teologia para leigos

31 de agosto de 2024

A invenção de Deus 8


 

Reconstrução da oscilação do território do
Reino de Judá no séc. IX a.e.c. (in Francisco Martins©)

 

O IMPÉRIO NEOASSÍRIO

“Ao longo deste capítulo e também já em capítulos anteriores, referimo-nos repetidas vezes ao império assírio ou neo-assírio. Sem outra pretensão que a de ajudar o leitor a contextualizar estas referências, oferece-se aqui uma breve síntese histórica da ascensão e queda daquele que é frequentemente considerado o primeiro império mundial da História.

No século XIV a.e.c., a cidade-estado de Assur, que já tinha então uma longa História (remontava à primeira metade do terceiro milénio a.e.c.), conseguiu impor-se como a capital de um vasto território que chegou a incluir a Babilónia, ao sul. Dois séculos depois, contudo, esta primeira tentativa de expansão territorial e domínio imperial (o império médio-assírio) tinha colapsado. A partir do reinado de Adad-Narari II (c. 912-891), começa um lento processo de ressurgimento que inclui a recuperação de territórios perdidos e a conquista de novas terras. Com Assurnasirpal II (c. 884-859 a.e.c.) e o seu filho Salmanasar III (c. 859-824 a.e.c.), a Assíria torna-se outra vez uma superpotência político-militar. O verdadeiro apogeu imperial, todavia, só começa a vislumbrar-se com Tiglat-Falasar III (c. 745-727 a.e.c.); na prática, manifesta-se plenamente nos reinados de Sargão II (c. 722-705 a.e.c.) e Senaqueribe (c. 705-681 a.e.c.). Deste zénite até ao colapso e queda definitivos foram precisas apenas poucas décadas: Assurbanipal (c. 669-631 a.e.c.) é comumente considerado o último grande rei do império, ainda que a então capital, Nínive, só tenha sido capturada e destruída em 612 a.e.c.

Como já se disse no capítulo IV (de «A Bíblia tinha mesmo razão?» por Francisco Martins, Temas & Debates 2023) o império neo-assírio foi capaz de impor a sua hegemonia em grande parte graças a uma impressionante máquina de guerra. O exército assírio foi o primeiro exército regular (”profissional”) da História e o paradigma de uma nova forma de combater. Os Assírios foram ainda os primeiros a usar armas de ferro, que eram superiores em qualidade e resistência às armas de bronze utilizadas pelos seus inimigos. Desenvolveram igualmente novos engenhos, armas e técnicas de cerco, que lhes permitiram “semear o terror” e forçar a rendição das cidades sitiadas ou, em caso de necessidade, submetê-las pela força. Finalmente, os reis e oficiais assírios recorriam também frequentemente a técnicas de guerra psicológica, a mais eficaz das quais a ameaça, frequentemente concretizada, de deportações em massa.

À incomparável supremacia militar juntava-se uma agressiva ideologia da conquista mundial. O rei assírio gozava, de acordo com a ideologia oficial, de um poder absoluto, que lhe tinha sido confiado pela divindade tutelar do império, o deus Assur. Por esta razão, cabia-lhe, entre outras coisas, trazer ordem e “paz” ao caos que reinava fora do coração do império, o território à volta da cidade de Assur. A conquista dos territórios estrangeiros e a sua anexação eram, por isso, um imperativo “civilizador” de origem divina, ao serviço do qual o exército assírio podia cometer todo o género de atrocidades.”

 

In Francisco Martins, «A Bíblia tinha mesmo razão?», Ed. Temas & Debates 2023, 243-244

 

©

 

DO DEUS «UNO» AO DEUS «ÚNICO»

As origens do monoteísmo bíblico no começo da “Época Persa”

 

1.DA MORTE DE JOSIAS À DESTRUIÇÃO DE JERUSALÉM

Após a morte de Josias no ano de 609 a.e.c., os babilónios tomam rapidamente controlo do Próximo Oriente, ao mesmo tempo que os egípcios lhes procuram fazer frente. O rei que sucedeu a Josias, seu filho Joacaz, acaba destituído pelo faraó Necao. Necao substitui Joacaz pelo seu irmão Eliaquim e muda-lhe o nome próprio para Joaquim (609-598), nome yahvista (que quer dizer «Yhwh seja erguido ao alto»). Tal mudança de nome leva a supor que o faraó reconhece Yhwh como o deus nacional de Judá. Mais tarde, Joaquim converte-se em vassalo de Nabucodonosor II no ano de 605 a.e.c., quando este vence o exército egípcio em Carquemis. O rei babilónio, que nesse momento controla a Síria-Palestina, mantém Joaquim no seu cargo, provavelmente para que, pelo menos, em Judá esteja garantida a estabilidade política. Tudo leva a crer que, durante algum tempo, Joaquim foi leal a Nabucodonosor (cf. a História de Daniel em Dn 1,1-21). Porém, no ano de 601 a.e.c., este último sai derrotado numa campanha contra o Egipto, razão porque Joaquim se vê forçado a pedir o apoio do Egipto. Sem pestanejar, a Babilónia avança sobre Joaquim e assegura-lhe a vitória sobre os egípcios. Segundo a descrição que consta do segundo livro dos Reis, «O rei do Egipto nunca mais saiu fora do seu país, porque o rei da Babilónia se apoderara de todas as possessões do rei do Egipto, desde a torrente do Egipto até ao Eufrates.» (2 Reis 24,7). Nabucodonosor sitia Jerusalém para punir Joaquim, mas Joaquim morre durante o cerco. Seu filho Jeconias, que reinou apenas três meses, submete-se em 597 a.e.c. e assim evita a destruição de Jerusalém. Mesmo assim, os babilónios decidem-se por uma deportação em larga escala de toda a cidade de Jerusalém. O rei é desterrado conjuntamente com a elite da corte: altos funcionários, clero e artesãos. Esta primeira deportação foi a mais importante. Os babilónios designam Sedecias (Matanias?[1]), outro filho de Josias e tio do rei exilado. Manteve o título de rei ou foi considerado um governador? Os escritores do livro de Ezequiel parecem ver em Joaquim aquele que foi o último rei legítimo.

Durante o reinado de Sedecias (597-586), uma revolta na Babilónia e outros problemas diminuíram a presença babilónica no Oriente Próximo. O rei egípcio Psaméticho II (595-589; filho de Necao II) provavelmente encorajou uma rebelião na qual Sedecias participou. O livro de Jeremias,37-43 narra os últimos dias de Jerusalém, e apresenta uma fação anti-babilónica na corte de Jerusalém, enquanto o profeta prega a submissão aos babilónios, o que lhe vale o epíteto de traidor. Sedecias parece hesitante [Jr 38,19: «O rei Sedecias disse a Jeremias: “Tenho medo dos judeus que se passaram para o lado dos caldeus; temo que me entreguem nas mãos deles e me maltratem.”»], mas no final está ao lado daqueles que defendem a revolta, o que provoca uma reação imediata dos babilónios e a destruição do templo, da cidade e dos muros de Jerusalém em 587 a.e.c.. Jerusalém não é a única cidade destruída, já que os babilónios arrasam outros centros judaicos. Em consequência destes acontecimentos, ocorre uma segunda deportação. Os babilónios ergueram a pequena cidade de Mispá como o novo centro administrativo no território de Benjamim, muito menos destruído do que o de Judá,  e aí instalaram como governador Godolias, membro da família Safânida (neto de Shaphan).

A situação demográfica em Judá é de difícil avaliação. De acordo com Oded Lipschits, a população baixa de cerca de 100 mil a 40 mil habitantes devido a mortes, deportações e movimentos de fuga, enquanto Benjamin parece menos afetado[2]. Não sabemos se os babilónios deram um nome específico ao antigo reino de Judá. É claro que uma parte de Judá, especialmente o Sul, foi invadida por tribos Árabes e edomitas. O governador Godolias foi assassinado muito cedo por um partido anti-babilónico e, em represália, os babilónios organizaram uma terceira deportação no ano 582. Os textos bíblicos que relatam estes últimos dias de Judá, a saber, 2 Re 2425 e Jr 3744 e 52, não coincidem quanto à dimensão das deportações.

 

2Reis 2425: número de deportados

597 a.e.c.        cap.24,14: 10 mil       cap.24,16: 8 mil

587 a.e.c.        «o resto da população»

582 a.e.c.        ?

 

Jeremias 52: número de deportados

597 a.e.c.        cap.52,28: 3.023 deportados

587 a.e.c.        cap.52,29: 832 deportados

582 a.e.c.        cap.52,30: 745 deportados

 

Os números no final do livro de Jeremias parecem mais precisos do que os dos capítulos 24-25 do segundo livro de Reis, mas são bastante baixos, o que não corresponde ao aparente declínio da taxa populacional em Judá. Uma possível explicação para a diferença entre o segundo livro dos Reis e o de Jeremias seria considerar que os números dados por este último dizem respeito apenas aos chefes de família. Se forem multiplicados por 5 ou 6, chegamos a valores comparáveis aos números redondos de 2 Reis 24 no que diz respeito à primeira deportação.

Embora alguns textos bíblicos dêem a impressão de que o país estava vazio durante o chamado período de exílio babilónico[3], a vida continuou em Judá e especialmente em Benjamim. A importância de Benjamim e Mispá pode ter levado ao renascimento de algumas tradições relativas a Saúl, um nativo de Benjamim, que alguns gostariam de favorecer em detrimento da continuidade da linha davídica[4]. Sabemos muito pouco sobre a vida das pessoas que ficaram no país. As fontes babilónicas não falam sobre isso. É plausível que os babilónios tenham nomeado outro governador após o assassinato de Godolias. Quanto aos textos bíblicos (com algumas exceções), quando narram o essencial fazem-no a partir da perspetiva dos exilados na Babilónia[5], a elite, que se considerava o "verdadeiro Israel". Assim, especialmente no Livro de Ezequiel, encontramos polémicas virulentas contra aqueles que permaneceram na terra, que são considerados como tendo sido ‘rejeitados’ por Yhwh: segundo os editores do livro, Yhwh deixara o seu país para acompanhar os exilados na Babilónia. Ao contrário dos assírios, os babilónios permitiram que os exilados se reagrupassem de acordo com a sua origem. É certo que altos funcionários também foram empregados em tarefas administrativas. Os textos bíblicos mencionam uma série de lugares habitados por deportados de Judá: Tel Aviv, às margens do Chebar (Ez 3,15), provavelmente no centro da Babilónia, não muito longe de Nipur; Tel Meiach, Tel Jarsa, Querubim-Adam e Imer (Esdras 2,59); Kasifyah (Esdras 8,17). Fora destes textos e infelizmente para nós, estes topónimos são desconhecidos. Flávio Josefo evoca a cidade de Nearda[6] (também atestada no Talmud), ou seja, Tel Nihar, situada na margem esquerda do Eufrates, ao norte de Sippar, sede de uma famosa academia no século III da era cristã. Uma tabuleta cuneiforme babilónica da coleção Moussaieff (se autêntica[7]), datada do início do período persa, contém um contrato para a venda de animais no qual pessoas com nomes Yahwistas são citadas. Além disso, este contrato teria sido celebrado em uma cidade chamada "Ai-Yahûdû" ("a [nova] Judá") "no 24º ano de Dario, rei da Babilónia, rei das terras[8]". Este nome corresponde ao que surge numa crónica babilónica para designar Jerusalém. Trata-se, portanto, de uma "nova Jerusalém" fundada pelos exilados de Judá na Babilónia, cuja identificação ainda não é possível, mas que mostra a importância e a folga financeira e económica da Golah[9] babilónica.

