igreja pressupõe o modelo de Igreja local territorial, modelo que não corresponde à experiência das comunidades
iniciais, como veremos ulteriormente neste trabalho.
O programa exposto por Eusébio no início da
sua obra é o seguinte:
“Tendo-me
proposto consignar por escrito as sucessões dos santos apóstolos juntamente com
os tempos percorridos desde nosso Salvador até nós, quantas e quão grandes
coisas aconteceram na História da Igreja; os que governaram e presidiram
gloriosamente à mesma Igreja nas mais ilustres sedes; quantos em cada geração pregaram
a palavra de Deus por palavra ou por escrito; quantos e em que tempos, levados
pelo desejo de novidades, caíram em extremos erros, se proclamaram a si mesmos
introdutores de uma falsa ciência e, ao modo de lobos vorazes, devastaram sem
piedade o rebanho de Cristo; quantas calamidades sobrevieram imediatamente, em
castigo por seu crime contra nosso Salvador, a toda a nação dos judeus; de que
modo e em que tempo foi a palavra divina combatida pelos gentios e quantos, em
diversos tempos, e, além disso, os martírios que se deram ainda no nosso tempo
e como se mostrou propícia e benigna a ajuda a ajuda de nosso Salvador e Senhor
Jesus, o Cristo de Deus” (Hist. Ecl. 1,1)[18]. Este programa foge completamente ao que deve ser uma
História da igreja ao serviço da memória do povo cristão, pois não
segue a linha da História de Israel, acabando por a substituir pela tradição da
historiografia dinástica. A tradição
da lei, dos profetas, da libertação dos humildes e marginalizados é abandonada
em benefício da tradição dos instrumentos próprios de rememoração de uma igreja imperial, que vê no imperador um género
de Moisés e Davi, um homem escolhido por Deus para preparar o caminho de Deus e
libertar o seu povo. Os inimigos, para Eusébio, são os montanistas, os
donatistas, os novacianos, ou então os judeus ou "gentios", e não
as estruturas do Império, o poderio dos ricos que exploram os camponeses pelo
tributo pesado e os escravos urbanos
à custa de trabalhos forçados. A Igreja é identificada com um grupo
apenas dentro dessa estrutura: o grupo dos
organizadores. Nada acerca dos "organizados", senão nos
relatos de martírios. O programa de Eusébio serve decerto como disciplina
eclesiástica nos cursos que preparam os que terão que organizar a estrutura da igreja,
mas não como exercício eclesial de enraizamento, rememoração da aliança de Deus
connosco que passa por Abraão, Moisés, os profetas, Jesus, os apóstolos, os
santos. A memória das lutas e esperanças do povo cristão que procura resolver
urgentes problemas de sobrevivência, saúde, direitos humanos básicos, não
encontra espaço nas páginas da “História Eclesiástica” de Eusébio de Cesareia, nem
se repete nelas a cada momento que é possível, em cada instante e em cada
lugar, mudar o rumo das coisas, orientar a vida para o êxodo, sair do Egito do
Faraó e entrar na "terra santa", quebrar a triste concatenação de dominações
e humilhações na história da humanidade.
O sucesso do programa de Eusébio de Cesareia, na longa tradição da História da igreja como disciplina eclesiástica, não deve ser procurado na originalidade ou profundidade de seu pensamento ‒ pois é fácil contestar a sua teologia imperial a partir dos mais elementares conceitos de uma teologia bíblica ‒ mas simplesmente no facto de ele ter vindo confirmar, por escrito e por uma tese, um caminho prático que um importante setor das lideranças da igreja ‒ que maís tarde chegaria a ser hegemónico ‒ começava a trilhar: o caminho da aliança entre o Estado eclesiástico e a sociedade política do Império Romano. O novo modelo de Igreja, baseado nesta aliança, encontra na “História” de Eusébio uma confirmação teórica de sua prática. Mais uma vez aconteceu aqui que a teoria veio confirmar a posteriori uma prática e criar em torno desta um consenso eclesial duradouro.
Podemos definir as coisas da seguinte maneira: um modo de encarar a História da Igreja procura, especificamente, a preservação da memória das instituições que o cristianismo gerou ao longo de sua experiência histórica, ao passo que um outro modo visa a memória das múltiplas práticas cristãs na linha do profetismo[19]. Ambos estão dialeticamente colocados na realidade memorial do cristianismo histórico: de um lado, a tradição eusebiana, do outro a "profética". A tradição eusebiana só pode ser triunfalista ou apologética. ‘Triunfalista’ quando a instituição prospera, ‘apologética’ quando ela se sente ameaçada. Já nos séculos IV até VI, Eusébio foi seguido por autores como Sócrates de Constantinopla, Sozómeno de Constantinopla, Teodoreto de Ciro, Evagro o Escolástico, Epifânio de Salamina e Isidoro de Sevilha. Na ldade Média, só os cronistas do Império cristão estudavam propriamente a "História da igreja", pois o interesse maior estava voltado para a História dos povos cristianizados, os bispados, os mosteiros e suas “crónicas” e ”anais”, os santos e suas “vidas”. Por isso torna-se difícil seguir na ldade Média os traços de uma tradição eusebiana. Mas com o ressurgimento de um interesse historiográfico propriamente dito na Idade Moderna, ressuscitou também a tradição eusebiana na sua vertente apologética. No final do século XVI, César Baronio ‒ (30 de agosto de 1538 / 30 de junho 1607) ‒ respondeu aos estudos históricos protestantes que tencionavam provar que o protestantismo, e não o catolicismo, era o continuador do cristianismo primitivo, com a publicação de doze tomos sob o título “Anais Eclesiásticos”, obra apologética por excelência. Até o século XIX, Baronio exerceu considerável influência na História eclesiástica enquanto disciplina nos seminários, onde se formava o clero, inspirando outras obras de dimensões igualmente gigantescas como a de Rohrbacher, elaborada entre 1842 e 1849 em 29 tomos, a de Hergenröther, entre 1911 e 1917, em quatro tomos, e ainda a de Flichte-Martin, iniciada em 1936 e projetada para 24 tomos.
