teologia para leigos

31 de julho de 2012

A MONJA «MARXISTA»

A monja e o capitalismo não ético

Irª Teresa Forcades


Nasceu em Barcelona em 1966. É doutorada em Medicina e em Teologia. Muito conhecida pelas suas posições feministas e pelas críticas às multinacionais farmacêuticas, Teresa Forcades é uma monja beneditina do Mosteiro de Sant Benet de Monserrat.

Conheci-a em Julho de 2011, em Santander, num Congresso de Teologia e Ética, e a impressão que me ficou foi a de uma mulher séria e agradável, descontraidamente inteligente e interventiva.

Foi recentemente convidada para a conferência inaugural de um encontro de empresários, talvez o mais importante da Catalunha, com a presença de umas seiscentas pessoas.

Ela é absolutamente favorável ao empreendedorismo. Quereria que isso fosse uma possibilidade para todos, pois isso significa realizar possibilidades e ter iniciativas próprias. Mas põe em causa o empresariado baseado numa relação contratual num quadro capitalista sem ética.

Por três motivos.

É uma mentira o mercado que se diz livre. De facto, ao longo da história, o mercado nunca foi livre. "Foi sempre regulado a favor de certos interesses: da realeza, interesses proteccionistas, da classe dominante, do parente dos governantes de turno." Mercado livre é "uma hipocrisia, uma falácia".

Depois, a lógica do capitalismo, no quadro do mercado global, quer "o máximo lucro". Ora, é aberrante, do ponto de vista antropológico e humano, pensar que a melhor maneira de incentivar as pessoas, a sua criatividade, a actividade económica e, em última análise, o crescimento, seja o lucro máximo. Satisfeitas as necessidades básicas, "o que me estimula não é o dinheiro", mas a curiosidade intelectual, o desafio de descobrir potencialidades e encontrar quem ajude a realizá-las, o apreço dos colegas, a valorização do trabalho que faço, ver que o trabalho das pessoas transforma de modo positivo as suas vidas. Porque não criar uma sociedade fundada no que verdadeiramente nos dá gosto e nos realiza? E o direito à alimentação, à educação, à saúde, à reforma tem de estar acima do mercado e do lucro.

Portanto, o capitalismo não lhe parece ético.

E assume a crítica marxista da mais-valia, dando um exemplo: no mosteiro, temos uma pequena empresa de cerâmica e há uma pessoa de fora que lá trabalha; se lhe pagarmos um euro e ganharmos mil, o capitalismo dirá: que bem! "Mas isto é indigno, pois vai contra a dignidade do trabalho." Há diferenças aberrantes: num contrato, "talvez esteja bem que eu ganhe um e tu ganhes quatro ou até dez, mas mil não pode ser de modo nenhum".

É, pois, claríssimo que temos de pensar e organizar uma alternativa.

"Quem nos ensinou a não confiar que não nos podemos organizar melhor, ao constatarmos, como constatamos, que o modo actual é tão claramente contrário aos interesses da maioria?" O bloqueio da imaginação é um sinal de alarme. É como se se tornasse não possível para mim, que sou monja e prefiro esta vida, imaginar para mim própria uma vida fora do mosteiro. "Se já nem sequer posso imaginar uma alternativa, creio que isso é um sinal de alienação mental."

O que é e aonde leva a especulação? Eu compro todo o trigo e guardo-o. As pessoas vão morrendo, mas, quando os preços subirem, vendo pelo dobro. "Isto aconteceu, e estes senhores do Goldman Sachs sentam-se nas primeiras filas dos convénios e recebem prémios, mas deviam estar na cadeia." São responsáveis por mortes. Jean Ziegler, das Nações Unidas, diz que isto é assassínio organizado. Presentemente, produzem-se alimentos para 12 mil milhões de pessoas, mas há mil milhões com fome. Cada dia morrem 26 mil crianças de fome.

A conversão fundamental é, na nossa visão do mundo, a da passagem da relação sujeito-objecto para uma relação sujeito-sujeito, substituindo assim uma relação de dominação por uma relação de jogo de subjectividades, no qual entram dignidades.

Se continuarmos nesta "alienação mental", neste bloqueio da renovação social, porque os políticos só pensam nas próximas eleições, sem capacidade para criar uma alternativa, a nossa situação pode piorar e podemos assistir a um fascismo social e político e até a uma guerra.

