O ENFRENTAMENTO EM JERUSALÉM
VIII - A PROPOSTA
POLÍTICA
1 – A concepção do poder (Mc 9, 33-37; 10, 35-45)
Enquanto Jesus subia para Jerusalém com os seus discípulos…
«…Tiago e João, filhos de Zebedeu,
aproximaram-se dele e disseram: «Mestre, queremos que nos faças o que te
pedimos.» Disse-lhes: «Que quereis que vos faça?» Eles disseram: «Concede-nos que, na tua glória, nos sentemos
um à tua direita e outro à tua esquerda.» Jesus respondeu:
«Não sabeis o que pedis. Podeis beber o cálice que Eu bebo e receber o baptismo
com que Eu sou baptizado?» Eles disseram: «Podemos, sim.»
Jesus disse-lhes: «Bebereis o cálice que Eu bebo e sereis baptizados com o
baptismo com que Eu sou baptizado; mas o sentar-se à minha
direita ou à minha esquerda não pertence a mim concedê-lo: é daqueles para quem
está reservado.» Os outros dez, tendo ouvido isto,
começaram a indignar-se contra Tiago e João. Jesus
chamou-os e disse-lhes: «Sabeis como aqueles que são considerados governantes
das nações [árkein ton éthnesin] fazem
sentir a sua autoridade sobre elas [katakyrieúousin],
e como os grandes se assenhoreiam delas e exercem o seu poder [katexousiádsousin] sobre elas.
Não deve ser assim entre vós. Quem quiser ser grande entre vós, faça-se servo [diákonos] de entre vós e
quem quiser ser o primeiro entre vós, faça-se o escravo [doúlos] de todos. Pois também
o Filho do Homem não veio para ser servido [diakonethésai],
mas para servir [diakonésai] e dar a sua
vida em resgate por todos.» (Mc 10,
35-45)
Estamos perante a última fase do projecto
de Jesus: a subida a Jerusalém a fim de enfrentar os inimigos do Reino, abrigados no lugar onde se encontra o centro do
poder. É por isso que o tema do enfrentamento do poder
adquire profundidade e urgência. O ambiente, à volta de Jesus, ferve. Erguem-se
ansiedades, expectativas, medos, entusiasmos. Numa palavra, um emaranhado de
sentimentos contraditórios típico dos momentos em que se sente que algo de
grandioso está para acontecer.
Tiago e João pertencem ao círculo restrito
que Jesus constantemente consulta. Eles estiveram presentes aquando da
ressurreição da filha de Jairo e na Transfiguração. Eles sabem que está prestes
o momento da decisão definitiva: o Reino de Deus está à distância dum gesto.
Importa, pois, apressarem-se, ou seja, adiantarem-se (em relação aos outros
discípulos) a fim de ocupar os lugares de destaque na nova sociedade que está
para ser instaurada.
Adiantam-se aos outros, tomam a iniciativa
e solicitam a Jesus os primeiros lugares na nova sociedade: «Concede-nos que,
na tua glória, nos sentemos um à tua direita e outro à tua esquerda.». "Na tua glória" (en te doxa). A glória
(doxa)
é o brilho
especial que todo o poder sempre irradia, é a magnificência, o esplendor, a
majestade.
Na Bíblia, tal como em diversos mitos e
religiões, há determinados atributos ou qualidades que se personificam. Assim,
a justiça, a prudência, a riqueza
passam a ser deuses
na mitologia grega. De igual forma, na Bíblia a glória, como atributo
essencial do poder, e a magnificência passam a ser a personificação
do próprio Deus, sendo este interpretado como o todo-poderoso, o
rei, o senhor do universo.
O exemplo clássico, encontramo-lo no livro de Ezequiel. A maneira como a glória aí se apresenta não podia ser
mais gráfica e vibrante:
«Olhei e vi uma figura que se assemelhava a um homem que, dos rins para
baixo, tinha a aparência de fogo e dos rins para cima, era como um clarão
vermelho. Estendeu-me uma espécie de mão e agarrou-me pelos
cabelos.Em seguida, nesta visão divina, o espírito arrebatou-me entre o céu e a
terra e conduziu-me a Jerusalém, até à entrada da porta interior que dá para norte,
onde era o lugar do ídolo rival, que provoca ciúmes. E eis
que lá se encontrava a glória do Deus de Israel [Yahvé], semelhante à da visão que tivera no vale.»
