A ÉPOCA
PROBLEMÁTICA DO SEGUNDO «PÓS-CONCÍLIO»
— o que o Papa
Francisco tem pela frente
Três lustros (15 anos) após o encerramento do
Vaticano II, o optimismo – para não dizer a esperança suscitada por ele –
esboroava-se. Inúmeras orientações emanadas da hierarquia durante a época
pós-conciliar não estavam de acordo com o ideal proposto pelo Concílio. Vozes
nem por isso alarmistas, como as de J. B. Metz em 1969 ou de K. Rahner três
anos após, falavam de uma marcha atrás rumo ao gueto
.
Generalizou-se o desencanto e, apesar de muitos – sobretudo pertencentes à
hierarquia e às correntes católicas neoconservadoras – nunca o quererem
designar assim, a verdade é que se produziu uma vasta e profunda crise no povo
cristão. Os sintomas foram numerosos e bem evidentes. Agrupamo-los em três
palavras-chave de modo a sermos melhor entendidos: (1)
paralisação do processo de renovação; (2)
silenciamento da teologia do
"Povo de Deus"; (3)
falhanço da reforma das instituições.
Concomitantemente
produziu-se um fenómeno de resistência tenaz, silencioso, em boa parte
reprimido, que, apesar do mau ambiente reinante, subsistiu, e que procurava tão
só manter a chama conciliar acesa, à espera de tempos melhores. A segunda parte
do capítulo 4 deste livro apresenta o ideário, quiçá não explícito, daqueles
que mantiveram a todo o custo a vontade de reforma, o ideário daqueles que
pensavam – cheios de razão – que nos documentos conciliares estavam formuladas
as linhas de fundo duma fé para a nossa época, fé fiel à autêntica tradição,
porém sem qualquer tipo de rotura, fé actualizada por via duma interpretação
que consideravam adequada ao nosso tempo
.
I – A CRISE PÓS-CONCILIAR
1.
Paralisação do processo de renovação
Os
historiadores da Igreja sabem bem que os períodos de recepção dos Concílios são
sempre longos e que, frequentemente, o pós-concílio é sempre um tempo de
movimentações e estratégias claramente contrárias às deliberações conciliares.
Ora, acontece que hoje em dia, 50 anos após o encerramento conciliar, estamos a
viver uma situação bastante diferente dessa inicial e movimentada fase. O
dinamismo emanado do Concílio Vaticano II foi dificultado durante anos e anos
por círculos conservadores que têm grande influência – inclusivamente,
influência económica – na condução da Igreja. Mais ou menos silenciosamente, vive-se
uma polarização subliminar entre duas frentes. Sobre muitos refluiu a nostalgia
da cristandade, com a sua respectiva arrogância confessional. A comunhão, na
Igreja, tornou-se meramente verbal, e a coresponsabilidade aos mais diversos
níveis foi asfixiada pelo Direito. O diálogo autêntico tornou-se – e continua a
ser – difícil com os bispos. Muitos com responsabilidades eclesiais deixaram-se
levar pela perda da confiança na renovação eclesial. Bastantes foram
catalogados de suspeitos por parte dos seus superiores na Igreja.
Como
consequência de isto tudo, um contingente significativo de católicos perdeu
qualquer interesse no acontecimento Vaticano II e deixaram de se inspirar nele.
Círculos cada vez mais amplos foram apanhados pela desilusão, e neles ocorreu
uma certa emigração «interna» ou externa. Muitos católicos, mergulhados neste
desaguisado, caíram na tentação de viver a sua fé – parafraseando
Hugo Grocio – etsi Ecclesia non daretur, como se a igreja
não existisse. Parece que o Concílio ficou perdido nas brumas duma memória,
sobrevivendo como Ꞌprincípios de minorias sensíveisꞋ, resistentes à evolução dum
mundo donde retiram alguns argumentos para fundamentar a reclamação de mudanças
ou respostas aos desafios da sociedade actual, petições a que ninguém há muito
liga nenhuma.
Apesar
da nova era que se iniciou com o Papa Francisco, há quem ainda tente travar o
processo de recepção do Concílio.[3]
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[3] Cf.