Anselmo Borges
Diário de Notícias, 28 Julho 2012.


«OS POBRES DE YAHVÉ»

Gustavo Gutiérrez
o pai da teologia da libertação

Gustavo Gutiérrez, op


Ele é um dos teólogos mais importantes do século XX. O dominicano peruano explica por que consagrou sua vida ao reencontro de Deus e dos pobres.
A reportagem é de Martine De Sauto, publicada no jornal La Croix, 24-03-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Ele avançou um pouco cansado, apoiou na mesa a sua bengala preta que ele nunca abandona, e se sentou. De passagem por Paris, por ocasião do 50º aniversário do Comitê Episcopal França-América Latina (Cefal), Gustavo Gutiérrez, considerado o "pai" da teologia da libertação, já se encontrou com missionários, estudantes e professores do Institut Catholique de Paris, responsáveis pelo Secours Catholique, parceiro do CCFD [Comitê Católico contra a Fome e pelo Desenvolvimento].

Na manhã do dia 24, na sala da casa provincial dos sulpicianos onde ele se hospedava, ele evocou de novo aquela teologia que marcou profundamente a Igreja latino-americana. Falar de si mesmo não é um de seus hábitos. Mas, nessa manhã em que a primavera [europeia] clareava as velhas paredes da sala, esse pequeno homem, simples, amável, aceitava fazer o relato da sua vida. O encontro durou quase três horas. Também poderia ter continuado. Gustavo Gutiérrez não estava mais cansado.

Ele nasceu em Lima, no Peru. Com apenas 12 anos, por causa de uma osteomielite, ficou preso à cama durante vários anos. "Não havia antibióticos. Eu era aluno dos Irmãos Maristas. Tive que abandonar a escola". Estudava em casa, jogava xadrez, lia. "Meu pai era um grande leitor", lembra. "Seguramente, ele me influenciou. Dele também herdei o senso de humor, que ele sempre mostrava, apesar das nossas dificuldades".

Aos 15 anos, descobriu Pascal, que o marcou permanentemente. E, pouco tempo depois, a História de Cristo, de Giovanni Papini, que o tocou profundamente. Interessou-se também por filosofia e psicologia através dos escritos de Karl Jaspers e de Honorio Delgado. O desejo de se tornar padre, que ele tivera no início da doença, o deixara. No entanto, entrou aos 14 anos na Ordem Terceira Franciscana. "A pobreza já estava presente na minha vida de filho de família modesta, marginalizado pela doença, e nas minhas escolhas", observa.

Aos 18 anos, pôde finalmente ir para a universidade estudar medicina (com o desejo de se tornar psiquiatra) e filosofia. "Membro do movimento universitário católico, eu participava ativamente da vida política da universidade", lembra. "Foi então que ouvi na minha vida perguntas que questionavam a minha fé. Aos 24 anos, eu escolhi me tornar padre. O bispo de Lima, considerando-me muito velho para o seminário, me mandou para a Europa".

Em Leuven, aprendeu francês, escreveu uma tese sobre Como Freud chegou à noção de conflito psíquico. Depois, se transferiu para Lyon para estudar teologia. "Era um período difícil na Igreja francesa, mas muito rico", diz, "que me permitiu encontrar Albert Gelin (cujos trabalhos sobre os 'Pobres de Javé' orientaram as minhas pesquisas), Gustave Martelet e dominicanos (como Marie-Dominique Chenu, Christian Duquoc... e também aqueles da minha geração, como Claude Geffré). Muitos anos depois, quando eu tomaria a decisão de entrar na Ordem dos Pregadores, um dos meus amigos de então, padre Edward Schillebeeckx, dominicano flamengo, me escreveria uma carta que começava assim: 'Finalmente!'".



Viver em solidariedade com os pobres

Enquanto isso, ordenado sacerdote, Gustavo Gutiérrez voltou ao Peru. Nomeado a uma paróquia do bairro pobre de Rimac, em Lima, e capelão dos movimentos cristãos, ele se dedicou ao seu trabalho pastoral, dando aulas também na universidade católica. Mas já havia um problema que o atormentava: como dizer ao pobre que Deus o ama?

Em Maio de 1967, dois anos depois do Concílio, do qual participou, ele abordará essa questão diante dos estudantes da Universidade de Montreal, distinguindo pela primeira vez três dimensões da pobreza.

