teologia para leigos

20 de junho de 2025

A Memória do Povo Cristão (E. Hoornaert)

 



 

 

PALAVRA INTRODUTÓRIA AO LEITOR

 

O objetivo do trabalho que se segue foi o de reunir e colocar ao alcance dos agentes de pastoral e outras pessoas interessadas alguns elementos da História da Igreja dos três primeiros séculos, que se encontram espalhados por publicações às vezes de difícil acesso. Na bibliografia, que está no final do volume, indicamos as fontes consultadas, bem como os estudos que nos inspiraram na redação destas páginas.

Tendo em atenção que o estudo se limita aos três primeiros séculos, temos de justificar algumas incursões que fizemos na história ulterior, ao tratar de determinadas figuras históricas ou movimentos, sobretudo no parágrafo 2 do capítulo II, quando abordamos figuras como Santo Efrém da Síria ou movimentos como o ‘ciclo missionário etíope’. Agimos desta maneira por julgar que esses assuntos podem fornecer sugestões para a nossa atual situação latino-americana. A mesma observação vale para a "excursão" sobre a mística no parágrafo 3 do capítulo IV.

Usamos bastante os dados colhidos do Novo Testamento, por serem de fácil acesso, em detrimento dos escritos específicos dos Padres como Justino, Ireneu, Tertuliano, Clemente, Orígenes, Hipólito, Cipriano, dos quais nem sempre conseguimos os relatos completos. Mas pensamos que a grande maioria dos leitores está, neste particular, em condições iguais à nossa e isso nos confortou na elaboração. Trabalhamos mais intensamente com os pequenos textos das comunidades, relatados no parágrafo 2 do capítulo III, do que com os tratados mais amplos, por nos parecer que aqueles representam melhor a vida das comunidades do que estes.

Afinal, é pensamento nosso que os cristãos de hoje, para estudar a História da Igreja nos três primeiros séculos, têm que fazer um esforço no sentido de ‘saber menos’, isto é, de fazer abstracção do impressionante sistema eclesiástico que se montou ulteriormente em cima da Tradição cristã dos primeiros séculos. No início o cristianismo não era hegemónico, mas vivia nas capilaridades mais recônditas da sociedade e se propagava pelo testemunho de cada dia, entre amigos e vizinhos, nos contatos pessoais, na pluriformidade do concreto[1].

Existe, na verdade, um paralelismo surpreendente entre actual experiência das comunidades de base e as primeiras comunidades cristãs. O pessoal da base não se engana quando exclama com entusiasmo: "Os primeiros cristãos viviam assim [como nós]". Foi para enraizar com maior firmeza essa memória histórica do povo cristão na América Latina que estas páginas foram redigidas, com muito esforço.

 

Eduardo Hoornaert, Introdução a «Memória do Povo Cristão», Vozes (Brasil), Col. Teologia e Libertação, Série I: “Experiência de Deus e Justiça”, 1986.

 

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INTRODUÇÃO

 

Cristianismo e memória,

ou:

A História da Igreja como ciência ao serviço da memória histórica do povo cristão

 

§ 1. CRISTIANISMO E MEMÓRIA

Em contraste com as outras religiões, o judaísmo e o cristianismo são por excelência religiões da memória, fundamentadas na recordação de factos históricos que ficam rememorados ao longo dos tempos. Na sua obra póstuma “As Origens da História”[2], o historiador inglês Herbert Butterfield demonstra como a consciência histórica do povo judeu contrasta com a dos outros povos. Essa consciência baseia-se na convicção de que o próprio Yahvé libertou o povo de Israel da dominação egípcia, ideia que percorre todo o Antigo Testamento. O Êxodo possibilitou a formação de uma memória coletiva no povo judeu que não tem igual nos outros povos, e de uma religião baseada nesta memória. Para os israelitas a História não era cíclica, baseada num eterno retorno das coisas e dos tempos, mas tinha uma linearidade e era, por conseguinte, irreversível. Toda a criação se dirige para um fim apocalíptico. Os judeus eram os primeiros na História da humanidade a conceber a História como dirigida para um fim. Essa concepção judia contrastava vivamente com o pensamento grego que era essencialmente anti-histórico e baseado no "eterno retorno de situações iguais", de sorte que - para os gregos - nada de realmente novo acontecia sob o sol: nihil novi sub sole. A filosofia grega se dirigia de preferência para o eterno e imutável. Os estoicos ensinavam que incêndios periódicos destruíam tudo e que tudo tinha que começar do nada, periodicamente. Quando os gregos, como Heródoto e Tucídides, se interessavam pela História era para dela tirar lições políticas. Podemos, por conseguinte, qualificar a historiografia grega de pragmática. Ela não tocava no âmago da existência humana, não tinha uma dimensão religiosa.

O cristianismo herdou do judaísmo o seu carácter memorial. Contudo, centrou a sua memória na encarnação, vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo, o Libertador não só do Egipto, - como fora Moisés - mas de todas as formas de dominação. Em contraste com o judaísmo, no seio do qual nasceu, o cristianismo coloca o centro da História em Cristo. Os judeus continuam esperando o Messias, enquanto os cristãos já realizam no tempo o Reino de Deus iniciado com Jesus. Para a visão histórica dos cristãos, há três momentos: a criação, o acontecimento Jesus e a parusia. O olhar dos cristãos está fixo em Cristo. Daí o tema cristão da esperança estar ligado ao tema da memória: a memória carrega a esperança, sem memória cristã desvanece a esperança. Disso provém, entre os cristãos, a necessidade da lembrança como tarefa religiosa fundamental, como se verifica no ensino cristão que afinal é memória, na liturgia cristã que é rememoração. O ano litúrgico comemora através dos tempos o evento Jesus: do Advento ao Pentecostes, passando pelo Natal, pela Quaresma, Páscoa e Ascensão. O dia litúrgico comemora - a cada missa celebrada - as palavras da grande lembrança: "Fazei isto em memória de mim" (Lc 22,19). O calendário dos santos não opera de maneira diferente, pois apresenta a memória dos santos, imitadores de Cristo na prática diversificada dos tempos e dos espaços. Os calendários, os martirológios, os livros memoriais (“libri memoriales”) da Idade Média, as horas canônicas, tudo é rememoração.

Os cristãos bem sabem que sua religião fica em pé ou cai com a veracidade de sua memória. Assim podemos compreender como desde cedo eles procuraram substituir a memória puramente oral pela documentação escrita. O escritor Ireneu de Lião, no final do século II, iá é testemunha desta evolução. Mesmo assim os cristãos continuaram a prestigiar os idosos, que eram homens da memória por excelência, sobremaneira úteis para a comunidade cristã. Essa veneração pelos idosos atravessa toda a Idade Média e só desaparece com os tempos modernos e com a autossuficiência das ciências modernas. Assim, o uso das letras "foi descoberto para conservar a memória das coisas”, como se dizia na Idade Média. Dizia-se também que "o aluno deve registar tudo na sua memória" e que as três "dignidades" da alma, segundo Santo Anselmo, eram a inteligência, a vontade e a memória. O grande escolástico Santo Tomás de Aquino atribuiu eminente papel à memória no estudo da teologia e elaborou sofisticados métodos mnemotécnicos.

Este cuidado cristão pela memória, afinal de contas, provém especificamente das tradições rabínicas veiculadas nas sinagogas. Os rabinos avivavam a memória através de expressões lapidares, parábolas, factos significativos, exemplos, provérbios, comparações. O sistema religioso baseado na proliferação de sinagogas numa vasta diáspora apresentava neste ponto vantagens diante do sistema centralizado em torno do templo de Jerusalém, por arquivos e escritos, no qual havia o perigo de os "donos da memória" se tornarem "donos do esquecimento", isto é, no qual os compromissos dos detentores do poder do templo com os donos do poder na sociedade como um todo podiam comprometer a fidelidade da transmissão de uma memória tão perigosa como era a da libertação da escravidão e do poderio de uma potência estrangeira. Os sacerdotes do templo podiam se lembrar de alguma coisa e esquecer muitas outras! As sinagogas estavam mais livres deste tipo de manipulação da memória e conseguiram com meios precários preservar a mensagem através dos tempos, aperfeiçoando técnicos de memorização e de comunicação. Jesus usou admiravelmente os recursos rabínicos na sua comunicação com os apóstolos e com o povo: ele era uma pessoa de fala penetrante e contundente, usava as parábolas, as respostas fulminantes, as expressões tão lapidares que foram facilmente registradas pelo seu público e conservadas até hoje. Ele reagiu contra esquecimentos típicos por parte dos detentores do poder religioso: os silêncios, em torno da mulher, do samaritano, do centurião, da prostituta, do estrangeiro, do publicano, dos “am ha'ares” ou "gente da terra" em geral [gente comum], dos pobres e marginalizados. Jesus declarou em alta voz que eles existem, que estão por aí e que vivemos no meio deles. Os esquecidos na memória social manipulada pelo Templo foram lembrados por Jesus. A perspicácia de Jesus neste ponto era incrível e permanece insuperada até os nossos dias, pois certos cristãos conseguiram imitar a Jesus em certos pontos, mas fracassaram redondamente na imitação de outros.