(Ez 8, 2-4)
A
Glória de
Yahvé é o próprio Yahvé. Indica o poder, a magnificência, o
brilho, o resplendor. Yahvé dá conhecimento a Ezequiel dos pecados que se
cometem no seu santuário, identifica os pecadores e enumera os castigos destinados
a estes últimos. Manda marcar com uma cruz todos aqueles que não pecaram e
ordena a execução da sentença de morte aos outros, os pecadores: «E aos outros ouvi-o dizer: "Ide pela
cidade atrás dele [do homem vestido de
branco que tinha à cintura os apetrechos de escriba] e feri os seus
habitantes. Que o vosso olhar não poupe ninguém nem tenha piedade.
Velhos, jovens, virgens, meninos e mulheres, matai-os a todos e exterminai toda
a gente; mas não toqueis naqueles que foram marcados na fronte. Começai pelo meu santuário." E começaram,
então, pelos velhos que estavam diante do templo. Depois
disse-lhes: "Profanai o templo, enchei de
mortos o vestíbulo e saí." Depois, eles saíram e feriram os que
estavam na cidade.» (Ez 9, 5-7)
Tiago
e João julgam que, na nova sociedade, Jesus ocupará o lugar de um rei assim,
todo-poderoso.
Tal mentalidade corresponde à clássica concepção da "tomada e exercício do
poder". Estão todos às portas de Jerusalém, lugar do poder. Uma vez aí
chegados é o momento de tomar o poder e de ocupar o lugar dos que até então aí
o exerceram. Estes discípulos ainda não tinham
abandonado a típica concepção do poder monárquico. O poder está no alto, em cima:
há que atingir o topo. Uma vez aí chegados e bem-sucedidos, há que repartir o
poder entre os que chegarem ao topo, entre os que se apoderaram dele.
O
pedido que fazem a Jesus é que um se sente «à sua direita» e o outro «à sua
esquerda». A
típica postura dum rei é estar sentado num trono. A partir desta posição,
administra a justiça, condena à morte, concede a graça e o perdão, declara a
guerra ou decreta a paz. Os que com ele partilham o poder sentam-se ao seu lado.
À direita, o segundo na linha do poder; e à esquerda, o terceiro. No «Credo», os cristãos, referindo-se a Jesus
Cristo, rezam: «Está
sentado à direita de Deus-Pai todo-poderoso. E daí virá para julgar os vivos e
os mortos.»
Isto
quer dizer que Tiago e João pedem para ser os primeiros por quem se reparta o
poder mal Jerusalém seja tomada, ou, por outras palavras, mal se realize a revolução.
Na terminologia política das nossas repúblicas, «sentar-se à direita» equivale
a ser vice-presidente ou primeiro-ministro ou ministro da economia e finanças,
e «sentar-se à sua esquerda» seria como que, digamos assim, ministro do interior
ou da administração interna.
Aquilo
para que importa chamar a atenção, na intervenção de Tiago e João, é a concepção do
poder que ela implica: essa era a concepção de poder dominante na
nova sociedade – no Reino de Deus – da qual eles eram militantes. Para Tiago e
João (e, eventualmente, para todos os mais chegados a Jesus, para os da tal
«mesa coordenadora») "poder" e "poder monárquico"
correspondiam-se: esse era o único modelo imaginável, à época. É claro que
poder é poder de dominar e, Ꞌem vez dos
actuais dominadoresꞋ – diriam Tiago e João – Ꞌestaremos nós a dominar, nós que não somos corruptos nem pactuamos com
os profanadoresꞋ. Acontece que – mas isso já era pedir demais à mentalidade
dos discípulos – as relações entre dominadores e dominados em nada mudaria.
Os
que possuem essa concepção de poder não são apenas Tiago e João: dela
participam também os demais discípulos. De facto, quando estes se apercebem da
iniciativa dos filhos de Zebedeu, indignam-se e, entre eles, desencadeia-se uma
áspera discussão por aqueles dois se terem adiantado em segredo.