A pobreza real de todos os dias: "Ela não é uma fatalidade", explica, "mas sim uma injustiça".

A pobreza espiritual: "Sinônimo de infância espiritual, consiste em colocar a própria vida nas mãos de Deus".

A pobreza como compromisso: "Ela leva a viver em solidariedade com os pobres, a lutar com eles contra a pobreza, a anunciar o Evangelho a partir deles".

Para explicar a ideia, ele se concede um pouco mais de tempo, atento a não pular alguma etapa. "No ano seguinte, eu ainda tinha que dar uma conferência em Chimbote, no Peru. Haviam-me pedido para falar sobre a teologia do desenvolvimento. Expliquei que uma teologia da libertação era mais apropriada". Essa linguagem teológica, que leva em consideração o sofrimento dos pobres, inspiraria os bispos reunidos em Medellín (Colômbia) para a segunda Conferência do Episcopado Latino-americano (Celam).


Nasce a teologia da libertação
 
Em Maio de 1969, Gustavo Gutiérrez foi para o Brasil, que vivia então as horas mais escuras da ditadura militar. Ali encontrou estudantes, militantes da Ação Católica, padres cujo testemunho enriqueceriam a sua reflexão que desembocou na sua obra fundamental: Teologia da Libertação.

"Antes do Concílio", especifica, "João XXIII havia anunciado: a Igreja é e quer ser a Igreja de todos, e particularmente a Igreja dos pobres". Os padres conciliares, preocupados com o problema da abertura ao mundo moderno, esqueceram-no um pouco. Na América Latina, essa intuição foi retomada.

Os pobres começavam a se fazer sentir. "Muitos de nós víamos neles um sinal dos tempos que era preciso perscrutar, como pede a constituição Gaudium et Spes. Por causa da minha idade, da minha presença no Concílio e em Medellín, eu fiz trabalho de teólogo. Mas poderia ter sido outro".

A libertação da qual Gustavo Gutiérrez fala não é um programa político. Ela se situa em três níveis que se cruzam:

O nível económico: é preciso combater as causas das situações injustas.
O nível do ser humano: não basta mudar as estruturas, é preciso mudar o ser humano.
O nível mais profundo, teologal: é preciso se libertar do pecado, que é a recusa de amar a Deus e ao próximo.

Quanto à teologia, ela é o meio para fazer com que o compromisso com os pobres seja uma tarefa evangélica de libertação, uma resposta aos desafios que a pobreza coloca diante da linguagem sobre Deus. Essa teologia se revela contagiosa. Nos Estados Unidos, na minoria negra, na África, na Ásia, teologias desses "terceiros mundos" se despertam, impulsionadas por um novo fôlego.

Uma vida pelos pobres

Mas essa teologia também se choca com oposições. As mais violentas vêm dos poderes econômicos, políticos e militares da América Latina, assim como nos EUA. Mas também vêm de católicos que a acusam de fazer referência, ao analisar certos aspectos da pobreza, à teoria da dependência, que usava noções provenientes da análise marxista.

Na conferência do Celam em Puebla (1979), que confirma a visão de Medellín e fala da "opção preferencial pelos pobres", manifestam-se resistências também dentro da Igreja latino-americana. "Medellín", reconhece Gustavo Gutiérrez, "foi uma voz muito profética que provocou compromisso e resistências. Mas quando uma Igreja é capaz de ter entre os seus membros pessoas que dão a sua vida pelos pobres, como Dom Oscar Romero e muitos outros, há algo de importante que acontece nessa Igreja".

A teologia da libertação também sofreria por causa das posições do Vaticano. Em 1984, ela foi severamente criticada pela Congregação para a Doutrina da Fé, da qual o cardeal Ratzinger era então prefeito. Gustavo Gutiérrez, assim como outros, teria que dar explicações. Em 2004, ao término de um processo de "diálogo" de 20 anos, o mestre da Ordem dos Dominicanos recebeu uma carta em que o cardeal Ratzinger "rende graças ao Altíssimo pela satisfatória conclusão desse caminho de esclarecimento e aprofundamento".

"Durante aqueles anos, eu podia, mesmo assim, pregar o Evangelho na minha paróquia", conta Gustavo Gutiérrez, que se dedicava naquela época às suas pesquisas sobre Bartolomeu de Las Casas – "um gênio espiritual", diz, "que soube ver no índio o pobre segundo o evangelho" –, continuando a sua obra teológica e acompanhando de perto "a nova presença das mulheres, depois dos índios, na cena da história, do pensamento, da que estavam ausentes".



