O pão da celebração,
sinal comunitário da
justiça
«Passou um
ano sobre a morte trágica do arcebispo monsenhor Romero,
o zeloso
pastor morto a 24 de Março de 1980, enquanto celebrava a santa missa.
Coroava,
assim, com o sangue o seu ministério,
ministério
particularmente preocupado com os pobres e os marginalizados.
Foi um
testemunho sublime,
que acabou
por constituir o símbolo da opressão dum povo,
mas também
um motivo de esperança
num futuro
melhor» (João Paulo II, 24.3.81).
Vamos procurar compreender
a relação entre o pão, fruto do trabalho
comunitário dos homens que se troca entre produtores e
o pão, matéria de oferenda eucarística. Numa segunda fase de
aprofundamento, tentaremos articular o pão do sacrifício com o próprio corpo do
profeta que se oferece na História através das lutas pela justiça, pela
construção do Reino. Pão do trabalho, pão oferenda, corpo mártir como pão
eucarístico! Ou seja, procuraremos articular economia e eucaristia, o que constitui a essência do cristianismo.
Tal como já fizemos
em outras ocasiões[1], vamos
tomar como referência um facto histórico da vida da Igreja. Trata-se da
conversão profética de Bartolomeu de las Casas [nascido em 1484], que aconteceu por volta do
Pentecostes, em Cuba, em Abril de 1514 [aos 30 anos de idade], acontecimento que
ele relata na História das Índias,
livro III, capítulo 79[2].
Bartolomeu tinha chegado à América a 15 de Abril de 1502 [com 18 anos de idade], nove anos depois
da descoberta do continente por Cristóvão Colombo, e tinha participado com
Nicolás Ovando na violenta conquista dos índios Arawacos (índios tainos). Como sacerdote, foi o primeiro
sacerdote americano e foi quem rezou pela primeira vez a primeira missa, em
1511, sendo o seu padrinho o próprio Diego de Colombo, filho do descobridor.
Conheceu os dominicanos Pedro de Córdoba e Antón de Montesinos na ilha Hispañola.
Com Pánfilo de Narváez, participou, a partir de Janeiro de 1513, na conquista da
ilha de Cuba, onde o domínio europeu por parte dos cristãos se impôs «a sangue
e fogo». Bartolomeu recebeu, como recompensa monetária pelos seus serviços, um
grupo de índios, que para ele trabalharam (sistema de repartimiento[3]).
Durante doze anos fora cúmplice da violência no Caribe: «O clérigo Bartolomeu
de las Casas – escreve ele
autobiograficamente – andava muito ocupado e muito solícito com as suas
quintas, tal como os outros, enviando os índios (do seu repartimiento) às minas, a explorar o ouro e a fazer sementeiras, e
usando-os tanto quanto podia».
Chegando Diego
Velázquez à vila do Espírito Santo, e como «não havia em toda a ilha nem
clérigo nem frade», pediu a Bartolomeu que celebrasse a eucaristia e lhes
pregasse o evangelho. Por isso, Bartolomeu decidiu-se «a sair da sua casa que
tinha no rio Arimao» e «começou a entabular diálogo consigo próprio acerca de
algumas entidades da Sagrada Escritura». É importante lembrar o texto bíblico
que serviu de ponto de apoio para a conversão profética do grande lutador do
século XVI: «Foi aquele principal e primeiro do Eclesiástico (Ben Sira) cap. 34: "Sacrifícios
com base em bens injustos são impuros, não serão aceites as oferendas dos ímpios. O Altíssimo não aceita as oferendas dos
ímpios e nem por muitos sacrifícios lhes perdoa o pecado. É
sacrificar o filho na presença do pai, roubar aos pobres para oferecer
sacrifício. O
pão é a vida do pobre, aquele que o defrauda
é homicida. Mata o seu próximo quem lhe rouba o salário, quem não
paga o justo salário derrama sangue." Começou – continua Bartolomeu a descrever o seu processo pessoal de conversão
– a considerar a miséria e a escravidão de que padeciam aquelas gentes (os
índios). Aplicando um (o texto bíblico) ao outro (a realidade económica
caribenha), concluiu, por si próprio, convencido da sua verdade, ser injusto e
tirânico tudo quanto acerca dos índios nesta Índia se cometia».
Bartolomeu não conseguiu celebrar a missa, o culto eucarístico.
Primeiro, libertou os índios («acordou totalmente libertá-los») e começou a sua
acção profética, primeiro em Cuba, depois em Santo Domingo, posteriormente em
Espanha e depois em todos os reinos das Índias, «ficando todos admirados e até
espantados com o que lhes dizia»[4].
«Tratando-se da vida contemplativa e activa, que era a matéria daquele domingo,
e tendo a ver com as obras de caridade, fora necessário mostrar-lhes a obrigação que tinham de as
cumprir e exercitar naquelas gentes, de quem tão cruelmente se serviam».