 

2.CRISE IDEOLÓGICA E LITERATURA DE CRISE

Os acontecimentos dos anos 597 e 587/586 a.e.c. produziram, sem dúvida alguma, uma enorme crise de identidade colectiva da Judeia. Dada a importância das destruições e das movimentações de população, esta crise foi bem real. Isso não significa que a destruição de Jerusalém não tenha afetado mais as elites deportadas do que as populações rurais e pobres que permaneceram no país[10]. As elites, e especialmente os oficiais reais[11], tinham sido afastados da fonte do seu poder. De um modo mais geral, após os acontecimentos de 597/587, os pilares tradicionais que sustentavam a coerência ideológica e política de um Estado monárquico no Médio Oriente desmoronaram-se. O rei tinha sido deportado, o templo tinha sido destruído e a integridade geográfica de Judá tinha sido pulverizada por deportações e emigrações voluntárias.

Era inteiramente lógico que se explicasse a nova situação como resultado de uma vitória dos deuses babilónicos, mais poderosos, sobre a divindade nacional, Yhwh, que assim saíra derrotada; ou, então, explicar a situação lançando mão da seguinte narrativa: tudo o que aconteceu foi fruto de Yhwh ter abandonado o seu povo!

Dentro da aristocracia, diferentes grupos tentaram superar a crise elaborando ideologias que deram sentido à queda de Judá. Podemos apresentá-los de acordo com um modelo proposto por Armin Steil. Este sociólogo, influenciado por Max Weber, analisou as crises semânticas ligadas à Revolução Francesa[12]. No entanto, o seu modelo também pode ser aplicado às reações diante da queda de Jerusalém que encontramos na Bíblia Hebraica. Steil distingue três tipos de atitude perante uma crise: a do profeta, a do sacerdote e a do mandarim. A atitude profética procura ver, na crise, o início de uma nova era; os seus defensores são gente marginal, porém, capaz de comunicar as suas convicções. A postura dos representantes conservadores das estruturas sociais desmoronadas corresponde à atitude sacerdotal, cuja forma de superar a crise é apelar às origens sagradas da sociedade, origens por Deus concedidas, e ignorar a nova realidade acabada de chegar. Quanto à postura dos mandarins, ela exprime a opção predileta dos altos funcionários que procuram compreender a nova situação bem como a forma de se adaptarem a ela de modo a poderem conservar os seus velhos privilégios. Os «mandarins» procuram explicações para o ocorrido num sistema histórico que lhes dê as razões que estão por trás do desmoronamento das antigas estruturas sociais. Podemos resumir as três atitudes no Quadro seguinte:

 

Três tipos de atitude perante uma crise

 

Estas três atitudes estão presentes na Bíblia hebraica e nas interpretações que ela oferece para a destruição de Jerusalém. Costuma-se afirmar que essas reações passaram a escrito durante o período chamado de exílio (587-539[13]). Talvez seja mais lógico pensar que esses textos datam da Era Persa, quando as condições socioeconómicas eram mais estáveis.

Em 539 a.e.c., Ciro II (559-529), apoiado pelo clero de Marduk (o principal deus do panteão babilónico) e insatisfeito com a política religiosa de Nabonido, conquistou a Babilónia e ampliou seu império, que se caracterizou por uma certa tolerância para com as populações submetidas. Os exilados são autorizados a regressar ao seu país, bem como a restaurar e praticar cultos locais. Um número significativo de textos bíblicos, tentando explicar a destruição de Jerusalém e o papel de Yhwh nesta catástrofe, provavelmente viram a luz do dia entre os intelectuais judeus da "golah" babilónica.

 

Extensão geográfica do Império Persa

 

3.«A HISTÓRIA DEUTERONOMISTA»: O CAMINHO QUE LEVARÁ AO MONOTEÍSMO

O equivalente bíblico da postura «mandarim» perante a crise é a “Escola Deuteronomista”. Os seus membros são descendentes dos escribas e de outros funcionários da corte de Judá, cujos antecessores acompanharam ou mesmo realizaram a reforma de Josias. Trata-se de um grupo fanático que está obcecado com o fim da monarquia e com a deportação das elites de Judá, que tenta explicar o exílio construindo uma história de Yhwh e do seu povo desde os primórdios, sob Moisés, até à destruição de Jerusalém e à deportação da aristocracia: é a história que a Bíblia Hebraica narra desde o Livro do Deuteronómio até ao segundo livro dos Reis[14].

Para isso, os deuteronomistas reelaboram os antigos pergaminhos da era assíria e, assim, constroem uma história coerente, dividida em diferentes períodos (Moisés, a conquista do país sob Josué, o tempo dos Juízes líderes carismáticos anteriores à realeza o advento da monarquia, o tempo dos dois reinos, a história de Judá desde a queda de Samaria até à queda de Jerusalém). Trata-se de apresentar todos os acontecimentos negativos a divisão da realeza em dois reinos, Judá e Israel, ou as invasões assírias e babilónicas como consequências “lógicas” da desobediência do povo e dos seus líderes à vontade de Yhwh. Ou seja, a vontade de Yhwh é expressa precisamente no livro do Deuteronómio, que recorda a “aliança”[15] ou o tratado original entre Yhwh e Israel. Foi o próprio Yhwh que provocou a invasão babilónica com o fim de punir Judá por ter adorado outras divindades (2 Reis 24:3.20). Os deuteronomistas tentam, assim, contrariar a ideia de que Marduk e os outros deuses babilónicos teriam derrotado Yhwh. Assim, a “história deuteronomista” constitui a primeira tentativa de escrever uma história completa de Israel e Judá, do início ao fim.

Na Antiguidade há outros exemplos de ligação de uma situação de crise com a historiografia. Por exemplo, no século V a.e.c. Tucídides escreve a «História da Guerra do Peloponeso» para “aqueles que desejam um conhecimento preciso do passado, a fim de ajudá-los a interpretar o futuro” (1.22). Heródoto também compõe a sua «História» para explicar as razões das guerras persas e seus dramas[16]. Obviamente, a história deuteronomista não é uma obra de historiografia ou de História no sentido moderno do termo, como Leopold von Ranke apontou no século XIX (“aquilo que realmente aconteceu”[17]); porém, não deixa de ser uma tentativa de construir o passado para explicar o presente.

O exílio e a deportação são o tema global desta história, que liga as várias tradições e períodos até chegar ao fim da monarquia, à destruição de Jerusalém e à perda do país; estes acontecimentos, segundo os deuteronomistas, são o resultado da ira de Yhwh contra o seu povo e os seus líderes. Judá e Jerusalém não podem escapar ao ataque babilónico porque é o próprio Yhwh que enviou este exército com o propósito de aniquilar Judá e Jerusalém:

«Yhwh mandou contra Joaquim as tropas dos caldeus, dos sírios, dos moabitas e dos amonitas; enviou-os contra Judá para o destruir, conforme Ele anunciara pela boca dos profetas, seus servos. […]  Assim aconteceu a Jerusalém e a Judá, porque o SENHOR, irritado, queria afastá-los da sua presença.» (2Reis 2.20)

Com esta afirmação, os autores da história deuteronomista queriam mostrar que a queda de Jerusalém não significava que os deuses babilónicos tinham derrotado o deus nacional de Judá. Os eventos de 697 e 587 só poderiam ser explicados se fosse a ira de Yhwh o agente do colapso de Judá. Se Yhwh tinha usado o rei da Babilónia e seus deuses, isso também significava que ele os controlava, que eles eram seus instrumentos. Ou seja, esta ideia abre caminho para as reivindicações manifestamente “monoteístas” que se encontram nos retoques finais do texto da história deuteronomista.

Numerosos textos do livro do Deuteronómio convidam os seus destinatários a «não se deixarem levar por outros deuses». Nesses textos, a perspectiva é claramente monolátrica: na verdade nunca negam a existência de «outros deuses», apenas se proíbe, aos israelitas, que sigam na peugada desses deuses, uma alusão a procissões que eram encabeçadas por estátuas divinas. Em textos mais recentes, acrescentados durante o período persa, insiste-se que Yhwh é o único deus e não há outros deuses ao seu lado: «Reconhece, agora, e medita no teu coração que que só Yhwh é Deus, tanto no alto do céu como em baixo, sobre a terra, e que não há outro." (Dt 4, 39).

Mas se Yhwh não é apenas a divindade tutelar de Israel, mas também o único “Deus verdadeiro”, como explicar que ele mantém uma relação privilegiada com Israel? Para os deuteronomistas, a resposta está na ideia de escolha: Yhwh escolheu Israel como seu povo particular no meio de todas as nações. Nos últimos textos monoteístas do livro de Deuteronómio, a alegação de que Yhwh criou os céus e a terra está geralmente ligada à reivindicação da eleição de Israel[18]:

«Ao SENHOR, teu Deus, pertencem os céus e os céus dos céus, a terra e tudo o que nela existe. No entanto, foi só a teus pais que Yhwh se apegou com amor. Elegeu a sua descendência, que sois vós, dentre todos os povos, como ainda hoje. Circuncidai, portanto, a impureza do vosso coração[19] e não endureçais mais a vossa cerviz, porque Yhwh, vosso Deus, é o Deus dos deuses e o Senhor dos senhores, o Deus supremo, poderoso e temível, que não faz distinção de pessoas nem aceita presentes. Ele faz justiça ao órfão e à viúva, ama o estrangeiro e dá-lhe pão e vestuário. Amarás o estrangeiro, porque foste estrangeiro na terra do Egipto.» (Dt 10,14-19)

Assim, para os deuteronomistas, Yhwh é certamente o deus que reina sobre todos os povos, mas mantém uma relação especial com Israel. Esta é uma maneira notável de manter a antiga ideia de Yhwh como um deus nacional ou tutelar, afirmando que ele é o único deus verdadeiro.

 

4.O MONOTEÍSMO DO DEUTEROISAÍAS

A reflexão monoteísta mais exaustiva da Bíblia Hebraica está reunida na segunda parte do livro de Isaías (capítulos 40-55), conhecido como Deuteroisaías. Trata-se de uma coleção de oráculos anónimos cuja escrita se estende pelo menos por dois séculos[20] e cujo núcleo é constituído por um texto de propaganda que celebra a chegada do rei persa Ciro II à Babilónia em 539 a.e.c. Este núcleo do Deuteroisaías foi fortemente inspirado no "cilindro de Ciro", no qual o rei persa é ‘venerado’ (pelo clero de Marduk) como o eleito de Marduk para governar os povos e restaurar a paz[21]. O “cilindro de Ciro” diz que Marduk tomou Ciro pela mão para o guiar e o levar a fazer aquilo que o deus Marduk quisesse, enquanto que, em Isaías 45,1, podemos ler: «Ciro, a quem eu peguei pela mão direita»; Marduk escolhe um nome para Ciro, ou seja, «nomeia-o», ao passo que, em Isaías 45,3, Yhwh chama-o pelo seu nome próprio. O cilindro diz que Marduk «submeteu aos seus pés o país de Guti e as tropas de Medes»; Isaías 45 afirma que Yhwh escolheu Ciro «para submeter as nações a ele». Segundo o cilindro, Marduk «sempre fez com que fosse alimentado com justiça e retidão»; Yhwh diz de Ciro: «Ele é o meu pastor» (Is 44, 28). O cilindro diz que Marduk marchou incessantemente ao seu lado, enquanto Yhwh promete a Ciro: «Eu mesmo marcharei diante de vós» (Is 45, 2). O cilindro insiste em que Ciro conduza sem falta as populações exiladas: «Reunirei todo o vosso povo e trá-lo-ei para dentro», o que corresponde ao discurso de Yhwh sobre o rei persa: «Ele devolverá os meus deportados às suas localidades» (Is 45, 13: «Ele reconstruirá a minha cidade e libertará os meus desterrados, sem nada exigir como recompensa ou suborno.»). O autor deste texto dá sinais de grande universalismo ao apresentar Ciro como o messias de Yhwh, ao mesmo tempo que se inspira na propaganda do rei persa, que por sua vez retoma a ideologia assírio-babilónica. 

