QUE EUTANÁSIA?
(…) Uma actuação
médica em prol do interesse do doente
Infelizmente, a nossa experiência mostra-nos que não podemos
partir do pressuposto de que os médicos actuem sempre segundo o interesse do
moribundo, nem que sempre o ajudará a transitar para a morte de um modo humano.
Muitos médicos compreensivos agem desse modo mas em segredo,
ainda que fiquem com pesos na consciência. Já ouvi dizer que há gente que
questiona criticamente a lei holandesa da eutanásia, mas que para si mesmas, de
uma maneira muito pessoal e quando chegados ao fim da vida, desejariam poder
encontrar por diante deles «um médico compassivo». Sendo assim, como poderá, o
doente comum, encontrar um médico «adequado»? Infelizmente, a alguns
médicos falta-lhes sensibilidade para esta problemática: a da "passagem para a morte".
Partilho com o leitor um de entre muitos testemunhos que me chegou
por carta: «Nem por isso são poucos ou raros os casos, como os de que falou no
seu livro, em que anciãos prostrados pelo coma são submetidos a reanimação de
modo a que se mantenham vivos, e por conseguinte, vegetando. Entre essas
pessoas está a minha mãe. Com mais de cem anos é um destroço humano. Todos os
dias vêm tirá-la da cama para a deixarem sentada numa poltrona durante horas, à
espera… Ela fala com frequência da morte: "Julgo que Nosso Senhor se esqueceu de mim, me abandonou". Já
chegou a perguntar ao médico: "Será
que não me poderia dar algo para que eu possa morrer?" Eu mesmo já
perguntei ao médico se não seria possível reduzir ou até ir retirando
progressivamente os medicamentos que mantêm o coração em funcionamento. O
médico fica passado quando lhe falo disso…».
Ou o caso de uma "assistente voluntária" que dá
apoio num lar de idosos: «Depois, dei-me conta que, ao contrário daqueles
idosos a quem lhes é permitido ir a casa passar os seus últimos dias de vida, morrer neste lar
é muito complicado. Frequentemente, o médico transfere-os para o
hospital. Dou um exemplo: uma idosa com mais de noventa anos que estava às
portas da morte a quem devolveram a vida no hospital à custa de suporte médico
para que vivesse mais quatro semanas. Será que não a poderiam ter deixado em
sossego a fim de morrer em paz? Outra idosa de igual idade jaz na cama: não
consegue falar, expressar-se de que maneira for nem alegrar-se. Ninguém da
família aparece para a visitar. Entretanto teve uma pneumonia e foi levada ao
hospital. Desde então, apenas lhe administram uma infusão através de uma sonda
naso-gástrica».
É de uso frequente que se use, hoje em dia, a sonda asséptica
de alimentação gástrica, a qual, na Alemanha no ano de 2007, se aplicou a cerca
de quarenta mil doentes, mais de metade deles sem o seu consentimento prévio.
Para os doentes que têm condições de recuperação, mediante reabilitação, esta
sonda representa uma ajuda extraordinária, mas para moribundos pressupõe que em
certas circunstâncias não passa de um prolongamento do seu sofrimento e uma demora
do morrer. Tampouco a medicina paliativa deve servir para manter os moribundos
artificialmente com alguma vida ao longo de semanas, meses ou inclusivamente
anos. Esta circunstância – manter vivos anos seguidos – poderá ser extrema, mas
acontece.
(…)
Um ꞋsimꞋ fundamentado sobre uma vida eterna
À pergunta
por «uma vida boa» corresponde também a pergunta por «uma morte boa». A esta
grande e "última questão" de entre as «grandes questões», ao ser
humano é-lhe exigido mais do que nunca um acto de confiança racional, o qual,
obviamente, ele é livre de recusar. Uma confiança que, curiosamente, está profundamente
enraizada na história da humanidade. Se é verdade que não morremos
«como animais», vale a pena lembrar as respostas reveladoras — apesar de tudo,
muito diversas — que as religiões deram desde a Idade da Pedra, sobretudo, à
pergunta: uma única vida ou várias vidas?
O filósofo
e pastor de almas Wilhem Schmid (também em Berlin) abeira-se,
com todas as cautelas, de uma resposta: «Como transição para uma outra vida, a
morte poderia parecer bela e ser digna de receber um «sim». É provável que ela
não seja mais do que a transição de um estado de vigília para o sono.