Teologia como poesia


Hoje, ele reside no convento dos dominicanos de Lima. Divide o seu tempo entre o seu trabalho pastoral, os retiros que prega, os cursos de teologia na Universidade de Notre Dame (Indiana, EUA) e no Studium Dominicano de Lille (França). Mas, incansavelmente, ele continua a sua obra teológica, lendo muito, até mesmo poetas. "A poesia é a melhor linguagem do amor", confidencia. "Fazer teologia é também escrever uma carta de amor a Deus, à Igreja que eu sirvo e ao povo a que eu pertenço".

Atualmente, ele está terminando um livro dedicado à opção preferencial pelos pobres. "A teologia da libertação pode até desaparecer", afirma, "mas, se restar a preferência pelos pobres, nós teremos vencido algo importante, profundamente ligado à Revelação".

Depois, acrescenta, com uma expressão de clara gravidade no rosto: "A pobreza e as suas consequências são sempre o grande desafio do nosso tempo na América Latina e em muitos outros lugares do mundo. Praticar a justiça, trabalhar pela libertação dos seres humanos é falar de Deus. É um acto de evangelização".


IHU – INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS
04:IV:2012

TEOLOGIA FUNDACIONAL

Quarenta anos
da Teologia da Libertação


Há 40 anos, um pequeno livro de um sacerdote peruano estremeceu a Igreja católica ao assentar os fundamentos da Teologia da Libertação, uma reflexão acusada de marxista por ressaltar a opção de Deus pelos pobres, mas também elogiada por renovar a mensagem dessa religião.

O livro Teologia de Libertação. Perspectivas [Vozes], de 1971, é considerado o ato teórico fundacional que deu nome ao movimento teológico mais importante nascido na América e foi escrito pelo peruano Gustavo Gutiérrez, hoje com 83 anos e sacerdote dominicano.

“A ideia era dizer que Deus acompanhava os povos do Terceiro Mundo, que estava do seu lado na busca pela Terra Prometida, mas uma Terra Prometida que significava terra, liberdade, justiça, dignidade”, explicou o professor Jeffrey Klaiber, historiador das religiões na Universidade Católica de Lima.

Em uma América Latina marcada pela desigualdade social e pelas ditaduras das décadas de 1960 e 1970, essa linha “captou a imaginação” de vastos setores, desde a Nicarágua de Somoza até as Filipinas de Marcos, encontrando ecos na África, segundo Klaiber.

Gustavo Gutiérrez afirmou que “na Teologia da Libertação (TdL) a pobreza significa insignificância social, ela não se limita à sua dimensão econômica; pobre é o insignificante e excluído por diferentes razões, dali a gravidade da desigualdade social que sofremos no Peru”.

“Essa teologia segue presente na América Latina, apesar das quatro décadas transcorridas, e sua mensagem central (a opção preferencial pelos pobres) repercute sobre a tarefa pastoral da Igreja”, disse Gutiérrez.

“Bastaria tomar as conclusões da Conferência Episcopal da América Latina e do Caribe em Aparecida (Brasil, 2007) para dar-se conta disso”, evocou o sacerdote peruano sobre a reunião encabeçada pelo papa Bento XVI.

A opção pelos pobres entusiasmou em um primeiro momento Roma, sob o papa Paulo VI (1963-1978), que designou bispos progressistas para a região com o maior número de fiéis católicos.

Contudo, João Paulo II (1978-2005), formado no anticomunismo, a questionou alegando que fomentava a luta de classes e poderia distanciar os fiéis dos setores médios e altos.

A ofensiva do Vaticano contra a Teologia da Libertação se traduziu na nomeação de bispos conservadores e se selou com dois documentos (“Instruções”) do então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Joseph Ratzinger, Bento XVI desde 2005.

“A primeira instrução foi negativa, mas a segunda foi mais positiva porque dizia que a história do cristianismo é uma história de libertação, de liberdade, e que os cristãos deviam apoiar a liberdade”, assinalou Klaiber.

“O importante é que os mal-entendidos, quando os houve, há tempo que foram superados através de um diálogo permanente e frutuoso”, ressaltou Gutiérrez sobre suas conversas com Ratzinger entre 1984-1986.