Os cristãos que conseguiram de maneira mais convincente realizar a prática de Jesus no seu tempo e no lugar onde viviam, sentiam a necessidade de preservar a memória. O santo mais simpático e mais importante da ldade Média, São Francisco de Assis, mandou escrever no seu testamento: "Para que em sinal da memória de minha bênção e de meu testamento eles (os irmãos) sempre se amem uns aos outros"[3].

Ora, a experiência vivida pelos cristãos mostrou de maneira convincente que a memória do evento Jesus não se transmite de maneira tranquila, que existe uma árdua luta pela memória cristã. Um estudo do século II demonstra que uma linguagem dura, ofensiva, odiosa invade a literatura cristã no referido século. Donde vem esta veemência? Manifestamente, da ânsia em preservar a memória cristã no meio de tradições sempre mais divergentes e confusas. Podemos seguir a evolução em Papias de Hierápolis (130 d.e.c.)[4], Hegesipo (154-166 d.e.c.)[5], Justino da segunda metade do século II[6] e lreneu de Lião, já no final do século[7]. Até Papias, a tradição oral ainda é a preferida pelos cristãos, pois ainda não se "canonizou" a tradição escrita. Papias se diz ouvinte do apóstolo João e colega de Policarpo de Esmirna, e o que recolhe deles não forma uma doutrina coesa, mas uma sequência de "ditos" (“logia”). Já Hegesipo revela uma nova preocupação diante das numerosas tradições aberrantes e apela para a tradição apostólica codificada. Justino também dá testemunho da insegurança entre os cristãos em relação à veracidade de sua memória. Ele se apoia nas memórias "que foram redigidas pelos apóstolos e por aqueles que os seguiram" (Diálogo, 103) e informa que estas lembranças dos apóstolos juntamente com os escritos dos profetas (que, para ele, constituem a Escritura Sagrada) são lidas e rememoradas nos serviços dominicais das comunidades (1 Apol. 67). Estas "lembranças" apostólicas recebem o nome de ‘evangelhos’. Percebe-se que a evolução vai no sentido da elaboração de textos escritos, sem desprezar a tradição oral. Finalmente, a evolução se completa com lreneu, que opta definitivamente pela tradição escrita. Foi sobretudo diante do desafio dos escritos dos marcionitas (Marcião de Sinope) que os cristãos foram forçados a pensar num cânone de escritos aceites por todos e que constituíssem um ponto seguro de referência. Desta forma lreneu já se encontra diante da memória cristã numa posição análoga à nossa: a referência é o cânone de livros do Novo Testamento, baseado nas memórias dos apóstolos, ou, dito de outro modo, na Tradição apostólica. Resta saber como essa Tradição se conserva inalterada, o que aprofundaremos ao tratarmos da comunidade de base. A Tradição apostólica codificada e escrita conviveu durante muito tempo com tradições elaboradas por grandes líderes heréticos como Marcião de Sinope ou Montano da Frígia. Foi só após o seu reconhecimento como lgreja imperial que o cristianismo passou a eliminar até aos últimos vestígios as numerosas "heresias" com as quais tinha convivido anteriormente. A "danação da memória" («damnatio memoriӕ») foi tão drástica que não conseguimos hoje ter em mãos uma só folha escrita por Marcião, considerado pai dos hereges. Mais tarde o sacerdote de Alexandria, Ario, (260-337), fundador do arianismo, foi vítima da mesma "danação da memória". Uma gravura medieval o apresenta ao lado de Judas e Lúcifer ao ser engolido pelo dragão do inferno, em baixo dos pés do Juiz Jesus Cristo. Ao cair no inferno Judas segura o cajado de apóstolo: trata-se de uma condenação cósmica, para todo o sempre. Essa reação muito violenta diante das heresias trouxe irreparáveis prejuízos para o nosso conhecimento das origens cristãs.

Com tudo isso temos que ficar atentos ao carácter peculiar da memória cristã. Ela foi e continua sendo frequentemente uma memória de vencidos e humilhados, marginalizados e desprezados e como tal não se articula numa "história" segundo a tradição hegemónica da historiografia nas grandes culturas, através de discursos, monumentos, arquivos, documentos, iconografia e arquitetura. Pelo contrário, ela se transmite de geração em geração como uma cultura popular, uma tradição oral, uma resistência cultural. Daí podemos perceber que a memória cristã sobrevive antes de mais nada em comunidades. Existe uma relação íntima entre memória cristã e comunidade de base. A orientação dada por São Paulo: "A Palavra de Deus não pode ficar acorrentada", pressupõe a procura, por parte dos cristãos, de instrumentos institucionais que possam garantir essa liberdade da Palavra de Deus diante da pressão dos poderes deste mundo. É responsabilidade básica da prática cristã procurar modelos sociológicos de Igreja que garantem a liberdade da Palavra de Deus. Os cristãos não podem ficar indiferentes diante da questão dos modelos de Igreja, pois receberam a missão de guardar e actualizar a memória de Jesus, dos apóstolos, dos profetas e de toda a história da aliança de Deus com os homens. O que orienta a prática cristã ao longo dos séculos é essa questão. Afinal de contas, o "deserto" de Santo Antão, a "Igreja espiritual" de Joaquim de Fiori, a "vida evangélica" de São Francisco de Assis, a "apologia por Marta" (diante de Maria) do mestre Eckhart, a "liberdade cristã" de Lutero – para mencionar só alguns momentos desta longa procura – esses esforços todos tinham como finalidade reavivar e reatualizar uma memória continuamente ameaçada pelas forças dos sistemas que governam o mundo. Nesta tradição de luta por uma memória cristã verídica inserem-se as atuais práticas das comunidades de base espalhadas pela América Latina e é em relação a estas práticas que pretendemos elaborar este estudo. Numa bela expressão, o historiador francês, H.-I. Marrou, define o historiador como um "missionário enviado ao passado para estabelecer o traço de união entre este passado e o presente". Na missão de reavivar a memória junto às comunidades, a História da Igreja tem o seu papel a cumprir, pois a memória cristã não é de modo algum uma memória puramente individual (minha fé, minha salvação), mas também uma memória coletiva, a memória de um povo. Mas assim como a memória individual não é algo puramente mecânico, mas vivo, objeto de estudo por parte de psicólogos, biólogos e outros, assim também a memória coletiva é viva e define a consciência de um grupo social. O historiador tem que perceber isso e corresponder às perguntas vivas que o povo cristão faz. Ora, o povo cristão que faz a experiência comunitária pergunta se no início os cristãos também se reuniram para resolver seus problemas, se eles também eram animados pela mesma esperança. Existe, pois, um apelo que surge das comunidades e diante deste apelo se situa a missão do historiador cristão. O que Jacques Le Goff afirma acerca do historiador em geral vale também para o historiador cristão: "A tarefa do historiador é a de transformar a memória em ciência".

A História da Igreja é uma ciência ao serviço da memória do povo cristão, não só no sentido de captar a memória, mas também no sentido de transformar a memória do povo em discurso coerente, baseado em documentos objetivos, num discurso inteligível. O povo tem direito à história no sentido pleno, não apenas a episódios intermitentes e parciais, ele deve saber descobrir as causas e os motivos dos acontecimentos. A História da Igreja ao serviço do povo não é servida por novas lendas, novas apologéticas, novos triunfalismos, renovados populismos. O povo cristão das comunidades merece saber a verdade plena, não apenas os aspectos entusiasmantes da verdade, mas também as lutas, os pecados, as falsas alianças que o cristianismo histórico cometeu por interesses nem sempre evangélicos. Por outro lado, uma História da Igreja ao serviço da memória coletiva do povo cristão deve saber evitar os perigos de um historicismo totalitário provocado pelos desvios de uma interpretação marxista por demais dogmática e mecanicista, segundo a qual tudo teria que recomeçar a partir do ponto zero, a tradição eclesiástica nada teria de bom nem de construtivo, a Igreja sempre teria ficado do lado errado e a função do clero sempre teria sido a de domesticar e controlar o povo. Generalizações como estas certamente não ajudam em nada a reconstrução da memória do povo cristão, pois no fundo procedem de um anti-intelectualismo que rejeita todo e qualquer esforço de penetração em assuntos complexos como são os assuntos históricos.

Tudo que foi escrito aqui acerca da memória cristã está contido num texto clássico que Simone Weil escreveu, em 1943, acerca do enraizamento: "O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana. E uma das mais difíceis de definir. Um ser humano adquire raízes devido à sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que mantém vivos alguns tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro. Participação natural, isto é, criada automaticamente pelo lugar, pelo nascimento, pela profissão, pelo ambiente. Todo o ser humano precisa de ter múltiplas raízes, precisa receber a quase totalidade de sua vida moral, intelectual, espiritual, por intermédio dos ambientes a que naturalmente pertence."[8] As comunidades de base são instrumentos de enraizamento popular na medida em que revelam a raiz cristã sobre a qual se erguem as práticas de libertação.