Outros textos de Deuteroisaías vão mais longe e propõem é um caso bastante raro, talvez único, na Bíblia Hebraica uma “demonstração teórica” do monoteísmo. Nos primeiros capítulos da coletânea, os povos e os seus deuses são convocados diante de Yhwh para admitir que não há Deus além dele: «para que reconheçam, de leste a oeste, que não há nada além de mim. Eu sou Yhwh e não há outro» (Is 45, 6). As outras divindades são quimeras, «madeira para queimar» (Is 44, 15). O autor ironiza o comércio de estátuas de divindades, que só serve para enriquecer os artesãos: «Aqueles que fazem ídolos são todos inúteis, as figuras que esculpem não servem de nada... Quem já fez um deus sem perseguir sobretudo o lucro?» (Is 44,9-10) Esta demonstração da unidade de Yhwh, que Deuteroisaías geralmente identifica com “El”[22], é apresentada como uma espécie de revolução teológica. A manifestação de Yhwh como o único Deus de todos os povos e do universo equivale a uma nova revelação:

«Eis o que diz Yhwh, aquele que vos liberta, o Santo de Israel: “Por vossa causa, mandei uma expedição à Babilónia, fiz cair os ferrolhos dos cárceres, e os caldeus lamentam-se em altos brados. Eu sou Yhwh, o vosso Deus Santo, o criador de Israel, o vosso rei.” Assim fala Yhwh, que outrora abriu um caminho através do mar, uma estrada nas torrentes das águas; que pôs em campanha carros e cavalos, tropa de soldados e chefes; caíram para nunca mais se levantarem, extinguiram-se como um pavio que se apaga: ”Não vos lembreis dos acontecimentos de outrora, não penseis mais no passado, pois vou realizar algo de novo, que já está a aparecer: não o notais? Vou abrir um caminho no deserto, e fazer correr rios na estepe. Glorificar-me-ão os animais selvagens, os chacais e as avestruzes, porque hei-de fazer brotar água no deserto e rios na terra árida, para dar de beber ao meu povo, o meu eleito, o povo que Eu formei para mim, e assim hão-de proclamar os meus louvores.”» (Isaías 43,14-20)

A exortação a abandonar as memórias funestas dos primeiros acontecimentos pode ser lida como uma crítica ao discurso deuteronomista, obcecado com a destruição de Jerusalém e com o exílio[23]. Para o autor desta passagem, essa página já havia sido virada, e Yhwh irá manifestar seu poder pondo em movimento um “novo Êxodo” enviando (através do rei Ciro) os deportados da Babilónia[24]. O monoteísmo de Deuteroisaías insiste, como o discurso do Deuteronómio, que o único Deus tem uma relação especial com Israel. Mas, tal como já expressado em Isaías 40-55, procura também resolver dois problemas importantes colocados pela afirmação de um único deus: a questão das funções «femininas» do divino e a da origem do mal.

 

5.A INTEGRAÇÃO OU A ELIMINAÇÃO DO FEMININO NO DISCURSO MONOTEÍSTA

O surgimento do monoteísmo é acompanhado pelo desaparecimento da deusa, que os partidários da reforma de Josias já haviam querido banir do culto oficial de Jerusalém. Essa eliminação da deusa pode estar refletida numa visão do profeta Zacarias (Zc 5,5-11)[25]. Nela, o profeta vê uma mulher chamada “ris'ãh” (“impiedade”)[26], encerrada num alqueire [caixote de madeira, de origem árabe, que tanto podia ter capacidade para conter 13 como 22 litros de cereal], que duas mulheres aladas tiram da terra e levam para a Babilónia, onde ela terá um santuário e permanecerá imóvel em seu pedestal. Esta visão pode ser entendida como uma metáfora para a supressão do culto à deusa Asherá (ou Acherá) de Judá, que a partir de então só pode ter um espaço entre os povos pagãos[27].

No entanto, esse desaparecimento da deusa levanta o problema da gestão do feminino nessa “nova” religião monoteísta que é o judaísmo nascente. Por um lado, Yhwh torna-se o único Deus transcendente e, por outro, mantém os seus títulos masculinos, como “senhor”, “rei”, “mestre”, etc. Não é por acaso que no Deutero-Isaías, que é o que expressa mais claramente a ideia monoteísta, existem inúmeras imagens femininas aplicadas a Yhwh. É assim que ele responde, pela boca do profeta, ao medo de ter esquecido o seu povo: «Pode uma mulher esquecer-se do seu filho? Não mostrará ela ternura para com o filho de seu ventre? Porque, mesmo que se esqueçam, Eu não vos esquecerei» (Is 49, 15). A atitude de Yhwh em relação ao povo judeu é aqui comparada ao amor de uma mãe para com os seus filhos. Da mesma forma, em Isaías 44,24 e 46,3, Yhwh é apresentado como aquele que formou Israel no ventre de sua mãe. Em Is 42,14 a metáfora do parto também está presente. Neste versículo, o exílio do povo de Judá é explicado pelo facto de que Yhwh permaneceu inativo. Porém, tudo isso é passado e, agora, Yhwh prepara-se para agir: «Como uma mulher em trabalho de parto, vou soprar, respirar e inspirar ao mesmo tempo». O regresso da comunidade exilada ao seu país é apresentado como um novo nascimento, e Yhwh aqui assemelha-se à deusa mãe, que cria algo novo com as dores do parto. No entanto, no versículo anterior (42,13) este mesmo Yhwh aparece como um guerreiro que persegue os seus inimigos. Temos, então, a passagem de um deus guerreiro, masculino, para um deus materno que dá à luz o seu povo. Um passo comparável é encontrado no poema inserido no final de Deuteronómio, capítulo 32, que vem de um autor contemporâneo de Deutero-Isaías; neste poema, Yhwh aparece primeiro como um pai: «Não é seu pai, aquele que lhe deu a vida?» (v. 6). Mas imediatamente encontramos esta acusação: «Esqueceste-te do Deus que te deu à luz[28]» (v. 18). Assim, Yhwh aparece tanto como pai como mãe de Israel.

Nos últimos capítulos do livro de Oseias, que foram reelaborados ou quiçá redigidos na transição do século VI para o século V a.e.c., observa-se igualmente a integração do feminino em Yhwh[29]. O capítulo 11, por exemplo, pega nas funções e representações de Ishtar e integra-as num discurso sobre Yhwh[30]. Nos versículos 3-4, Yhwh é claramente apresentado como uma mãe carinhosa: «3Eu ensinava Efraim a andar, trazia-o nos meus braços, mas não reconheceram que era Eu quem cuidava deles. 4Segurava-os com laços humanos, com laços de amor, fui para eles como os que levantam uma criancinha contra o seu rosto; inclinei-me para ele para lhe dar de comer.» É Yhwh quem ensina Efraim (ou seja, Israel) a andar, levanta-o até ao rosto como a um bebé, protege-o e alimenta-o. Em 14,9 Yhwh é comparado a uma árvore fértil ("Sou como um cipreste perene, e de mim vêm todos os frutos"), símbolo da deusa Asherah. O início deste versículo pode ter-se, acidentalmente ou mesmo intencionalmente, tornado obscuro; de acordo com Julius Wellhausen, a versão inicial desta passagem teria começado com esta declaração de Yhwh: «Eu sou a sua 'Anat' e a sua 'Asherah'[31]». Se esta conjectura for verdadeira, teríamos aqui outra indicação da vontade de integrar as funções das deusas no próprio Yhwh.

O documento sacerdotal, que abordaremos muito brevemente, abre com o relato da criação do mundo, dos animais e dos seres humanos por parte de Deus. Quando pensa em criar o ser humano, diz que quer criá-lo à sua “imagem”. E a execução desta decisão é contada da seguinte forma: «Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher» (Gn 1,27). O fato de o ser humano à imagem de Deus ser homem e mulher pode refletir o fato de que a ideia tradicional do casal divino (Yhwh e Asherah) é retomada e transferida para o casal humano ou que o próprio Deus contém em si as funções masculina e feminina[32].

Outra forma de compensar o desaparecimento da deusa opera-se através da personificação do conceito de Sabedoria (hokmah), facto que se observa a partir do final da época persa e sobretudo na época helenística[33]. No capítulo 8 do livro dos Provérbios, a própria Sabedoria toma a palavra e apresenta-se como uma deusa que se encontra junto a Yhwh ainda antes da criação do mundo:

«22Yhwh criou-me, como primícias das suas obras, desde o princípio, antes que criasse coisa alguma. 23Desde a eternidade fui formada, desde as origens, antes dos primórdios da terra. 24Ainda não havia os abismos e eu já tinha sido concebida; ainda as fontes das águas não tinham brotado; […] 30 Eu estava com Ele como arquitecto, e era o seu encanto, todos os dias, brincando continuamente em sua presença; 31brincava sobre a superfície da Terra, e as minhas delícias é estar junto dos seres humanos.» (Pr. 8,22-31)

A Sabedoria surge aqui como uma filha de Yhwh, por ele criada a fim de que o acompanhe enquanto ele cria o universo e, de certo modo, faça de mediadora entre Yhwh e os homens. Ou seja, a deusa não havia desaparecido e eis que regressa sob outras roupagens.[34]

 

6.O MONOTEÍSMO DIANTE DO PROBLEMA DO MAL

Numa concepção politeísta, em que a sorte do universo depende da actuação de uma multidão de deuses, a irrupção do mal e do sofrimento poderá ser atribuída a deuses ou a demónios maléficos, os quais os humanos terão de apaziguar ou deles se protegerem com amuletos ou outros meios. Numa concepção politeísta admite-se que os deuses são imprevisíveis e que as suas ações em relação aos humanos podem ser desastrosas, sem que estes tenham necessariamente cometido uma falta contra eles. Porém, a partir do momento em que exista apenas um deus, a questão da origem e da razão do mal é colocada com veemência. Vejamos como os textos bíblicos oferecem respostas as mais diversas.

Em alguns textos, diz-se que o mal e o sofrimento são punições divinas dirigidas contra aqueles que cometeram actos repreensíveis. Essa “teologia da retribuição” é, no entanto, com muita frequência questionada. Assim, o livro de Jó mostra que o protagonista, ao contrário do que afirmam os seus amigos, não merece aquele destino. Mesmo assim, o autor não dá uma resposta para a origem do mal que Yhwh envia contra Jó[35]. Da mesma forma, o relato da criação com que abre o Livro do Génesis apresenta as trevas, a desordem e o abismo como símbolos do mal ou do caos primordial, não criados por Deus, mas “domados” por Ele, na medida em que Ele os integra na Criação. Esses textos, portanto, concedem uma certa autonomia ao mal, sem desenvolver um sistema teológico dualista.