Robert Dodaro, osa
(Edit.), «Permanecer en la verdad de Cristo – Matrimonio y comunión en la
Iglesia católica», Ed. Cristiandad 2014, ISBN
978-84-7057-601-0. Andrew Brown, The Guardian, 24 de Dezembro de 2017, «A
guerra contra o Papa Francisco»: Exclusivo «The Guardian» / PÚBLICO. Tradução
de António Domingos. Este artigo encontra-se publicado no P2, caderno de
domingo do PÚBLICO. [NdT]
Na verdade, a «recepção do Concílio» começou a ser travada cerca de cinco anos após a sua clausura e as figuras de proa do aparelho curial nunca deixaram de trabalhar sobre os seus documentos-axiais (nomeadamente, Lumen gentium e Gaudium et spes) no sentido de «regressar aos textos autênticos do autêntico Vaticano II» a fim de «defender a verdadeira Tradição da Igreja» (palavras do cardeal J. Ratzinger, no livro de Vittorio Messori, «Informe sobre la fe», BAC Popular N.66, 22005, p. 37). [NdT]
Cf. igualmente Pedro Rodríguez (Dir.), «Eclesiología – 30 años después de "Lumen Gentium"», Ediciones Rialp S.A., Madrid 1994, ISBN 84-321-3066-4. Na página 22, a seguinte definição parece datar de tempos ante-conciliares: «a Igreja é a reunião dos homens que se encontram unidos pela comunhão do Credo e dos sacramentos, conduzidos pelos pastores legítimos, sobretudo pelo Papa. Por isso, a Igreja é uma formação social que é tão tangível e visível como um Estado» - Cardeal Gerhard Ludwig Müller citando Belarmino, "Controv. Gen. 4 III/2; 3 II". Que contraste com a abordagem libertadora de H. Kung: «Todos os crentes são Povo de Deus, portanto fica excluída qualquer clericalização da Igreja»; «todos [os povos] são povos de Deus pelo chamamento divino, portanto fica excluída qualquer exclusividade da Igreja»; «o povo de Deus formado por todos os crentes é um povo histórico e isso exclui a idealização da Igreja», etc. (in Hans Küng, «La Iglesia», Herder 1969, pp. 152-158). Revelando um evidente mal-estar pelo ambiente de irrupção de inúmeras novidades e de uma buliçosa efervescência de ideias teológicas e pastorais na sequência dos debates conciliares, o cardeal J. Ratzinger (referindo-se aos anos 70-80 do século XX; anos de "autodestruição", segundo o seu ponto de vista) diz: «É inquestionável que os últimos vinte anos foram decididamente desfavoráveis para a Igreja católica». (ibidem, «Informe sobre la fe», p. 35) [NdT]
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Não se trata de contestatários explícitos dos textos promulgados, mas de
críticos do «acontecimento» conciliar (tal como atrás o definimos), pessoas que
temem que se renove tudo o que aquele acontecimento significou para a época. No
seu subconsciente, persiste a desvalorização do Concílio, que classificam de um
concílio «pastoral», ignorando ou menosprezando o sentido profundo deste termo.
As
gerações jovens, incluindo os presbíteros novos, não sabem em que consistiu o
Concílio: para eles o Concílio não lhes diz nada
.
Sentem-se mais tocados pelo catolicismo que o precedeu, sobretudo, pelas suas
seguranças/certezas e por um certo autoritarismo clerical que os protege dos
problemas que a comunidade cristã sempre suscita.
Após
o Sínodo de 1985, a estratégia clerical foi
a de regressar aos comportamentos anteriores ao Concílio plasmando-os no «novo»
Código do Direito Canónico (CJC) de
1983, o qual trancou definitivamente as portas à abertura inspirada no Vaticano
II. Assim, se tornou histórica e definitivamente inoperante o Concílio Vaticano
II. Muitas disposições deste CJC significam um regresso ao passado
ante-conciliar, na medida em que partem de uma interpretação restrictiva do
Vaticano II, interpretação essa que pura e simplesmente elimina as novidades
mais radicais do Concílio dos anos sessenta. Não houve o mínimo esforço em
compreender a viragem que aconteceu no Concílio e, por isso, fez-se tudo o que
se pôde por passar ao largo de tão profunda reforma.
A
autoridade curial empenhou-se na maior uniformidade possível. Bloquearam-se,
firmemente, todo o tipo de iniciativas que partissem das Igrejas locais, e isso
com mão de ferro a partir do centro do poder. Em concreto, descafeinou-se completamente a colegialidade episcopal.
