IGREJA E
VOLUNTARIADO SOCIAL
O tratamento deste tema requer que se explique,
desde logo, alguns conceitos à volta dos quais gira a compreensão, o correcto
enquadramento e até uma boa parte das respostas a dar à questão que temos entre
mãos. Portanto, nada de admirar que as definições ou descrições que se seguem não
sejam mesmo nada assépticas; antes pelo contrário, tomam partido em relação a
certos pontos bem concretos.
Voluntariado
cristão
As características com que se procura definir o
voluntariado cristão não são exclusivas dele: podem ser atribuídas a
voluntariados não crentes ou não confessionais. No entanto, já que os
voluntários cristãos apresentam certas debilidades ou falências com um
voluntariado de «restauração ou privatização, expressivo ou instrumental» —
seja lá como lhe queiram chamar — convém deixar claros certos elementos que se
deduzem desta opção cristã, que, no fundo, deverá ser a opção pelo seguimento
de Jesus.
1 – Nesta linha, falamos de e defendemos um voluntariado
social da margem, da marginalidade. Este tipo de voluntariado
encarna-se em realidades próprias da exclusão social; trabalha directamente com
os excluídos nos espaços sociais onde o progresso e o bem-estar fracassaram
rotundamente. É um voluntariado que vive no interior da sociedade civil, aí se
instala e se mantém, assistindo e curando as feridas que descobrir nessa sociedade,
mas não
prescindindo de lutar contra a injustiça que as causa. Faz este
acompanhamento, mas vai mais longe: trabalha a questão da «promoção», ou seja,
não perde de vista o horizonte da emancipação, dispondo-se a intervir na
História com afã mobilizador. Pretende pôr em marcha uma dinâmica de
transformação das estruturas e de remoção das causas que produzem a
marginalização e a exclusão social. Deste seu compromisso nasce uma denúncia social
reivindicativa. Com as suas práticas de assistência e acompanhamento
desenvolve conteúdos de transformação social[1] e, em
última análise, de resistência política, já que está avisado de que todo o
voluntariado que nasça ou viva numa postura antipolítica será estéril.
Portanto, deixamos de fora todo o voluntariado que
só serve para lavar a má consciência ou para compensar frustrações pessoais e
profissionais, que se transforma num tapa-buracos do sistema neocapitalista ou
que pratica a assistência e o paternalismo ingénua e acriticamente.
2 – Por conseguinte, o voluntariado cristão de que
falamos é um desafio dirigido ao núcleo duro da nossa sociedade: não apenas
pretende atingir o sistema económico, mas sobretudo, e para lá das leis
económicas, pretende atacar os pressupostos culturais hegemónicos. Assim, quer
contribuir para a construção de uma cultura alternativa.
3 – Este tipo de voluntariado cristão que defendemos
caracteriza-se por um sentido radical da gratuidade. Este voluntariado carece
de interesse económico pessoal, não espera nem aceita nada em troca. Entra em
choque e rompe com o utilitarismo individualista.
4 – Responde a uma escolha totalmente livre da
vontade da pessoa, e, por isso, é chamado ꞋvoluntariadoꞋ, mas a sua opção é movida pela solidariedade para
com o outro e pelo compromisso com uma sociedade mais justa.
5 – O voluntariado desenvolve-se num âmbito mais ou
menos organizado, mas a sua estrutura organizativa é flexível e bastante
horizontal. Pressupõe uma estratégia de autorregulação colectiva que pretende
que a sociedade civil tenha uma cada vez maior capacidade de intervenção na Ꞌcoisa públicaꞋ. (…)
Necessidade
de processos formativos
As opções a tomar, por parte das organizações de
voluntariado cristão, a favor dos marginalizados exigem que elas estabeleçam
processos formativos adequados para o acompanhamento dos marginalizados, bem
como o respectivo confronto dos seus próprios membros.
O voluntário, que frequentemente começa a sua
actividade como uma decisão fruto da sua generosidade visando preencher os seus
tempos-livres, acaba por ir amadurecendo o seu compromisso tornando-o mais
estável, consequência da sua liberdade (ou seja, continua a ser um
amadurecimento ꞋvoluntárioꞋ). Acontece que esse
processo acaba por alterar a vida do voluntário e isso fá-lo tomar opções de
vida mais comprometidas e mais radicais (ou seja, opções de vida que atingem a
raiz da sua existência humana e cristã).