 

§ 2. EUSÉBIO DE CESAREIA E A HISTÓRIA DA IGREJA

O intento de elaborar um discurso historiográfico que possa dar envasamento científico à memória do povo cristão defronta-se inevitavelmente com uma longa tradição que remonta a um escritor eclesiástico do século IV, Eusébio de Cesareia (263-339)[9]. Eusébio, bispo de Cesareia na Palestina, escreveu uma “História Eclesiástica”, em dez volumes, num momento de grandes mudanças para a Igreja. Seu modo de escrever contrastava com o de escritores eclesiásticos anteriores pela fidelidade com que transcrevia os documentos da Igreja Antiga, especialmente na Ásia (Menor), Síria e no Egito, enquanto os anteriores misturavam história com lenda, narração com exortação. Tendo frequentado a famosa escola fundada por Orígenes (185-253 d.e.c.) em Cesareia na Palestina, ele foi muito estimado pelo próprio imperador Constantino por causa de sua erudição e foi mesmo indicado pelo imperador a pronunciar o discurso oficial comemorando os trinta anos de governo deste e a glorificação da nova cidade de Constantinopla. A escola de Cesareia possuía uma biblioteca estimada em trinta mil volumes, pelo que foi chamada, por Adolfo von Harnack, grande estudioso da helenização do cristianismo, "a biblioteca-mãe das bibliotecas medievais". A escola com a biblioteca constituía o mais importante centro de formação da Igreja nos séculos III e IV, de sorte que a autoridade de Eusébio era reconhecida em toda a Igreja. Ele significa a passagem definitiva entre a tradição oral na preservação da memória cristã e a tradição escrita, mais segura e definitiva.

A “História Eclesiástica” dedica sete de seus dez livros aos acontecimentos anteriores à grande perseguição de Diocleciano, que começou em 284. Esta data ficou gravada com tanta força na memória dos cristãos que estes computaram o tempo e os anos a partir dela. O cômputo a partir do nascimento de Jesus só se impôs mais tarde, no século IX. Os três primeiros livros de Eusébio tratam de Jesus, dos apóstolos e da idade pós-apostólica. Os livros quatro a sete oferecem basicamente quatro itens: listas episcopais das igrejas de Jerusalém, Roma, Antioquia e Alexandria; as grandes heresias; os principais escritores eclesiásticos; a perseguição por parte de judeus e gentios. Os livros oito e nove tratam da “perseguição dos nossos dias”, cuja memória estava viva na mente dos leitores, enquanto o livro dez conta a "vitória", sob Constantino, e a história dos mártires da Palestina, assim como a vida de Constantino.

Já se percebe por meio desta simples enumeração que o eixo em torno do qual se articula a obra de Eusébio é o da dicotomia "perseguição-vitória", "opressão-liberdade", "ortodoxia-heresia", e temos que reconhecer que a imagem que o cristianismo histórico carrega consigo através dos séculos acerca da era das perseguições contrastando com os "tempos cristãos" (“christiana tempora”) é predominantemente formada por ele. Voltaremos a este ponto, tão importante, após ter lembrado aos nossos leitores que os méritos de Eusébio, na historiografia cristã, são tão evidentes que ninguém os contesta: ele supera com maestria a postura historiográfica cristã anterior e começa a encarar seriamente as estruturas próprias da História e da "longa duração" desta; ele rompe com a função histórica do "destino" (“fatum, fato”) − tão típica da historiografia grega − substituindo-a pela racionalidade da Providência, ou seja, da Razão Divina que governa o mundo; ele é expressão do humanismo cristão que tem atenção e sensibilidade pelo que é pequeno e desprezado aos olhos do mundo (veja, neste sentido, a página admirável acerca de Blandina, mártir cristã: Hist. Ecl. 5,1,17). Num nível de técnica historiográfica, Eusébio é o primeiro historiador cristão a citar fielmente o material por ele usado e a indicar corretamente as fontes. Sua obra demonstra paciência, escrúpulo e excelente organização da matéria. Em diversos campos de nosso conhecimento acerca dos primeiros três séculos do cristianismo dependemos inteiramente das informações dadas por Eusébio, bem como para o conhecimento do "cristianismo rabínico", também chamado "Igreja da circuncisão"[10];  de Hegesipo em particular, da ida de São Pedro a Roma − unicamente dada por Eusébio na sua “Hist. Ecl. 2,14,6”[11] − ou acerca do montanismo[12] ou ainda acerca da questão pascal no final do século II, cuja documentação Eusébio pesquisa exaustivamente[13].

Isso não quer dizer que Eusébio não tenha uma tese ao escrever a sua História; e essa tese fica patente na dicotomia estabelecida com tanta nitidez entre a vitória com Constantino e as dificuldades antes deste imperador. A imagem das perseguições, estabelecida por Eusébio, é altamente simbólica, baseada numa comparação com as dez pragas do Egito. Assim como houve dez pragas, assim também dez perseguições. Constantino é apresentado como libertador, uma espécie de Moisés. A «História Eclesiástica» revela uma determinada visão da Igreja inspirada num apaixonado entusiasmo pelo "líder" Constantino[14]. Podemos crer que esta visão representa um setor das lideranças cristãs da época, o setor que ficou entusiasmado com as novas relações políticas criadas sob Constantino e que as projeta no nível do plano divino, faz uma teologia imperial ou uma teologia da História totalmente nova para a época. Mas é difícil imaginar que, à época, todos os setores cristãos concordassem com esta visão. Acontece que Eusébio, pelo seu esforço historiográfico, consegue criar na Igreja o espaço para um novo género literário cristão que não problematiza a relação entre a memória cristã e a simples sucessão apostólica no sentido de sucessão de bispos nas igrejas locais. Há uma evidente preocupação por parte de Eusébio no sentido de estabelecer, para cada uma das Igrejas locais, listas de bispos que remontam até a idade apostólica. Assim para Jerusalém ele refere quinze sucessões de bispos, número considerado excessivo por Daniélou[15], e para Roma ele traça um quadro hierárquico minucioso (Hist. Ecl. 6,43,44)[16]. Outro exemplo de uma História complexa − como sabemos por estudos recentes − que Eusébio simplifica: no início do ‘Livro 3’, Eusébio afirma que depois da queda de Jerusalém a "terra habitada" (oikumenè) foi repartida em zonas de influência entre os apóstolos: Tomé para os Partos, João para a Ásia, Pedro no Ponto e em Roma, André para a Cítia[17]. Essa imagem da evolução da Igreja pressupõe o modelo de Igreja local territorial, modelo que não corresponde à experiência das comunidades iniciais, como veremos ulteriormente neste trabalho.

O programa exposto por Eusébio no início da sua obra é o seguinte:

 “Tendo-me proposto consignar por escrito as sucessões dos santos apóstolos juntamente com os tempos percorridos desde nosso Salvador até nós, quantas e quão grandes coisas aconteceram na História da Igreja; os que governaram e presidiram gloriosamente à mesma Igreja nas mais ilustres sedes; quantos em cada geração pregaram a palavra de Deus por palavra ou por escrito; quantos e em que tempos, levados pelo desejo de novidades, caíram em extremos erros, se proclamaram a si mesmos introdutores de uma falsa ciência e, ao modo de lobos vorazes, devastaram sem piedade o rebanho de Cristo; quantas calamidades sobrevieram imediatamente, em castigo por seu crime contra nosso Salvador, a toda a nação dos judeus; de que modo e em que tempo foi a palavra divina combatida pelos gentios e quantos, em diversos tempos, e, além disso, os martírios que se deram ainda no nosso tempo e como se mostrou propícia e benigna a ajuda a ajuda de nosso Salvador e Senhor Jesus, o Cristo de Deus” (Hist. Ecl. 1,1)[18]. Este programa foge completamente ao que deve ser uma História da igreja ao serviço da memória do povo cristão, pois não segue a linha da História de Israel, acabando por a substituir pela tradição da historiografia dinástica. A tradição da lei, dos profetas, da libertação dos humildes e marginalizados é abandonada em benefício da tradição dos instrumentos próprios de rememoração de uma igreja imperial, que vê no imperador um género de Moisés e Davi, um homem escolhido por Deus para preparar o caminho de Deus e libertar o seu povo. Os inimigos, para Eusébio, são os montanistas, os donatistas, os novacianos, ou então os judeus ou "gentios", e não as estruturas do Império, o poderio dos ricos que exploram os camponeses pelo tributo pesado e os escravos urbanos à custa de trabalhos forçados. A Igreja é identificada com um grupo apenas dentro dessa estrutura: o grupo dos organizadores. Nada acerca dos "organizados", senão nos relatos de martírios. O programa de Eusébio serve decerto como disciplina eclesiástica nos cursos que preparam os que terão que organizar a estrutura da igreja, mas não como exercício eclesial de enraizamento, rememoração da aliança de Deus connosco que passa por Abraão, Moisés, os profetas, Jesus, os apóstolos, os santos. A memória das lutas e esperanças do povo cristão que procura resolver urgentes problemas de sobrevivência, saúde, direitos humanos básicos, não encontra espaço nas páginas da “História Eclesiástica” de Eusébio de Cesareia, nem se repete nelas a cada momento que é possível, em cada instante e em cada lugar, mudar o rumo das coisas, orientar a vida para o êxodo, sair do Egito do Faraó e entrar na "terra santa", quebrar a triste concatenação de dominações e humilhações na história da humanidade.