Acontece que o texto de Eclo [Sir] 34:18-22 possui uma estrutura surpreendente.
I.
O «PÃO»
O texto lido em
Cuba dizia: «O pão[5] é a vida
do pobre». No Mediterrâneo, terra de cultura de trigo, o «pão» é a realidade e
o símbolo do produto
do trabalho do homem. Ou seja, é o fruto primordial da relação homem-natureza,
fruto do trabalho. Esta relação estabelece-se no âmbito do produtivo (é do ordo dos factibilia)[6],
ao qual se refere a oração do ofertório da missa católica: oferecemos-te este «pão fruto da terra e do trabalho do
homem». Vejamos, então, estes três termos: terra, trabalho, pão.
Esta relação
sujeito-natureza através do trabalho é uma relação material. A terra torna-se
«matéria» (in quo e com o que) de trabalho. Sem trabalho há
terra, há cosmos, mas não há «matéria». A «matéria» (o materialismo
sacramental) acontece, é um a posteriori do
a priori humano e subjectivo que é o
trabalho. O materialismo
cosmológico («tudo é matéria») é ingénuo e facilmente refutável. O materialismo
produtivo é irrefutável e sacramental: a terra é matéria do trabalho. Sem terra e sem
trabalho não há pão. Sem pão não há eucaristia. Porém, o que é o pão?
O pão é um pró-ducto, é aquele que vai à frente (pró-) da vista como um fenómeno no
mundo. É criação humana; é continuação da criação divina. É exteriorização,
ex-tranhamento, objectivação da subjectividade humana. É culturalização da
terra. É cultura, técnica, tecnologia. O pão são os produtos que nos rodeiam
como sistema, como civilização. Seja como for,
esse «pão» é fruto do que há de mais digno: o trabalho. Na Bíblia, habodah[7],
corresponde a trabalho manual (mas é igualmente, como mais adiante veremos no
cap. VII, o trabalho do templo, o «serviço» divino)[8].
O «Servo» (hebed)
de Yahvé é o «trabalhador» do Senhor. Trabalham os profetas, os fariseus, os apóstolos
e o próprio Jesus trabalha. O trabalho é a acção humana, digna por excelência,
que objectiva, na natureza, a dignidade do homem. Sem
trabalho, o homem seria pura subjectividade infecunda sem «pão» para o
sacrifício: as suas mãos estariam vazias.[9]
II.
O PÃO
É «VIDA»
O texto da
conversão profética de Bartolomeu diz que «o pão é vida».[10]
Vive aquele que é um «outro» distinto de todos os outros, aquele que é livre,
que se auto-determina, que na sua existência é autónomo, cuja carnalidade se
mobiliza a fim de cumprir os seus fins, (…)
Enrique Dussel, teólogo e
filósofo
Felipe
Berríos, sj
27 Junho 2014
ENTREVISTA
NA TV CHILENA
[1] Cf. Arte
Cristiano del oprimido en América Latina: «Concilium» 152 (1980): «Estatuto
económico de la eucaristía» (pp. 215-218); Puebla:
relaciones entre ética cristiana y economía: «Concilium» 169 (1980) 576-588; sobre
Bartolomé de las Casas, cf. o capítulo I da obra colectiva de CEHILA: Historia general de la Iglesia en América Latina I (1982).
[2] BAE (Madrid 1961) II, 356ss.
[4] BAE
(Madrid 1961) II, 358ss.
[5] Cf. o
artigo ártos, em Kittel TWNT-I,
475-476 (bibliografia actualizada no t. X/2, p. 993), Behm.
[6] «Ordo
quem ratio considerando facti in rebus exterioribus constituit per rationem
humanam, pertinet ad artes mechanicas» (S. Tomás de Aquino, In Ethic. Expos., I. 1, lect. 1
[Marietti; 1949], p. 3).
[7] Cf.
artigo érgon, em TWNT II, 631-653
(bibl. X/2, 1084-1085), Bertam, e o art. paîs,
V, 636-712, de vários autores. É importante o art. latreúo,
IV, 58-68, Bornkamm, onde se demonstra que em grego latreía
e latreúein correspondem ao hebraico habodah
e habad
(p. 59, linha 45; p. 61, linhas 27-28).
[8] Veja o
meu artigo Dominación-Liberación: «Concilium» 96 (1974): «Praxis liberadora» (pp. 338ss). Vem a
propósito recordar que látris
(donde vem, em grego, a palavra «culto») significa «salário do operário»: render culto é pagar o salário ao
trabalhador (cf. Kittel TWNT IV, 59).
[9] Diz o
povo: «O trabalho dá saúde»… [NdT]
[10] Cf.
artigo záo, zoé,
em TWNT II, 834-874, e thánatos,
III, 7-21, ambos de Bultmann (bibl. recente em X/2, 1094-1095). A vida (jaiim) é o bem supremo (Prov 3,16; Mc
8,36).