A ESPIRITUALIDADE: QUAL? PARA
QUÊ?
Pergunta - Hoje [1970] a oração é muito
contestada, quer no mundo católico, quer no mundo cristão e no mundo em geral.
Li uma síntese desta contestação dos nossos dias num artigo de Enzo Bianchi,
que se resume nisto: a oração é contestada como lugar privilegiado de encontro
com Deus, porque é considerada um meio de fuga ao quotidiano, porque é
instrumento inautêntico de reconciliação interior, porque é privilégio e luxo
de uma classe social que dispõe de muito tempo, de tanto tempo que até pode
rezar. Num momento tão dramático da história do mundo – conflitos, fomes,
ausência de liberdade, subdesenvolvimento humano, o rosto do homem deturpado
por culpa de outros homens em todo o mundo – que sentido tem falar de oração?
Orar, mas para quê? Para que serve? Que perspectivas abre? Que significado e
que papel tem a oração no projecto global de uma existência humana?
José
Maria González Ruiz
− Nós, cristãos, não temos a pretensão imperialista de apresentar a nossa
experiência religiosa, ainda que estimulante, como uma necessidade inegável em
ordem a uma acção revolucionária. Mas, ao mesmo tempo, rejeitamos a paralela
pretensão imperialista de alguns não-crentes, que, ou descuram o conhecimento e
a simples constatação do nosso fenómeno religioso, ou o condenam a priori sem analisar a praxis que daí
deriva.
Muitos de nós podem dizer que é próprio da oração
empurrar-nos para a acção, até para a acção a mais comprometida. Eu, na minha
vida, não posso afastar as minhas mais íntimas experiências religiosas, a minha
oração, das decisões mais escaldantes. É tudo a mesma coisa. Por que motivo deverei renunciar a uma profunda experiência religiosa
que me lançou entre os homens, que me forçou a partilhar com eles as suas
tragédias e os seus movimentos revolucionários e libertadores?
Há a possibilidade de surgir em cada um de nós duas
personalidades: uma pseudo-espiritualidade força-nos a tornarmo-nos esquizofrénicos.
Isto aparece dito nas prédicas dos exercícios espirituais: "vem repousar com Deus, deixa na pia da água
benta todas as tuas preocupações e, agora, falemos com Deus".
Devo confessar que aquele Deus me repugnava. Por isso, no fim da minha adolescência,
procurei avidamente a Bíblia, sobretudo o Novo Testamento. Quando fui capaz de
ler bem o grego, pedi a uma livraria de Barcelona (que dista 1200 km de Málaga)
uma cópia do Novo Testamento grego, da edição crítica das edições Vogels,
porque no seminário, naquele tempo, não havia sequer uma cópia do Novo
Testamento na sua língua original. Era o tempo do grande subdesenvolvimento
teológico.
Nesse tempo, eu era feliz e levava à Igreja o meu Novo
Testamento grego para alimentar a minha meditação religiosa, mas o superior
repreendeu-me, dizendo que eu, um ávido intelectual, transformava a oração em
estudo. Mas eu pensava: qual é a diferença entre o
estudo e a oração? Agradeço a Deus ter superado aquela grande
tentação de esquizofrenia.
Ainda hoje, muitos amigos me censuram por ter
abandonado a mesa das investigações bíblicas (que, apesar de tudo, nunca
deixei) para «me
sujar» com uma praxis comprometida, revolucionária, não conveniente à dignidade
de um padre, sobretudo, se se é um cónego.
Pelo contrário, outros censuram-me uma pretensa
manipulação dos textos bíblicos a favor de uma discutível opção revolucionária.
Quero dizer a estes senhores duas coisas: primeiro, que não chega dizer que eu
tenha manipulado os textos; é preciso demonstrá-lo. Posso dizer que tenho calos
causados por tantos anos de estudo paciente na obscuridade das bibliotecas,
sobretudo, na do Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Em segundo lugar, a
minha praxis comprometida não é anterior ao meu estudo e meditação da Bíblia,
mas posterior e, por isso, dela derivada.
Foi a Bíblia, aquele Deus incómodo de Abraão, de Isaac,
de Jacob, de Jesus, de Pedro, de Paulo, que me empurrou para aquela
"praxis". Nas minhas orações, quantas vezes me recordei das
angustiantes orações de Jesus em Getsemani. Eu via que a vontade de Deus era para
andar para a frente, para ouvir os discípulos contestatários, para partilhar
com os operários a luta pela liberdade, para pôr a minha assinatura em certos
documentos comprometidos, etc., e tinha medo, muito medo.