O sucesso do programa de Eusébio de Cesareia, na longa tradição da História da igreja como disciplina eclesiástica, não deve ser procurado na originalidade ou profundidade de seu pensamento ‒ pois é fácil contestar a sua teologia imperial a partir dos mais elementares conceitos de uma teologia bíblica ‒ mas simplesmente no facto de ele ter vindo confirmar, por escrito e por uma tese, um caminho prático que um importante setor das lideranças da igreja ‒ que maís tarde chegaria a ser hegemónico ‒ começava a trilhar: o caminho da aliança entre o Estado eclesiástico e a sociedade política do Império Romano. O novo modelo de Igreja, baseado nesta aliança, encontra na “História” de Eusébio uma confirmação teórica de sua prática. Mais uma vez aconteceu aqui que a teoria veio confirmar a posteriori uma prática e criar em torno desta um consenso eclesial duradouro.

Podemos definir as coisas da seguinte maneira: um modo de encarar a História da Igreja procura, especificamente, a preservação da memória das instituições que o cristianismo gerou ao longo de sua experiência histórica, ao passo que um outro modo visa a memória das múltiplas práticas cristãs na linha do profetismo[19]. Ambos estão dialeticamente colocados na realidade memorial do cristianismo histórico: de um lado, a tradição eusebiana, do outro a "profética". A tradição eusebiana só pode ser triunfalista ou apologética. ‘Triunfalista’ quando a instituição prospera, ‘apologética’ quando ela se sente ameaçada. Já nos séculos IV até VI, Eusébio foi seguido por autores como Sócrates de Constantinopla, Sozómeno de Constantinopla, Teodoreto de Ciro, Evagro o Escolástico, Epifânio de Salamina e Isidoro de Sevilha. Na ldade Média, só os cronistas do Império cristão estudavam propriamente a "História da igreja", pois o interesse maior estava voltado para a História dos povos cristianizados, os bispados, os mosteiros e suas “crónicas” e ”anais”, os santos e suas “vidas”. Por isso torna-se difícil seguir na ldade Média os traços de uma tradição eusebiana. Mas com o ressurgimento de um interesse historiográfico propriamente dito na Idade Moderna, ressuscitou também a tradição eusebiana na sua vertente apologética. No final do século XVI, César Baronio ‒ (30 de agosto de 1538 / 30 de junho 1607) ‒ respondeu aos estudos históricos protestantes que tencionavam provar que o protestantismo, e não o catolicismo, era o continuador do cristianismo primitivo, com a publicação de doze tomos sob o título “Anais Eclesiásticos”, obra apologética por excelência. Até o século XIX, Baronio exerceu considerável influência na História eclesiástica enquanto disciplina nos seminários, onde se formava o clero, inspirando outras obras de dimensões igualmente gigantescas como a de Rohrbacher, elaborada entre 1842 e 1849 em 29 tomos, a de Hergenröther, entre 1911 e 1917, em quatro tomos, e ainda a de Flichte-Martin, iniciada em 1936 e projetada para 24 tomos.

Depois do Concílio Vaticano II foram publicadas duas obras gerais de História da Igreja que procuram ultrapassar a controvérsia entre católicos e protestantes: o “Manual de História da Igreja”, em oito tomos, elaborado na Alemanha sob a direção de Hubert Jedin (1900-1980) e a “Nova História da Igreja”, em cinco tomos, redigida sob a direção dos professores Rogier (Holancla), Aubert (Bélgica) e Knowles (Inglaterra). No Manual por ele dirigido, Jedin critica a autoconsciência da Igreja como "sociedade perfeita" e abre assim espaços saudáveis para o exame científico da instituição, combatendo a ideia de um progresso contínuo na História da Igreja e admitindo períodos de decadência no decorrer desta História, tudo na melhor tradição do Concílio Vaticano II[20]. A Igreja, segundo Jedin, é a “reformata reformanda” (em contínuo processo de reforma), a “ecclesia semper reformanda”. Acontece que essa leitura da História da Igreja através do tema da reforma não articula, com a necessária clareza, a relação entre reforma da instituição (a famosa “reformatio in capite”, a reforma na cúpula) e reforma no sentido de movimentos de base (heresias, por exemplo). Quais as forças históricas que estão na origem dos movimentos de reforma? Quais os lugares sociais que condicionam tanto a decadência como a reforma e que relação eles têm com a sociedade global? O “Manual” não responde a este tipo de indagações.

Quanto à “Nova História da Igreja”, o período por nós estudado neste ensaio coube ao professor Jean Daniélou, especialista em assuntos ligados aos primeiros séculos cristãos. Nas entrelinhas do trabalho de Daniélou percebe-se que ele não tem muita simpatia pelo que chama de "cristianismo escatológico" ou "idealista"[21] e que se exprime no montanismo ou em figuras como Tertuliano, Hipólito ou mesmo Orígenes[22]. A este cristianismo "idealista" Daniélou opõe o chamado modelo "realista" de aliança com os poderes políticos da época ou pelo menos de relativa "paz" com estes poderes. Daniélou reserva mais simpatias por figuras como Clemente de Alexandria[23] que se movia com facilidade nos meios da burguesia de Alexandria e deixa as portas abertas para os ricos ‘entrarem’ sem problemas de consciência de maior. Este grande debate eclesiológico do século III, segundo as suas palavras, resume-se ao “conflito dos intelectuais apaixonados por uma Igreja ideal com os pastores conscientes das condições da Igreja real[24]. A Igreja que Daniélou qualifica de "ideal" ou idealista não é outra coisa senão a Igreja profética, comprometida com a mensagem de libertação e por isso mesmo em conflito com os poderes deste mundo. Concluindo estas breves apreciações acerca da ideologia que guiava o pensamento tanto de Jedin como de Daniélou, podemos dizer que ambos, de alguma forma, estão na continuidade do que se poderia chamar de “tradição eusebiana”, num sentido muito amplo, pois ambos deixam de questionar um modelo de Igreja que se impôs no século IV e que estava em descontinuidade com o modelo da Igreja primitiva.

O nosso intento historiográfico difere da tradição eusebiana em três pontos principais. O primeiro diz respeito ao histórico encontro entre cristianismo e helenismo, do qual Eusébio teria sido um dos privilegiados intérpretes. Muitos atribuem a este encontro um valor muito especial: o helenismo teria dado ao cristianismo o caracter racional, equilibrado, humanista que este tem atualmente e isso seria uma conquista para sempre. Longe de contestar os valores do helenismo, queremos apenas lembrar o modo pelo qual se deu o encontro. A imagem que se criou foi a de um encontro intelectual, teórico, quase planeado. Ora, antes de ser planeado, este encontro entre evangelho e helenismo foi uma experiência vivida durante séculos na base do edifício cristão, nas comunidades. Os teólogos que helenizaram o cristianismo não são senão expressão sistematizada de algo vivido na prática diária dos cristãos que causava um sem-número de problemas. Como manter a pureza da fé diante das mitologias gregas? Como distinguir entre milagre cristão e magia? Como dizer que o cristianismo é uma “filosofia”?[25] Acontece que o cristianismo ‒ no decorrer de sua História ‒ encontrou problemas provenientes de situações bem diversas e distintas da helenização. Assim o cristianismo defronta-se ‒ já faz mais de quatrocentos anos ‒ com os animismos da América, da África e da Ásia. Este encontro é vivido no dia-a-dia da pastoral cristã e cria inúmeros problemas. Como ser cristão numa cultura africana ou de origem africana, no Brasil, por exemplo? Toda a "questão dos ritos", na China, se resume às dificuldades práticas deste novo encontro histórico[26]. Ora, os intelectuais cristãos e teólogos dão-lhe pouca atenção e os dicionários de teologia cristã praticamente não se ocupam com este assunto nos seus pesados volumes[27], enquanto a teologia sistematizada quase nada tem a dizer sobre o assunto. O único que se solicita neste campo é um espaço para podermos reflectir fora dos quadros rígidos que a tradição eusebiana impôs à História da Igreja, para que esta possa fornecer aos teólogos os elementos de revisão da relação entre cristianismo e religiões populares.