O paradoxo na posição de Roma é que foram o Concílio Vaticano II (1962) e a Conferência Episcopal Latino-Americana de Medellín (1968) que serviram de inspiração para a TdL.

Klaiber acredita que, “como corrente intelectual, o tempo da TdL já passou, mas seu espírito continua vigente e ativo no terreno, nas paróquias pobres e amazônicas mesmo que ninguém ouse pronunciar seu nome por medo da hierarquia”.

O cardeal peruano Juan Luis Cipriani, primeiro cardeal da Opus Dei nomeado por João Paulo II no mundo, não aceitou fazer um comentário sobre a TdL quando lhe foi solicitado.

“O que se pratica, na verdade, é a mensagem cristã, o Evangelho, não uma teologia; esta contribui para a vida da Igreja na medida em que reflete sobre essa mensagem tendo em conta o momento que se vive”, matiza Gutiérrez ao responder sobre se reescreveria sem mudanças seu texto de 1971.

Gutiérrez não foi o único que impulsionou a TdL, que teve entre seus pioneiros o então sacerdote brasileiro Leonardo Boff e o colombiano Camilo Torres – que integrou as guerrilhas em seu país.

Os casos dos arcebispos de El Salvador, Oscar Romero, assassinado em 1980, e do brasileiro Hélder Câmara, são referências obrigatórias dos representantes da Teologia da Libertação, que teve no Brasil sua base maior.

IHU – INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS
20 DEZ 2011


PROPINAS E TAXAS MODERADORAS

Do gradualismo em política

 



«Quando nos anos 90 do século passado o movimento estudantil avisava que se estavam a abrir as portas à desigualdade no acesso e frequência do ensino superior público, chamaram-nos fantasistas; quando avisámos que a introdução de propinas traria consigo a elitização do ensino superior, chamaram-nos catastrofistas; quando dizíamos que a justiça se fazia nos impostos e não com a introdução de novas taxas, disseram-nos que não sabíamos do que falávamos.

Vinte anos depois temos um ensino superior público destinado a quem consegue pagá-lo. Quem tanto enche a boca com o discurso meritocrático, devia abri-la agora: o ensino superior público não é para os melhores mas para aqueles que conseguem pagá-lo.

A desigualdade está aí, servida com brutalidade.

Há vinte anos dizíamos que uma lei injusta não podia ser lei. Porque perdemos a batalha, porque a solidariedade nos foi recusada, o resultado é hoje este: 30 mil estudantes perderam a bolsa, 10 mil abandonaram o ensino superior e o futuro de milhares de estudantes e do país está em suspenso.»
Andreia Peniche (Arrastão)



Tal como a introdução de taxas moderadoras na saúde, que surgiram envoltas no argumento de que apenas pretendiam combater as falsas urgências e os abusos na activação de serviços hospitalares, também a introdução de propinas foi inicialmente apresentada como tendo apenas em vista reforçar o financiamento da acção social e da promoção da qualidade no ensino superior.

Contudo, é hoje cristalino que estas mudanças foram apenas o primeiro passo, mas decisivo, para levar a cabo um plano de progressiva desdemocratização, contracção e mercadorização dos serviços públicos de educação e saúde.

Tantas vezes apostada na defesa intransigente de posicionamentos irrepreensíveis no plano dos princípios e na formulação das propostas ideais, talvez a esquerda devesse prestar mais atenção à eficácia dos métodos de transformação gradualista em política. Ao contrário de um conhecido ditado, permitir que uma aparente «derrota em derrota» pudesse mais eficazmente conduzir «à vitória final».


NUNO SERRA
Ladrões de Bicicletas
23 de Maio 2012




30 de julho de 2012

PADRES ALEMÃES PEDEM REFORMAS

Clero de Rottenburg
defende o diálogo e a reforma


«Uma Igreja que nasça da vida»



Eis o manifesto do grupo católico Aktionsgemeinschaft-Rottenburg, da Alemanha, publicado em seu sítio, em maio de 2012:


Somos um grupo de padres e diáconos da diocese de Rottenburg-Stuttgart, na Alemanha:

1.   que se sente comprometido com as solicitações do Concílio Vaticano II, do Sínodo de Würzburg e do Sínodo Diocesano de Rottenburg;
2.   que toma posição por uma acção decisiva de verdade e de liberdade na Igreja;
3.   que quer acompanhar de forma construtiva e crítica a vida eclesial na diocese e nas comunidades e colocar em marcha as necessárias reformas.