Depois do Concílio Vaticano II foram
publicadas duas obras gerais de História da Igreja que procuram ultrapassar a
controvérsia entre católicos e protestantes: o “Manual de História da Igreja”, em
oito tomos, elaborado na Alemanha sob a direção de Hubert
Jedin (1900-1980) e a “Nova
História da Igreja”, em cinco tomos, redigida sob a direção dos professores
Rogier (Holancla), Aubert (Bélgica) e Knowles (Inglaterra). No Manual por ele
dirigido, Jedin critica a autoconsciência da Igreja como "sociedade
perfeita" e abre assim espaços saudáveis para o exame científico da
instituição, combatendo a ideia de um progresso contínuo na História da Igreja
e admitindo períodos de decadência no decorrer desta História, tudo na melhor
tradição do Concílio Vaticano II[20]. A Igreja,
segundo Jedin, é a “reformata reformanda” (em contínuo processo de
reforma), a “ecclesia semper reformanda”. Acontece que essa leitura da
História da Igreja através do tema da reforma não articula, com a necessária
clareza, a relação entre reforma da instituição (a famosa “reformatio in
capite”, a reforma na cúpula) e reforma no sentido de movimentos de base
(heresias, por exemplo). Quais as forças históricas que estão na origem dos
movimentos de reforma? Quais os lugares sociais que condicionam tanto a
decadência como a reforma e que relação eles têm com a sociedade global? O “Manual”
não responde a este tipo de indagações.
Quanto à “Nova História da Igreja”, o período
por nós estudado neste ensaio coube ao professor Jean
Daniélou, especialista em assuntos ligados aos primeiros séculos
cristãos. Nas entrelinhas do trabalho de Daniélou percebe-se que ele não tem
muita simpatia pelo que chama de "cristianismo escatológico" ou
"idealista"[21] e que
se exprime no montanismo ou em figuras como Tertuliano, Hipólito ou
mesmo Orígenes[22].
A este cristianismo "idealista" Daniélou opõe o chamado modelo "realista" de aliança com os poderes políticos da época ou
pelo menos de relativa "paz" com estes poderes. Daniélou reserva mais
simpatias por figuras como Clemente de Alexandria[23] que se
movia com facilidade nos meios da burguesia de Alexandria e deixa as portas
abertas para os ricos ‘entrarem’ sem problemas de consciência de maior. Este
grande debate eclesiológico do século III, segundo as suas palavras, resume-se ao
“conflito dos intelectuais apaixonados por uma Igreja
ideal com os pastores conscientes das condições da Igreja real”[24]. A Igreja
que Daniélou qualifica de "ideal" ou idealista não é outra coisa senão
a Igreja profética, comprometida com a mensagem de libertação e por isso mesmo
em conflito com os poderes deste mundo. Concluindo estas breves apreciações
acerca da ideologia que guiava o pensamento tanto de Jedin como de Daniélou,
podemos dizer que ambos, de alguma forma, estão na continuidade do que se
poderia chamar de “tradição eusebiana”, num sentido muito amplo, pois ambos
deixam de questionar um modelo de Igreja que se impôs no século IV e que
estava em descontinuidade com o modelo da Igreja primitiva.
O nosso intento historiográfico difere da
tradição eusebiana em três pontos principais. O primeiro diz respeito ao
histórico encontro entre cristianismo e helenismo, do qual Eusébio teria
sido um dos privilegiados intérpretes. Muitos atribuem a este encontro um valor
muito especial: o helenismo teria dado ao cristianismo o caracter racional,
equilibrado, humanista que este tem atualmente e isso seria uma conquista para
sempre. Longe de contestar os valores do helenismo, queremos apenas lembrar o
modo pelo qual se deu o encontro. A imagem que se criou foi a de um encontro
intelectual, teórico, quase planeado. Ora, antes de ser planeado, este encontro
entre evangelho e helenismo foi uma experiência vivida durante séculos na base
do edifício cristão, nas comunidades. Os teólogos que helenizaram o
cristianismo não são senão expressão sistematizada de algo vivido na prática diária
dos cristãos que causava um sem-número de problemas. Como manter a pureza da fé
diante das mitologias gregas? Como distinguir entre milagre cristão e magia?
Como dizer que o cristianismo é uma “filosofia”?[25]
Acontece que o cristianismo ‒ no decorrer de sua História ‒ encontrou problemas
provenientes de situações bem diversas e distintas da helenização. Assim o cristianismo defronta-se ‒ já faz mais de quatrocentos
anos ‒ com os animismos da
América, da África e da Ásia. Este encontro é vivido no dia-a-dia da pastoral
cristã e cria inúmeros problemas. Como ser cristão numa cultura africana ou de origem
africana, no Brasil, por exemplo? Toda a "questão dos ritos", na China,
se resume às dificuldades práticas deste novo encontro histórico[26]. Ora,
os intelectuais cristãos e teólogos dão-lhe pouca atenção e os dicionários de
teologia cristã praticamente não se ocupam com este assunto nos seus pesados
volumes[27], enquanto
a teologia sistematizada quase nada tem a dizer sobre o assunto. O único que se
solicita neste campo é um espaço para podermos reflectir fora dos quadros
rígidos que a tradição eusebiana impôs à História da Igreja, para que esta possa
fornecer aos teólogos os elementos de revisão da relação entre cristianismo e
religiões populares.
Um segundo ponto de divergência com a tradição
eusebiana diz respeito ao eruditismo. O caráter monumental que se deu à
História da igreja impressiona e ao mesmo tempo afasta o leitor principiante do
historiador cultivado. Frequentemente, o historiador consegue esconder sua falta
de metodologia sob a capa da erudição, derramando sobre o pobre estudante um
acúmulo impressionante de factos, concatenação de datas, enumeração de
acontecimentos, criando a ilusão da objetividade e esquecendo ‒ ou fazendo
esquecer ‒ que faz continuamente intervir suas próprias categorias ao analisar
os dados do passado. O maior defeito do método de Eusébio de Cesareia estava no
facto de ele partir do pressuposto de que a história evoca pura e simplesmente
o passado, e esse deleito passou de geração em geração, pela aplicação ao
passado da experiência de hoje. Quando, por exemplo, discutimos hoje se a igreja
primitiva era episcopal ou não, hierárquica ou não, se já existia desde o
início o primado do Papa de Roma, se Jesus "instituiu" os sete
sacramentos, estamos manipulando documentos antigos com a nossa visão e a
realidade vivida hoje, fazemos dizer aos documentos "mortos" ‒ pois
toda historiografia mexe com os "mortos" ‒ o que estes nunca disseram;
procuramos ressuscitar experiências que não correspondem à nossa experiência de
hoje, e isso acontece porque estamos querendo comprovar algo que é da nossa experiência
e observamos o passado através desta vontade de comprovação. Alimentamos então
a ilusão de que ficamos inteiramente receptivos diante do dado passado, que nos
entregamos à pesquisa científica, mas para tanto estamos sabendo
"demais", isto é, não estamos conscientes da influência social sobre
a nossa memória, ou pelo menos insuficientemente conscientes. Num estudo já antigo,
mas fundamental, Maurice Halbwachs tratou desta influência da sociedade sobre o
nosso modo de "ler" o passado[28]. As
palavras de Anatole France são muito sábias: "Para
sentir o espírito de uma época que já não existe ... a dificuldade não está
tanto no que é preciso saber do que no que é preciso esquecer ou rejeitar"[29].