Na verdade, o sínodo dos bispos tornou-se, não um Colégio com actuação e
autoridade decisória verdadeira, mas apenas um organismo que «aconselha» o
Papa, o qual é livre de aceitar ou ignorar as propostas da assembleia
episcopal.
Em
suma, a instituição eclesial no seu todo não reconheceu a evidência de que nos
encontramos numa situação de paralisia que afecta toda a Igreja e que exige
profundas reformas a vários níveis para que o organismo funcione: reformas na
presidência da comunidade, na celebração dos sacramentos,
no funcionamento
dos órgãos da coresponsabilidade, na liberdade da investigação teológica,
na participação
das mulheres, etc. O reconhecimento de tal situação de paralisia
está a custar, à Igreja, os olhos da cara. Apesar da insistência resiliente do
Papa Francisco, existem muitos crentes que se interrogam se a hierarquia será
capaz de realizar de per si a reforma
eclesial que muitos consideram imprescindível para que se possa anunciar o
Evangelho de Jesus como deve ser, no mundo actual.
Ou
seja, durante quase trinta anos, assistimos ao contrário daquilo que o Papa
João XXIII procurava com o Concílio, e que expressou na imagética de «abrir as
janelas da Igreja de par em par». Na prática, não só se fecharam
todas as janelas como também as portas, de modo a cortar a comunicação com o
mundo exterior e a reforçar a disciplina a fim de evitar fugas.
2.
Silenciamento da teologia do "Povo de Deus"
Este
aspecto merece uma consideração pormenorizada, por causa da importância única e
decisiva que a categoria «Povo de Deus»
–
ideia
axial – mereceu do Concílio. Já se escreveu, à saciedade, que o
conteúdo do
capítulo
II da
Constituição sobre a Igreja (
Lumen Gentium – LG, "Sobre a Igreja")
ocupou, neste texto conciliar, o lugar que antes estava reservado aos capítulos
referentes ao ministério, ao laicado e à vida religiosa. Isto quer dizer que,
após o Vaticano II,
todas estas dimensões da vida
eclesial (ministérios, laicado e vida religiosa) passam a estar subordinadas à
categoria básica de Povo de Deus,
sujeito eclesial que abraça todos os
demais sujeitos diferenciados; a não ser assim, aquela ordenação no corpo do
texto (
em 1º lugar o Povo, depois os
Ministros, …) torna-se inconsequente.
Lamentavelmente,
desde o Sínodo dos bispos de 1985, esse termo chave desapareceu do ensino
magisterial prático
: o Povo
de Deus continua a ser
objecto eclesial (da acção pastoral)
subordinado
ao ministério eclesiástico. A eclesiologia bíblico-teológica e patrística do
Povo de Deus, tão rica de conteúdo espiritual, deixou de ter interesse, quiçá
porque afirma, com toda a clareza, a dignidade fundamental de todo o Povo de
Deus. Os
antigos
privilégios dos clérigos travaram o passo a qualquer caminhada rumo
a uma comunidade futura renovada. A categoria paulina básica de «
carisma», a que o Apóstolo conferiu
carácter estruturante da Igreja e que foi repescada na
Lumen gentium (cf. N. 4; 7; 12, etc.) e noutros textos do Vaticano
II, foi completamente moldada através de estratégias hierárquicas de modo a que
essa categoria paulina fosse colocada em espaços ocos ou em nichos deixados
livres pelos ministérios previamente estabelecidos. Estes ministérios
estabelecidos mantiveram-se, assim, imunes a qualquer tipo de nova configuração
eclesial que pudesse vir a ser proposta. A única coisa que aconteceu foi uma
certa integração dos ministros na comunidade cristã, mas
sem partilharem do
estatuto de sujeito em pé de igualdade
com os membros não ministeriais da Igreja. Os ministros pré-estabelecidos
não assumem o facto de eles também procederem do amplo Povo de Deus, ou de eles
se deverem posicionar lado-a-lado de outros sujeitos com quem devem partilhar a
solidariedade como membros de
um único povo
sacerdotal. Continua a falar-se dos membros do Povo de Deus como
os que são «guiados», «ensinados», «cuidados» (a famosa
cura pastoralis) pelos sujeitos do ministério. Na prática, continua
a desconhecer-se que todo o Povo de Deus participa no ministério sacerdotal de
Cristo, na experiência, na configuração e no testemunho da fé, na celebração
divina, na coresponsabilidade e no envio ao mundo.