Retomamos aqui breve e concisamente algumas importantes demandas, que nos afligem enquanto responsáveis da pastoral e que ainda estão à espera de respostas convincentes desde o Concílio Vaticano II, o Sínodo de Würzburg e o Sínodo Diocesano. Sobre esses temas, os membros da AGR (Aktionsgemeinschaft Rottenburg – acção comunitária de Rottenburg) discutiram e concordaram diversas vezes. A AGR foi fundada no dia 5 março de 1969, em Esslingen-Pliensau, por 170 padres.

Hoje, a AGR tem 154 membros. Membros do Conselho Diretivo: Hermann Barth, Dunningen Karl Böck, Suttgart Stefan Cammerer, Ulm Klaus Kempter, Öhringen (porta-voz) Andreas Krause, Murrhardt Paul Magino, Wendingen Dr. Wolfgang Raible, Stuttgart Martin Sayer, Reute Frank Schöpe, Oppenweiler Ulrich Slobowsky, Bad Mergentheim Stefan Spitz nagel, Ludwigsburg

Escritório: Klaus Kempter Am Cappelrain 2 74613 Öhringen, Internet: www.aktionsgemeinschaft-rottenburg.de

 Nós queremos uma Igreja:

1.   que anuncie o Evangelho de um Deus próximo do ser humano, que queira a salvação de todas as pessoas e que, portanto, seja a favor da liberdade e da justiça, da misericórdia e do amor ao próximo;

2.   que se conceba como povo de Deus a caminho e, por isso, esteja disposta a acolher a vida das pessoas de hoje e a se adaptar aos desenvolvimentos e às transformações sociais;

3.   que, por amor à credibilidade do seu anúncio, renuncie a estruturas autoritárias e torne possível em todos os níveis e para todas as decisões uma participação e co-responsabilidade mais intensas dos seus membros. Por isso, nos comprometemos:

4.   a que os divorciados em segunda união não sejam excluídos dos sacramentos. Esperamos que a Igreja encontre regras que sejam adaptadas à difícil situação de vida dessas pessoas, como era a prática de Jesus, que se sentou à mesa justamente com os pecadores, os fracassados, os proscritos. Não podemos assumir a responsabilidade do fato de que pessoas cujo casamento se rompeu tenham também que suportar a rejeição da sua Igreja. Justamente elas precisam de uma ajuda especial para o seu caminho de fé.

5.   a que os cristãos não católicos, que conscientemente celebram a Eucaristia connosco na fé, sejam convidados para participar da nossa mesa eucarística. Esperamos que a Igreja leve a sério as concordâncias na fé descritas em muitos documentos e o ecumenismo crescido na comunidade. Oferecemos a todos aqueles que trazem no coração a unidade dos cristãos a hospitalidade eucarística. E não vetamos os cristãos católicos a aceitar o convite à ceia do Senhor dos evangélicos.

6.   a que sejam provadas e desenvolvidas múltiplas formas de comunidade. Esperamos que a Igreja pare de fazer com que as estruturas pastorais dependam apenas do número dos padres e pare de formar unidades pastorais cada vez maiores. E esperamos que se comece a se interrogar sobre os lugares de vida e sobre as necessidades das pessoas e que, para isso, prepare e dê cargos para os serviços pastorais adequados. Hoje precisamos de uma multiplicidade de formas de comunidade, de uma pastoral da "vizinhança aos lugares de vida" e de uma pastoral da "rede orientada ao ambiente". Enquanto portadoras e sujeitos da pastoral, as nossas comunidades precisam de uma estreita ligação entre anúncio e serviço, entre sacramento e actuação na vida.

7.   a que as estruturas diretivas da Igreja sejam fundamentalmente repensadas e reformadas. Esperamos que a Igreja esteja pronta a dar uma nova forma às suas estruturas hierárquicas e a possibilitar novas vias de acesso a tais estruturas: o acesso às estruturas hierárquicas na Igreja, como serviço ao povo de Deus, deve estar aberto a casados e a não casados, a mulheres e a homens, a quem desempenha na Igreja a sua profissão principal e a quem trabalha voluntariamente.


IHU – INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS
19:VI:2012

[A tradução é de Moisés Sbardelotto]