Diante da impossibilidade de recuperar o
passado cristão "tal como ele realmente foi" (“Wie es eigentlich
gewesen ist”, segundo a palavra célebre de Leopold von Ranke, pai do
historicismo), tentaremos algo mais modesto: apresentar alguns temas que nos
parecem corresponder às questões levantadas pela caminhada das comunidades
hoje. Confessamos, pois, que o nosso interesse gira em torno do presente vivido
nas comunidades de base na América Latina e, por conseguinte, em torno do novo modelo eclesial emergente. Existe um
interesse social ‒ e não apenas individual ‒ em recordar certos aspectos e
temas ligados à igreja Antiga, pois estes temas sustentam a esperança hoje.
Queremos ficar ligados à grande tradição de esperança que percorre toda a
História da Igreja e ficar mais firmes na defesa da memória cristã diante do
perigo sempre presente de manipulação desta memória.
O que foi dito até aqui está admiravelmente
resumido nas palavras incisivas do filósofo Walter
Benjamin, numa de suas "Teses
sobre a filosofia da História": “Articular historicamente o
passado não significa conhecê-lo ‘como ele realmente foi’. Significa conquistar uma memória que relampeje num momento de perigo
e aflição… A tradição deve tentar salvar-se, em cada época, do perigo
do conformismo, que está sempre a ponto de subjugá-la. O Messias não vem
somente como Salvador, ele vem também como Vencedor do anticristo. O dom de
suscitar a faísca da esperança compete somente àquela historiografia que está compenetrada
do seguinte: até os mortos não estarão a salvo do inimigo, caso este vença.
E este inimigo não pára de levar a melhor”.
Um terceiro e último ponto em que divergimos
do projecto historiográfico de Eusébio de Cesareia, e seguidores, diz respeito
à questão do poder. Acreditamos ser impossível estudar o História da Igreja
sem tocar na questão do poder e fazer a pergunta de Leonardo Boff: "A Igreja‒instituição
passou pela prova do poder?"[30] Acreditamos, tal como o filósofo cristão
Reinhold Schneider, que o poder não é propriedade de ninguém, mas empréstimo de
Deus: "Usar do poder significa uma particular ligação misteriosa com Deus,
significa estar à disposição da graça"[31]. Não
acreditamos que Eusébio de Cesareia tenha feito uma leitura propriamente
"cristã" das relações de poder quando via no Império Romano um modelo
inclusive para a organização da Igreja, e, no imperador, o realizador do Plano Divino,
comparável a Moisés ou Davi. Não acreditamos que o imperador possa ocupar o
lugar de uma espécie de super-bispo que coordena trabalhos internos da Igreja.
Chegamos quase a endossar as palavras penetrantes do historiador inglês Lord
Acton[32]: "Todo poder corrompe e o poder absoluto corrompe
absolutamente", pois elas revelam uma paixão que nos anima
também. Acreditamos na possibilidade de "redefinição da figura do bispo no
meio popular pobre e religioso", conforme palavras do Cardeal Aloísio Lorscheider[33], assim como da figura de outros cargos na Igreja,
através da experiência comunitária. O poder partilhado ao serviço dos humildes
e exercido na comunidade não nos parece uma utopia fora da história.
§ 3.
PARA UMA GEOGRAFIA CRISTÃ DA HISTÓRIA
A história sem geografia manca: falta-lhe a
perna da descrição no espaço do que acontece no tempo. Tempo e espaço têm de
andar conjugados para que se consiga uma compreensão do passado que seja útil à
caminhada de hoje. Para quê falar de Jerusalém, Antioquia, Alexandria, Roma,
Cartago, se não se sabe onde ficam situadas essas cidades, e se articulam entre
si? Acontece que já vai longe a doce ilusão de uma geografia objectiva e não
ideológica. Sem assumir a sua posição provocante de Yves Lacoste ‒ que pode ser
pedagogicamente justificada ‒ ao proclamar que “a geografia, antes de tudo,
serve para fazer a guerra[34]”, temos de reconhecer que, sobretudo após a
vitória da cartografia moderna ao “desorientar” e “nortear” a
geografia, a ideologia do “centro-periferia”
‒ típica do capitalismo ‒ começou a imperar nos estudos geográficos, ao ponto
de os próprios mapas do cristianismo
‒ os da Terra Santa, os da expansão do cristianismo, os das viagens de
São Paulo, etc. ‒ terem sido “norteados”,
isto é, colocaram o Norte em cima, em contraste com os mapas antigos e
medievais.