Consequentemente,
ignora-se outra importante insistência do Concílio acerca do «sentido sobrenatural da fé de todo o Povo»
de Deus (LG 12,1). Assim se paralisa a criatividade da base cristã,
constitutiva da concepção viva da tradição, bem como não se valorizam os
múltiplos discernimentos, nomeadamente éticos, com os quais a Igreja se
comprometeu nestes últimos tempos. Enquanto os bispos e os presbíteros
continuarem a pensar as actividades pastorais como território da sua única
exclusividade, as afirmações acerca do Povo de Deus enquanto sujeito – aspecto basilar do
Concílio – permanecerão ineficazes, ao mesmo tempo que os monopólios
presbiterais e magisteriais instalados permanecerão intocáveis.
A doutrina
conciliar teve de fazer frente às estruturas do poder espiritual antigas e ao
duro monopólio do clero. O Concílio perdeu essa batalha.
Nunca conseguiu saltar de uma linguagem teórica e de belas imagens bíblicas de
carácter simbólico rumo a concretizações que transformassem as estruturas e o
direito eclesiástico. Fazer derivar todos os ministérios da acção do Espírito
fazendo dele o coordenador funcional da missão salvífica da Igreja teria
emprestado conteúdo eclesiológico aos novos "colaboradores", aos "assistentes
pastorais", aos "ministérios laicais", aos "leigos-livres"
(seja lá como quer que lhe chamemos) recentemente criados por razões
pragmáticas. O que é certo é que a condição eclesial destes nunca chega aos
calcanhares dos privilégios e das prerrogativas, nem à prioridade do lugar e do
poder dos ministros estabelecidos desde antanho, os quais apelam, a seu favor,
ao «direito divino» da tríada da ordenação. Todas estas formulações maciçamente
doutrinárias foram mantidas como estabilização e sanção não apenas teológica,
mas também ideológica daquelas posições de superioridade. Não há maneira de
fazer saltar ou abrir a tampa do cartel do poder, tal como dolorosamente podem
constatar os
Ꞌcolaboradores
pastorais não ordenados
Ꞌ.
Falta-lhes não apenas a ordenação, mas também a plena incorporação num novo
espectro de serviços e ministérios eclesiais.
Em
suma: estamos para ver quando se dará a inclusão estrutural (não apenas
conjuntural) de todos os sujeitos do Povo de Deus nas realizações vitais da
Igreja. As tarefas de direcção devem ser coordenadas e vinculadas na linha da
igual dignidade de todo o Povo de Deus: só assim a sua valorização ao nível dos
princípios será consequente no plano estrutural. Quando todos os membros e
todas as funções nascerem desta base, nunca se produzirá a separação que
hoje existe: a Igreja «docente» nunca dispensará a função de escuta e até a sua
doutrina deve radicar na experiência e na articulação comunitária da fé; a Igreja
«discente» estará sempre autorizada a pronunciar a sua própria palavra e
participará activamente no testemunho docente da fé.
3.
O falhanço da reforma das instituições
É
desta situação que provém o fracasso da pretensa reforma das instituições. A
causa que travou o início dum processo vigoroso de rejuvenescimento da Igreja,
e que ameaça impedir uma recepção construtiva dos impulsos que se geraram no
Concílio é a falta de articulação entre as orientações teológicas, pastorais e
espirituais plasmadas na sua eclesiologia e uma renovação institucional coerente
com elas. A importante elaboração eclesiológica e as indicações pastorais do
Concílio tiveram, no pós-Concílio, uma influência raquítica, demasiado
insuficiente ao nível das estruturas. Nem sequer se chegou a fazer uma revisão
profunda das instituições eclesiais que as tornasse mais transparentes,
flexíveis, ligeiras e coerentes com as exigências evangélicas.
A
razão é muito simples. A superação do clericalismo, impulsionada pelo Concílio,
implicava o abandono da referência que as instituições eclesiásticas e a sua
autoridade – enquanto centro e medida da fé cristã e da Igreja – desempenhavam.
Aquele impulso conciliar obrigava a redescobrir outras dimensões constructoras
de Igreja: a fé,
a comunhão, a disponibilidade para o serviço. São estes os valores com os quais se
deve medir, quer a possibilidade, quer as instituições eclesiásticas em matéria
de adequação ao Evangelho.
