teologia para leigos

28 de março de 2021

Las cosas deben cambiar - Bernhard Häring





NADA PODERÁ FICAR COMO ESTÁ

Uma confissão corajosa



«Não conheço este homem» (Mateus 26,72.74)

O conhecimento amoroso de Jesus como pressuposto do conhecimento do Pai é a essência e a síntese da «vida eterna» (João 17,3), da salvação. Ele é também a afirmação central da salvação e do anúncio salvífico. O vocábulo hebraico para ‘conhecer’ (yadá) indica um conhecimento amoroso revitalizante, o qual também abarca o conhecimento mútuo dos esposos durante o acto do amor transmissor de vida. Era este tipo de conhecimento de Jesus que faltava a Pedro, segundo o relato de Mateus. A sua obstinada negação e a sua resistência a abrir-se a este tipo de «conhecimento» de um Messias humilde e sofrido fê-lo carregar com a admoestação: «Satanás!» (Mateus 16,23). É precisamente isso que está no centro da «conversão»: o regresso ao conhecimento de Jesus como Filho do Homem.

Por conseguinte, não temos de ficar surpreendidos por, no relato das negações, Mateus ter posto o dedo na ferida! Pedro, relutante, insiste duas vezes: «Não conheço esse homem» (Mateus 26,72). «Pedro começou, então, a dizer imprecações e a jurar: “Não conheço esse homem!”» (Mt 26,74).

“Tomando a palavra, Simão Pedro respondeu: «Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo. Jesus disse-lhe em resposta: «És feliz, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que to revelou, mas o meu Pai que está no Céu».” (Mateus 16,16-17) Segundo Mateus 16, e outras passagens, é patente que a proclamação salvífica de que «Jesus é o Messias, o Cristo» pressupõe o «conhecimento do filho do homem», ficando assim claro que este tipo de «conhecimento» está na essência e no cerne da «conversão» de Pedro. Não basta um «conhecimento» meramente teórico de fórmulas de fé. Tem de ser um conhecimento que transforma toda a existência da pessoa e garanta a entrada numa vida autêntica, ou seja, na «vida eterna». Poderá então enjeitar-se a conclusão de que a credibilidade do ministério de Pedro depende de uma conversão existencial a este tipo de conhecimento, o qual deverá encharcar e marcar profundamente toda a vida do titular de dito ministério e de todos os seus colaboradores?

Frequentemente, o desejo de postos honoríficos, incluindo o «trono pontifício», foi, ao longo da história da Igreja, um obstáculo a dificultar a expressão da pureza dos sentimentos e do testemunho da fé, quando não até motivo para o efeito totalmente inverso. A sacralização de comportamentos atentatórios e o exercício autoritário do poder são coisas diametralmente opostas à mensagem salvífica e à missão de curar. Quando o sucessor de Pedro e os seus colaboradores mais próximos se entrincheiram em doutrinas que não foram reveladas nem pertencem seguramente ao núcleo da fé no filho do homem glorificado pelo Pai, então, eles põem em perigo a saúde e a salvação; e isso tanto mais quanto o seu «estilo de dominação» se afasta do carácter de serviço da sua vocação. Entretanto, tudo aquilo que foi dito a Pedro é igualmente dirigido a todos nós: ou entramos totalmente na solidariedade da salvação ou então ver-nos-emos capturados pelas armadilhas da perdição do egoísmo.

A doutrina da fé na redenção e da solidariedade na salvação concentra-se sobretudo na ideia que Jesus tem de si mesmo como «servo de Yahvé» e «filho do homem». Donde se conclui, portanto, que é particularmente nociva negar-nos a conhecer ou insistir em ignorar tal dimensão. É assim que se bloqueia «o caminho da paz» e se priva o mundo do testemunho salvífico através do Messias. Toda a cristandade se deve interrogar uma e outra vez e sempre sobre o que significa o “conhecimento” (no sentido bíblico) do filho do homem.