Desde o início da expansão do sistema mundial
moderno ‒ que mais tarde receberia o nome de “capitalismo” ‒ os cartógrafos que
compuseram os primeiros “atlas”, ou colecções sistemáticas de mapas, começaram
a praticar duas mudanças na imagem simbólica do mundo: (…)
(…): as grandes cidades cristãs situam-se nos
portos marítimos ou na confluência de grandes rios. Isso prova que o
cristianismo deixou de ser predominantemente camponês, tal como fora o povo de
Israel[35], e
passou a ser suburbano de cariz comercial ou artesanal. Tudo indica que a
primitiva comunidade de Jerusalém ainda fosse camponesa. É o que sugerem os
seguintes textos: Actos 2,44: «Vendiam as suas propriedades e os seus campos…»;
Actos 4,36-37: Barnabé vendeu o seu campo e entregou o dinheiro da venda aos
apóstolos e ainda Actos 5,1-2: «o caso de Ananias e Safira». Contudo, esta
situação rapidamente muda, seja pela marcante influência de S. Paulo (pelo
menos no Ocidente), seja pela ruína de Jerusalém no ano 70 ou ‒ com maior força
de razão ‒ pela própria constituição do sistema mundial romano, o qual
combinava uma estrutura escravocrata com uma estrutura tributária. Em suma: a
economia comercial-artesanal romana, baseada no trabalho escravo, era sustentada
pela economia agrária, baseada no trabalho tributado através do censo. O censo
era um acto formal pelo qual o povo de camponeses, na prática, passava a ser
colónia dos romanos. Desta forma, os cristãos dos primeiros séculos viviam,
consoante a sua situação, sob o sistema escravocrata ou sob o tributário.
CAPÍTULO I
OS MARGINALIZADOS
§ 1.A CONSCIÊNCIA QUE OS PRIMEIROS CRISTÃOS
TINHAM DE SI MESMOS
(…)
Eduardo
Hoornaert, «TOMO III - A Memória do Povo Cristão», VOZES Petrópolis, Brasil,
1986, p. 13-40.
©
[1] “Podereis achar entre nós ignorantes, trabalhadores manuais, velhas
mulheres. Por palavras seriam bem incapazes de fazer uma exposição dos seus
princípios. Não sabem recitar frases de cor, mas demonstram boas acções … dão a
quem pede e amam o seu próximo” (palavras de Atenágoras de Atenas em
defesa dos cristãos, in Lucien Deiss, «Printemps de théologie – apologistes grecs du
2e. siècle», Paris, ed. Fleurus, 1965,
pp. 71-72). Na Nota de pé de página n.9 (p. 72), Lucien Deiss continua:
«Censuravam o cristianismo dos começos por ter recrutado preferencialmente
entre os ignorantes, os escravos e as mulheres idosas. Dito assim, essa censura,
ainda que parecesse ser muito dura aos ouvidos de certos cristãos instruídos,
fazia todo o sentido. Referindo-se à comunidade de Corinto, composta sobretudo
por trabalhadores à jorna e ganhões, Paulo já havia tido a oportunidade de
dizer: “Irmãos, pensem
no que vocês eram quando foram chamados. Poucos eram sábios segundo os padrões
humanos; poucos eram poderosos; poucos eram de nobre nascimento. Mas Deus
escolheu o que para o mundo é loucura para envergonhar os sábios e escolheu o
que para o mundo é fraqueza para envergonhar o que é forte. Ele escolheu o que
para o mundo é insignificante, desprezado – eis o que Deus escolheu” (1
Coríntios 1, 26-28). Encorajado pelo julgamento de Jesus, que beatificou a
pobreza e maldisse a riqueza (Lucas 6, 20.24), o cristianismo implantava a sua
maravilhosa riqueza entre aqueles mesmos que o mundo tinha como desprezíveis. Só
faltava, a partir de agora, demonstrar que a religião de Jesus Cristo não era
apenas ‒ segundo a apreciação do paganismo ‒ “um rebento do judaísmo, religião nacional a mais
insignificante de todas”» (A. Harnack, «Die Mission und Ausbreitung des
Christentums in den drei ersten Jahhunderten», Leipzig, p. 351).
[2] Butterfield, H., «The Origins of History»,
Londres, 1984.
[3] “Ut in signum memoriӕ meӕ et mei
testamenti sempre diligat se ad invicem”.
[4] Altaner-Stuiber, «Patrologie»,
Friburgo, 81978 (abr. A-S), p. 52-53.
[5] A-S, p. 109-110.
[6] A-S, p. 65-70 e Greschat, M., «Alte Kirche», Stuttgart, 1984 (abr. A.K.),
vol. 1, p. 64.
[7] A-S, p. 110-117.
[8] Weil, S., «A Condição
Operária e Outros Estudos sobre a Dominação», Rio de Janeiro,
1979, p. 347. Página 45 da Relógio D’Água Editores («O Desenraizamento –
II Parte»), Lisboa Novembro de 2014, ISBN 978-989-641-459-7.
[9] A-S, p. 217-224; A.K., 1, p. 224-235.
[10] Daniélou, J., «Nova
História da Igreja», I, Petrópolis, 1966, p. 33. [NdE/pb]: J.
Daniélou & H. I. Marrou, «Nueva Historia
de la Iglesia, Tomo I – Desde los orígenes a San Gregorio Magno»,
Cristiandad, Madrid, 21982. ISBN-T.1: 84-7057-225-7. Cito p. 50:
“Deste cristianismo rabínico encontramos alguns indícios nos escritos do Novo
Testamento; por estes escritos provirem de outro ambiente, é provável que
aquele tipo de cristianismo perca importância e passe despercebido no texto. A
ele remonta, sem dúvida, toda uma literatura targúmica da qual encontramos
indícios em S. Paulo (R. Le Déant, «Traditions targumiques dans le Corpus
paulinien», Bibl., 42, 1961, pp. 28-48) e cujos fragmentos nos foram
transmitidos pela Carta de Clemente, pela Epístola de Barnabé e
outras obras posteriores. De facto, o targum é um género característico
dos escribas fariseus.”
[11] Daniélou, J., op. cit., p. 52.
[12] Daniélou, J., op. cit., p. 118.
[13] Daniélou, J., op. cit., p. 123.
[14] Altaner-Stuiber, «Patrologie»,
Friburgo, 81978 (abr. A-S), p. 185-188.
[16]
Daniélou, J., op. cit., p. 206.
[17] J. Daniélou & H. I. Marrou, «Nueva Historia de
la Iglesia, Tomo I…», op.
cit., p. 83.
[18] Jedin, H., «Manual
de Historia de la Iglesia», Vol. I, Barcelona, 1966, p. 52.
[19] Estudos Bíblicos, 4, Petrópolis, 1984, passim.
[20] Alberigo, G., «”Reforme”
en tant que critère de l’histoire de l’Église», Revue d’Histoire
Ecclésiastique, Lovaina, 76, 1981, p. 72-81.
[22]
Daniélou, J., op. cit., p.120 e 155.
