Caritas
in veritate - a "forclusão" do
capitalismo
«Bento XVI [Caritas in veritate]
não tem um discurso sobre o capitalismo e as referências que lhe faz são
meramente tangenciais; algumas revelam uma leitura sesgada do texto de João
Paulo II que atrás citamos, quando acerca dele diz: "Na encíclica Centesimus Annus a moderna economia empresarial comporta
aspectos positivos cuja base é a liberdade da pessoa expressa no campo
económico e outros (n.32)." (…) Dizer isto é não ter
assimilado a crítica que naquela encíclica se faz ao sistema capitalista: é colocar
diafanamente umas tintas sobre a denúncia do capitalismo como sistema que pretende ser o modelo a adoptar por todo o lado
após o "fracasso" do
socialismo. A Encíclica dá a sensação de, constantemente, não estar
ajustada à realidade que nos últimos tempos se vive. A sua publicação deveria
coincidir com o aniversário da Populorum
progressio, mas os acontecimentos do ano 2007 tornaram prudente a sua
postergação enquanto não se tivesse uma medição mais exacta da profundidade dos
mesmos. Essa medição parece ter sido feita com a mesma vara com que a fizeram
os organismos
internacionais e, por conseguinte, a encíclica desliza pela mesma
pendente daqueles: miopia económica e presbiopia moral.» (…) Ou seja: Caritas in veritate padece de «uma visão
neoagustiniana» baseada em um «naturalismo económico, [num] sobrenaturalismo
político e [num] eclesiocentrismo»
(Bernardo Pérez Andreo, "No podeis
servir a dos amos", Herder 2013)
«Em muitas e diversas circunstâncias, a Igreja esqueceu o sentido último
do seu ser no mundo: estar ao serviço dos homens construindo o Reino de Deus.
Segundo o Concílio Vaticano II, "A Igreja é sacramento universal de salvação"
(LG 48), mas, "como Cristo
realizou a obra da redenção na pobreza e na perseguição de igual modo a
Igreja está destinada a percorrer o mesmo caminho a fim de comunicar aos homens
os frutos da salvação" (LG 8). "Desta maneira, demonstra que aquilo
que a move não é a ambição terrena. Apenas deseja uma só: continuar, sob a guia
do Espírito, a mesma obra de Cristo, aquele que veio ao mundo para dar
testemunho da verdade, para salvar e não para julgar, para servir e não para
ser servido" (GS 3). (Bernardo Pérez Andreo, "No podeis servir a dos amos", Herder 2013)
«Este serviço expressa-se de dois modos muito concretos: um, como serviço à
verdade e, por conseguinte, como crítica a tudo quanto se oponha ao
bem dos homens; o outro, como serviço aos oprimidos neste mundo cheio de
injustiça com a qual muitos homens pretendem continuar a ocultar a verdade do
amor de Deus.» (Bernardo Pérez Andreo, "No podéis servir a dos amos", Herder 2013)
UTOPIA SACRIFICIAL DA SOCIEDADE MODERNA
3.2 A
Ciência e a legitimação do afã pelo lucro
A
apresentação da maximização do lucro dentro do sistema de mercado, como o
caminho para o progresso, trouxe consigo o primeiro grande desafio da nova forma de legitimação:
“libertar”, o afã pelo lucro, dos entraves
colocados pela ética tradicional. Segundo Weber, foi o ascetismo
intramundano do protestantismo – em particular o calvinismo, o
pietismo, o metodismo e as seitas batistas – que o libertou, rompendo os
grilhões da ânsia de lucro, com o que não apenas o legalizou, como também o
considerou como diretamente desejado por Deus. A luta dos puritanos contra as
tentações da carne e contra a dependência dos bens materiais não era «uma
campanha contra o enriquecimento, mas
contra o uso irracional da riqueza».[1]
E
o que vem a ser o uso irracional da riqueza? Analisando as sentenças de Benjamin
Franklin, Weber diz que o summum bonum da ética capitalista - a obtenção
de mais e mais dinheiro - combinada com o estrito afastamento de todo o gozo
espontâneo da vida, é completamente destituída de qualquer carater eudemonista,
isto é, de felicidade como princípio moral, ou mesmo hedonista. Após afirmar
que ganhar dinheiro é pensado como uma finalidade em si, acima da
felicidade ou utilidade, algo de totalmente transcendental e
simplesmente irracional, ele diz que:
“O
homem é dominado pela produção de dinheiro, pela aquisição
encarada como finalidade última da vida.