Se o processo formativo for adequado, as atitudes do
voluntário cristão irão mudar e pode produzir-se, então, um processo de
conversão interior que acabará por criar rasgões na sua condescendência pessoal
para com a injustiça, o que o levará à luta pela transformação do sistema.
Na hora de seleccionar os membros para as
organizações de voluntariado cristão — mesmo sabendo da variedade de vocações
seculares existentes — devemos verificar a presença à partida, a nosso ver
imprescindível, de uma opção fundamental no momento actual que as nossas
igrejas locais atravessam, que é coerente com tudo o que dissemos até aqui:
procurar agrupar, incentivar e atrair o laicado que
esteja disposto a transformar a realidade antecipando, assim,
significativamente o Reino de Deus, o que constitui uma parte essencial da sua
actividade no voluntariado.
O laicado pelo qual optamos deverá saber estabelecer
um Ꞌincentivo mútuoꞋ com o ambiente social, o
bairro ou a povoação onde acontece a marginalização. É preciso que se consiga
uma interacção, uma circularidade ou retroalimentação entre os projectos da
organização de voluntariado e as inquietações dos marginalizados.
Ora, para que o compromisso do laicado nasça dessas
actividades e seja genuinamente cristão, é preciso cuidar do desenvolvimento da
fé mediante um verdadeiro acompanhamento eclesial.
Diante das dificuldades em romper com as rotinas
existentes e face ao peso da longa história do dualismo separador existente
entre fé e compromisso, é preciso rever os processos formativos a partir dos princípios
evangelizadores e a partir da transformação da realidade. A formação
doutrinal é importante, mas revela-se insuficiente.
Portanto, para levar por diante a proposta anterior
é oportuno criar uma espécie de zona eclesial
intermédia nova, a partir donde se consiga um desenvolvimento da
fé mais pleno e equilibrado. Seria como que uma plataforma ou mediação eclesial à qual seriam convocados
estes leigos, a que nos estamos a referir, com a finalidade de depurar as
motivações do seu compromisso de transformação da realidade, provocando a sua
clarificação, ao mesmo tempo que se exerceria o seu acompanhamento eclesial
mediante o encontro entre si mas também com outros membros de outras
organizações de voluntariado cristão.
O processo formativo deveria ser de carácter
indutivo. Ou seja, deve:
— partir da vida de pessoas concretas, de situações
que estão a acontecer nos seus ambientes locais concretos, para depois
regressar à vida das pessoas.
— fazer com que se tragam à luz os problemas existentes
na realidade do ambiente, do bairro, da povoação, dos vizinhos, etc.
— identificar os desafios e os respetivos «toques de
chamada ao serviço» dos mais pobres.
— saber ler os sinais dos tempos.
— deixar bem claro que a solidariedade activa com os
pobres é um dado que afecta o conjunto destas dimensões.
— estruturar-se a partir de uma pedagogia de acção
transformadora, isto é, não como mera pedagogia activa nem mera instrução, mas como
compromisso com o ambiente onde vivem as pessoas pobres.
— incorporar o compromisso transformador durante o
processo e não achar que ele só entra no final do processo de formação do
marginalizado.
— caracterizar-se pela personalização, pela
progressividade e pela comunitariedade, bem como terá de se basear numa
pedagogia do testemunho e do acompanhamento por parte do «voluntário».
Para potenciar os poucos recursos existentes, entre
outras coisas, seria oportuno partilhar todo o tipo de informação acerca de
materiais e experiências realizadas que digam respeito precisamente à formação
do voluntariado e à transformação da realidade.