[23] «Nueva Historia de la Iglesia Vol. I – desde los
orígenes a San Gregorio Magno», Cristiandad 1982, p. 171-172: “Estamos
muito longe das tendências encratitas do ambiente palestiniano primitivo. (…) [Clemente
de Alexandria] queria criar um tipo de cristão estreitamente relacionado
com o ideal helenista de Homem, que nada tivesse que ver com os elementos
judaicos que pudessem existir no Evangelho. Havia que abandonar essa velha
vestimenta. É então que se realiza ‒ precisamente em Alexandria ‒ o processo de desenraizamento sociológico face ao
judaísmo (…). A roupagem judaica cai como uma pele morta e, então, nasce um
‘cristão novo’ semelhante, em toda a sua aparência, a qualquer outro cidadão
alexandrino: a mesma indumentária, a mesma linguagem, os mesmos costumes
tal como admiravelmente já dizia a «Carta a
Diogneto». A diferença reside apenas no espírito que o anima. Tudo
isto poderá ser resumido, em Clemente, com uma só frase: o cristianismo é a verdadeira filosofia, a verdadeira
sabedoria (=”gnose”). Nele realiza-se
o ideal prometido pelos sábios da Grécia. E Clemente sabia bem o que
isso era. Tinha lido Epicteto e Musónio.
Não ignorava as “virtudes” do sábio: apathéia e parrésia.
Virtudes que, segundo ele, se realizam no cristão. O cristão ideal (…) está de
acordo com o Evangelho, mas não tem nada de um profeta palestiniano: tem muito
mais a aparência de um sábio estoico
habitado por um espírito outro. O cristão helenizado surge, pela primeira vez,
na obra do alexandrino, não apenas pela aparência exterior, mas sobretudo pela
sua conformação interior.» Trata-se, efectivamente, da passagem dum cristianismo
semita a um cristianismo gnóstico-helenista! A Mensagem de Jesus deixa para
trás “o ambiente de Jesus”, in-cultura-se no
Espírito Grego, passando a exprimir-se através de uma linguagem
filosófica gnosticista e platonista (abstracta e
dualista). É assim que a “Mensagem de
Jesus” passa a fazer parte da Cultura grega de
corpo inteiro e sem incompatibilidades insanáveis…
[24]
Daniélou, J., op. cit., p. 155.
[25] Ponto prévio: uma (longa, mas
necessária…) pausa para mergulhar no Mundo em que o cristianismo nasceu.
«LA DISPERSIÓN: Hasta ahora nuestra reseña del
judaísmo se ha limitado a Palestina. Es importante notar, sin embargo, que
había muchos más judíos fuera que dentro de Palestina. La deportación de
prisioneros de guerra, pero especialmente los intereses comerciales, diseminaron
a los judíos por todas direcciones fuera de Palestina. Se estima que durante el
tiempo del primer Imperio Romano había dos millones y medio de judíos en
Palestina y un millón en Egipto, lo
mismo en Asia Menor y en Mesopotamia, respectivamente. Además alrededor de cien
mil judíos habitaban en Italia y en África del norte. Colonias más reducidas se
encontraban desparramadas a través del imperio. Las referencias en el Nuevo
Testamento a los judíos dispersos son impresionantes: Juan 7:35, Hechos 2:5-11
y otras muchas a través de este libro, Santiago 1:1, 1 Pedro 1:1. Parte
inseparable de la dispersión era la sinagoga.
Estos dos factores juntos establecieron una base natural fuera de Palestina
para la proclamación del evangelio en otras tierras. El centro más importante
de la dispersión fue Alejandría, en
Egipto, donde los judíos ocupaban barrios enteros. Allí el Antiguo Testamento
fue traducido al griego en el año 250 A.C., poniéndolo así al alcance del mundo
griego. Esta traducción fue conocida como la Septuaginta (versión de los Setenta). Allí también la vida intelectual
judía halló su más grande exponente en el filósofo judío Filón -entre
los años 20 A.C. Y A.D. 42, de quien hablaremos en la próxima sección. EL PENSAMIENTO GRIEGO: Dentro del imperio
la influencia espiritual más importante no vino de los romanos sino de los griegos. El poder y la ley romanos
controlaban la vida militar, política, social, y económica del imperio; pero el
pensamiento griego controlaba las mentes de los hombres. Primeros filósofos griegos: Alrededor del año
600 A.C. los filósofos griegos meditaron profundamente acerca de la naturaleza del mundo y el significado de la vida.
El primero de los filósofos fue Tales, que vivió en la ciudad de
Mileto en la costa sudoeste del Asia Menor. El creía que todo lo que existía de
una u otra manera había surgido del agua.
Anaximandro, un discípulo de Tales, enseñó que no el agua sino la
ilimitada atmósfera era el origen de todas las cosas. La filosofía de
Heráclito, quien vivió alrededor del 500 A.C. en Éfeso (también en Asia Menor),
era más compleja. El elemento básico del universo, decía, es el fuego. De él proceden todas las cosas, y a
él vuelven todas las cosas. Del fuego sale el aire; del aire, el agua; del
agua, la tierra. Luego la tierra vuelve al agua; el agua al aire, el aire al
fuego, y así sigue el ciclo interminablemente. Las combinaciones que son
posibles por medio de estos cambios producen la gran variedad de cosas que se
hallan en el mundo. Pero ninguna permanece.