Sentia a tentação de usar a palavra de Deus para a
reduzir à medida da prudência humana. Mas o Deus incómodo da oração impelia-me
para além destas tentações. Por isso, como poderia, então, renunciar à minha fé, à minha
experiência religiosa, à minha oração, se na verdade daí brotava o meu ímpeto
complementar contrário à minha condição natural de intelectual frio,
de burguês com as mãos polidas, de belicista medroso?
Eis a resposta à sua pergunta “num momento dramático
da história, que sentido tem falar de oração”? Para mim, tem todo o
sentido. De
facto, fui arrastado a identificar-me com o drama, porque fui fortemente
impelido pela tramontana da oração.»
(José Maria González Ruiz, in «UM
RISCO CHAMADO ORAÇÃO», Telos Editora, Porto, 1973; excertos de uma entrevista
a Roger Garaudy e González Ruiz intitulada «O Homem como ponto de partida»).
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«Primeiro, temos de empenhar-nos na vida ética.
«Depois, a benevolência disciplinada
e habitual − e não a convicção metafísica − dar-nos-ão provas da transcendência
que buscamos.» [Karen Armstrong]
Karen Armstrong e Juan A. Estrada, a
partir do estudo de dois tempos totalmente estranhos entre si, ajudam-nos a perceber
a importância e o papel específico que a espiritualidade desempenha: o século
VI (a.C.) judaico, aquando do exílio do povo de Israel na Babilónia, e a
sociedade hodierna. Totalmente estranhos entre si é certo, mas interligados
pela necessidade que todos os povos sempre tiveram de vencer um momento de
grave bloqueio da sua identidade a fim de encontrar um sentido que valha a pena.
Todos os povos, mesmo os mais
antigos, sempre tiveram necessidade de repensar a espiritualidade recebida de
trás (Tradição) e de a reformular. Os povos mais fecundos, e com mais futuro
espiritual, são aqueles que são capazes de se abrir aos desafios da História,
são os que não voltam as costas a esses desafios inquietantes que Deus deixa
livremente à solta, porque - também eles - são desafios divinos, também eles são
obra da Criação.
«Esta hipótese apoia-se sobre um dado antropológico essencial: a proibição.
(…) É sabido que existem três grandes proibições comuns a todas as civilizações,
cuja finalidade é proteger o homem contra si mesmo, contra aquilo que o enganaria
e o faria empreender um caminho falso (pervertere): a proibição do incesto;
a proibição de matar e a proibição da idolatria. (…)
«Que significa
proibição?
Significa essencialmente isto: que a salvação do homem (na sua relação
consigo mesmo, com os outros e com Deus) não se encontra no imediatismo
(querer ter tudo, já e aqui). Ninguém procura mulher para casar dentro do seu
círculo (na sua família; Lv 18, 6), mas fora dele; ninguém dirime as suas
divergências com o próximo tomando soluções imediatas e drásticas (assassinato;
Ex 20, 13): há que as resolver procurando mediações; ninguém adopta Deus a
partir apenas dum reflexo d’Ele (um ícone, um ídolo; Ex 20, 3): Deus tem de ser o Outro, o totalmente
diferente.
«O imediatismo engana e é caminho de
perdição, porque encarcera dentro do seu próprio círculo e mantém tudo no já
conhecido, quando aquilo que é preciso é construir e inventar uma relação
aberta à alteridade, à exterioridade, ao desconhecido. Neste sentido, não há salvação a não ser fora de si mesmo.»
(Adolphe Gesché, «Dios – Dios para pensar III», Sígueme
2010, p. 156. ISBN 978-84-301-1731-4)
O que estes dois autores – Karen A. e
Juan Antonio E. – nos querem ensinar é que a dinâmica da Humanidade foi sempre esta:
ou rompe com o imediatismo (vingança, ressentimento, tradição casuística ferrenha)
e se abre ao desconhecido e ao diferente de si (utopia espiritual) ou definha e
morre na mesmidade. É a essa tarefa iluminadora do sentido do nosso quotidiano e
da nossa civilização que nos cabe, hoje em dia, a nós associarmo-nos.
Mas… «Primeiro, temos de empenhar-nos na vida
ética.»