O Deutero-Isaías, por outro lado, propõe uma solução radical e afirma que o próprio Deus é quem cria o mal[36]:

5Eu sou Yhwh e não há outro, não existe outro deus além de mim. Concedo-te a insígnia do poder, embora tu[37] não me conheças. 6Assim saberão, do Oriente ao Ocidente, que não há outro fora de mim. Eu é que sou Yhwh. Não há outro. 7Formo a luz e crio as trevas, faço o bem (šālōm[38]) e mando a infelicidade (ra’). Eu sou Yhwh, que faço todas estas coisas.” (Isaías 45,5-7)

Este texto é provavelmente o único texto em toda a Bíblia hebraica[39] que diz taxativamente que Deus não só criou o šālōm”, mas também o seu contrário, o mal ou o caos. Para o Deutero-Isaías, o qual no modelo de A. Steil é o que mais se aproxima da atitude profética, procura insistir no facto de que todos os poderes, mesmo que nefastos, têm a sua origem em Yhwh e sob o seu controlo eles se encontram. Na medida em que existe apenas um Deus, e fora dele nada existe (v. 5), não há nada que possa escapar a este Deus. Seja como for, no contexto dos escritos bíblicos esta afirmação manter-se-á à margem, não será a grande questão central dos escritos bíblicos.

 

7.O MONOTEÍSMO DOS CÍRCULOS SACERDOTAIS

A terceira forma de «reacção à crise» de acordo com o modelo de A. Steil é a do tipo “sacerdotal”. Essa atitude corresponde à chamada escrita ou ‘tradição sacerdotal’, um conjunto de escritos redigidos nos círculos sacerdotais na Babilónia ou em Jerusalém, no início da Época Persa. A ‘teologia sacerdotal’ [“P”=Priester-Codex] é composta por textos que hoje em dia se encontram incorporados nos livros do Génesis, Êxodo e na primeira parte do Levítico, sendo possível reconstruí-los com bastante facilidade.

Para os círculos sacerdotais, a única coisa que conta é o tempo das origens (a origem do mundo, o tempo dos patriarcas e o tempo de Moisés). Ao contrário da História Deuteronomista [D], a escrita Sacerdotal [P] não está interessada na história da monarquia ou na perda do país. Para ele, tudo já fora dado, tudo fora estabelecido desde o início: a proibição do consumo de sangue (decreto real estabelecido após o Dilúvio), a circuncisão (ritual ordenado a Abraão), a Páscoa (na época do êxodo do Egipto), bem como as leis rituais e sacrificiais e tudo mais foi apresentado ao povo no deserto por meio de Moisés. A primeira edição deste escrito sacerdotal, que foi posteriormente ampliada, terminava provavelmente com o ritual do Yom Kippur (o “Dia da Expiação”), que se encontra no capítulo 16 do livro de Levítico[40] e que insiste na possibilidade de purificar regularmente o santuário e a comunidade através do sumo sacerdote. No extremo oposto do discurso deuteronomista que insiste na segregação estrita entre o povo de Yhwh e os outros povos o ambiente sacerdotal apresenta um discurso monoteísta inclusivo, que busca definir o lugar e o papel de Israel e Yhwh entre todos os povos, e o de seus respectivos deuses. Para esse fim, os círculos sacerdotais desenvolvem, lançando mão de nomes divinos, “três círculos” ou três estádios da manifestação de Yhwh[41].

Nos relatos sacerdotais das origens do mundo e da humanidade, assim como no do Dilúvio, Yhwh revela-se a toda a humanidade como «elohim». Esta palavra pode ser traduzida como “(um) deus”, “(uns) deuses” ou como “Deus”. Provavelmente, os círculos sacerdotais foram os primeiros a usar esse termo «'elohim» no sentido de “(apenas) Deus”[42], como é evidente no relato da criação no primeiro capítulo de Génesis. Este nome pode ser usado tanto no singular quanto no plural. De certa forma, todos os deuses podem ser manifestações do único deus. Para o meio sacerdotal, isso significa que todos os povos que adoram um deus criador, sem saber, adoram o deus que mais tarde se manifestará a Israel sob o nome de Yhwh.

Aos patriarcas e aos seus descendentes, Yhwh revela-se – segundo a escola sacerdotal – como «El Shaday». O círculo sacerdotal utiliza este nome para explicar que o deus que se revelou a Abraão foi, por conseguinte, conhecido também por Ismael, o primeiro filho de Abraão e antepassado dos edomitas. Ao recorrerem a «El Shaday», os redactores sacerdotais utilizam um nome arcaico, mas que à época continuava a ser venerado como nome divino na Arábia[43].

Somente a Moisés, e através dele a Israel, é que será revelado sob o nome de «Yhwh». Este será um privilégio exclusivo de Israel, que assim poderá render a esse deus o culto adequado. Contudo, Israel não deverá «aproveitar-se» deste conhecimento, pelo que daí derivou a proibição de se pronunciar o nome de Yhwh, proibição que passará a ser mandatária na segunda parte da época persa.

Essa representação sacerdotal também pressupõe que os povos vizinhos de Israel e relacionados com “Israel” por meio de Abraão e Jacó, ou seja, as tribos árabes (por meio de Ismael), os moabitas, os amonitas (por meio de Loth) e os edomitas (por meio de Esaú), estão mais próximos de Israel do que as nações distantes[44].

De acordo com o relato sacerdotal, todas as instituições de culto e todos os rituais são concedidos aos Patriarcas e a Israel antes da organização política de Israel, o que significa que não há necessidade de um país ou realeza para se adorar Yhwh de maneira adequada. Essa não-conexão forçosa, quer do culto de Yhwh com as instituições políticas, quer de um vínculo com o país, de alguma forma prepara a ideia de uma separação entre o âmbito religioso e o âmbito político.

Estas instituições dizem respeito, de modo distinto, a diversas etapas da humanidade: a proibição do sangue depois do Dilúvio deve ser aplicada, segundo o “círculo sacerdotal”, a toda a humanidade, pois toda a humanidade está sob a autoridade de “Elohim”; a circuncisão deve ser aplicada (e aplica-se) a todos os descendentes de Abraão que veneram “El Shaday”. Finalmente, a Páscoa, os rituais de sacrifício e as prescrições dietéticas, bem como o “yom Kippur” (Dia da Expiação) são ritos específicos pelos quais Israel adora ‘o Deus único’, que se revelou, por meio de Moisés, sob o nome de Yhwh.

Ou seja, no começo da Época Persa vemos elaborar-se diferentes discursos que redefinem a veneração a “Yhwh como deus único”, ao mesmo tempo que esses discursos reforçam a especificidade da relação de Yhwh com Israel. Impõe-se, então, investigar a questão das possíveis influências persas nesta redefinição do deus Yhwh.

 

8.AS INFLUÊNCIAS PERSAS SOBRE O MONOTEÍSMO BÍBLICO

É muito difícil ter uma ideia clara do sistema religioso adotado pelos governantes aqueménidas[45]. A isso se acrescenta o problema da datação e origem de Zoroastro, bem como da sua "mensagem" original. A reconstrução da história da composição do Avesta, o livro sagrado do mazdeísmo e do zoroastrismo que lhe sucedeu e cujo manuscrito mais antigo data do século XIII, é em muitos aspectos uma reminiscência dos problemas encontrados pelos exegetas da Bíblia hebraica. Hoje em dia parece improvável que houvesse um corpus mazdeano escrito no período aqueménida, embora a maioria dos investigadores pareça confiante de que os "Gathas" (ditos de Zoroastro) possam ser rastreados até ao início do primeiro milénio aC. Inclusivamente, se seguirmos os "minimalistas" que se vão afastando da tradição segundo a qual Zoroastro teria vivido 258 anos antes de Alexandre, isso não colocaria em questão a existência de alguma forma de mazdeísmo no período aqueménida. O mazdeísmo está claramente atestado no âmbito da religião real oficial desde Dario (521-486), que na inscrição de Behistun legitima a sua realeza pela vontade e apoio de Ahura Mazda; e na inscrição de Elvend onde o denomina de "o grande deus que criou esta terra aqui, que criou o céu lá, que criou o homem, que criou a felicidade para o homem"[46]. No entanto, junto com Ahura Mazda, "todos os outros deuses que existem" são mencionados. Também parece que os soberanos persas permitiram que os súbditos do seu império venerassem as divindades locais. Portanto, faz sentido interrogar-nos se devemos falar de monoteísmo quando nos referimos a uma tal constelação, a menos que queiramos postular que o mazdeísmo dos persas constituía uma espécie de monoteísmo sincretista ou inclusivo, que considerava as outras divindades como manifestações locais de Ahura Mazda. Por outro lado, não há dúvidas que os autores dos livros de Esdras e Neemias insistem num vínculo forte e positivo entre o Império Persa e os seus protagonistas, por exemplo, entre o governador Neemias e o escriba e sacerdote Esdras. Neemias é apresentado como um oficial real em Susa (Neemias 1, 1), a capital do Império Aqueménida, e como copeiro, o que implica um alto estatuto social[47]; quanto a Esdras, escriba e sacerdote na Babilónia, ele é reconhecido, pela autoridade real, pelo seu desempenho. Segundo o capítulo 7 do livro de Esdras, Esdras vai a Jerusalém para proclamar ali uma lei que é tanto a do "Deus do céu" (v. 12) quanto a "lei do rei" (v. 26). Nesse contexto, pouco importa saber se esses dois personagens são históricos ou fictícios[48]; simbolizam de uma forma ou de outra a ideia de uma estreita colaboração entre as autoridades judaicas e persas. Por outro lado, nenhum texto na Bíblia hebraica assume uma posição abertamente crítica em relação a um governante aqueménida. Nos livros de Esdras e Neemias, os reis persas aparecem como instrumentos de Yhwh, como soberanos sábios que permitem e encorajam a restauração do culto yahvista em Jerusalém. Podemos dizer, portanto, que o judaísmo nascente da era persa aceitou a ideia de uma "translatio imperio" (como se diria na Idade Média para falar de uma transferência de poder) em benefício dos reis aqueménidas[49].

A questão referente à hipotética ‘influência directa sobre o judaísmo nascente’ é mais difícil de resolver. Por exemplo, constatamos que em numerosos salmos da época persa, mas também em outros textos, Yhwh é apresentado a presidir à Assembleia celeste revelando uma superioridade clara sobre todos os outros deuses, os quais são relegados para a categoria de «anjos» ou «santos» (Salmo 89,6; 103,20). Vermos que o antigo panteão se mantém poderá ser explicado, pelo menos em parte, por uma dupla influência persa: Yhwh surge sob a imagem do grande rei persa, o qual, na verdade, é o único rei verdadeiro que exerce domínio sobre todos os reis de todos os outros povos[50]; só que, deste modo, Yhwh acaba por corresponder igualmente a Ahura Mazda, o qual, pelo menos depois da reforma de Zoroastro, tem a sua sede, enquanto Deus único e verdadeiro, soberanamente estabelecido no lugar mais alto do panteão tradicional.

Por outro lado, é unanimemente reconhecido que a figura de Satanás como membro de uma corte celestial não está atestada nos textos bíblicos, antes pertence à era persa. Vemos isto, de facto, no prólogo do Livro de Job, onde Yhwh aparece no céu rodeado dos seus ministros, entre os quais há um «satanás», um «adversário»[51], o que faz recordar os agentes secretos dos reis persas. No prólogo do livro de Jó, a figura de Satanás foi introduzida para que não tenhamos que acusar Yhwh de ter derramado sobre Jó, sem motivo aparente, todo o tipo de infortúnios[52].