Um segundo ponto de divergência com a tradição eusebiana diz respeito ao eruditismo. O caráter monumental que se deu à História da igreja impressiona e ao mesmo tempo afasta o leitor principiante do historiador cultivado. Frequentemente, o historiador consegue esconder sua falta de metodologia sob a capa da erudição, derramando sobre o pobre estudante um acúmulo impressionante de factos, concatenação de datas, enumeração de acontecimentos, criando a ilusão da objetividade e esquecendo ‒ ou fazendo esquecer ‒ que faz continuamente intervir suas próprias categorias ao analisar os dados do passado. O maior defeito do método de Eusébio de Cesareia estava no facto de ele partir do pressuposto de que a história evoca pura e simplesmente o passado, e esse deleito passou de geração em geração, pela aplicação ao passado da experiência de hoje. Quando, por exemplo, discutimos hoje se a igreja primitiva era episcopal ou não, hierárquica ou não, se já existia desde o início o primado do Papa de Roma, se Jesus "instituiu" os sete sacramentos, estamos manipulando documentos antigos com a nossa visão e a realidade vivida hoje, fazemos dizer aos documentos "mortos" ‒ pois toda historiografia mexe com os "mortos" ‒ o que estes nunca disseram; procuramos ressuscitar experiências que não correspondem à nossa experiência de hoje, e isso acontece porque estamos querendo comprovar algo que é da nossa experiência e observamos o passado através desta vontade de comprovação. Alimentamos então a ilusão de que ficamos inteiramente receptivos diante do dado passado, que nos entregamos à pesquisa científica, mas para tanto estamos sabendo "demais", isto é, não estamos conscientes da influência social sobre a nossa memória, ou pelo menos insuficientemente conscientes. Num estudo já antigo, mas fundamental, Maurice Halbwachs tratou desta influência da sociedade sobre o nosso modo de "ler" o passado[28]. As palavras de Anatole France são muito sábias: "Para sentir o espírito de uma época que já não existe ... a dificuldade não está tanto no que é preciso saber do que no que é preciso esquecer ou rejeitar"[29].

Diante da impossibilidade de recuperar o passado cristão "tal como ele realmente foi" (“Wie es eigentlich gewesen ist”, segundo a palavra célebre de Leopold von Ranke, pai do historicismo), tentaremos algo mais modesto: apresentar alguns temas que nos parecem corresponder às questões levantadas pela caminhada das comunidades hoje. Confessamos, pois, que o nosso interesse gira em torno do presente vivido nas comunidades de base na América Latina e, por conseguinte, em torno do novo modelo eclesial emergente. Existe um interesse social ‒ e não apenas individual ‒ em recordar certos aspectos e temas ligados à igreja Antiga, pois estes temas sustentam a esperança hoje. Queremos ficar ligados à grande tradição de esperança que percorre toda a História da Igreja e ficar mais firmes na defesa da memória cristã diante do perigo sempre presente de manipulação desta memória.

O que foi dito até aqui está admiravelmente resumido nas palavras incisivas do filósofo Walter Benjamin, numa de suas "Teses sobre a filosofia da História": “Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele realmente foi’. Significa conquistar uma memória que relampeje num momento de perigo e aflição… A tradição deve tentar salvar-se, em cada época, do perigo do conformismo, que está sempre a ponto de subjugá-la. O Messias não vem somente como Salvador, ele vem também como Vencedor do anticristo. O dom de suscitar a faísca da esperança compete somente àquela historiografia que está compenetrada do seguinte: até os mortos não estarão a salvo do inimigo, caso este vença. E este inimigo não pára de levar a melhor”.

Um terceiro e último ponto em que divergimos do projecto historiográfico de Eusébio de Cesareia, e seguidores, diz respeito à questão do poder. Acreditamos ser impossível estudar o História da Igreja sem tocar na questão do poder e fazer a pergunta de Leonardo Boff: "A Igreja‒instituição passou pela prova do poder?"[30]  Acreditamos, tal como o filósofo cristão Reinhold Schneider, que o poder não é propriedade de ninguém, mas empréstimo de Deus: "Usar do poder significa uma particular ligação misteriosa com Deus, significa estar à disposição da graça"[31]. Não acreditamos que Eusébio de Cesareia tenha feito uma leitura propriamente "cristã" das relações de poder quando via no Império Romano um modelo inclusive para a organização da Igreja, e, no imperador, o realizador do Plano Divino, comparável a Moisés ou Davi. Não acreditamos que o imperador possa ocupar o lugar de uma espécie de super-bispo que coordena trabalhos internos da Igreja. Chegamos quase a endossar as palavras penetrantes do historiador inglês Lord Acton[32]: "Todo poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente", pois elas revelam uma paixão que nos anima também. Acreditamos na possibilidade de "redefinição da figura do bispo no meio popular pobre e religioso", conforme palavras do Cardeal Aloísio Lorscheider[33], assim como da figura de outros cargos na Igreja, através da experiência comunitária. O poder partilhado ao serviço dos humildes e exercido na comunidade não nos parece uma utopia fora da história.

 

§ 3. PARA UMA GEOGRAFIA CRISTÃ DA HISTÓRIA

A história sem geografia manca: falta-lhe a perna da descrição no espaço do que acontece no tempo. Tempo e espaço têm de andar conjugados para que se consiga uma compreensão do passado que seja útil à caminhada de hoje. Para quê falar de Jerusalém, Antioquia, Alexandria, Roma, Cartago, se não se sabe onde ficam situadas essas cidades, e se articulam entre si? Acontece que já vai longe a doce ilusão de uma geografia objectiva e não ideológica. Sem assumir a sua posição provocante de Yves Lacoste ‒ que pode ser pedagogicamente justificada ‒ ao proclamar que “a geografia, antes de tudo, serve para fazer a guerra[34]”, temos de reconhecer que, sobretudo após a vitória da cartografia moderna ao “desorientar” e “nortear” a geografia, a ideologia do “centro-periferia” ‒ típica do capitalismo ‒ começou a imperar nos estudos geográficos, ao ponto de os próprios mapas do cristianismo ‒ os da Terra Santa, os da expansão do cristianismo, os das viagens de São Paulo, etc. ‒ terem sido “norteados”, isto é, colocaram o Norte em cima, em contraste com os mapas antigos e medievais.

Desde o início da expansão do sistema mundial moderno ‒ que mais tarde receberia o nome de “capitalismo” ‒ os cartógrafos que compuseram os primeiros “atlas”, ou colecções sistemáticas de mapas, começaram a praticar duas mudanças na imagem simbólica do mundo: (…)

 

(…): as grandes cidades cristãs situam-se nos portos marítimos ou na confluência de grandes rios. Isso prova que o cristianismo deixou de ser predominantemente camponês, tal como fora o povo de Israel[35], e passou a ser suburbano de cariz comercial ou artesanal. Tudo indica que a primitiva comunidade de Jerusalém ainda fosse camponesa. É o que sugerem os seguintes textos: Actos 2,44: «Vendiam as suas propriedades e os seus campos…»; Actos 4,36-37: Barnabé vendeu o seu campo e entregou o dinheiro da venda aos apóstolos e ainda Actos 5,1-2: «o caso de Ananias e Safira». Contudo, esta situação rapidamente muda, seja pela marcante influência de S. Paulo (pelo menos no Ocidente), seja pela ruína de Jerusalém no ano 70 ou ‒ com maior força de razão ‒ pela própria constituição do sistema mundial romano, o qual combinava uma estrutura escravocrata com uma estrutura tributária. Em suma: a economia comercial-artesanal romana, baseada no trabalho escravo, era sustentada pela economia agrária, baseada no trabalho tributado através do censo. O censo era um acto formal pelo qual o povo de camponeses, na prática, passava a ser colónia dos romanos. Desta forma, os cristãos dos primeiros séculos viviam, consoante a sua situação, sob o sistema escravocrata ou sob o tributário.

 

CAPÍTULO I

OS MARGINALIZADOS

 

§ 1.A CONSCIÊNCIA QUE OS PRIMEIROS CRISTÃOS TINHAM DE SI MESMOS

(…)

 

Eduardo Hoornaert, «TOMO III - A Memória do Povo Cristão», VOZES Petrópolis, Brasil, 1986, p. 13-40.

 

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[1] Podereis achar entre nós ignorantes, trabalhadores manuais, velhas mulheres. Por palavras seriam bem incapazes de fazer uma exposição dos seus princípios. Não sabem recitar frases de cor, mas demonstram boas acções … dão a quem pede e amam o seu próximo” (palavras de Atenágoras de Atenas em defesa dos cristãos, in Lucien Deiss«Printemps de théologie – apologistes grecs du 2e. siècle», Paris, ed. Fleurus, 1965, pp. 71-72). Na Nota de pé de página n.9 (p. 72), Lucien Deiss continua: «Censuravam o cristianismo dos começos por ter recrutado preferencialmente entre os ignorantes, os escravos e as mulheres idosas. Dito assim, essa censura, ainda que parecesse ser muito dura aos ouvidos de certos cristãos instruídos, fazia todo o sentido. Referindo-se à comunidade de Corinto, composta sobretudo por trabalhadores à jorna e ganhões, Paulo já havia tido a oportunidade de dizer: “Irmãos, pensem no que vocês eram quando foram chamados. Poucos eram sábios segundo os padrões humanos; poucos eram poderosos; poucos eram de nobre nascimento. Mas Deus escolheu o que para o mundo é loucura para envergonhar os sábios e escolheu o que para o mundo é fraqueza para envergonhar o que é forte. Ele escolheu o que para o mundo é insignificante, desprezado – eis o que Deus escolheu” (1 Coríntios 1, 26-28). Encorajado pelo julgamento de Jesus, que beatificou a pobreza e maldisse a riqueza (Lucas 6, 20.24), o cristianismo implantava a sua maravilhosa riqueza entre aqueles mesmos que o mundo tinha como desprezíveis. Só faltava, a partir de agora, demonstrar que a religião de Jesus Cristo não era apenas segundo a apreciação do paganismo “um rebento do judaísmo, religião nacional a mais insignificante de todas”» (A. Harnack, «Die Mission und Ausbreitung des Christentums in den drei ersten Jahhunderten», Leipzig, p. 351).