Pois
bem, reconhecer o critério eclesial da referência ao Evangelho – como valor
supremo acima da lógica interna das instituições – constituía uma mudança de
mentalidade demasiado profunda a realizar. Lamentavelmente, as instituições
haviam-se consolidado de tal maneira que acabaram por se atrasar quanto à
missão que lhes incumbia no mundo. Na sua lógica interna, guiavam-se demasiado
pelo uso do poder (mesmo que este
poder se mascare com o adjectivo de sagrado ou espiritual) em vez do uso do serviço, convertendo-se, assim, em
guardiãs da «ordem estabelecida», encobridoras dos conflitos latentes reais.
Um
dos axiomas da sociologia das organizações diz, com certo cinismo, que toda a
organização tem como principal objectivo sobreviver, ampliar a sua área de
influência e incrementar o seu poder. Com a mira focada apenas no crescimento e
no aumento dos recursos, muitas organizações são capazes de sacrificar os
objectivos para os quais foram fundadas. Outras, no seu afã de se protegerem do
exterior, acabam por incorrer em práticas autodestrutivas que as condenam à
irrelevância, ao ostracismo e ao desaparecimento. Nunca devemos menosprezar as
advertências dos sociólogos. Essas advertências devem ser repensadas na linha
dum diálogo mais proveitoso e eficaz com outros credos religiosos e outras
sabedorias espalhadas por esse mundo fora.
Ali onde
confluem hierarquia e opacidade, será aí que preferencialmente se darão todo o
tipo de abusos. Quanto maior assimetria de poder entre hierarquia e fregueses [=per-ecclesiæ, leigos], entre administradores e administrados maior
é a probabilidade de a organização se anquilosar. A história da Igreja mostra
que, também dentro dela, as autoridades eclesiásticas são propensas à tentação
do poder, com a agravante de a cultura moderna oferecer novas formas mais
subtis e muito eficazes de acumulação do dito poder. A Igreja assume mais
riscos que qualquer outra instituição, por causa da sua configuração
institucional, na medida em que concentra, em muito poucas mãos, uma enorme
autoridade, autoridade frequentemente nada transparente. Máxime quando, por deferência para com a autoridade, são os
próprios fregueses que de antemão renunciam ao controlo dessas instituições e
confiam que os responsáveis, na sua sabedoria, saberão melhor do que ninguém
autolimitarem-se e autocorrigirem-se.
Quanto
a isto, a questão candente é o eclesiocentrismo: acima de tudo, a Igreja e os
seus interesses! Acontece que o eclesiocentrismo é irmão gémeo de uma exigência
amplificada de institucionalização. O risco de que a Igreja-instituição ofusque a Igreja-mistério
torna-se, então, enorme. E quando isso sucede, solta-se a tampa de todas as
ambições pessoais, o carreirismo, a aparência baseada numa imagem vaidosa, as
lutas intestinas, as divisões no seio do corpo eclesial, inclusivamente a
necessidade de pôr de lado a justiça a fim de defender o «bom nome da Igreja».
São
muitos os que pretendem que a presente realidade da Igreja se mantenha
absolutamente homogénea, e, quanto àqueles que não concordam, que "vão à
vida" sem fazer ruído, sem importunar demais. A dificuldade para que tal
situação mude está em nos encontrarmos diante de uma mentalidade e uma
realidade profundamente enraizada, quer estrutural, quer cultural, quer
pré-organizativamente. Enfrentamos uma estrutura institucional montada assim desde
há muitos séculos e que choca de frente com as tendências sociais actuais
absolutamente irreprimíveis que avançam numa via de aumento da diversidade dos
grupos e de autonomia das pessoas.
Como
consequência destes últimos trinta anos, forjou-se, de facto, uma cultura
eclesial hegemónica que impõe um certo modelo de edificação de Igreja, ao mesmo
tempo que, a outros modelos legítimos mas não hegemónicos, não se lhes deixa
margem de manobra nem direito de cidadania, nem muito menos a possibilidade de
interagir suficientemente com o anterior.
As
estruturas existentes antes do Vaticano II sempre estiveram em vantagem. As
novas posturas, que deveriam ter transformado o sistema, enfrentaram-se com uma
doutrina jurídica forjada em tempos remotos e com uma situação de conditio possidentis por parte do governo
e da política eclesiástica.