A mesma tendência para autonomizar o mal pode ser percebida na reescrita que é feita, nos livros das Crónicas, de uma história mais antiga apresentada nos livros de Samuel[53]. Retrata um censo realizado por Davi que provoca punição divina, o que leva à descoberta, por parte de Davi, do local do futuro templo[54]. O relato mais antigo de 2 Samuel 24, começa assim: «A cólera de Yhwh voltou a inflamar-se de novo contra Israel e excitou David contra eles». É o próprio YHWH, então, que provoca uma ação pela qual milhares de homens terão de morrer, já que Davi será punido com uma praga. Em 1 Crónicas 21, a mesma história começa da seguinte forma: «Salém voltou-se contra Israel e instou Davi a fazer o recenseamento de Israel». É difícil dizer se Satanás é entendido aqui como o oponente negativo de Yhwh ou, melhor, como uma espécie de hipóstase da ira divina. A insistência em Satanás como protagonista do mal leva, no entanto, a um dualismo, onde o mal aparece virtualmente tão poderoso quanto o Deus criador do bem. E podemos perguntar, de fato, se o seu surgimento é influenciado pelo dualismo persa que se observa no confronto entre Ahura Mazda e Angra Mainyu (Ariman). Nos textos da Bíblia hebraica, esse dualismo não se desenvolve; por outro lado, aparece cada vez mais em certas correntes do judaísmo dos períodos helenístico e romano[55], e não é impossível que nessas correntes apocalípticas uma forte influência iraniana possa ser detectada[56].

Também é possível detectar outras influências persas no judaísmo à medida que se desenvolveu a partir dos séculos VI ou V a.e.c. É o caso, por exemplo, de um texto como o do livro de Malaquias, que apresenta Yhwh à imagem do grande rei persa: «Pois de leste a oeste é o meu nome grande entre as nações. Em toda parte é oferecida ao meu nome uma oferta de incenso, bem como uma oferta pura, pois grande é o meu nome entre as nações, diz Yhwh dos exércitos» (Malaquias, 1,11). Yhwh é o deus universal, a quem todos os povos apresentam oferendas. A substituição de sacrifícios de animais por sacrifícios de incenso também pode refletir uma influência persa, uma vez que o mazdeísmo prefere sacrifícios de vegetais a sacrifícios sangrentos[57].

Em suma, é muito provável que tenha havido influências persas na elaboração do monoteísmo yahvista no contexto do judaísmo nascente, embora nem sempre sejam tão fáceis de provar quanto alguns o afirmam.

 

9.RESISTÊNCIA AO MONOTEÍSMO

Na era helenística, o discurso monoteísta tornou-se cada vez mais a marca identificadora do judaísmo. Essa religião monoteísta intriga os intelectuais gregos e romanos e também seduz uma parte da aristocracia do Império Romano. No entanto, a ideia monoteísta não se impõe desde o início. O exemplo mais óbvio é encontrado na comunidade judaica de Elefantina, uma ilha localizada no Nilo, no sul do Egito, em frente a Syene (Assuão). Em documentos desta comunidade, junto com a veneração de Yhwh, aparece a veneração a uma deusa chamada Anat. Por exemplo, num juramento feito a respeito de um jumento propriedade de duas pessoas e vendido por uma delas, diz-se: "Juro que Menacre, filho de Salum … ele emprestou Meshullan, filho de Natã [ ... ] para o santuário e para 'Anat-Yahô"[58]. De acordo com Pierre Grelot, Anat, uma deusa conhecida em Ugarit como o amparo (“waller”) de Baal, seria idêntica à deusa 'Atti, que também aparece em alguns dos documentos de Elefantina e que P. Grelot identifica como a "Rainha do Céu".

Numa lista de ‘pagamentos de actos cultuais’ constata-se que existe uma tríade divina: «O dinheiro que chegou hoje às mãos de Yedonyah, filho de Gamaryah, no mês de Pamenotep[59]: um total de 31 kars[60] e 8 siclos; para Yahô 12 kars e 6 siclos; para 'Asim-Bet'el 7 kars; para 'Anat-Bet'el 12 kars»[61]. Ou seja, dentro da colónia judaica eram adorados Yahô (Yhwh) e Bet 'eI, provavelmente uma divindade dos arameus de Syene; esses dois deuses faziam parte de uma tríade divina na qual a deusa Anat aparece como a “waller” de Yahô e, aparentemente, 'Asim-Bet'el seria o filho.

Apesar dessa veneração pouco ortodoxa de Yhwh, os líderes dessa colónia mantiveram contatos epistolares com as autoridades de Jerusalém e da Samaria, que de alguma forma parecem aceitar essa comunidade, provavelmente por ser uma comunidade economicamente abastada. Em 407 a.e.c, após a destruição do templo judaico de Elefantina pelo clero egípcio com a colaboração do sátrapa persa, os responsáveis escreveram ao governador persa da província de Yehud (Judéia) pedindo permissão para reconstruir o seu santuário[62]. Não é certo que o templo tenha sido reconstruído, uma vez que a documentação sobre esta comunidade pára por volta de 399 aC[63]. No entanto, isso mostra que até ao final do século V ainda era possível praticar um culto sacrificial fora de Jerusalém e venerar Yhwh na companhia de outras divindades.

Ou seja, o politeísmo não desaparece de imediato e facilmente. Como recorda Pierre Grelot, «o monoteísmo é difícil de ser concebido»[64]. Por outro lado, a própria expressão “monoteísmo” é um conceito moderno. A Bíblia hebraica não conhece o termo «monoteísmo» nem o seu oposto «politeísmo». Este último parece surgir pela primeira vez no século I da nossa era comum em Fílon de Alexandria, o qual opõe a mensagem bíblica à “doxa polutheia” dos gregos[65]. Quanto à expressão ‘monoteísmo’, parece tratar-se de um neologismo do século XVII. Os deístas falavam de «monoteísmo» para designar a religião universal da humanidade. Thomas More e outros aplicaram esta expressão ao cristianismo para o distinguir de outras crenças da Antiguidade e para o defender da crítica judaica segundo a qual o cristianismo não respeitava o mandamento da exclusividade de Deus[66]. Enquanto os “deístas” utilizam o conceito num sentido inclusivo, os campeões das “Religiões Reveladas” atribuem-lhe a ‘função de excluir’ (a fé monoteísta permite distinguir as religiões bíblicas das outras).

Depois do nascimento dessa expressão constata-se, então, uma dupla compreensão da ‘coisa monoteísta’: a ‘exclusiva’ e a ‘inclusiva’. Estas duas tendências também se encontram no discurso sobre Yhwh. Como já vimos atrás, a escola deuteronomista desenvolve um discurso segregacionista, ao passo que a escola sacerdotal preconiza um tipo de monoteísmo inclusivo.

 

10.UM MONOTEÍSMO ANTERIOR À BÍBLIA?

Podemos falar de monoteísmo antes da Bíblia? As religiões mesopotâmicas produziram grandes épicos que influenciaram muito os autores bíblicos, o que mostra que as fronteiras entre monoteísmo e politeísmo são permeáveis: na Epopeia de Gilgamesh, os relatos da criação e do dilúvio serviram de modelo para os autores bíblicos, que pegaram nesses grandes temas e os reinterpretaram numa perspectiva monoteísta.

Para citar apenas um exemplo, nos relatos mesopotâmicos do dilúvio, que nos chegam desde os tempos sumérios (terceiro milénio aC), os papéis são divididos: os deuses "maus" decidem exterminar a humanidade, enquanto um deus "bom", amigo dos homens, avisa o seu eleito da catástrofe que está para vir e, assim, permite que a humanidade sobreviva. No livro do Génesis, Yhwh, o deus de Israel, e desde então o Deus único, assume os dois papéis: decide aniquilar a humanidade, salvando Noé e a sua família. Deste modo, o Deus único integra os lados obscuros e incompreensíveis da vida. Contudo, tal experiência não é estranha aos politeísmos assírios e babilónios. De fato, há vários textos em que um indivíduo se queixa de ter sido abandonado pelo seu deus tutelar ou de ser perseguido por ele, antecipando e prefigurando o livro de Jó[67].

Embora a cultura mesopotâmica seja marcada por um politeísmo muito elaborado, notamos, no entanto, certas tendências para um "henoteísmo", um apego mais especial a um único deus, sem negar a existência de outras divindades. Nabucodonosor I (1125-1104 a.e.c.) deseja fazer do deus Marduk, a princípio o deus tutelar da cidade da Babilónia, o deus central do panteão babilónico. Quanto a Nabonido (556-539), ele quer fazer do deus da lua, Sin, o principal deus do Império Babilónico. Este último episódio não deixa de lembrar a reforma cultual empreendida pelo faraó Akhenaton (Amenhotep IV, 1353-1337), que é frequentemente apresentado como o primeiro monoteísta da humanidade. No sexto ano de seu reinado, o faraó deixa Tebas e funda uma nova capital, Akhenaton (Tel EI-Amarna), consagrada exclusivamente à veneração de Aton, o disco solar. O rei põe em marcha um grande empreendimento iconoclasta que visa, antes de tudo, apagar qualquer vestígio de Amon, deus de Tebas e principal divindade do panteão egípcio até então, mas também o vestígio dos outros deuses. O hino a Aton[68] mostra uma espécie de monoteísmo cósmico, que prefigura o deísmo de alguns representantes do Iluminismo: Aton-a-luz é o único Deus, que "cria milhões de formas (os raios do sol), permanecendo em sua unidade". A nova religião continua a ser poderosamente marcada pela ideologia real: Akhenaton é filho de Aton e o único que conhece o Deus. Outros textos e representações dão mesmo a impressão de que o casal real, conjuntamente com Aton, formou uma “trindade divina”, semelhante à que existia nos panteões tradicionais.

Com frequência, houve quem tentasse fazer da revolução de Akhenaton, que logo foi apagada pelos seus sucessores, a origem do monoteísmo bíblico, fazendo de Moisés um discípulo do faraó iconoclasta ou identificando os dois personagens. Acontece que o monoteísmo bíblico manifesta-se de maneiras muito distintas. Por um lado, nasceu mais ou menos oito séculos depois, sem nenhum fio cronológico a ligá-lo ao anterior. Por outro lado, o monoteísmo Yahvista não está enraizado na ideologia real, mas trata-se de uma reação ao desaparecimento da realeza e ao colapso da religião nacional tradicional. Não há, portanto, relação de parentesco entre os dois monoteísmos. De acordo com o egiptólogo Jan Assmann, não há ligação causal entre a revolução monoteísta de Akhenaton e o monoteísmo Yahvista[69].

No entanto, existem "vestígios de memória" do monoteísmo de Akhenaton, traços que podem ter influenciado os autores bíblicos quando escreveram a história fundadora do êxodo do Egito e a revelação no Sinai. Podemos pensar que a associação das figuras de Moisés e Akhenaton pode ser rastreada até Manetho, um sacerdote egípcio helenizado que escreveu no século III aC. Em sua história do Egito, Manetho evoca um sacerdote chamado Osarsip, que na época de Akhenaton se teria tornado o chefe de uma comunidade de leprosos forçados a trabalhar e teria dado a essa comunidade leis contrárias aos costumes do Egito, proibindo acima de tudo o culto aos deuses. Manetho especifica no final de seu relato que esse líder dos impuros "mudou seu nome e tomou o de Moisés"[70] (70). Assim, esse Osarsip pode ser entendido como uma caricatura de Akhenaton, o que mostra que esse "trauma akhenatoniano" durou mais de um milénio. A visão de Manetho, que apresenta Moisés como um egípcio incompreendido pelo seu povo, abre caminho para uma concepção que conta com Sigmund Freud entre os seus adeptos mais conhecidos[71].