Conclusões
– Está em jogo o rosto do Deus cristão
O Concílio Vaticano II deu como adquirido que hoje
em dia vivemos num regime de rotura entre o cristianismo eclesial e a sociedade
laica. Acontece que o Concílio, diante de tal situação, não se quis manter
naquela atitude de uma Igreja assustada e medrosa diante das ameaças de
desintegração interna, mas operou um golpe de rins, uma viragem, com a qual se
propôs renovar a credibilidade do cristianismo através dum diálogo acerca da
procura moderna dum sentido – social e cultural – mostrando como a opção crente
não só não nega como assume, corrige e eleva à sua plenitude a exigência de
todo o ser humano em optar por um sentido para a sua vida e de configurar um
projecto de humanidade conforme a dita opção.
A
revelação de Deus em Jesus, quando vivida historicamente na «comunidade de seguimento»,
descobre uma inesgotável capacidade de oferta de sentido. Este potencial só se
desenvolve na medida em que seja vivido pela comunidade cristã através de tudo
aquilo que constitua a acção humanizadora das pessoas.[2]
Por isso, no nosso tempo, a operação de legitimação
do cristianismo consiste em acompanhar a marcha histórica da humanidade a
partir duma fé activa que se
transforme em fé eficaz pelo amor
prático ao «comum dos mortais». Hoje em dia isso comporta uma enorme
dificuldade, e por uma razão muito simples: ainda não nos distanciamos da contaminação
que existe, desde há imenso tempo, entre o chamamento evangélico a servir,
despojados de todas as estruturas de poder, e o poder (social ou político)
realmente exercido pelo cristianismo eclesial.
Nós,
os crentes, realizamos o acompanhamento da marcha histórica da humanidade,
apoiados numa Promessa. Promessa que só nos é revelada através da fé e que consiste na
recapitulação e na unificação de toda a realidade em Deus. Promessa que,
contudo, ainda está por realizar historicamente e que, por já se ter realizado
em Jesus Cristo, nos obriga a viver historicamente no fio da navalha, tal como
os outros, a partir da esperança nessa Promessa.
Donde se conclui que a nossa prática é hermenêutica, é
interpretação dos símbolos cristãos fundamentais, é tradução (prática)
daquilo que queremos dizer quando afirmamos, por exemplo, que «Deus é nosso
Pai», que «vivemos como irmãos», que «esperamos como filhos».
Na medida em que, como cristãos, interpretamos
os símbolos bíblicos básicos através da nossa práxis social, o
cristianismo fundamenta a sua legitimidade postando-se diante da sociedade
actual, mostrando «a sua verdade» ao longo da História.
A questão da luta em prol da solidariedade tem a ver
directamente com a imagem de Deus que os seguidores de Jesus dão enquanto
reunidos em Igreja. Nós afirmamos que o Deus revelado por Jesus é um
Deus-comunhão. Ora acontece que a comunidade hermenêutica de tal afirmação é a
Igreja.
A extrema injustiça social do sistema económico vigente
coloca graves perguntas acerca do Deus cristão. A pobreza, a exclusão, a
marginalização não são apenas a outra margem da suposta civilização cristã, mas
sobretudo o problema número um que afronta a nossa confissão de fé. Até porque
a fé bíblica fala da salvação para os pobres; até porque a salvação que
oferecemos em nome de Jesus não é meramente escatológica, ou seja, projectada
para lá do fim da história humana, altura em que, então, os pobres seriam
salvos. Se
tudo se devesse passar assim, então, estaríamos a dar razão ao marxismo.
O nosso messianismo é histórico: ele afirma a sua realização nesta terra. Se há
algo específico do cristianismo é a esperança da realização da salvação já
aqui, ainda que a sua plenificação seja no tempo definitivo.
Sem
escuta do clamor dos pobres não pode haver Igreja de Jesus. Sem luta pela mudança de um sistema injusto
não pode haver Igreja de Jesus. No interior da cultura economicista
e consumista, e da mercantilização da existência, compete à Igreja promover a
cultura da solidariedade com vistas a realizar uma sociedade algo parecida ao
projecto de Jesus. Isso acarreta uma mudança de mentalidade quanto à maneira de
enfrentar a situação injusta.
Às organizações de voluntariado cristão cabe-lhe uma
parte desta tarefa. Elas não podem transformar-se em funcionários do sistema,
em legitimadoras do sistema.