No hay nada constante en la vida, nada que permanezca. La vida es como un río que corre; nadie puede bañarse en
la misma agua dos voces. En realidad, Heráclito hizo
del río un símbolo de su filosofía, la cual resumió con las palabras
"todas las cosas fluyen". No obstante, este mundo siempre cambiante
está controlado por una mente, una razón que él llamó el logos. Esta palabra debe ser
cuidadosamente notada, pues ella tuvo un papel muy importante en el pensamiento
teológico de la iglesia primitiva. Tales, Anaximandro, y Heráclito vivieron
todos en el Asia Menor, la cual había sido colonizada por los griegos. Una colonia
similar griega al sur de Italia también produjo filósofos. Una de sus
figuras más destacadas fue Parménides. Contemporáneo de Heráclito,
Parménides enseñó lo opuesto del filósofo efesio. Él creía que no había ningún
cambio en absoluto. Hay una sola cosa que existe; lo que es. Todo
el cambio que experimentamos y observamos es solo apariencia. La
variedad, la belleza, la tristeza, y el gozo de la vida son apariencias que
existen únicamente en nuestras mentes. Por extraños que pudieran parecer estos
puntos de vista, presentaban un problema fundamental con el cual todo
pensamiento serio sobre la vida ha de enfrentarse. Provocaban un interrogante: ¿Cómo se
relacionan entre sí la permanencia y el cambio, la realidad y la apariencia, la
eternidad y el tiempo? ¿Cómo se relaciona el hombre maduro con el niño del cual
ha emergido? El cambio ha transformado al niño en un hombre, pero la permanencia
ha mantenido a la persona igual. ¿Cómo ha de entenderse esto? Sócrates y Platón: Con Sócrates, quien vivió
en Atenas alrededor de 450 A.C., se produjo un cambio en el pensamiento griego.
Sócrates estaba más interesado en la calidad
de los hombres que en la naturaleza del mundo. Sostenía que solo
podemos conocer una cosa con certeza: ‘el hombre mismo’. Podemos saber lo que debemos ser
y cuál es el propósito de la vida.
Saber esto es poseer el verdadero conocimiento. Este conocimiento puede
obtenerse por medio de una educación adecuada; el hombre tiene el poder de
hacerse a sí mismo moralmente bueno. Esto constituye una filosofía humanista.
Aparecen luego en Grecia dos de los más distinguidos filósofos de todos los
tiempos: Platón (ca. 425-345 A.C.), discípulo de Sócrates, y
Aristóteles (ca. 385-320 A.C.), discípulo de Platón. El centro del pensamiento
filosófico para este entonces se había desplazado desde las colonias hacía la
madre patria, específicamente hacia Atenas. Cuando Roma no era aún la dueña
total de Italia, cuando Palestina estaba todavía bajo el control persa, Atenas
era ya el brillante centro cultural del mundo. Platón unió en su filosofía la
preocupación de los primeros pensadores en comprender el mundo en su totalidad,
y la preocupación de Sócrates de comprender al hombre. Junto con Parménides, Platón creía que el mundo real no era el mundo que podía
ser visto y palpado: montañas, árboles, cielo, ríos, campos,
hombres. El mundo real era el mundo invisible,
el mundo de las ideas. Por "ideas" Platón no quería decir
"pensamientos u opiniones", o lo que nosotros queremos significar por
"ideas". Él quería decir realidades espirituales que existen en un mundo
invisible. En ese mundo están las "ideas" de cosas materiales
como árboles, montañas, agua, sillas... y de las cualidades espirituales como
coraje, amor, verdad, bondad y, no menos importante, el alma. Estas ideas
existen en el mundo invisible en el orden en que unas sirven a otras. En la
cima de la pirámide está la idea del bien.
Pero existe también otro mundo, el mundo de
la materia. En su estado original la materia no tiene forma ni
aspecto. Es una masa desordenada, sin armonía, sin forma, un caos. Sin embargo,
nosotros nunca vemos esa masa de esa manera. Las ideas le imprimen su carácter
de orden y sentido. Es esta unión de las ideas perfectas con la materia
desordenada lo que vemos y experimentamos en el mundo que nos rodea. La materia es la fuente de todo mal: del
dolor, la desilusión, la imperfección, el sufrimiento, y la muerte. Todo el
mundo de la naturaleza y del hombre surge de la extraña unión de ideas y
materia. Este es ‘el mundo cambiante’ que tan profundamente había impresionado
a Heráclito. Todo lo
que está en el mundo es una pobre copia de las ideas eternas, verdaderas, e
inamovibles que se manifiestan a través de su unión con la materia.
Todo lo que es hermoso, moral, adecuado, y lleno de propósito en estas copias
viene de las ideas. Todo lo que es malo o doloroso en estas copias se deriva de
la materia. Ambos mundos son igualmente eternos; ninguno
de los dos puede vencer al otro. El hombre es una unión de espíritu y materia.
Cuando la muerte llega, el alma se alegra pues puede así retornar a su estado
puro como idea sin el peso de la materia. Es por esa razón que los filósofos de
Atenas escucharon tranquilamente a Pablo cuando él les predicaba el evangelio
hasta que habló de la resurrección: "Pero cuando oyeron lo de la
resurrección de los muertos, unos se burlaban, y otros decían: Ya te oiremos
acerca de esto otra vez" (Hch 17:32). Al estudiar la historia de la
iglesia primitiva, es preciso comprender este punto de vista griego en cuanto a
la relación entre la idea y la materia, el bien y el mal, el alma y el
cuerpo. Si esto no se capta, es casi imposible comprender adecuadamente los
cuatro primeros siglos de la historia de la iglesia. Las dos mayores herejías,
el gnosticismo y el arianismo, amenazaron peligrosamente la verdad
del evangelio, la primera antes, y la segunda después del A.D. 300. Ambas
surgieron de un malentendido de lo que es el hombre y el mundo al estilo de
Sócrates y Platón. Solamente un enfoque espiritual de Dios, del hombre, del
mundo, y de su relación entre sí, salvó a la iglesia de transformarse en
testigo de un falso evangelio. Estoicismo:
Dejamos ahora las enseñanzas de Aristóteles y otros para notar brevemente las
principales del estoicismo. Esta era la filosofía dominante en el Imperio
Romano en el tiempo de Cristo y de la iglesia primitiva. El nombre estoicismo
se deriva de la palabra griega stoa que significa "galería",
"pórtico". Era el nombre que se daba a un corredor o arcada pública
cerca del mercado en Atenas, donde los hombres
se reunían para discutir diferentes
asuntos. Fue aquí que Zenón, un
nativo de Chipre, enseñó filosofía alrededor del año 300 A.C. A su filosofía se
le llamó "estoicismo" por causa del lugar donde la enseñaba. Sus
enseñanzas, y la de sus sucesores, daban más importancia, como las de
Sócrates, a la conducta humana que a la naturaleza del universo. Él y sus
sucesores enseñaron que solamente existe la materia. No hay tal cosa como el
espíritu solo. Mente y cuerpo son materiales. Aun Dios es material; el universo es su cuerpo y él es su
alma. El estoicismo, por consiguiente, es una especie de panteísmo, es
decir, todo es Dios.