Caso insistamos em martelar incansavelmente em mandamentos e preceitos secundários e inclusivamente indemonstráveis passando ao largo da fé nuclear e do testemunho vivente da mesma fé, deslegitimaremos a fé e a alegria da fé dos nossos irmãos e irmãs. Esta afirmação é aplicável a todos nós, mas de um modo sobretudo urgente ao titular do ministério de Pedro e à totalidade dos seus colaboradores. Que fantástico futuro se abriria de par em par para toda a Igreja, para a cristandade inteira, se o bispo de Roma e todos os bispos e teólogos humildemente aprendessem a partir do testemunho existencial dos homens e das mulheres que encarnam esta fé nuclear! Para a Igreja católica, o ministério de Pedro é uma questão de vital importância. Acontece que a Igreja também precisa do ministério e do testemunho de João, que não menosprezou Pedro, apesar do seu grave fracasso, nem lhe virou as costas. Na senda das palavras de Maria de Magdala, ambos empreenderam juntos uma caminhada veloz em direcção ao sepulcro vazio. João foi mais rápido do que Pedro. A fé pascal acendeu-se, primeiramente, no discípulo que permanecera junto à Cruz. João foi não apenas acicate, mas o apoio de Pedro, no seu caminho da «conversão».



AS TRÊS TENTAÇÕES E OS TRÊS ÂMBITOS DA CONVERSÃO


Gostaria, pela mão do Midrash da tentação e da oração de Jesus diante das tentações diabólicas que falseiam a religião, expor algumas ideias que eventualmente pudessem ser proveitosas para a Igreja, para todos nós, incluindo o Vaticano. Ainda que, a princípio, isso possa ser doloroso, temos de arrancar a crosta à ferida a fim de a tratar e curar.


A religião rentável

O «Opus Dei» (a Obra de Deus) e com muito mais evidência a «Engelwerk» (a Obra dos anjos), são exemplos de marginalização do caracter religioso, sobretudo no que diz respeito à primeira das tentações da religião. Ambas instituições cultivam uma religião muito rentável. A Obra dos anjos, com a sua consagração e iniciações secretas aos arcanos misteriosos dum presumível “fim dos tempos”, conseguiu haver-se com dilatados donativos e fabulosas heranças.

Quanto ao Opus Dei, a apreciação deverá ser mais matizada. Nele agem forças e anseios verdadeiramente religiosos, ainda que dentro dele se perfile a tendência para se estabelecerem alianças com os ricos e os poderosos, sob o argumento de ser uma obra despensadora e esmoler dos pobres. Mesmo assim, ninguém alerta para que deste modo se alimenta um dos maiores perigos a que sempre esteve e ainda está exposta a Igreja: ao aliar-se aos ricos, incute-se nos pobres a falsa consciência de que as desigualdades entre ricos e pobres é algo querido por Deus, devendo, portanto, ser lícito aceitar resignadamente a «ordem» das coisas (na verdade, uma catastrófica desordem), enquanto gotejar a esmola… Este modo de ver induz os bispos a continuar a dormir em palácios e a fazer pronunciamentos a favor do restabelecimento da «antiga boa ordem» na Igreja e a dar mais atenção à rigorosa obediência do que à autêntica ética da responsabilidade dos cristãos adultos.

Hoje é particularmente urgente revelar e denunciar todas as formas de «religião rentável» e desmascarar a cegueira e as seduções satânicas, que lhe subjazem, lançando mão de uma dinâmica salvadora, seguindo assim o exemplo de Cristo. Isto é muitíssimo mais importante do que procurar responder à pergunta de se … não será que por trás de todas essas cegueiras não estará o Diabo?! Enquanto remetemos as causas dessa realidade para demónios e bruxas pessoais e concretas, assim se vai mantendo e inclusivamente consolidando a funesta teia envolvente. Dito isto, não quero de modo algum dar por encerrada e respondida a questão de se e até que ponto esta funesta teia terá, neste nosso pequeno planeta, uma dimensão transcendente.