É
por isso que a reforma e a adequação da estrutura e das instituições
eclesiásticas só serão possíveis se elas se cotejarem e se medirem forças com o critério eclesial supremo: a fidelidade
a Cristo e ao Evangelho, a consciência da fé, os valores da comunhão e da
disponibilidade para o serviço.
Deviam
ter sido tiradas as devidas consequências, para a praxis eclesial, das posições
de princípio definidas pelo Concílio. Depois de ter falado do Povo de Deus, os
capítulos subsequentes sobre a hierarquia, sobre o ministério papal e episcopal,
o laicado, etc. tinham de ter chegado a conclusões concretas e não se terem
deixado ficar apenas pelo terreno dos princípios. Devia ter-se lutado firmemente para que o primado fosse inserido necessariamente na responsabilidade colegial
dos bispos, de modo a que as igrejas locais fizessem frente ao centralismo
romano. Deveria ter-se trabalhado com um horizonte de futuro de modo a
integrar novos ministérios eclesiais no mesmo grau de ordem existente nos ministérios até agora privilegiados. Nunca se
deveria ter acreditado ingenuamente que viesse a ocorrer a traslação automática
da eclesiologia do Povo de Deus para um ordenamento jurídico concreto, para uma
estrutura institucional e para uma política eclesial: deveriam ter sido dados previamente esses passos e, depois, deveria
controlar-se criticamente essa passagem, supervisionando o traslado para a
praxis eclesial e pastoral, etc. Nada disso foi
feito.
O
pior é que a questão da reforma das instituições nunca é meramente pragmática:
ela tem repercussões muito sérias na concepção de Igreja que se pretende. Basta
uma olhadela retrospectiva para que nos apercebamos, claramente, do contexto em
que muitas das medidas foram tomadas, e concluir que, através dos trabalhos
secretos à volta da
Lex Ecclesiæ
Fundamentalis (imediatamente compilados e reunidos no
Código de 1983), se modificou de modo determinante a constituição
da Igreja católica. Com efeito,
o poder
jurisdicional ocupa a cadeira principal no pensamento oficial das instituições.
Falar apenas de paralisação ou de centralização, já seria muito grave. Mas,
muito mais perigoso para o futuro da Igreja é a sua juridicização. A questão
teológica de fundo é a seguinte: a estrutura interna da Igreja de Jesus Cristo
é desde os seus começos
apostólica e, posteriormente e no
concreto,
episcopal.
Essa estrutura própria da Igreja apoia-se no
ordo, ou seja, na
consagração,
pelo que, o poder da ordem ocupa uma posição prioritária sobre o poder de
jurisdição, e nunca o contrário;
a jurisdição depende da ordem. Assim o ensinou
claríssima e rotundamente o Concílio Vaticano II (cf. LG 21)
.
Hoje em dia,
é mais que evidente a supremacia do poder jurisdicional na organização eclesial
e a secundarização do poder da ordem.
Esta fundamentação opera, subliminarmente, alterações de mentalidade na
hierarquia e nos membros do Povo de Deus. Tais alterações favorecem novas
medidas que rebaixam
a Igreja católica ao nível de uma mera hierarquia
organizacional.» (Cont.
)
Joaquín Perea, teólogo
EXCERTOS DE:
«Del Vaticano II a la Iglesia
del Papa Francisco», PPC.
«Otra Iglesia es posible – eclesiología
práctica para cristianos laicos», Ediciones HOAC.
«A SALA DE CIMA» - 17 OUTUBRO 2012, "O debate
decisivo", JM Castillo [NdT]:
«A SALA DE CIMA» - 18 OUTUBRO 2012, "Quem tem o
poder na Igreja?", JM Castillo [NdT]:
Cf.: «Que modelo de comunidade?»,
por Marco Politi, in blog «A Sala de Cima» (31-10-2014):
«Enquanto o primeiro ano de pontificado
de Francisco era assinalado por este debate [«As mulheres estão totalmente ausentes das
funções directivas da Igreja católica»],
a Igreja anglicana da Inglaterra estabelecia no sínodo de 20 de Novembro de
2013 o princípio do acesso das mulheres ao episcopado, praticamente por
unanimidade: 378 votos a favor, 8 contra e 25 abstenções. Vinte
e um anos antes abrira às mulheres o acesso ao sacerdócio.» [NdT]