El hombre está relacionado con Él como una gota de agua se relaciona con el
océano, o como una chispa con el fuego que la provoca. Dios, como alma del mundo, gobierna todas las cosas; ama
a los hombres y desea todo lo bueno. Por cuanto el hombre está
relacionado con Dios, debería ir hacia donde la razón divina, llamada logos, le guía. La verdadera sabiduría consiste en descubrir el camino de Dios para los
hombres. La persona verdaderamente humana no resiste la guía de Dios; se rinde
a ella, no importa cuán penoso le resulte, pues Dios le ama. La
virtud es una y es indivisible. Las cuatro cualidades más sobresalientes del
carácter son la sabiduría, el coraje, la
moderación, y la justicia. Si uno carece de una de estas cualidades,
carece de todas; si realmente tiene una, las tiene todas. Ser libre
y feliz significa conocerse a si mismo, conocer la voluntad de
Dios para uno, y vivir de acuerdo con ese conocimiento. El estoicismo era tanto una religión como una filosofía.
Por su carácter filosófico era aceptado solamente por la gente culta. Las
masas no podían razonar de la manera que el estoicismo lo requería. Entre el
elemento de hombres educados algunas de las mentes más preclaras del imperio
seguían estas enseñanzas. Uno de estos fue Marco
Aurelio, emperador desde el A.D. 160 al 180. Había mucho en el
estoicismo que los cristianos podían usar y lo usaban, pero solo atraía a
los más preparados. Sin embargo, aun estos carecían de poder como para
hacer lo que el amor y la justicia requerían. Una de las más crueles
persecuciones del imperio contra la iglesia se llevó a cabo durante el reinado
de Marco Aurelio. El mundo, por lo tanto, continuó esperando una religión que
no solo enseñara lo que era justo sino que también proporcionara el poder para
hacerlo. Filón: Un filósofo a quien
debemos considerar es el pensador judío Filón. Este nació alrededor del año 20
A.C. Y murió poco después del año A.D. 40. Pasó
su vida en Alejandría, el centro de la dispersión judía. En
algunos aspectos Filón era más griego que judío.
Se entregó a la filosofía de una manera poco común en un judío, hablaba y
escribía el griego mejor que el hebreo, pero al mismo tiempo era, y permaneció
siempre, un judío verdadero. Consideraba que la más alta autoridad divina se
encontraba no en la filosofía sino en el Antiguo Testamento, especialmente el
Pentateuco. Sostenía que cualquiera cosa que fuera cierta en la filosofía de
los griegos ya había sido expresada antes en las Escrituras. El creía que de
alguna forma los griegos habían obtenido sus ideas principales del Antiguo
Testamento. Filón trató de combinar las escrituras del Antiguo Testamento
con la filosofía griega, lo que le trajo un problema con respecto a la
doctrina de la creación. Según la enseñanza bíblica Dios creó el mundo de la
materia, pero los filósofos griegos no podían aceptar esto pues sostenían que
Dios no puede tener contacto con la materia, que es el origen de todo mal. Por
lo tanto, Filón, como los griegos, colocó un
mediador entre Dios y el mundo. Este mediador se halla en el Logos.
El es el más grande de los poderes de que Dios está rodeado. En él vio Filón un
poder divino menor que Dios, que estaba entre Dios y el mundo. A través de él
Dios había creado todas las cosas. Más tarde, este pensamiento jugó un papel
importante en el esfuerzo de los pensadores cristianos para explicar la
relación de Cristo con Dios. Religión en el
imperio: Sin duda que los distintos puntos de vista filosóficos
satisfacían muchas mentes educadas. Sin embargo, las masas populares no eran
instruidas. ¿Cómo podrían ellas encontrar comunión y paz con Dios? Esto solo lo
podían obtener por medio de la religión. Aun entre las clases más privilegiadas
había un sentimiento de que la filosofía no proporcionaba la verdadera
respuesta a la necesidad espiritual del hombre. Muchas religiones existieron en
el imperio que trataron de llenar ese vacío. Se podían clasificar
aproximadamente en tres clases. Religiones de la
naturaleza: Estas religiones atribuían poderes sobrenaturales a las
montañas, a los lagos, los ríos, los árboles, el sol y la luna, a ciertos
animales, y hombres. Honraban las fuerzas de la naturaleza y creían en el poder
de amuletos y sortilegios. Aparte de esto creían en los antepasados, en
espíritus buenos y malos, en dioses que controlaban el destino de los hombres.
Cada religión en este grupo tenía sus propios mitos y rituales y una clase
especial de hombres llamados sacerdotes que podían recitar los mitos y celebrar las
ceremonias rituales. Este tipo de religión basado en la naturaleza era siempre
una religión de grupo. El elemento personal estaba en gran parte ausente. En
una sociedad sencilla de agricultores o pescadores tal religión podría parecer
adecuada, pero para los hombres que vivían en un mundo cambiante, en
desarrollo, no lo era. Ellos precisaban una
religión donde lo sobrenatural fuera más personal, una religión en la cual
pudieran experimentar el efecto de lo sobrenatural en sus vidas llenas de
problemas. Esta necesidad parecía satisfacerse en las religiones
de misterio. Religiones de mistério:
La gran atracción de estas religiones residía en la oportunidad de poder comunicarse con la divinidad. Esta
comunicación podía obtenerse por medio de ciertos actos ceremoniales. El
primero era el bautismo, ya sea por medio de agua o por la sangre de un
animal. Esto les lavaba de su contaminación y suciedad haciendo posible el
contacto con ese dios. Al bautismo seguía una comida sagrada con la cual
se experimentaba la comunión con el dios en cuestión. La comida sagrada llevaba
a un esclarecimiento o conocimiento. El nuevo creyente conocía al dios
dentro de cuya comunión había sido bautizado. Por medio de este conocimiento,
el creyente también se dedicaba a sí mismo al servicio del dios, y además podía
vivir en paz y morir confortado por la reconciliación con ese dios. Los
seguidores de esta religión no podían revelar los secretos del bautismo, de la
comida de comunión, y del esclarecimiento. Por esta razón es que se llamaba una
religión de misterio. Este tipo de religión tenía una larga historia en el
oriente: en India, Persia, Babilonia, y Egipto,
y estaba en su apogeo en el imperio cuando comenzó a diseminarse el
cristianismo. Por un tiempo el mitraísmo, una religión de
misterio, compitió con el cristianismo y tuvo muchos adeptos en el ejército
romano. Religión del estado La religión del estado tenía fuertes connotaciones
políticas. Su elemento principal era el sacrificio ofrecido al emperador.
