teologia para leigos

15 de junho de 2016

A ESPIRITUALIDADE COMO DESAFIO HISTÓRICO [K. ARMSTRONG & J.A. ESTRADA]



A ESPIRITUALIDADE: QUAL? PARA QUÊ?


Pergunta - Hoje [1970] a oração é muito contestada, quer no mundo católico, quer no mundo cristão e no mundo em geral. Li uma síntese desta contestação dos nossos dias num artigo de Enzo Bianchi, que se resume nisto: a oração é contestada como lugar privilegiado de encontro com Deus, porque é considerada um meio de fuga ao quotidiano, porque é instrumento inautêntico de reconciliação interior, porque é privilégio e luxo de uma classe social que dispõe de muito tempo, de tanto tempo que até pode rezar. Num momento tão dramático da história do mundo – conflitos, fomes, ausência de liberdade, subdesenvolvimento humano, o rosto do homem deturpado por culpa de outros homens em todo o mundo – que sentido tem falar de oração? Orar, mas para quê? Para que serve? Que perspectivas abre? Que significado e que papel tem a oração no projecto global de uma existência humana?

José Maria González Ruiz − Nós, cristãos, não temos a pretensão imperialista de apresentar a nossa experiência religiosa, ainda que estimulante, como uma necessidade inegável em ordem a uma acção revolucionária. Mas, ao mesmo tempo, rejeitamos a paralela pretensão imperialista de alguns não-crentes, que, ou descuram o conhecimento e a simples constatação do nosso fenómeno religioso, ou o condenam a priori sem analisar a praxis que daí deriva.

Muitos de nós podem dizer que é próprio da oração empurrar-nos para a acção, até para a acção a mais comprometida. Eu, na minha vida, não posso afastar as minhas mais íntimas experiências religiosas, a minha oração, das decisões mais escaldantes. É tudo a mesma coisa. Por que motivo deverei renunciar a uma profunda experiência religiosa que me lançou entre os homens, que me forçou a partilhar com eles as suas tragédias e os seus movimentos revolucionários e libertadores?

Há a possibilidade de surgir em cada um de nós duas personalidades: uma pseudo-espiritualidade força-nos a tornarmo-nos esquizofrénicos. Isto aparece dito nas prédicas dos exercícios espirituais: "vem repousar com Deus, deixa na pia da água benta todas as tuas preocupações e, agora, falemos com Deus". Devo confessar que aquele Deus me repugnava. Por isso, no fim da minha adolescência, procurei avidamente a Bíblia, sobretudo o Novo Testamento. Quando fui capaz de ler bem o grego, pedi a uma livraria de Barcelona (que dista 1200 km de Málaga) uma cópia do Novo Testamento grego, da edição crítica das edições Vogels, porque no seminário, naquele tempo, não havia sequer uma cópia do Novo Testamento na sua língua original. Era o tempo do grande subdesenvolvimento teológico.

Nesse tempo, eu era feliz e levava à Igreja o meu Novo Testamento grego para alimentar a minha meditação religiosa, mas o superior repreendeu-me, dizendo que eu, um ávido intelectual, transformava a oração em estudo. Mas eu pensava: qual é a diferença entre o estudo e a oração? Agradeço a Deus ter superado aquela grande tentação de esquizofrenia.

Ainda hoje, muitos amigos me censuram por ter abandonado a mesa das investigações bíblicas (que, apesar de tudo, nunca deixei) para «me sujar» com uma praxis comprometida, revolucionária, não conveniente à dignidade de um padre, sobretudo, se se é um cónego.

Pelo contrário, outros censuram-me uma pretensa manipulação dos textos bíblicos a favor de uma discutível opção revolucionária. Quero dizer a estes senhores duas coisas: primeiro, que não chega dizer que eu tenha manipulado os textos; é preciso demonstrá-lo. Posso dizer que tenho calos causados por tantos anos de estudo paciente na obscuridade das bibliotecas, sobretudo, na do Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Em segundo lugar, a minha praxis comprometida não é anterior ao meu estudo e meditação da Bíblia, mas posterior e, por isso, dela derivada.