De modo algum gostaria de ser mal interpretado, por exemplo, querer converter o Opus Dei numa espécie de bode expiatório. A sua característica de gostar de se relacionar com a riqueza e com o poder não é um exclusivo seu: é uma herança a que, de um certo ponto de vista, todos estamos submetidos. Se o Opus Dei for capaz de se dar conta disso, assinalar os respectivos perigos e com os olhos postos no Evangelho superá-los, contrairá grandes méritos no âmbito de uma autêntica renovação da Igreja. Entretanto, essa propensão para claudicar deveria proporcionar a todos nós uma séria oportunidade para um exame de consciência.

Dentro do conceito de «religião rentável» está também a realidade das «mãos mortas», ou seja, do constante aumento e multiplicação dos bens da Igreja. Este fenómeno chegou quase ao seu fim (o arcebispo Paul Casimir Marcinkus disse: «Não se pode dirigir a Igreja apenas com Avé-Marias») aquando da secularização sob Napoleão e com a dissolução dos Estados Pontifícios. Seja como for, ainda se mantém de pé, ainda que numa proporção bem mais pequena, a dita tentação.

Pertence igualmente, e continuam a pertencer a esta problemática da «religião rentável» as diversas conjugações de ‘recompensa e castigo’, ‘sistema de promoções e de sanções’, etc. Com a sua psicologia do comportamento, F. B. Skinner demonstrou, servindo-se de argumentos convincentes, que, tal como entre os animais, também os humanos podem ser manipulados à custa de uma combinação adequada de “pau e cenoura”. No entanto, este autor não teve em conta ‒ e isso para mim é importantíssimo ‒ que as pessoas que estejam profundamente motivadas pela experiência da gratuidade de Deus, diante de Deus e diante dos homens, nunca morderão esse isco! Sempre que os círculos eclesiásticos, incluindo o próprio Vaticano, consentiram em ser apanhados por este sistema, isso é a prova de que nunca foram tocados pela experiência radical da fé e pela vivência da gratuidade; se acaso o foram, não o foram em grau suficiente.


Conduta ostensiva sacralizada

O Midrash da tentação revela até que ponto é funesta e até satânica a sacralização do antiquíssimo mecanismo contagiante desencadeado pela “conduta ostensiva”. René Girard, e outros investigadores do tema da Paz, vêem com inteira razão no comportamento ostensivo [1]‒ sobretudo nas culturas patriarcais ‒ sempre que se associa a “comportamentos imitativos”, uma das raízes principais da violência, mas também ‒ por último, mas não menos importante ‒ a origem da «violência religiosa»[2]. O comportamento ostensivo como método de autoimposição e como meio para se situar acima dos demais acaba por ser mais perigoso para a autenticidade da religião do que a vaidade feminina. Existe também a vaidade masculina, por exemplo entre os teólogos, mas essa é relativamente inofensiva e não acarreta perigos para a religião, a não ser quando consegue chegar ao extremo de pretender dominar ou menosprezar os outros. Uma certa e moderada dose de vaidade até poderá funcionar como válvula de escape, na medida em que isso faz com que não consiga atingir aquelas formas perigosas de comportamento ostensivo, sobretudo quando a pessoa é capaz de se rir com toda a franqueza da sua própria vaidade.

A história da religião, e de maneira especial a história da Igreja, denuncia a presença de formas sumamente nocivas de consentimento e de sacralização de comportamentos ostentatórios próprios de sistemas mundanos, que tendem sempre para a autoexaltação e acentuação da autoridade. Na verdade, praticamente todos os sistemas de dominação baseados no poder procuram sacralizar os seus próprios comportamentos ostensivos e impositivos. São exemplos clássicos, quanto a este propósito, o culto ao imperador divinizado no Oriente, no Egipto, em Roma, etc.

Já desde os dias da «aliança entre o trono e o altar» sob Constantino até à «Santa Aliança» entre o Papa, o Czar e o Kaiser, têm vindo a actuar os mecanismos de mútuo reforço dos comportamentos impositivos e respectiva sacralização. Santos como Francisco de Assis e Filipe de Néri aperceberam-se deste jogo e foram certeiros a ridiculariza-lo, mercê de um sentido de humor cristão e, assim, ajudaram muitos a precaver-se diante de tal tendência.