A aquisição económica deixa de estar subordinada ao homem como meio de
satisfazer as suas necessidades materiais[2].
Esta inversão
do que poderíamos chamar relação natural, de um ponto de vista
ingénuo tão irracional, é evidentemente um princípio orientador do capitalismo, tão
seguramente quanto ela é estranha a todos os povos fora da influência
capitalista.”[3]
Nesta
afirmação de Weber
encontramos duas noções de racionalidade: a capitalista
e a pré-moderna ou “ingénua”. O que é
racional para uma não o é para a outra. Não há um critério objetivo que possa
discernir entre as duas opções de racionalidade. Razão pela qual Weber diz que
o summun bonum da ética capitalista é
transcendental e irracional. Mas, só é irracional de um ponto de vista ingénuo,
não do ponto de vista do uso racional do capital dentro da racionalidade
capitalista. Nem mesmo a “relação natural”, isto é, a aquisição de bens
materiais como meio de satisfação das necessidades humanas, serve como critério
de discernimento entre estas duas racionalidades. Pois, segundo Weber, esta
inversão de considerar a aquisição de bens materiais não já como meio, mas como
um fim em si, só é irracional de um ponto de vista ingénuo, e não de um ponto
de vista capitalista: muito pelo contrário, nisto consiste um princípio
orientador do capitalismo, do seu uso racional da riqueza. Ou seja, o que
parece ser natural não é tão natural assim.
A
inversão da relação natural não é uma inversão ou uma irracionalidade, a não
ser que a racionalidade capitalista seja racional. Mas, como é evidente, pelo
menos para os “ingénuos”, que a finalidade do trabalho humano para a aquisição
de bens materiais é o ser humano ou que a actividade económica deve estar
subordinada ao ser humano – sujeito e fim
da ação económica –, Weber encontra duas saídas para fundamentar a
racionalidade capitalista: a) o ganhar dinheiro como uma finalidade em si - o summun bonun do capitalismo - é
transcendental; b) não se pode discutir cientificamente as finalidades e os
valores, eles dependem exclusivamente das opções e das perspectivas decorrentes
das opções tomadas pelos agentes económicos.
Esta
conceção de racionalidade é fruto de uma profunda mudança no conceito de razão
no pensamento ocidental. Segundo Horkheimer, durante longo tempo predominou uma
teoria objetiva da razão (entre os grandes sistemas filosóficos como o de
Platão, Aristóteles, o escolaticismos e o idealismo alemão) que «afirmava a
existência da razão
não só como uma força da mente individual, mas também do mundo objetivo: nas relações
entre os seres humanos e entre classes sociais, nas instituições sociais, e na
natureza e suas manifestações.»[4]
Para Horkheimer, este conceito de razão objetiva jamais excluiu a razão
subjetiva, mas considerou-a como a expressão parcial e limitada de uma
racionalidade universal. «Quando se concebeu a ideia da razão, o que se
pretendia alcançar era mais que a simples regulação da relação entre meios e
fins: pensava-se nela como um instrumento para compreender os fins, para determiná-los.»[5]
Habermas
refere-se a isso dizendo que o pensamento metafísico pressupõe que a razão
cognoscente se encontra no mundo estruturado racionalmente ou que ela mesma
empresta à natureza, ou à história, uma estrutura racional, «seja ao modo de
uma fundamentação transcendental, seja pelo caminho de uma penetração dialética
do mundo».[6]
E diz ainda que:
“Uma totalidade racional em si mesma,
seja do mundo, seja da subjetividade formadora do mundo, garante,
respetivamente aos seus membros e aos momentos particulares, a participação na
razão. A racionalidade é pensada como material, como uma racionalidade que
organiza os conteúdos do mundo, podendo ser lida a partir deles. A razão é
razão do todo e das suas partes.”[7]
Na
perspectiva subjectivista, dentro da qual Weber «aderiu de modo definitivo»[8],
a razão refere-se exclusivamente à relação de um meio, objecto ou conceito com
um determinado fim ou propósito. Não existe um propósito racional como tal, e
discutir a superioridade de um objectivo sobre outros, em termos de razão,
torna-se algo sem sentido.