Originalmente los sacrificios se habían hecho a los dioses del estado. En los
primeros años del imperio se hicieron sacrificios a los emperadores muertos.
Más tarde se comenzó a adorar a los emperadores que ejercían el poder, por
medio de sacrificios. El emperador era considerado como el dios que
proporcionaba orden y prosperidad en el estado; en cierto sentido se le tenía
por la encarnación del imperio. Por lo tanto la religión del estado estaba
considerada como el lazo que unía a la gran diversidad de pueblos y tribus a
través de todo el imperio. Cualquier religión que reconociera al emperador dios
y no interviniera con el buen orden del imperio, era aceptada como una religión
legítima. La religión del estado, sin embargo, era una religión sin calor, sin
comunión, sin unión con lo divino y, especialmente, era una religión sin
salvación. Capítulo 2: El comienzo de la iglesia: Fue en Palestina, la histórica tierra de Israel,
donde la iglesia del Nuevo Testamento apareció por primera vez en la historia.
(…) El ministerio de Jesús: El mensaje de Jesús
era sencillo. El predicaba que el reino de Dios estaba cerca y que
los hombres podían entrar en él por medio del arrepentimiento y la fe en el evangelio (Mr 1:14-15). El
arrepentimiento que Jesús requería era por la desobediencia a la ley de Dios.
Esta ley estipulaba que los hombres debían amar a Dios por sobre todo y a su
prójimo como a sí mismos (Mt 22:34-40). El amor es el cumplimiento de la ley.
Cuando la desobediencia trae aparejada la falta de amor, el arrepentimiento
restablece el equilibrio entre el hombre y Dios y entre el hombre y su prójimo.
El Sermón
del Monte ilustra de muchas
maneras cómo la relación vertical (el hombre con Dios) y la relación horizontal
(los hombres entre sí) pueden ser mantenidas y reforzadas. El evangelio
es la buena noticia de que Dios perdona a los
que se arrepienten, y los recibe como a hijos. Al mismo tiempo,
la predicación de Jesús no era un mensaje completamente nuevo. Surgió del
Antiguo Testamento y continuó a un nivel más profundo (Mt 5:17-20).»
(In Harry R. Boer, «Historia de la Iglesia Primitiva (1-787
D.C.)», cap. 1: “El mundo de la Iglesia
primitiva”, Facultad Latinoamericana de Estudios Teológicos,
Editorial UNILIT, 2011 Logoi, Inc., www.logoi.org ISBN 0-7899-0976-6.)
[26] Hans Küng refere-se, no âmbito desse ‘encontro de
culturas’, à «condenação das novas formas litúrgicas ‒ a propósito das disputas sobre os ritos ‒ como uma das causas capitais do amplo fracasso das
missões católicas modernas na India, China e Japão». (in «Infalible? Una pregunta», Herder,
Buenos Aires 1971, p. 36).
[27] O famoso “Dictionnaire de théologie catholique”,
com mais de trinta volumes, trata do animismo em três volumes (15, col. 3099 e
6, col. 559s) para condenar os desvios de um pensador europeu animista; o
dicionário alemão “Die Religionen in Geschichte und Gegenwart”, em seis
volumes, dedica três colunas ao animismo (1, col. 389-391) condenando as
doutrinas do antropólogo E. B. Tylor nos anos de 1871; o “Lexikon für
Theologie und Kirche”, de dez volumes, dá uma coluna ao animismo (1, col. 565-566)
para falar do mesmo Tylor. O “Dicionario de Teologia”, de Fries, editado
no Brasil, São Paulo, em cinco volumes, nem chega a falar do assunto.
[28] Halbwachs, M,. «Les
cadres sociaux de la mémoire», Paris, 1925.
[29] Citado por Ecléa Bosi, «Memória
e Sociedade», São Paulo, 1979, p. 21.
[30] Boff, L., «Igreja:
Carisma e Poder», Petrópolis, 1981-1982, p. 85. Cf. também: Josep M. Barnadas, «Fé cristã e situação colonial na América Latina»,
in Concilium 90 (1973), 1269-1275 (edição
provavelmente brasileira, da VOZES; a edição Cristiandad/Madrid deste número «Poder-Dominio-Servicio:
problemas éticos del poder» tem artigo do historiador ex-jesuita no “boletim final” «Fe cristiana y situación colonial
en America Latina» nas páginas 574-579); Comblin, J., «Théologie de la révolution ‒
Théorie», Paris, 1970, 216-234
(existe edição em castelhano, pela DDB-Bilbao, 1973, com o título «Teología de
la Revolución - Teoría»; cito Comblin: “El
clero que se cree políticamente el más neutral, es el que ejerce una influencia
política más fuerte”, p. 369).
[31]
Na revista «Humboldt», 7, 1963, p. 99-102.
[33]
Lorscheider, A., «A redefinição da figura do
bispo no meio popular pobre e religioso», em Concilium,
RIT, 1984, p. 754-757 (ed. Brasileira). Idem edição Cristiandad
(castelhana) Aloísio
Lorscheider, «Redefinición
de la figura del obispo en el âmbito popular pobre y religioso»,
196 (1984), pp. 383-386.
[34] Lacoste, Y., «La
géographie, ça sert, d’abord, à faire la guerre», Paris, 1976.
Na mesma linha: Teles N. Abreu, «Cartografia
Brasilis, ou: Esta História Está Mal Contada», São Paulo,
1984.
[35] Pixley, J., «Povo de Deus na tradição bíblica», in Concilium,
1984, p. 717-726 (ed. Brasileira). Edição castelhana: Jorge Pixley, «Pueblo de
Dios en la tradición Bíblica», in Concilium, LA IGLESIA POPULAR: ENTRE EL
TEMOR Y LA ESPERANZA, n. 196, Ed. Cristiandad, noviembre 1984, p. 341-351
[disponível na “Biblioteca Paulo Bateira”]