 

[2] Butterfield, H., «The Origins of History», Londres, 1984.

[3] “Ut in signum memoriӕ meӕ et mei testamenti sempre diligat se ad invicem”.

[4] Altaner-Stuiber, «Patrologie», Friburgo, 81978 (abr. A-S), p. 52-53.

[5] A-S, p. 109-110.

[6] A-S, p. 65-70 e Greschat, M., «Alte Kirche», Stuttgart, 1984 (abr. A.K.), vol. 1, p. 64.

[7] A-S, p. 110-117.

[8] Weil, S., «A Condição Operária e Outros Estudos sobre a Dominação», Rio de Janeiro, 1979, p. 347. Página 45 da Relógio D’Água Editores («O Desenraizamento – II Parte»), Lisboa Novembro de 2014, ISBN 978-989-641-459-7.

[9] A-S, p. 217-224; A.K., 1, p. 224-235.

[10] Daniélou, J., «Nova História da Igreja», I, Petrópolis, 1966, p. 33. [NdE/pb]: J. Daniélou & H. I. Marrou, «Nueva Historia de la Iglesia, Tomo I – Desde los orígenes a San Gregorio Magno», Cristiandad, Madrid, 21982. ISBN-T.1: 84-7057-225-7. Cito p. 50: “Deste cristianismo rabínico encontramos alguns indícios nos escritos do Novo Testamento; por estes escritos provirem de outro ambiente, é provável que aquele tipo de cristianismo perca importância e passe despercebido no texto. A ele remonta, sem dúvida, toda uma literatura targúmica da qual encontramos indícios em S. Paulo (R. Le Déant, «Traditions targumiques dans le Corpus paulinien», Bibl., 42, 1961, pp. 28-48) e cujos fragmentos nos foram transmitidos pela Carta de Clemente, pela Epístola de Barnabé e outras obras posteriores. De facto, o targum é um género característico dos escribas fariseus.”

[11] Daniélou, J., op. cit., p. 52.

[12] Daniélou, J., op. cit., p. 118.

[13] Daniélou, J., op. cit., p. 123.

[14] Altaner-Stuiber, «Patrologie», Friburgo, 81978 (abr. A-S), p. 185-188.

[16] Daniélou, J., op. cit., p. 206.

[17] J. Daniélou & H. I. Marrou, «Nueva Historia de la Iglesia, Tomo I…», op. cit., p. 83.

[18] Jedin, H., «Manual de Historia de la Iglesia», Vol. I, Barcelona, 1966, p. 52.

[19] Estudos Bíblicos, 4, Petrópolis, 1984, passim.

[20] Alberigo, G., «”Reforme” en tant que critère de l’histoire de l’Église», Revue d’Histoire Ecclésiastique, Lovaina, 76, 1981, p. 72-81.

[22] Daniélou, J., op. cit., p.120 e 155.

[23] «Nueva Historia de la Iglesia Vol. I – desde los orígenes a San Gregorio Magno», Cristiandad 1982, p. 171-172: “Estamos muito longe das tendências encratitas do ambiente palestiniano primitivo. (…) [Clemente de Alexandria] queria criar um tipo de cristão estreitamente relacionado com o ideal helenista de Homem, que nada tivesse que ver com os elementos judaicos que pudessem existir no Evangelho. Havia que abandonar essa velha vestimenta. É então que se realiza precisamente em Alexandria o processo de desenraizamento sociológico face ao judaísmo (…). A roupagem judaica cai como uma pele morta e, então, nasce um ‘cristão novo’ semelhante, em toda a sua aparência, a qualquer outro cidadão alexandrino: a mesma indumentária, a mesma linguagem, os mesmos costumes tal como admiravelmente já dizia a «Carta a Diogneto». A diferença reside apenas no espírito que o anima. Tudo isto poderá ser resumido, em Clemente, com uma só frase: o cristianismo é a verdadeira filosofia, a verdadeira sabedoria (=”gnose”). Nele realiza-se o ideal prometido pelos sábios da Grécia. E Clemente sabia bem o que isso era.  Tinha lido Epicteto e Musónio. Não ignorava as “virtudes” do sábio: apathéia e parrésia. Virtudes que, segundo ele, se realizam no cristão. O cristão ideal (…) está de acordo com o Evangelho, mas não tem nada de um profeta palestiniano: tem muito mais a aparência de um sábio estoico habitado por um espírito outro. O cristão helenizado surge, pela primeira vez, na obra do alexandrino, não apenas pela aparência exterior, mas sobretudo pela sua conformação interior.» Trata-se, efectivamente, da passagem dum cristianismo semita a um cristianismo gnóstico-helenista! A Mensagem de Jesus deixa para trás “o ambiente de Jesus”, in-cultura-se no Espírito Grego, passando a exprimir-se através de uma linguagem filosófica gnosticista e platonista (abstracta e dualista). É assim que a “Mensagem de Jesus” passa a fazer parte da Cultura grega de corpo inteiro e sem incompatibilidades insanáveis

[24] Daniélou, J., op. cit., p. 155.

[25] Ponto prévio: uma (longa, mas necessária…) pausa para mergulhar no Mundo em que o cristianismo nasceu.