Se
no início do capitalismo o afã pelo lucro foi legitimado pelo puritanismo, com
a crescente racionalização e secularização da sociedade moderna o afã pelo
lucro foi legitimado por um novo conceito de razão: uma razão desvinculada dos
valores morais tradicionais concebidos numa perspectiva metafísica. A
legitimação dá-se pela exclusão da discussão sobre o objetivo de se ter o maior
lucro possível. Como não se pode discutir cientificamente este objetivo, também
não se pode condená-lo.
A
anulação dos valores supremos e sublimes da vida pública é, segundo Weber, o
destino do nosso tempo marcado pela racionalização e, sobretudo, pelo “desencantamento do
mundo”. «Tais valores encontraram refúgio na transcendência da vida
mística ou na fraternidade das relações diretas e recíprocas entre indivíduos
isolados.»[9]
E as pessoas que não conseguem suportar virilmente este destino da nossa época,
devem, segundo Weber, voltar silenciosamente aos braços abertos e misericordiosos
das velhas igrejas e realizar o «sacrifício do intelecto», o qual «constitui o
traço decisivo e característico do crente praticante».[10]
Roberto Campos, o famoso ex-ministro dos governos militares brasileiros e
economista neoliberal, chamou a isto os «dois
reinos» que não podem ser confundidos: o reino da economia – o «reino da
produtividade e eficiência» – e o «reino da ética e da justiça».[11]
Esta
separação entre a ciência e a ética divide o mundo em dois. «Dois mundos e duas
verdades».[12]
O domínio
físico e social ficou desligado da ordem metafísica e transcendental.
Está definitivamente superada a sociedade tradicional. A partir de agora, a
teologia fala das realidades celestes e é aceite socialmente como «uma
racionalização intelectual da inspiração religiosa»[13],
restringida ao campo privado. Foi, assim, criada uma armadilha para a teologia
e para a Igreja: com a divisão em dois mundos, a teologia e a Igreja podem
reinar sem concorrentes sérios no «reino da ética e da justiça» ou no reino da vida
mística, na esfera privada. Acontece que perdem relevância histórica no campo público.[14]
Com
a pretensa neutralidade ética das ciências modernas e a divisão da realidade em
«dois reinos», a
teologia perdeu de vez o papel social relevante na esfera pública.
Se na sociedade tradicional, o discurso teológico sobre Deus e sobre as
«realidades celestes» era de certa forma entendido igualmente como um discurso
sobre realidades «terrestres», na sociedade moderna, o
discurso sobre Deus é compreendido como um discurso que se refere somente a uma
realidade “mística”, a um “outro mundo”, sem vinculações ou
implicações na realidade social. A realidade social tornou-se o campo exclusivo
das ciências humanas e a teologia não pode nem tem mais sentido emitir juízos
sobre estas realidades a partir de valores religiosos.
Joan
Robinson, estudando os problemas filosóficos da ciência económica, também diz
que a ciência económica surgiu tendo como uma das suas funções justificar esse
afã pelo lucro:
ˮÉ precisamente a busca do lucro que
destrói o prestígio do homem de negócios. Embora possa comprar todas as formas
de respeito, a riqueza nunca as encontra de graça. A tarefa do economista era
superar esses sentimentos e justificar os caminhos de Mammon para o homem.
Ninguém gosta de ter uma má consciência. Cinismo puro é um tanto raro. (…) O
trabalho do economista não é nos dizer o que fazer, mas mostrar como o que
estamos fazendo está de acordo com princípios adequados”[15]
Por
isso, ela diz que, no fundo, os economistas são substitutos dos teólogos.[16]
Os economistas, na sociedade moderna, realizam o mesmo papel que os teólogos
realizavam na sociedade tradicional: legitimar, moralmente, uma determinada acção e
uma determinada organização social. A preocupação inconsciente por trás da
teoria económica neoclássica era principalmente «elevar os lucros ao mesmo
nível da respeitabilidade moral dos salários».[17]
Para compreendermos melhor esta afirmação, precisamos ver as diferenças
fundamentais entre a economia política clássica e a economia neoclássica.