A
resposta que, de chofre, Jesus dá aos filhos de Zebedeu sempre foi
interpretada, pela Igreja, como o anúncio da Sua morte de cruz. De facto, ao
lê-la fica-se com a sensação de que a resposta mescla o histórico com o hermenêutico,
mistura aquilo que facticamente sucedeu com a interpretação que a comunidade de
Marcos fez. De facto, não é de todo descabido pensar que, por essa altura, Jesus, como
hipótese, começasse a vislumbrar a possibilidade de vir a ocorrer a sua morte, tendo,
por isso, incluído na sua resposta "o cálice a beber" como símbolo
dessa mesma morte.
Porém,
o símbolo do cálice a beber, mesmo que não se referisse à morte de Jesus, podia
relacionar-se com as lutas que se avizinhavam, e, com ela, com todos os
sofrimentos consequentes. Isto, sim, tem toda a probabilidade histórica. Porém,
a comunidade de Marcos começou a ler o símbolo do cálice a beber à luz da morte
de Jesus na cruz. A parte final da resposta de Jesus – o sentar-se à
minha direita ou à minha esquerda não pertence a mim concedê-lo – pertence à comunidade de Marcos; já é teologia.
A reacção dos outros discípulos e a
discussão entre eles tem todo o tipo de serem históricas. Sem dúvida que
correspondem a uma série de discussões que existiram no seio do grupo e que se
agudizaram nos momentos em que o triunfo ameaçava acontecer. Esta reacção é
aproveitada por Jesus para esclarecer o tipo de poder que ele concebe.
Quando fala em público sobre o poder, Jesus
não fala de uma realidade sagrada apartada da realidade social e política: não
está a falar da Igreja. Jesus refere-se ao «Reino de Deus», ou seja, à sociedade
aquando da realização do Reino de Deus. Jesus fala do poder, do poder político
que se realiza quer ao nível do Estado, quer nos diversos âmbitos da sociedade
civil: empresas, sinagogas e na família patriarcal.
Jesus começa por caracterizar o tipo de
poder dominante para, de seguida, corrigi-lo e explanar qual deve ser o
conceito e a prática do poder na nova sociedade. «Sabeis como aqueles que são considerados governantes das nações [árkein ton éthnesin] fazem sentir a sua autoridade
sobre elas [katakyrieúousin], e como os
grandes exercem o seu poder [katecsousiádsousin]
sobre elas.» O poder é exercido como dominação: o "outro" não é
reconhecido como "outro", mas como «dominado»[1].
«Dominar», em grego, diz-se árkein. A tradução literal do texto grego,
em vez de ser «ser governantes das nações», deveria ser «dominadores das
nações». O substantivo arké
tanto significa princípio, como fundamento,
causa primeira, autoridade, domínio, império, reino. O poder é como
um "princípio", o fundamento de uma sociedade. Desse
fundamento, tudo depende. É por isso que, segundo esta concepção, não há
reconhecimento do outro como um outro, bem pelo contrário: o outro é dominado.
O dominador faz dele um objecto.
Jesus diz: «se assenhoreiam», se fazem
"senhores". O dominador é o célebre kyrios,
o senhor da
forca e do cutelo, aquele que poderia decretar a morte baixando o
polegar e conceder a vida, elevando-o. Nesta concepção só há espaço para
senhores e servos, amos e escravos. Neste momento, na memória profética de
Jesus avivam-se as experiências históricas do povo hebreu: a perda da liberdade
da primeira Confederação, o domínio da monarquia davídico-salomónica, os crimes
de David e de Salomão a fim de se apoderarem do poder e o esmagamento das
comunidades camponesas.
Após a morte de Salomão, o reino
divide-se aquando da resposta negativa de Roboão (em Siquém) perante o pedido para
que baixasse os impostos que os esmagavam. Foi, então, que os representantes
das tribos do norte (Israel) se retiraram aos gritos: «Todo o Israel viu então que o rei não queria ouvi-los, e replicaram
assim ao rei: "Que temos nós a
ver com David? Nós não temos herança com o filho de Jessé! Vai para as tuas
tendas, Israel! A partir de agora, cuida da tua casa, David!" E Israel foi
para as suas tendas.» (1Rs 12, 16) Mas, mesmo assim, as tribos do norte não
conseguiram refundar a Confederação. É então que surgem os grandes profetas, sempre
prontos a enfrentar o poder de dominação monárquico-sacerdotal.