«LA DISPERSIÓN: Hasta ahora nuestra reseña del judaísmo se ha limitado a Palestina. Es importante notar, sin embargo, que había muchos más judíos fuera que dentro de Palestina. La deportación de prisioneros de guerra, pero especialmente los intereses comerciales, diseminaron a los judíos por todas direcciones fuera de Palestina. Se estima que durante el tiempo del primer Imperio Romano había dos millones y medio de judíos en Palestina y un millón en Egipto, lo mismo en Asia Menor y en Mesopotamia, respectivamente. Además alrededor de cien mil judíos habitaban en Italia y en África del norte. Colonias más reducidas se encontraban desparramadas a través del imperio. Las referencias en el Nuevo Testamento a los judíos dispersos son impresionantes: Juan 7:35, Hechos 2:5-11 y otras muchas a través de este libro, Santiago 1:1, 1 Pedro 1:1. Parte inseparable de la dispersión era la sinagoga. Estos dos factores juntos establecieron una base natural fuera de Palestina para la proclamación del evangelio en otras tierras. El centro más importante de la dispersión fue Alejandría, en Egipto, donde los judíos ocupaban barrios enteros. Allí el Antiguo Testamento fue traducido al griego en el año 250 A.C., poniéndolo así al alcance del mundo griego. Esta traducción fue conocida como la Septuaginta (versión de los Setenta). Allí también la vida intelectual judía halló su más grande exponente en el filósofo judío Filón -entre los años 20 A.C. Y A.D. 42, de quien hablaremos en la próxima sección. EL PENSAMIENTO GRIEGO: Dentro del imperio la influencia espiritual más importante no vino de los romanos sino de los griegos. El poder y la ley romanos controlaban la vida militar, política, social, y económica del imperio; pero el pensamiento griego controlaba las mentes de los hombres. Primeros filósofos griegos: Alrededor del año 600 A.C. los filósofos griegos meditaron profundamente acerca de la naturaleza del mundo y el significado de la vida. El primero de los filósofos fue Tales, que vivió en la ciudad de Mileto en la costa sudoeste del Asia Menor. El creía que todo lo que existía de una u otra manera había surgido del agua. Anaximandro, un discípulo de Tales, enseñó que no el agua sino la ilimitada atmósfera era el origen de todas las cosas. La filosofía de Heráclito, quien vivió alrededor del 500 A.C. en Éfeso (también en Asia Menor), era más compleja. El elemento básico del universo, decía, es el fuego. De él proceden todas las cosas, y a él vuelven todas las cosas. Del fuego sale el aire; del aire, el agua; del agua, la tierra. Luego la tierra vuelve al agua; el agua al aire, el aire al fuego, y así sigue el ciclo interminablemente. Las combinaciones que son posibles por medio de estos cambios producen la gran variedad de cosas que se hallan en el mundo. Pero ninguna permanece. No hay nada constante en la vida, nada que permanezca. La vida es como un río que corre; nadie puede bañarse en la misma agua dos voces. En realidad, Heráclito hizo del río un símbolo de su filosofía, la cual resumió con las palabras "todas las cosas fluyen". No obstante, este mundo siempre cambiante está controlado por una mente, una razón que él llamó el logos. Esta palabra debe ser cuidadosamente notada, pues ella tuvo un papel muy importante en el pensamiento teológico de la iglesia primitiva. Tales, Anaximandro, y Heráclito vivieron todos en el Asia Menor, la cual había sido colonizada por los griegos. Una colonia similar griega al sur de Italia también produjo filósofos. Una de sus figuras más destacadas fue Parménides. Contemporáneo de Heráclito, Parménides enseñó lo opuesto del filósofo efesio. Él creía que no había ningún cambio en absoluto. Hay una sola cosa que existe; lo que es. Todo el cambio que experimentamos y observamos es solo apariencia. La variedad, la belleza, la tristeza, y el gozo de la vida son apariencias que existen únicamente en nuestras mentes. Por extraños que pudieran parecer estos puntos de vista, presentaban un problema fundamental con el cual todo pensamiento serio sobre la vida ha de enfrentarse. Provocaban un interrogante: ¿Cómo se relacionan entre sí la permanencia y el cambio, la realidad y la apariencia, la eternidad y el tiempo? ¿Cómo se relaciona el hombre maduro con el niño del cual ha emergido? El cambio ha transformado al niño en un hombre, pero la permanencia ha mantenido a la persona igual. ¿Cómo ha de entenderse esto? Sócrates y Platón: Con Sócrates, quien vivió en Atenas alrededor de 450 A.C., se produjo un cambio en el pensamiento griego. Sócrates estaba más interesado en la calidad de los hombres que en la naturaleza del mundo. Sostenía que solo podemos conocer una cosa con certeza: ‘el hombre mismo’. Podemos saber lo que debemos ser y cuál es el propósito de la vida. Saber esto es poseer el verdadero conocimiento. Este conocimiento puede obtenerse por medio de una educación adecuada; el hombre tiene el poder de hacerse a sí mismo moralmente bueno. Esto constituye una filosofía humanista. Aparecen luego en Grecia dos de los más distinguidos filósofos de todos los tiempos: Platón (ca. 425-345 A.C.), discípulo de Sócrates, y Aristóteles (ca. 385-320 A.C.), discípulo de Platón. El centro del pensamiento filosófico para este entonces se había desplazado desde las colonias hacía la madre patria, específicamente hacia Atenas. Cuando Roma no era aún la dueña total de Italia, cuando Palestina estaba todavía bajo el control persa, Atenas era ya el brillante centro cultural del mundo. Platón unió en su filosofía la preocupación de los primeros pensadores en comprender el mundo en su totalidad, y la preocupación de Sócrates de comprender al hombre. Junto con Parménides, Platón creía que el mundo real no era el mundo que podía ser visto y palpado: montañas, árboles, cielo, ríos, campos, hombres. El mundo real era el mundo invisible, el mundo de las ideas. Por "ideas" Platón no quería decir "pensamientos u opiniones", o lo que nosotros queremos significar por "ideas". Él quería decir realidades espirituales que existen en un mundo invisible. En ese mundo están las "ideas" de cosas materiales como árboles, montañas, agua, sillas... y de las cualidades espirituales como coraje, amor, verdad, bondad y, no menos importante, el alma. Estas ideas existen en el mundo invisible en el orden en que unas sirven a otras. En la cima de la pirámide está la idea del bien. Pero existe también otro mundo, el mundo de la materia. En su estado original la materia no tiene forma ni aspecto. Es una masa desordenada, sin armonía, sin forma, un caos. Sin embargo, nosotros nunca vemos esa masa de esa manera. Las ideas le imprimen su carácter de orden y sentido. Es esta unión de las ideas perfectas con la materia desordenada lo que vemos y experimentamos en el mundo que nos rodea. La materia es la fuente de todo mal: del dolor, la desilusión, la imperfección, el sufrimiento, y la muerte. Todo el mundo de la naturaleza y del hombre surge de la extraña unión de ideas y materia. Este es ‘el mundo cambiante’ que tan profundamente había impresionado a Heráclito. Todo lo que está en el mundo es una pobre copia de las ideas eternas, verdaderas, e inamovibles que se manifiestan a través de su unión con la materia. Todo lo que es hermoso, moral, adecuado, y lleno de propósito en estas copias viene de las ideas. Todo lo que es malo o doloroso en estas copias se deriva de la materia. Ambos mundos son igualmente eternos; ninguno de los dos puede vencer al otro. El hombre es una unión de espíritu y materia. Cuando la muerte llega, el alma se alegra pues puede así retornar a su estado puro como idea sin el peso de la materia. Es por esa razón que los filósofos de Atenas escucharon tranquilamente a Pablo cuando él les predicaba el evangelio hasta que habló de la resurrección: "Pero cuando oyeron lo de la resurrección de los muertos, unos se burlaban, y otros decían: Ya te oiremos acerca de esto otra vez" (Hch 17:32). Al estudiar la historia de la iglesia primitiva, es preciso comprender este punto de vista griego en cuanto a la relación entre la idea y la materia, el bien y el mal, el alma y el cuerpo. Si esto no se capta, es casi imposible comprender adecuadamente los cuatro primeros siglos de la historia de la iglesia. Las dos mayores herejías, el gnosticismo y el arianismo, amenazaron peligrosamente la verdad del evangelio, la primera antes, y la segunda después del A.D. 300. Ambas surgieron de un malentendido de lo que es el hombre y el mundo al estilo de Sócrates y Platón. Solamente un enfoque espiritual de Dios, del hombre, del mundo, y de su relación entre sí, salvó a la iglesia de transformarse en testigo de un falso evangelio. Estoicismo: Dejamos ahora las enseñanzas de Aristóteles y otros para notar brevemente las principales del estoicismo. Esta era la filosofía dominante en el Imperio Romano en el tiempo de Cristo y de la iglesia primitiva. El nombre estoicismo se deriva de la palabra griega stoa que significa "galería", "pórtico". Era el nombre que se daba a un corredor o arcada pública cerca del mercado en Atenas, donde los hombres se reunían para discutir diferentes asuntos. Fue aquí que Zenón, un nativo de Chipre, enseñó filosofía alrededor del año 300 A.C. A su filosofía se le llamó "estoicismo" por causa del lugar donde la enseñaba. Sus enseñanzas, y la de sus sucesores, daban más importancia, como las de Sócrates, a la conducta humana que a la naturaleza del universo. Él y sus sucesores enseñaron que solamente existe la materia. No hay tal cosa como el espíritu solo. Mente y cuerpo son materiales. Aun Dios es material; el universo es su cuerpo y él es su alma. El estoicismo, por consiguiente, es una especie de panteísmo, es decir, todo es Dios. El hombre está relacionado con Él como una gota de agua se relaciona con el océano, o como una chispa con el fuego que la provoca. Dios, como alma del mundo, gobierna todas las cosas; ama a los hombres y desea todo lo bueno. Por cuanto el hombre está relacionado con Dios, debería ir hacia donde la razón divina, llamada logos, le guía. La verdadera sabiduría consiste en descubrir el camino de Dios para los hombres. La persona verdaderamente humana no resiste la guía de Dios; se rinde a ella, no importa cuán penoso le resulte, pues Dios le ama. La virtud es una y es indivisible. Las cuatro cualidades más sobresalientes del carácter son la sabiduría, el coraje, la moderación, y la justicia. Si uno carece de una de estas cualidades, carece de todas; si realmente tiene una, las tiene todas. Ser libre y feliz significa conocerse a si mismo, conocer la voluntad de Dios para uno, y vivir de acuerdo con ese conocimiento. El estoicismo era tanto una religión como una filosofía. Por su carácter filosófico era aceptado solamente por la gente culta. Las masas no podían razonar de la manera que el estoicismo lo requería. Entre el elemento de hombres educados algunas de las mentes más preclaras del imperio seguían estas enseñanzas. Uno de estos fue Marco Aurelio, emperador desde el A.D. 160 al 180. Había mucho en el estoicismo que los cristianos podían usar y lo usaban, pero solo atraía a los más preparados. Sin embargo, aun estos carecían de poder como para hacer lo que el amor y la justicia requerían. Una de las más crueles persecuciones del imperio contra la iglesia se llevó a cabo durante el reinado de Marco Aurelio. El mundo, por lo tanto, continuó esperando una religión que no solo enseñara lo que era justo sino que también proporcionara el poder para hacerlo. Filón: Un filósofo a quien debemos considerar es el pensador judío Filón. Este nació alrededor del año 20 A.C. Y murió poco después del año A.D. 40. Pasó su vida en Alejandría, el centro de la dispersión judía. En algunos aspectos Filón era más griego que judío. Se entregó a la filosofía de una manera poco común en un judío, hablaba y escribía el griego mejor que el hebreo, pero al mismo tiempo era, y permaneció siempre, un judío verdadero. Consideraba que la más alta autoridad divina se encontraba no en la filosofía sino en el Antiguo Testamento, especialmente el Pentateuco. Sostenía que cualquiera cosa que fuera cierta en la filosofía de los griegos ya había sido expresada antes en las Escrituras. El creía que de alguna forma los griegos habían obtenido sus ideas principales del Antiguo Testamento. Filón trató de combinar las escrituras del Antiguo Testamento con la filosofía griega, lo que le trajo un problema con respecto a la doctrina de la creación. Según la enseñanza bíblica Dios creó el mundo de la materia, pero los filósofos griegos no podían aceptar esto pues sostenían que Dios no puede tener contacto con la materia, que es el origen de todo mal. Por lo tanto, Filón, como los griegos, colocó un mediador entre Dios y el mundo. Este mediador se halla en el Logos. El es el más grande de los poderes de que Dios está rodeado. En él vio Filón un poder divino menor que Dios, que estaba entre Dios y el mundo. A través de él Dios había creado todas las cosas. Más tarde, este pensamiento jugó un papel importante en el esfuerzo de los pensadores cristianos para explicar la relación de Cristo con Dios. Religión en el imperio: Sin duda que los distintos puntos de vista filosóficos satisfacían muchas mentes educadas. Sin embargo, las masas populares no eran instruidas. ¿Cómo podrían ellas encontrar comunión y paz con Dios? Esto solo lo podían obtener por medio de la religión. Aun entre las clases más privilegiadas había un sentimiento de que la filosofía no proporcionaba la verdadera respuesta a la necesidad espiritual del hombre. Muchas religiones existieron en el imperio que trataron de llenar ese vacío. Se podían clasificar aproximadamente en tres clases. Religiones de la naturaleza: Estas religiones atribuían poderes sobrenaturales a las montañas, a los lagos, los ríos, los árboles, el sol y la luna, a ciertos animales, y hombres. Honraban las fuerzas de la naturaleza y creían en el poder de amuletos y sortilegios. Aparte de esto creían en los antepasados, en espíritus buenos y malos, en dioses que controlaban el destino de los hombres. Cada religión en este grupo tenía sus propios mitos y rituales y una clase especial de hombres llamados sacerdotes que podían recitar los mitos y celebrar las ceremonias rituales. Este tipo de religión basado en la naturaleza era siempre una religión de grupo. El elemento personal estaba en gran parte ausente. En una sociedad sencilla de agricultores o pescadores tal religión podría parecer adecuada, pero para los hombres que vivían en un mundo cambiante, en desarrollo, no lo era. Ellos precisaban una religión donde lo sobrenatural fuera más personal, una religión en la cual pudieran experimentar el efecto de lo sobrenatural en sus vidas llenas de problemas. Esta necesidad parecía satisfacerse en las religiones de misterio. Religiones de mistério: La gran atracción de estas religiones residía en la oportunidad de poder comunicarse con la divinidad. Esta comunicación podía obtenerse por medio de ciertos actos ceremoniales. El primero era el bautismo, ya sea por medio de agua o por la sangre de un animal. Esto les lavaba de su contaminación y suciedad haciendo posible el contacto con ese dios. Al bautismo seguía una comida sagrada con la cual se experimentaba la comunión con el dios en cuestión. La comida sagrada llevaba a un esclarecimiento o conocimiento. El nuevo creyente conocía al dios dentro de cuya comunión había sido bautizado. Por medio de este conocimiento, el creyente también se dedicaba a sí mismo al servicio del dios, y además podía vivir en paz y morir confortado por la reconciliación con ese dios. Los seguidores de esta religión no podían revelar los secretos del bautismo, de la comida de comunión, y del esclarecimiento. Por esta razón es que se llamaba una religión de misterio. Este tipo de religión tenía una larga historia en el oriente: en India, Persia, Babilonia, y Egipto, y estaba en su apogeo en el imperio cuando comenzó a diseminarse el cristianismo. Por un tiempo el mitraísmo, una religión de misterio, compitió con el cristianismo y tuvo muchos adeptos en el ejército romano. Religión del estado La religión del estado tenía fuertes connotaciones políticas. Su elemento principal era el sacrificio ofrecido al emperador. Originalmente los sacrificios se habían hecho a los dioses del estado. En los primeros años del imperio se hicieron sacrificios a los emperadores muertos. Más tarde se comenzó a adorar a los emperadores que ejercían el poder, por medio de sacrificios. El emperador era considerado como el dios que proporcionaba orden y prosperidad en el estado; en cierto sentido se le tenía por la encarnación del imperio. Por lo tanto la religión del estado estaba considerada como el lazo que unía a la gran diversidad de pueblos y tribus a través de todo el imperio. Cualquier religión que reconociera al emperador dios y no interviniera con el buen orden del imperio, era aceptada como una religión legítima. La religión del estado, sin embargo, era una religión sin calor, sin comunión, sin unión con lo divino y, especialmente, era una religión sin salvación. Capítulo 2: El comienzo de la iglesia: Fue en Palestina, la histórica tierra de Israel, donde la iglesia del Nuevo Testamento apareció por primera vez en la historia. (…) El ministerio de Jesús: El mensaje de Jesús era sencillo. El predicaba que el reino de Dios estaba cerca y que los hombres podían entrar en él por medio del arrepentimiento y la fe en el evangelio (Mr 1:14-15). El arrepentimiento que Jesús requería era por la desobediencia a la ley de Dios. Esta ley estipulaba que los hombres debían amar a Dios por sobre todo y a su prójimo como a sí mismos (Mt 22:34-40). El amor es el cumplimiento de la ley. Cuando la desobediencia trae aparejada la falta de amor, el arrepentimiento restablece el equilibrio entre el hombre y Dios y entre el hombre y su prójimo. El Sermón del Monte ilustra de muchas maneras cómo la relación vertical (el hombre con Dios) y la relación horizontal (los hombres entre sí) pueden ser mantenidas y reforzadas. El evangelio es la buena noticia de que Dios perdona a los que se arrepienten, y los recibe como a hijos. Al mismo tiempo, la predicación de Jesús no era un mensaje completamente nuevo. Surgió del Antiguo Testamento y continuó a un nivel más profundo (Mt 5:17-20).»