Quando em 1968 dirigi Exercícios Espirituais aos cavaleiros da Ordem de Malta, em Roma, o Mestre de cerimónias avisou-me que sempre que eu fizesse a genuflexão diante do altar deveria, de seguida, fazer uma profunda vénia ante o Grande Mestre e que, antes de começar uma homilia ou conferência, deveria dirigir-me a ele com a saudação de “Alteza eminentíssima”. Acontece que aqueles homens da alta aristocracia, que se batiam pela sua caridade generosa, gozavam com aquele rito e estavam perfeitamente dispostos a renunciar a ele. Uma das formas mais ridículas de “mimese e sacralização” do comportamento ostensivo é o uso da púrpura nas vestes dos Cardeais e a denominação de «purpurados» e de Eminência Reverendíssima outorgada aos seus titulares. O ponto culminante foi a introdução da “cauda” da capa magna na roupa cardinalícia. Até Pio XII, um dos direitos fundamentais do cardinalato era o de poder usar uma cauda de 12 metros. Eu fui testemunha, em Roma, de como, em variadas ocasiões, os cardeais mantinham entre si esses 12 metros de respeitosa distância e como eles desfilavam na Basílica Vaticana, seguidos dos seus caudatários.

Quando Pio XII diminuiu o comprimento da cauda cardinalícia para os 9 metros, produziu-se entre alguns deles um grande alvoroço. Aquando do funeral deste Pontífice, o cardeal Canali, chefe do grupo conservador à época, mais outros dois colegas, apresentaram-se ostensivamente em público, deslumbrantes, com a antiga ‘cappa magna’ luzidia de 12 metros.

O Papa João XXIII não deixou passar a mensagem subliminar deste curioso espectáculo. Nos primeiros dias da sua eleição como Sumo Pontífice, o «Osservatore Romano» ainda se mantinha fiel ao estilo do costume: «Pudemos ouvir dos augustos lábios de Sua Santidade…». O Papa tratou de chamar o redactor e comunicou-lhe: «Deixe-se de patetices e escreva: “O Papa disse”.» Antes do início da Quaresma de 1963, no primeiro ano do seu pontificado, Paulo VI enviou o seu mordomo a dizer-me que desejava que eu dirigisse os exercícios espirituais à Cúria. Perguntei ao mordomo com que títulos eu me deveria dirigir ao Papa e recebi como resposta uma desconcertante litania. Pedi-lhe então por favor: «Será que me podem pô-los por escrito? É que não sei se serei capaz de o fixar de memória…» O prelado apressou-se a comunicar ao Papa a minha pergunta e fez-me, então, chegar a resposta: «Proíbo-o de perder um tempo tão precioso com títulos inúteis. Caso concorde, pode saudar-nos a todos, a abrir a prática, com um “reverendos padres”.»

O meu cargo de secretário da redacção da Comissão para o ‘esquema’ «A Igreja no mundo actual» permitiu-me manter uma activa correspondência epistolar com os bispos que a integravam. Cedo descobri um sem número de bispos de espírito aberto, e também alguns muito conservadores, que recusavam o título de «excelência» e coisas parecidas. No fim do Concílio, vários bispos e cardeais mantinham frequentemente, em conjunto com alguns teólogos, uma reunião no Colégio belga, à qual também fomos convidados Yves Congar e eu. O assunto era um suposto «Esquema 14» acerca do retorno dos bispos e dos cardeais à simplicidade e à pobreza apostólica, bem como a supressão de todos os títulos não evangélicos. Várias centenas de prelados manifestaram a sua expressa aprovação à iniciativa. Estou convencido que ao regressarem às suas dioceses continuaram a alimentar as velhas fórmulas cerimoniosas. Provavelmente, a crise dos tempos pós-conciliares teria tido um cariz muito distinto e tivesse avançado por vias muito mais salvíficas se o Concílio tivesse tido a coragem de pôr um ponto final claro e definitivo a todo esse tipo de comportamento ostentatórios.