Sem dúvida que, nesses
momentos, Jesus recordaria a luta intransigente de Elias contra a
dominação do casal Acab-Jezabel; as diatribes furibundas de Amós contra o rei e
os poderosos da corte; as de Miqueias contra a capital de Jerusalém, sede da
monarquia e do sacerdócio, que oprimia e tosquiava as comunidades camponesas; o
discurso de Jeremias contra o Templo. Lembrar-se-ia do regresso dos sacerdotes
do Exílio (na Babilónia) para implantar, sob a protecção da monarquia persa, um
projecto de sociedade sacerdotal dividida em puros e impuros. Recordar-se-ia da
resistência do povo que ficara na terra após a destruição de Jerusalém pelos
babilónios e que tinham lançado as mãos a reconstruir as suas vidas. Lá estavam
os livros de Ruth, Judith, Jonas e Ester a mostrar essa resistência e essa
vontade de viver contra a opressão dos poderes de dominação. E reflectia,
seguramente, acerca do modo como essa história acabaria por desembocar na
situação em que o seu povo agora vivia sob o duplo poder de dominação imperial
e sacerdotal. A fortaleza
Antónia, que alojava a legião romana, e o Templo, onde residia o corpo
sacerdotal, eram os símbolos desse poder de dominação, que se assenhoreara do
povo.
Diante desta concepção e esta prática
de poder, a proposta de Jesus soa assim:
«Não
deve ser assim entre vós. Quem quiser ser grande entre vós, faça-se servo [diákonos] de
entre vós e quem quiser ser o primeiro [prótos] entre vós, faça-se o escravo [doúlos] de todos.
Pois também o Filho do Homem não veio para ser servido [diakonethésai],
mas para servir [diakonésai] e dar a sua vida em resgate por todos.»
(Mc 10, 43-45)
Nesta resposta encontra-se sintetizado
o núcleo da concepção do poder de Jesus e da comunidade de Marcos. É uma
proposta inovadora e revolucionária, que, ao contrário da configuração dos
impérios, das monarquias e repúblicas, se encontrará nas comunidades cristãs como um gérmen
corrosivo, que não dará descanso aos dominadores.
Rubén Dri
Professor e Investigador de Ciências
Sociais da Universidade de Buenos Aires.
[pp. 66]
[1]
A História – palco por excelência da barbárie − sempre foi a História escrita
pelos dominadores. Escrita depois de «feita» dominação, esmagamento, anulação
da identidade do dominado. A História do Mundo é a história da tirania, à qual
se opõem os mártires-resistentes (guerrilheiros combatentes) e os que «oferecem
toda a sua vida junto das vítimas» (missionárias e missionários). Os pequenos
oásis da História que salva são os
crentes no "Deus da Vida" que − também Ele − veio para habitar no
meio das vítimas (Jo 1, 13-14 – neste «veio para
montar a Sua tenda no meio das vítimas da escuridão» está todo o
segredo do futuro da Humanidade; cf. Simone Weil, «O Enraizamento», Relógio d’Água). «A Europa até 1492 não existia
senão como periferia do mundo muçulmano. Quando os espanhóis chegam às Índias
Ocidentais e os portugueses à África e às Índias Orientais, pela primeira vez a
Europa tem a sua periferia. A Europa é, agora, centro. (…) A Europa provinciana
e renascentista, mediterrânea, transforma-se na Europa "centro" do
mundo, na Europa "moderna". Dar uma definição "europeia" da
Modernidade é não entender que a Modernidade da Europa torna as outras culturas
a sua "periferia". (…) A América não é descoberta como algo que
resiste distinta, como o Outro, mas como a matéria onde é projectado "o
si-mesmo": encobrimento… A Europa tornou as outras culturas, mundos,
pessoas, num objecto lançado diante dos seus olhos. O "coberto" foi
"des-coberto": europeizado, mas imediatamente "en-coberto"
como Outro.» (Enrique Dussel, «1492 – O encobrimento do Outro –
a origem do mito da modernidade», Conferências de Frankfurt,
tradução de Jaime A. Clasen, VOZES 1993)