É claro que a Bíblia hebraica se apresenta a nós, em suas três partes, como um "documento monoteísta", mas os autores e editores bíblicos também preservaram traços politeístas, como no livro de Jó ou em numerosos salmos, onde Yhwh aparece cercado por sua corte celestial. Há, portanto, pelo menos parcialmente, uma integração da herança politeísta no discurso monoteísta. Por outro lado, tanto os autores do Novo Testamento quanto os do Alcorão terão que enfrentar o mesmo problema, ou seja, a gestão de uma pluralidade na confissão de um único Deus. O monoteísmo bíblico, portanto, não é uma doutrina, é plural e convida à reflexão sobre a difícil relação entre unicidade e diversidade.

 

11.O ADVENTO DA TORÁ E O ESTABELECIMENTO DO JUDAÍSMO COMO A "RELIGIÃO DO LIVRO"

A pequena província de Yehud dificilmente atraiu a atenção dos persas. As nossas informações sobre esta região vêm principalmente de relatos bíblicos, que refletem a ideologia da elite judaica durante o período persa[72]. De acordo com a introdução dos livros de Crónicas e Esdras, logo após sua vitória sobre a Babilónia em 539 a.e.c., o rei persa Ciro emitiu um decreto autorizando os exilados a retornar à Judeia e incentivando-os a reconstruir o templo em Jerusalém. Esta é, sem dúvida, uma construção ideológica[73], que visa mostrar que os persas se importavam com a comunidade judaica exilada. No entanto, essa construção é baseada no facto comprovado de que os primeiros reis persas alegaram ter restaurado os cultos locais e reinstalado os exilados nas suas terras. Embora essas declarações correspondam à ideologia real, parece claro que a política religiosa dos persas era diferente da dos seus antecessores. Podemos até especular sobre uma espécie de sincretismo persa, que permitiu aos persas identificar as divindades locais como manifestações de Ahura Mazda.

Durante o período babilónico, a sede provincial do antigo reino de Judá, que estava integrado no Império Babilónico, ficava em Mispá; não sabemos quando ou por quê Jerusalém se tornou a capital da província (“medina”) de Yehud[74]. É bastante claro que a reconstrução do templo e outras obras de construção em Jerusalém sob Neemias[75] atestam a sua crescente importância durante o período persa. Um dos primeiros governadores de Yehud ("pehah") parece ter sido Zorobabel, um deportado de ascendência real davídica nomeado pelos persas, que sem dúvida pensou que o seu pedigree real convenceria a população nativa a colaborar com ele. É possível que sua chegada a Jerusalém tenha provocado esperanças e tentativas de restauração da dinastia davídica[76], mas não há vestígios de qualquer revolta anti-persa, como às vezes é alegado[77]. O súbito desaparecimento de Zorobabel na Bíblia sugere, no entanto, que os persas o removeram do cargo para evitar expectativas messiânicas. Alguns dos seguintes governadores são conhecidos por relatos epigráficos, mas não sabemos se eram todos judeus ou se também havia governadores persas[78]. O poder real em relação aos assuntos domésticos parece ter pertencido às elites sacerdotais e leigas reunidas em torno do templo de Jerusalém.

Não possuímos informações precisas sobre as fronteiras nem sobre a população de Yehud durante a época persa.

O número de 42 000 exilados que regressaram da Babilónia a Judá, segundo Esdras 2 e Neemias 9, é claramente pouco realista. Durante o período persa havia muito menos habitantes em Yehud[79]. Actualmente existe um intenso debate acerca da população de Jerusalém na época persa. Algumas estimativas minimalistas chegam a 200-300 pessoas, enquanto outras optam por uma população de 1000 habitantes[80]. É possível que Jerusalém tenha sido principalmente o local do Templo, e Ramat Rahel, um lugar importante já nos tempos assírios e babilónicos, o da administração persa.

Tal como já assinalámos, os membros da “golah” babilónica [diáspora judaica na Babilónia] não tinham pressa em regressar a Jerusalém. Os arquivos babilónios da família Murashu referem um grande número de nomes judaicos e um possível testemunho epigráfico de uma «cidade dos judeus» («Al-Yâhûdu») perto de Nipur[81] sublinha igualmente a importância da diáspora judeo-babilónia durante o período persa.  Os judeus que voltaram da Babilónia, eventualmente por pressão e incitamento dos persas, mantiveram fortes laços com ela. É evidente que o poder económico e ideológico estava nas mãos desta ‘golah’ que tinha regressado ao país e que era ela quem controlava a cidade restaurada de Jerusalém.

No entanto, não devemos esquecer a província da Samaria, mesmo que os escritos bíblicos a mencionem pouco e, sobretudo, de forma negativa. Escavações arqueológicas tornaram muito plausível que houvesse um templo yahvista no monte Garizim já no século V a.e.c.[82], o que significa que na época da promulgação do Pentateuco havia na verdade dois santuários dedicados a Yhwh: em Jerusalém e em Garizim. Consequentemente, os samaritanos devem ter desempenhado um papel muito mais importante durante a promulgação do Pentateuco do que os escritos bíblicos teriam admitido. Pesquisas futuras certamente especificarão o seu envolvimento a esse respeito. É claro, no entanto, que o Pentateuco, embora mantenha a ideia de um único santuário (no capítulo 12 do livro de Deuteronómio) nunca menciona o nome de Jerusalém. O Génesis alude a isso, especialmente no capítulo 14, quando Abraão encontra o misterioso rei e sacerdote de Salém, porém, no final de Deuteronómio, o Monte Garizim aparece como o local do sacrifício[83]. Assim, o Pentateuco, que foi aceite por judeus e samaritanos como o documento fundador, permite dois locais diferentes de um santuário. Este ponto pressupõe evidentemente um compromisso, não apenas entre diferentes correntes ideológicas do judaísmo, mas também entre judeus e samaritanos.

Foi provavelmente entre 400 e 300 a.e.c. que os escritos sacerdotais, o livro de Deuteronómio e outras tradições, como a história de José (Génesis 37-50), foram reunidos para formar o Pentateuco - a TORAH - que a princípio excluía os pergaminhos proféticos e a história da conquista até ao exílio babilónico (ou seja, os livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis). Esta exclusão reflecte duas situações: (1) a desconfiança da elite religiosa e secular em relação ao profetismo, sobretudo porque alguns textos proféticos anunciavam a restauração da dinastia davídica - o que não agradava nem aos oficiais do Templo nem às autoridades persas - e (2) a importância em envolver os samaritanos, para quem os livros de Samuel e Reis - que afirmavam que o verdadeiro santuário de Yhwh estava em Jerusalém - eram inaceitáveis.

O Pentateuco termina, no capítulo 34 do livro de Deuteronómio, com a morte de Moisés às portas da Terra Prometida [no cimo do Monte Nebo]. Moisés torna-se, assim, um símbolo para os judeus da diáspora, sinalizando, com a sua morte naquele sítio, que pouco importa permanecer numa terra estrangeira desde que se mostrem fiéis aos mandamentos divinos transmitidos por Moisés. Além disso, o judaísmo nascente tem outra peculiaridade: no Próximo Oriente são os reis que recebem das suas divindades tutelares as leis que devem ensinar aos seus povos; isso é muito claro na estela que contém o código de Hamurabi, onde o governante babilónico é desenhado na frente do deus Shamash, o qual passa para as mãos do governante as suas leis. Agora, na Bíblia hebraica, nenhum rei recebe uma lei; esse papel foi transferido para Moisés. É outra maneira de definir o judaísmo como uma religião que não precisa de legitimação real ou estatal. O Pentateuco substitui as instituições políticas, mas também a terra, e assim torna-se para empregar uma famosa expressão do poeta Heinrich Heine uma “pátria portátil”, o que permite ao judaísmo venerar Yhwh mantendo as leis encontradas na Torá e esta ser lida em qualquer lugar onde haja uma sinagoga.

O livro de Esdras atribui a promulgação do Pentateuco ao escriba e sacerdote Esdras, que se apresentara munido de uma carta de acreditação do rei persa para facilitar a aceitação da "lei do deus do céu" e da lei do rei. A partir desses textos e de outros documentos, Peter Frei elaborou a hipótese de que teria havido uma autorização imperial segundo a qual a própria administração persa teria ordenado que as diferentes populações do Império publicassem as suas tradições religiosas e depois as submetessem à aprovação do poder aqueménida[84]. Esta teoria é muito frágil[85] pois todos os exemplos que Peter Frei propõe não podem ser diretamente relacionados com a Torá, pois são documentos curtos que muitas vezes dizem respeito apenas aos detalhes de um culto local. A edição da Torah é antes de tudo uma realidade que apenas diz respeito a judeus e samaritanos ainda que também com uma forte implicação da “golah” que provavelmente se reconhecia na figura de Esdras, ao mesmo tempo que se legitimava a si mesma encenando uma benevolência persa em relação à promulgação do Pentateuco.

Com a Torá, o judaísmo passa a ser definitivamente uma religião móvel para a diáspora. Yhwh deixa de ter necessidade de templo, mas mantém uma relação específica com o seu povo, que vive conforme as prescrições da Torá.

 

12.YHWH, DEUS ÚNICO, INVISÍVEL, TRANSCENDENTE E UNIVERSAL

Defendemos até aqui a tese de que o primeiro templo de Jerusalém tinha uma estátua de Yhwh que, ao que parece, nunca foi posta em causa durante a Reforma de Josias. O mandamento primitivo, mais tarde integrado no Decálogo, "Não terás outros deuses diante de mim", apontava, a princípio, para a presença de estátuas de outras divindades diante da estátua de Yhwh. Quando se reconstruiu o Templo, por alturas do começo da Era Persa, com certeza que terá havido discussões acerca da edificação de uma (nova) estátua de Yhwh. Quando o autor denominado «Deuteroisaías» anuncia o regresso de Yhwh da Babilónia à Terra Prometida, deparamos com esta afirmação: «Ouve: as tuas sentinelas gritam, cantam em coro, porque vêem olhos nos olhos o regresso de Yhwh a Sião» (Isaías 52,8). Caso nos puséssemos a imaginar a chegada de uma estátua de Yhwh a Jerusalém, esta descrição seria perfeitamente compreensível. É por isso que o autor do capítulo 4 do Deuteronómio insiste no facto de o povo não ter visto nenhuma «forma», nenhuma representação durante a revelação de Yhwh a Israel: «15Tomai muito cuidado convosco, pois não vistes imagem (“temunah”) alguma no dia em que Yhwh vos falou no Horeb do meio do fogo. 16Portanto, não vos deixeis corromper, fabricando para vós imagem esculpida (“pesel”) de qualquer representação (“temunah samel tabnit”) […]». Esta passagem pode, de facto, ser lida como um texto programático contra a construção de uma estátua de Yhwh na época persa[86].