Mesmo em vida nem sempre é fácil encomendar-nos a esse outro estado. Só quando
um profundo cansaço se apodera de nós é que tudo se passa por si só. Da mesma
maneira haveria que confiar que nem toda a vida acaba com a morte, mas que
apenas a vida vivida como tal é recuperada no sono do ser para outra vida. Assim como o sono pode ser curativo /
reparativo, o "sono do ser" poderá curar as feridas pendentes da vida
antes que ela comece de novo de uma maneira nova. Os assuntos pendentes da vida
antiga poderiam ser confiados, agora, a uma outra vida possível para serem
vividos, agora em alegre serenidade, deste lado da fronteira virada para o aberto.
Poder apostar na possibilidade de uma outra vida nova alivia-nos, a nós que nos
consideramos adultos, do stress vital de termos que exigir tudo de uma só vez à
pressuposta «vida única». E se, apesar de todos os pesares, tudo fosse
realmente de outra forma? Então, esta vida única terá sido, no mínimo, uma
vida bela» ("Sosiego. A arte
de envejecer", Kairós, Barcelona, 2014).
Nas minhas
aulas magisteriais sobre «Vida Eterna»,
em 1981, expus com simpatia os argumentos para uma reencarnação nesta Terra,
mas terminei por os rejeitar por não me serem suficientemente convincentes. Ao
mesmo tempo, confesso com agrado que, com os olhos postos na minha própria vida
vivida, com todos os seus sofrimentos e dores e apesar de todos os seus êxitos,
não sinto a
menor vontade de regressar seja lá sob que forma for a esta vida, a
qual, apesar de toda a sua felicidade não cessa de, volta-e-meia, ser dolorosa.
Igualmente os budistas e os hindus desejam finalmente apear-se do samsara, este ciclo doloroso das
reencarnações e «extinguirem-se» num nirvana
que, contudo, a maioria dos budistas entende não de uma maneira niilista, mas
como realidade e santidade supremas…
Foi por
isso que nas minhas três primeiras lições estreitei o «horizonte» da questão
acerca da Vida Eterna a fim de expor
a mensagem bíblica nas três lições seguintes sob o título «A esperança», nas quais me cingi reiteradamente ao meu livro «Ser cristão» (1974): a fé na
ressurreição, que surge no judaísmo, é um fenómeno tardio; o testemunho
oriental é mais antigo. Vejo a entrada na vida eterna assim: a compreensão da
ressurreição não como a reanimação do meu cadáver enquanto grandeza física, mas
como a entrada de toda a minha pessoa temporal na eternidade de Deus. A fé numa
vida eterna é, para mim, a consequência da fé no Deus eternamente vivo. Abordo também as
questões problemáticas / polémicas do Credo sobre o Jesus que desce ao reino da
morte e ascende ao céu, estando bem consciente de que, se essas aulas não
tivessem sido publicadas em 1982 — dois anos depois da grande confrontação com
Roma — mas antes dessa confrontação, algumas das minhas concepções teriam feito
com que a Inquisição viesse de novo a
terreiro: por exemplo, a ideia acerca da "ressurreição física",
melhor dito, a ressurreição por Deus, que há que ser entendida espiritualmente;
ou a ideia de «purgatório», que não deve ser interpretada topograficamente de
maneira localista, mas de maneira simbólica, etc.
A terceira
parte das minhas aulas visava as «consequências» de uma fé numa vida eterna.
Nelas submeto à crítica as ideologias que prometem o céu na Terra aos seres
humanos. De seguida abordo, quer as teorias físicas, quer as declarações
bíblicas acerca do fim do mundo. E assim se encerraram esses temas, tão
incrivelmente diversos, sob a epígrafe ¿Vida
Eterna?
«Crês realmente na vida depois da morte?»
– perguntou-me com muita seriedade, há pouco tempo, uma das minhas irmãs. «Sim», respondi com convicção, mas não
porque consiga demonstrar racionalmente a existência dessa vida depois da
morte, mas porque conservei essa confiança racional em Deus; e porque deposito
confiança no Deus eterno também posso depositar confiança na minha vida eterna.
Quanto a isso, creio que tenho boas razões para tal.
Em todos
estes anos não mudei de convicção básica, mas confesso que não me facilitaram a
vida os modernos telescópios e as gigantescas investigações sobre os universos
infinitos, obscuros e vazios do cosmos com seus milhares de milhões de
estrelas. Ou será que sim, que facilitaram? Seja como for, eles obrigam o nosso
entendimento a indagar as ideias tradicionais sobre céu e inferno e a
interpretá-las à luz dos novos conhecimentos das ciências naturais. (…)»
Hans Küng, «Una muerte feliz», Editorial Trotta
2015, Madrid. ISBN 978-84-9879-632-2. Excertos.