(In Harry R. Boer, «Historia de la Iglesia Primitiva (1-787 D.C.)», cap. 1: “El mundo de la Iglesia primitiva”, Facultad Latinoamericana de Estudios Teológicos, Editorial UNILIT, 2011 Logoi, Inc., www.logoi.org ISBN 0-7899-0976-6.)

 

[26] Hans Küng refere-se, no âmbito desse ‘encontro de culturas’, à «condenação das novas formas litúrgicas a propósito das disputas sobre os ritos como uma das causas capitais do amplo fracasso das missões católicas modernas na India, China e Japão». (in «Infalible? Una pregunta», Herder, Buenos Aires 1971, p. 36).

[27] O famoso “Dictionnaire de théologie catholique”, com mais de trinta volumes, trata do animismo em três volumes (15, col. 3099 e 6, col. 559s) para condenar os desvios de um pensador europeu animista; o dicionário alemão “Die Religionen in Geschichte und Gegenwart”, em seis volumes, dedica três colunas ao animismo (1, col. 389-391) condenando as doutrinas do antropólogo E. B. Tylor nos anos de 1871; o “Lexikon für Theologie und Kirche”, de dez volumes,  dá uma coluna ao animismo (1, col. 565-566) para falar do mesmo Tylor. O “Dicionario de Teologia”, de Fries, editado no Brasil, São Paulo, em cinco volumes, nem chega a falar do assunto.

[28] Halbwachs, M,. «Les cadres sociaux de la mémoire», Paris, 1925.

[29] Citado por Ecléa Bosi, «Memória e Sociedade», São Paulo, 1979, p. 21.

[30] Boff, L., «Igreja: Carisma e Poder», Petrópolis, 1981-1982, p. 85. Cf. também: Josep M. Barnadas, «Fé cristã e situação colonial na América Latina», in Concilium 90 (1973), 1269-1275 (edição provavelmente brasileira, da VOZES; a edição Cristiandad/Madrid deste número «Poder-Dominio-Servicio: problemas éticos del poder» tem artigo do historiador ex-jesuita no “boletim final” «Fe cristiana y situación colonial en America Latina» nas páginas 574-579); Comblin, J., «Théologie de la révolution Théorie», Paris, 1970, 216-234 (existe edição em castelhano, pela DDB-Bilbao, 1973, com o título «Teología de la Revolución - Teoría»; cito Comblin: El clero que se cree políticamente el más neutral, es el que ejerce una influencia política más fuerte, p. 369).

[31] Na revista «Humboldt», 7, 1963, p. 99-102.

[32] Lord Acton Axioma 2.383 (citado por Garry Wills, «Pecado papal – las deshonestidades morales de la Iglesia católica», Ediciones B.S.A. 2001, Barcelona, p. 10). «Lord Acton. Lectures on Modern History.pdf».

[33] Lorscheider, A., «A redefinição da figura do bispo no meio popular pobre e religioso», em Concilium, RIT, 1984, p. 754-757 (ed. Brasileira). Idem edição Cristiandad (castelhana) Aloísio Lorscheider, «Redefinición de la figura del obispo en el âmbito popular pobre y religioso», 196 (1984), pp. 383-386.

[34] Lacoste, Y., «La géographie, ça sert, d’abord, à faire la guerre», Paris, 1976. Na mesma linha: Teles N. Abreu, «Cartografia Brasilis, ou: Esta História Está Mal Contada», São Paulo, 1984.

[35] Pixley, J., «Povo de Deus na tradição bíblica», in Concilium, 1984, p. 717-726 (ed. Brasileira). Edição castelhana: Jorge Pixley, «Pueblo de Dios en la tradición Bíblica», in Concilium, LA IGLESIA POPULAR: ENTRE EL TEMOR Y LA ESPERANZA, n. 196, Ed. Cristiandad, noviembre 1984, p. 341-351 [disponível na “Biblioteca Paulo Bateira”]