O aniconismo judeu passou a ser um sinal identitário, o qual, num contexto helenístico e romano, intrigava deveras. Quando Pompeu entra no Templo de Jerusalém, por volta do ano 63 a.e.c., descobre com estupefação que o templo está vazio[87], realidade inconcebível[88] para ele. Outro aspecto que sublinha a transcendência de Yhwh é a decisão que o judaísmo tomou, por volta do século IV a.e.c., em deixar de pronunciar o nome de Yhwh e em substituí-lo, tal como vimos no primeiro capítulo deste livro, por «o Senhor» ou «o Nome». Esta decisão, que precede a tradução do Pentateuco para a língua grega, de algum modo também é explicada pelo novo credo monoteísta: se o “nome próprio” costuma servir para distinguir uma pessoa ou uma divindade dos, e das, demais, o deus único não necessita de nome próprio; caso tivesse um nome próprio, isso equivalia a pactuar com o passado, com o velho politeísmo em que o deus Yhwh seria um entre outros.

A tradução do Pentateuco para o grego fez definitivamente de Yhwh um deus universal. Segundo a Carta de Aristeias, a tradução grega teria sido feita em Alexandria por volta do ano 270 a.e.c., no tempo de Ptolomeu II, e por setenta sábios (razão porque o Pentateuco adquiriu o nome da versão “Septuaginta”, sendo esse nome conferido também a todas as versões em língua grega da Bíblia hebraica completa); esses setenta sábios trabalharam isoladamente, ou seja, em total isolamento entre si, tendo, apesar dessa circunstância particular, chegado, no fim, ao mesmo texto. Ainda que este relato seja fictício hoje em dia sabemos que os diferentes livros do Pentateuco não foram traduzidos de uma só vez nem pelos mesmos tradutores – é bastante plausível que esta tradução tenha começado no século III a.e.c. Com esta tradução, Yhwh, ou melhor, “kúrios” ou “theós”, dá-se a conhecer ao mundo grego e passa, definitivamente, a ser o deus universal. O seu culto estende-se a toda a bacia do mediterrâneo (fruto da disseminação e fixação dos judeus, bem como da difusão de sinagogas), despertando intriga e, ao mesmo tempo, despertando a curiosidade de numerosos não-judeus que passam a sentir-se atraídos. Eis como Yhwh se converte num deus que supera o marco semítico, ao mesmo tempo, que o judaísmo, até hoje, confessa o seu particular vínculo a este deus.

 

Thomas Römer, La invención de Dios, Sígueme 2022, cap. 12 «Del Dios “uno” ao Dios “único”», pp. 241-276.

 

©

 

 

 

 



[1] Tal como o faraó fez com Joaquim, o rei babilónio muda-lhe o nome, procedimento que simboliza a manifestação do seu poder sobre ele.

[2] O. Lipschits, «Demographic changes in Judah between the seventh and the fifth centuries B.C.E.», in O. Lipschits – J. Blenkinshopp (dirs.), “Judah and the Judeans in the Neo-Babylonian Period”, Winona Lake 2003, 323-376.

[3] Por exemplo, 2 Reis 25,21: «SAQUE DA CIDADE DE JERUSALÉM «[1]No nono ano do seu reinado, no dia dez do décimo mês, Nabucodonosor marchou com todo o seu exército contra Jerusalém. Acampou diante da cidade e levantou trincheiras em redor dela. (…) [10]E as tropas que acompanhavam o chefe da guarda, destruíram o muro que cercava Jerusalém. [11]Nebuzaradan, chefe da guarda, levou cativos para Babilónia, os que restavam da população da cidade, os que já se tinham rendido ao rei da Babilónia e o resto da população. [12]O chefe da guarda só deixou ali alguns pobres para cultivarem as vinhas e os campos. (…) [20]Nebuzaradan, chefe da guarda, prendeu-os [vários sacerdotes, Sofonias, três porteiros e um eunuco conselheiro do rei] e levou-os ao rei da Babilónia, em Ribla. [21]Este matou-os em Ribla, na região de Hamat. Assim, Judá foi levado cativo para longe da sua terraQuanto ao mito do “país vazio”, cf. H. M. Barstad, «The Myth of the Empty Land: A Study in the History and Archaeology of Judah during the “Exilic” Period», Oslo 1996.

[4] D. V. Edelman, «Die Saulide-Davidic rivalry resurface in early Persian Yehud?», in J. A. Dearman – M. P. Graham (dirs.), «Teh Land that I Will Show You. Essays on the History and Archaeology of the Ancient Near East in Honour of J. Maxwell Miller», Sheffield 2001, 69-91.

[5] Sobretudo, no que diz respeito aos da primeira deportação, no ano de 597 a.e.c.

[6] Flávio Josefo, «Antiguidades Judaicas» XV, 1, § 2.

[7] Esta coleção provém do «mercado cinzento», ou seja, de comerciantes de antiguidades.

[8] F. Joannès – A. Lemaire, "Three cuneiform tablets of west-semitic onomastics (col. Sh. Moussaïeff) (Pls. I-II)": Transeuphratene 17 (1999) 17-27 e 33.

[9] Expressão usada pelos exilados (na Babilónia) que se estabeleceram no país para onde foram deportados.

[10] Segundo as indicações que o livro de Jeremias proporciona, as populações pobres teriam, inclusivamente, beneficiado de uma certa redistribuição de terras que pertenciam aos exilados.

[11] O texto de 2 Reis 24,14.16 não menciona explicitamente que entre os deportados também estivessem sacerdotes. Segundo 2 Reis 25,18-20, os sacerdotes mais importantes tinham sido mortos aquando da destruição de Jerusalém. É possível que existissem alguns membros da classe sacerdotal que tenham ficado para trás em Judá e que asseguraram algum tipo de culto sacrificial, como sugere Jeremias 42,5: «Eles disseram a Jeremias: «Que o SENHOR seja testemunha fiel e verdadeira contra nós, se não fizermos tudo o que o SENHOR, teu Deus, te mandar dizer-nos!»

[12] A. Steil, «Krisensemantik: Wissenssoziologische Untersuchungen zu einem Topos moderner Zeiterfahrung», Opladen 1993.

[13] Por outro lado, essa delimitação cronológica é enganosa, pois, embora a queda do Império neobabilónico tenha significado que as populações de Judá exiladas pelos babilónios puderam retornar à sua terra, muitos dos exilados permaneceram na Babilónia e no Egipto, dois lugares que se tornariam centros intelectuais do judaísmo.

[14] Para mais detalhes, cf. T. Römer, «La Première Histoire d’lsrael. L'École deuteronomiste à l’œuvre», Genève 2007.

[15] O hebraico «berît» é geralmente traduzido como “aliança”. Na verdade, abrange o mesmo campo semântico que o assírio «adê», “tratado” ou “juramento de fidelidade”.

[16] Cf. Introdução desse livro, N.1

[17] Esta célebre expressão («wie es eigentlich gewesen») talvez ficasse melhor traduzida por «como basicamente aconteceu»; cf. R. J. Evans, in «Defence for History», London 1997, 17.

[18] Tal como o demostrou Rolf Rendtorff, «Die Erwahlung Israels als Thema der deuteronomischen Theologie», em J. Jeremias - L. Perlitt (dirs.), «Die Botschaft und die Boten. Festschrift Hans Walter Wolff zum 70. Geburtstag», Neukirchen-Vluyn 1981, 75-86.

[19] Dt 10, 16 e 30, 6 enfatizam o motivo da "circuncisão do coração"; isso poderia levar a uma controvérsia contra a tentativa sacerdotal de transformar o ritual da circuncisão em um sinal distintivo do judaísmo nascente.

[20] O. H. Steck, «Gottesknecht und Zion. Gesammelte Aufsätze zu Deuterojesaja», Tübingen 1992.

[21] Para uma versão inglesa, cf. www.britishmuseum.org/collection/object/W_1880-0617-1941

 ou então www.livius.org/sources/content/cyrus-cylinder/cyrus-cylinder-translation/

 (última consulta Th. Römer: 30.9.2022).

[22] Esta expressão «El», neste contexto, possui unicamente o sentido de um «deus» vulgar.

[23] J. D. Macchi, «”Ne ressassez plus les choses d’autrefois”. Ésaïe 43,16-21, un suprenant regard deutéro-ésaïen sur le passé»: Zeitschrift für die Alttestamentliche Wissenschaft 121 (2009) 225-241.

[24] A vitória de Yhwh sobre os babilónios é descrita com as mesmas imagens da derrota do Faraó e do seu exército no livro de Êxodo.

[25] Quanto a este assunto, cf. D. V. Edelman, «Proving Yahwh killed his wife (Zechariah 5,5-11)»: Biblical Interpretation (2003) 335-344.

[26] A expressão «ris’ãh» pode ser interpretada provavelmente como um jogo de palavras a partir do nome da deusa Asherá («’ãserãh»).

[27] A trasladação da deusa para a Babilónia reflecte, sem sombra de dúvidas, a ideia de que a deusa (Ishtar) era originária da Mesopotâmia, aonde, segundo Zacarias 5, é imperioso que regresse para sempre.

[28] O sentido exacto do verbo que aqui se utiliza é «parir envolto em dores», verbo que está redigido no particípio masculino.

[29] M.-T. Wacker, «Figuration des Weiblichen im Hosea-Buch», Friburg-Bâle-Vienne 1996.

[30] M. Nissinen, «Prophetie, Redaktion und Forstchreibung im Hoseabuch: Studien zum Werdegang eines Prophetenbuches im Lichte von Hos 4 und 11», Kevelaer-Neukirchen 1991, 268-276.

[31] J. Wellhausen, «Die Kleinen Propheten. Skizzen und Vorarbeiten 5», Berlin 1963 (31889), 134.

[32] Tal é facilmente dedutível já que o autor de Génesis 1 utiliza a expressão «Elohim», a qual tanto pode ser tomada no singular como no plural.

[33] Encontramos um fenómeno comparável no Egipto, onde a «ma’at», conceito que exprime a ordem justa do munto (“A Sabedoria”), se transforma numa jovem deusa adornada com uma pluma, símbolo da ma’at.

[34] Mais tarde, uma evolução semelhante é observada no judaísmo em relação à ideia de “shekinah”, que primeiro significa a presença divina entre os homens, mas que às vezes também assume a forma de uma hipóstase. 

[35] No marco narrativo que compreende os capítulos 12 e 42, os sofrimentos de Jó são consequência, são fruto de uma aposta entre Yhwh e o Adversário («satã»), que faz o papel de um agente provocador da Corte Celestial, ao qual voltaremos mais adiante.

[36] M. Leuenberger, “«Ich bin Jhwh und keiner sonst»: der exclusive Monotheismus des Kyros-Orakels Jes. 45,1-7”, Stuttgart 2010.

[37] Refere-se ao rei persa Ciro.

[38] Esta expressão que usualmente é traduzida por «paz» significa “ordem justa”, significa que tudo está no seu equilibrado lugar, num estado de perfeição; assim nada nem ninguém perturbará.

[39] Só o livro do Eclesiastes (Qohelet) irá no mesmo caminho e aconselhará os seus leitores: «No dia da felicidade, sê alegre; no dia da desgraça (ra’ah), reflecte, pois Deus fez uma a par da outra, a fim de que o homem não descubra o que depois lhe irá acontecer.» (Ecl 7,14)

[40] C. Nihan, «From Priestley Torah to Pentateuch: A Study in the Composition of the Book of Leviticus», Tübingen 2007, 340-378. [Edição Kindle]

[41] A teoria desta ideia encontra-se na versão sacerdotal da revelação de Moisés no livro do Êxodo cap. 6: «2Deus falou a Moisés, dizendo-lhe: «Eu sou o Yhwh. 3Apareci a Abraão, a Isaac e a Jacob como El Shaday [Deus supremo], mas pelo meu nome “Yhwh”, Eu não me dei a conhecer por eles.» Este texto remete para Génesis 17, que também é relato de tipo sacerdotal no qual Yhwh se revela a Abraão como «El Shaday». Os redactores sacerdotais, antes desta revelação a Abraão, utilizam a expressão «Elohim».