Foi a Bíblia, aquele Deus incómodo de Abraão, de Isaac, de Jacob, de Jesus, de Pedro, de Paulo, que me empurrou para aquela "praxis". Nas minhas orações, quantas vezes me recordei das angustiantes orações de Jesus em Getsemani. Eu via que a vontade de Deus era para andar para a frente, para ouvir os discípulos contestatários, para partilhar com os operários a luta pela liberdade, para pôr a minha assinatura em certos documentos comprometidos, etc., e tinha medo, muito medo.

Sentia a tentação de usar a palavra de Deus para a reduzir à medida da prudência humana. Mas o Deus incómodo da oração impelia-me para além destas tentações. Por isso, como poderia, então, renunciar à minha fé, à minha experiência religiosa, à minha oração, se na verdade daí brotava o meu ímpeto complementar contrário à minha condição natural de intelectual frio, de burguês com as mãos polidas, de belicista medroso?

Eis a resposta à sua pergunta “num momento dramático da história, que sentido tem falar de oração”? Para mim, tem todo o sentido. De facto, fui arrastado a identificar-me com o drama, porque fui fortemente impelido pela tramontana da oração

(José Maria González Ruiz, in «UM RISCO CHAMADO ORAÇÃO», Telos Editora, Porto, 1973; excertos de uma entrevista a Roger Garaudy e González Ruiz intitulada «O Homem como ponto de partida»).




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«Primeiro, temos de empenhar-nos na vida ética.
«Depois, a benevolência disciplinada e habitual − e não a convicção metafísica − dar-nos-ão provas da transcendência que buscamos.» [Karen Armstrong]

Karen Armstrong e Juan A. Estrada, a partir do estudo de dois tempos totalmente estranhos entre si, ajudam-nos a perceber a importância e o papel específico que a espiritualidade desempenha: o século VI (a.C.) judaico, aquando do exílio do povo de Israel na Babilónia, e a sociedade hodierna. Totalmente estranhos entre si é certo, mas interligados pela necessidade que todos os povos sempre tiveram de vencer um momento de grave bloqueio da sua identidade a fim de encontrar um sentido que valha a pena.

Todos os povos, mesmo os mais antigos, sempre tiveram necessidade de repensar a espiritualidade recebida de trás (Tradição) e de a reformular. Os povos mais fecundos, e com mais futuro espiritual, são aqueles que são capazes de se abrir aos desafios da História, são os que não voltam as costas a esses desafios inquietantes que Deus deixa livremente à solta, porque - também eles - são desafios divinos, também eles são obra da Criação.

«Esta hipótese apoia-se sobre um dado antropológico essencial: a proibição. (…) É sabido que existem três grandes proibições comuns a todas as civilizações, cuja finalidade é proteger o homem contra si mesmo, contra aquilo que o enganaria e o faria empreender um caminho falso (pervertere): a proibição do incesto; a proibição de matar e a proibição da idolatria. (…)

«Que significa proibição? Significa essencialmente isto: que a salvação do homem (na sua relação consigo mesmo, com os outros e com Deus) não se encontra no imediatismo (querer ter tudo, já e aqui). Ninguém procura mulher para casar dentro do seu círculo (na sua família; Lv 18, 6), mas fora dele; ninguém dirime as suas divergências com o próximo tomando soluções imediatas e drásticas (assassinato; Ex 20, 13): há que as resolver procurando mediações; ninguém adopta Deus a partir apenas dum reflexo d’Ele (um ícone, um ídolo; Ex 20, 3): Deus tem de ser o Outro, o totalmente diferente.

«O imediatismo engana e é caminho de perdição, porque encarcera dentro do seu próprio círculo e mantém tudo no já conhecido, quando aquilo que é preciso é construir e inventar uma relação aberta à alteridade, à exterioridade, ao desconhecido. Neste sentido, não há salvação a não ser fora de si mesmo(Adolphe Gesché, «Dios – Dios para pensar III», Sígueme 2010, p. 156. ISBN 978-84-301-1731-4)

O que estes dois autores – Karen A. e Juan Antonio E. – nos querem ensinar é que a dinâmica da Humanidade foi sempre esta: ou rompe com o imediatismo (vingança, ressentimento, tradição casuística ferrenha) e se abre ao desconhecido e ao diferente de si (utopia espiritual) ou definha e morre na mesmidade. É a essa tarefa iluminadora do sentido do nosso quotidiano e da nossa civilização que nos cabe, hoje em dia, a nós associarmo-nos.

Mas… «Primeiro, temos de empenhar-nos na vida ética.»