O
elemento teórico central que diferencia estes dois pólos «é o ponto de partida
radicalmente distinto delas. A economia política enfoca a economia a partir do
problema da reprodução
dos factores de produção, enquanto a teoria neoclássica a enfoca
desde o ponto de vista da alocação óptima dos recursos».[18]
O
pensamento económico moderno começou, com os seus principais representantes
Adam Smith, Malthus e Ricardo, como economia política. Eles elaboraram o seu
enfoque a partir da reprodução dos factores de produção, o que os levou a uma
teoria do salário baseada na necessária subsistência dos trabalhadores e,
portanto, independente da escassez relativa da mão-de-obra no mercado de
trabalho.
O
pensamento de Marx compartilha este ponto de vista. Só que ele concentra o
problema da reprodução dos factores na reprodução de um só factor: os produtores. A reprodução da vida
humana aparece como a última instância de todas as decisões económicas e
políticas; e a reprodução de outros factores de produção são vistas como uma
consequência da reprodução material da vida humana. A partir desse ponto de
vista, Marx transforma a economia política burguesa com a afirmação de que
somente a transformação da sociedade burguesa em sociedade socialista pode
assegurar esta reprodução.
Frente
a esta alternativa radical […]
Jung Mo Sung
Prof. em pós-graduação nas Ciências da Religião da Universidade
Metodista de São Paulo-Brasil
[pp. 55]
[1]
M. Weber, «A Ética protestante e o espírito do
capitalismo», op. cit.,
p. 122.
[2]
Cf. O colecionismo − é um traço «natural» da vontade humana de posse; a
caminhada espiritual corre paralelamente ao despojamento de bens e ao
amadurecimento humano, libertação do colecionismo, pois então, da parentela e
até mesmo do nome de família… O empresário (com ligações ao «caso BPN») que
tinha uma enorme coleção de mais de cem Mercedes Benz (de coleção), e que
pagava a um mecânico para que lhes fizesse a manutenção diária de que
necessitassem, é bem o exemplo deste conceito de «aquisição». [NdE]
[3]
Ibidem, p. 33. [o grifo é nosso]
[4]
Max Horkheimer, «Eclipse da razão», op. cit., p. 12. Sobre esta questão vide
também, Manfredo Araújo de Oliveira, «A filosofia na
crise da modernidade», São Paulo, Loyola, 1989.
[5]
Max Horkheimer, «Eclipse da razão», op. cit., p. 18.
[6]
Jürgen Habermas, «Pensamento pós-metafísico»,
Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1990, p. 44.
[7] Ibidem, p. 44.
[8]
Max Horkheimer, «Eclipse da razão», op. cit., p. 16, nota 1.
[9]
Max Weber, «Ciência e política: duas vocações»,
4ª edç., São Paulo, Cultrix, 1984, p. 51.
[10] Ibidem, p. 50.
[11]
Roberto Campos, «Além do cotidiano», op. cit., 2 edç., 1985, p. 65.
[12]
Hilton Japiassu, «Nascimento e morte das ciências humanas»,
Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1978, p. 30.
[13] Max Weber,
«Ciência e política:…», op. cit., p. 50.
[14]
Este fenómeno não é exclusivo do cristianismo. Bernardo Sorj, analisando o
judaísmo na modernidade, diz que «traduzir o judaísmo rabínico à prática da
vida moderna implicou a separação entre o domínio público e privado (para o
qual era relegada a vida judaica) e na lealdade ao Estado nacional e suas
instituições (…) Existencialmente, os tempos modernos significaram um conflito
constante entre os valores tradicionais e os novos valores – os primeiros
vistos como particulares e os segundos como universais –, entre a lealdade à
colectividade étnica e a lealdade ao Estado nacional – ou humanidade.». Em:
Sorj, B., Grin, M., (orgs.), «Judaísmo e
modernidade», Rio de Janeiro, Imago, 1993, p.8.
[15] Joan
Robinson, «Filosofia económica», op. cit., p. 22.
[16] Ibidem, p. 120.
[17] Ibidem, p. 51.