O
poder do «um mais um»
O oceano de miséria e de marginalidade seria muito
mais amargo sem esta pequena gota de voluntariado. Se as organizações de voluntariado
não existissem, havia que as inventar neste preciso momento em que escrevo. Têm
muitos defeitos, mas são imprescindíveis. A missão de todos os crentes,
particularmente a dos cristãos embarcados nesta aventura, é a de as melhorar
com uma crítica a partir de dentro.
Mantenhamos a persuasão expressada pelas palavras de
Antonio Tabucchi, tomadas a partir da afirmação de um cientista: «o bater de
asas de uma borboleta em Nova Iorque pode provocar um tufão em Pequim». Em
pleno deslace da sociedade de bem-estar, onde impera a lei e a moral dos mais
fortes e onde os milhentos rostos de marginalizados que Deus recrimina e que constitui
uma realidade cada vez mais transbordante que parece tudo esmagar, nós, os que
conhecemos a alternativa-esperança, sabemos do poder de «um mais um». No meio
desta noite convém recordar a frase do poeta, prémio Nobel, Eugenio Montale: «Me contentaría com transmitir la luz de una
cerilla» [Contentar-me-ia em emitir a
luz de um fósforo]. É isso: a luz de milhões de fósforos juntos pode iluminar
a noite.
Estou a chegar ao fim deste escrito sobre
voluntariado. Falámos de noite. Nesta crua noite eclesial que nos tocou
atravessar e cuja duração ignoramos, ainda que provavelmente não seja breve,
existem alguns na Igreja que não desejam de maneira alguma que o laicado, até
agora silencioso, se converta num laicado ilustrado que levanta problemas sérios
e graves de reforma eclesial, como é o que acontece quando se levam a sério as
iniciativas provenientes do voluntariado cristão.
Outros eclesiásticos, ainda que desejem um laicado
ilustrado, temem que, diante das dificuldades que se lhes possam surgir por
diante, a instituição eclesial não seja capaz de dar uma resposta pronta e
adequada a essas dificuldades mais que razoáveis, e isso produza uma debandada
geral, quer em bicos de pés, quer batendo em cheio com a porta. Esses
eclesiásticos temem uma nova crise do laicado e preferem que nem se
cheguem a colocar essas candentes questões.
Outros, porém, queremos confiar no Espírito que acompanha
sempre a Igreja. Aqueles que sustentamos esta confiança, desejamos um laicado
plenamente ilustrado, um laicado capaz de responder ao lema da Ilustração que
I. Kant cunhou com a sua frase: «Atreve-te a pensar». É certo que tal
atrevimento traz consigo riscos, mas também acreditamos que vale a pena
corrê-los, pois só assim estaremos a gerar a Igreja de Jesus, Igreja do futuro
que está aí a chegar.
Joaquín Perea
«Iglesia y
Voluntariado Social», Instituto Diocesano de Teologia y Pastoral de Bilbao,
N.6, Desclée De Brouwer 2001.
[1]
Considera-se muito útil a leitura das conclusões do debate interno que o
Instituto Diocesano de Teologia e Pastoral de Bilbao levou a cabo (1988-1990),
nomeadamente naquilo que diz respeito ao processo de catequese de adultos e à
promoção laical. Recomenda-se meditar, sobretudo nas páginas 66-69, sobre aquilo
que tradicionalmente é considerado específico (ou até exclusivo) dos leigos: viver a fé ao
nível do temporal. O que significa, por exemplo, ser militante no
temporal? «Pode ser-se cristão sem se ser
militante? Não constitui uma falha do
processo — de todos os processos de formação catecumenal — não promover
militantes?» «Se desde o início do processo de formação [dos leigos] não se utiliza uma metodologia que desague
sempre na transformação da realidade, dificilmente se criará depois um tipo específico
de acção laical no mundo» (p. 66) Cf. «Fieles
a la tierra y constructores del Reino – el conflicto de los laicos cristianos»,
Desclée De Brouwer 1991; citado das pp. 66-67. [NdT]
[2] Cf. F. Manresa, «Asumir, corrigir, plenificar (II). Una
proposta teológica», Cuadernos «Institut de Teologia fonamental», n. 1 18,
Barcelona (Cristinisme i Justicia) 1991, 70-71.