[42] A. de Pury, «Gottesname, Gottesbezeichnung und Gottesbegriftt. “Elohim als Indiz zur Entstehungsgeschichte des Pentateuch”», in J. C. Gertz – K. Schmid – M. Witte (Dirs.), “Abschied vom Yahwisten. Die Komposition des Hexateuch in der jüngsten Diskussion”, Berlin-New York 2002, 25-47.

[43] E. A. Knauf, «El Saddai der Gott Abrahams?»: Biblische Zeitschrift 29 (1985), 97-105.

[44] Esta proximidade é encenada também na narração sacerdotal da instituição da circuncisão em Gn 17, 1-14, apresentada como sinal da aliança entre Yhwh e Abraão. A circuncisão afeta não apenas Isaque, mas também Ismael, o que reflete que o autor sacerdotal estava ciente dessa prática nas tribos árabes. O fato de Ismael (v. Gn 17, 25) ser circuncidado aos treze anos e Isaque (Gn 21, 4) aos oito dias de nascimento indica a evolução, no judaísmo, de um rito de passagem ligado à puberdade para um ritual que marca a entrada do recém-nascido numa comunidade.

[45] Para uma primeira iniciação, cf. G. Widengren, «Les Religions de l’Iran», Paris 1968; M. A. Dandamaev – V. G. Lukonin, «The Culture and Social Institutions of Ancient Iran», Cambridge 1989; J. Wiesehöfer, «Das antike Persien. Von 550 v.Chr. bis 650 n.Chr., Düsseldorf-Zurich 2005 (1993).

[46] Quanta a estas inscrições, cf. P. Lecoq, «Les Inscriptions de la Perse achéménide», Paris, Gallimard 1997, 217.

[47] L. L. Grabbe, «Ezra-Nehemiah», London- New York 1998, 160.

[48] Neste sentido, cf. H. Niehr, «Religio-historical aspects of the “early post-Exilic” period», in B. Becking – M. C. A. Korpel (dirs.), “The Crisis of Israelite Religion. Transformation of Religious Tradition in Exilic and Post-Exilic Times”, Leyde-Boston-Köln 1999, 228-244, 243. Não há dúvidas que a historicidade da figura de Esdras levanta muitas questões e dúvidas; a de Neemias parece mais plausível.

[49] Para mais detalhes, cf. A. de Pury – T. Römer, «Terres d’exil et terres d’accueil. Quelques réflexions sur le judaïsme postexilique face à la Perse et à l’Égypte»: Transeuphratène 9 (1995) 25-34, 29-30.

[50] Tal como mostra o alto-relevo e as inscrições de Beistum, as quais descrevem as conquistas de Dario.

[51] Neste relato, «satanás» não é (ainda) um nome próprio: designa apenas uma função

[52] É por demais evidente que os versículos que representam o face-a-face entre Deus e Satanás foram adicionados após a história original, na qual Yhwh foi diretamente responsável pelos infortúnios de Jó. De facto, o primeiro capítulo de Jó pode ser lido sem as cenas da Corte Celestial, tanto mais que os pronomes-sufixos do versículo 13 (“os seus filhos e filhas”) não podem referir-se ao versículo precedente (“Satanás retirou-se da presença de Yhwh”); são apenas compreensíveis como continuação do versículo 5 ("assim fez Jó todas as vezes"). Além disso, o epílogo do capítulo 42 não contém alusão a uma aposta entre Deus e Satanás, mas passa a um acerto de contas entre Yhwh e os amigos de Jó. A inserção posterior de satanás na história de Jó pode, portanto, ser entendida como uma tentativa de colocar o mal fora de Deus e "personificá-lo".

[53] Os livros das Crónicas são mais recentes que os livros de Samuel e foram compostos no final da época persa ou no princípio da época helenística.

[54] C. Briffard, «2 Samuel 24. Un parcours royal: du pire au meilleur»: Études théologiques et religieuses 77» (2002) 95-104.

[55] Recordemos o dualismo defendido pela Comunidade de Qümran, a qual aguardava um combate escatológico que oporia os «filhos da luz» aos «filhos das trevas». Na época de Jesus existia, ao nível popular, uma demonologia muito mais complexa.

[57] J. Briend, «Malachie 1, 11 et I'universalisme», en R. Kuntzmann (dir.), “Ce Dieu qui vient. Mélanges offerts à Bernard Renaud”, Paris 1995, 191-204.

[58] Pierre Grelot, «Documents araméens d’Égipte», Paris 1972, 95, documento 10.

[59] Sétimo mês do calendário egípcio; corresponde ao Tishri babilónico.

[60] Moeda persa que corresponde a 10 siclos; o siclo era equivalente ao didracmo dos gregos.

[61] P. Grelot, «Documents araméens d’Égipte», 383, documento 89.

[62] Este papiro encontra-se em Berlin. Para uma consulta:

http://cojs.org/the_elephantine_temple-_bce/

[64] P. Grelot, «Le monothéisme est três difficile à pensar!»: Le Monde de la Bible 124 (2000) 50-51.

[65] Cf. G. Ahn, «”Monotheismus”-“Polytheismus”. Grenzen und Möglichkeiten einer Klassifikation von Gottesvorstellungen», in M. Dietrich – O. Loretz (dirs.), “Mesopotamia-Ugaritica-Biblica (Festschrift Kurt Bergerhof)”, Neukirchen-Vluyn 1993, 1-24, 5-6.

[66] Para mais detalhes e bibliografia, cf. Fritz Stolz, «Einführung in den biblischen Monotheismus», Darmstadt 1996, 4-22.

[67] Samuel Terrien, «Job: the Poet of Existence», Genève 22005, 60-62.

[68] Houve quem quisesse ver traços deste hino no Salmo 104, porém os paralelos são muito ténues.

[69] Jan Assmann, «Le traumatisme monothéiste»: Le Monde de la Bible 124 (2000) 29-34.

[70] Para os fragmentos de Manetho, cf. G. P. Verbtugge – J. M. Wickersham, «Berossos and Manetho Introduced and Translated. Native Traditions in Ancient Mesopotamia and Egypt», Ann Arbor 2000. Cf. também J. Assmann, «Exodus und Amarna. Der Mythos der “Aussätzigen” als verdängle Erinnerung der Aton-Religion», in E. Staehlin – B. Jaeger (dirs.), «Ägypten-Bilder. Akten des «Symposiums zur Ägypten-Rezeption», Augst bei Basel, vom 9.-11. September 1993, Fribourg-Göttingen 1997, 11-34; P. Borgeaud, «Aux origines de l’histoire des religions», Paris 2004, 97-102.

[71] Sobretudo em S. Freud, «El hombre Moisés y la religión monoteísta», Madrid 2015 (1939).

[72] Trata-se sobretudo dos livros de Esdras, Neemias, Ageu e Zacarias.

[73] J. Briend, «L’édit de Cyrus et sa valeur historique»: linha 11 da base-de-dados Transeuphratène 11 (1996), 33-34.

[74] É costume dizer que, no início do período persa, Yehud não era autónomo, mas fazia parte de uma província maior, cuja capital teria sido Samaria. Yehud não se teria separado da Samaria até Neemias. Essa ideia deve ser abandonada. Na verdade, há mais evidências a favor da existência de um Yehud como uma “província independente” desde o período neobabilónico.

[75] Segundo a apresentação bíblica e a opinião tradicional dos especialistas, o templo foi reconstruído durante os anos 520-515 a.e.c. No entanto, Diana V. Edelman defendeu que seria mais verosímil correlacionar a reconstrução do templo com as actividades de Neemias a partir do ano 445 a.e.c. Isso parece-me mais sensato, à luz das importantes mudanças que se operaram na província de Yehud sob o reinado aqueménida de Artaxerxes (465-424 a.e.c.). Cf. Diana Vikander Edelman, «The Origins of the “Second” Temple. Persian Imperial Policy and the Rebulding of Jerusalem», London 2005.

[76] Neste sentido, veja-se o capítulo 2 do livro de Ageu; veja-se também a importância de Zorobabel nas visões que estão no livro de Zacarias.

[77] F. Bianchi, «Le rôle de Zorobabel et de la dynastie davidique en Judée du VIe siècle au IIe siècle av. J.-C.»: Transeuphratène 7 (1994) 153-165.

[78] A. Lemaire, «Administration in the 4th century B.C.E. Judah in light of epigraphy and numismatics», in O. Lipsichits – G. N. Knoppers – R. Albertz (dirs.), «Judah and the Judeans in the Fourth Century B.C.E.», Winona Lake 2007, 53-74.

[79] É muito difícil oferecer uma indicação precisa quando ignoramos a extensão do território da Yehud persa. C. E. Carter, «The Emergence of Yehud in the Persian Period. A Social and Demographic Study», Sheffield 1999, 246-248, estima que a população que vivia neste Yehud seria de 20 000 a 30 000 pessoas.

[80] Cf. O. Lipschits, «Demographic changes in Judah between the seventh and the fifth centuries B.C.E.; Israel Finkelstein, «The territorial extent and demography of Yehud/Judea in Persian and early Hellenistic periods»: Revue biblique 117 (2010) 39-54.

[81] L. Pearce, «New evidence for Judeans in Babylonia», in O. Lipschitz – M. Oehming (dirs.), “Judah and the Judeans in the Persian Period”, Winona Lake 2005, 399-411.

[82] E. Stern – Y. Magen, «Archeological evidence for the first stage of the Samaritan temple on Mount Gerizim»: Israel Exploration Journal 52 (2002) 49-57.

[83] No Deuteronómio 27 o texto massorético afirma que o altar deve ser construído no topo do monte Ebal, ao passo que o Pentateuco samaritano fala de Monte Garizim. Na verdade, esta última versão é a versão original, que ademais é confirmada por um fragmento de Qümran. Cf. C. Nihan, «Garizim et Ébal dans le Pentateuque. Quelques remarques en marge de la publication d’un nouveau fragment du Deutéronome»: Semitica 54 (2011) 185-210.

[84] Peter Frei, «Zentralgewalt und Lokalautonomie im Achämenidenreich», in P. Frei – K. Koch, «Reichsidee und Reichorganisation im Perserreich», Fribourg-Göttingen 21996, 5-31.

[85] Jean Louis Ska, «Le Pentateuque et la politique imperial perse»: Foi & Vie 103, Cahiers bibliques 43 (2004) 17-30.

[86] M. Köckert, «Die Entstehung des Bilderverbots», in B. Groneberg – H. Spieckermann (dirs.), “Die Welt der Götterbilder”, Berlin 2007, 272-290.

[87] Tácito, «Historias V,1».

[88] Tal reacção fez com que se inventasse todo o tipo de discursos antijudaicos, como por exemplo, que no templo de Jerusalém existia um asno ou uma cabeça de burro venerado como deus pelos judeus. Cf. P. Bourgeaud, «Moïse, son âne et les Typhoniens. Esquisse pour une remise en perspective» [Moisés, o seu burro e os Tifonianos. Esboço de uma perspectiva], in “T. Römer (dir.), «La Construction de la figure de Moïse. The Construction of the Figure of Moses”, Paris 2007, 121-130.


FIM