Advirto também para uma conexão entre a actual onda restauracionista e o regresso às velhas tradições ostentatórias. Caso não esteja errada esta suposição, então ficaria clara a existência de uma inter-relação psicológica entre as actuais tentativas de uma maior concentração do poder no Vaticano, um sistema mais generalizado de controlo e a imposição à força do conformismo em tudo aquilo que diz respeito a declarações vaticanas. Os líderes do movimento restauracionista tratam-se mútua e complacentemente com os ressonantes títulos de «Eminentíssimo e reverendíssimo senhor Cardeal», «Excelentíssimo e reverendíssimo senhor Bispo». Fica assim bem destacada a superior importância dos purpurados. Eu ouvi dos lábios de um dos mais acérrimos defensores da restauração e instigador da nomeação de bispos pertencentes à “linha dura” amargas lamentações porque tinha descido na escala muitos pontos a importância dos cardeais comparativamente aos bons velhos tempos em que cada cardeal dispunha do seu próprio palácio e de uma farta serventia de auxiliares. Fiquei surpreso que o Papa se tenha deixado levar por esse comportamento ostentatório sacralizador, sobretudo aquando da (posterior) confirmação do decreto que exige de todos aqueles que ocupam lugares de docência na Igreja uma confissão de fé e um juramento de fidelidade às doutrinas pontifícias (sem as definir em concreto). Os «Acta Apostolicæ Sedis» faziam notar que a aprovação pontifícia deste Decreto fora outorgada “ex audientia Sanctissimi”: aquando de uma audiência com o Santíssimo (AAS [1989], 1405). O documento, na verdade, é algo menos solene e, em vez do Santíssimo, contenta-se com um Beatíssimo, qualificações referidas ao Papa.

Impõe-se que Jesus leve a cabo uma nova purificação do Templo a fim de que se restabeleçam de novo na Igreja a salvação e as relações salvíficas para que se possa dar testemunho do Evangelho e da sua simplicidade. Desmascarar estas interconexões é um dever absoluto de todos quantos não queiram ser culpados das farsas e dos autoenganos «satânicos». A cobardia faz com que muitos se mantenham eternamente aprisionados nesta manobra do poder: a ostentação.

Para mútuo consolo, recordo a mim mesmo e aos meus leitores que a grande maioria dos nossos bispos já perceberam a marosca e amam a simplicidade evangélica. Contudo, são necessárias ainda algumas procissões rogativas e o ressoar de muitas trombetas de denúncia profética para que se desmoronem, como um castelo de cartas, os muros de Jericó e se abra na Igreja espaço livre para sãs relações, as quais nos permitam anunciar ao mundo de forma convincente o Messias manso e inimigo da ostentação.


As estruturas da tentação do poder religioso

Uma sentença proclama: «O poder corrompe. O poder absoluto corrompe absolutamente» (Lord Acton). É esse o sentido que se dá à expressão latina “Corruptio optimi pessima” (A corrupção do melhor é a pior). A natureza das tentações e a sua interpretação pela Bíblia e pelo próprio Cristo abrange a dimensão satânica, a abismal rede da solidariedade na perdição, a falsidade e o logro como uma terrível ameaça à verdadeira religião. Aquela realidade chamada «mundo», no sentido que o Evangelho de João lhe dá, à qual nunca nos podemos acomodar, culmina no abuso do poder em nome de Deus. Donde, a fé e o seguimento incondicional do Servo de Yahvé, humilde, pacífico e pronto ao sofrimento sejam parte do desmascaramento joanico das tentações satânicas. A esta fé e a este seguimento é que deve converter-se Pedro e, com não menos radicalidade, todos quantos participam de algum tipo de exercício de autoridade na Igreja. Temos de olhar olhos nos olhos a tentação e reflectir com rigor uma e outra vez e interrogar-nos: como enfrentar essa tentação?

Paralelamente ao comportamento ostensivo sacralizado, caminha o perigo da implantação de estruturas de poder não evangélicas e o respectivo exercício da autoridade. Quando em 1870, Garibaldi, (1807-1882), líder dos movimentos de libertação italianos e da unidade nacional, arrancou ao papado os caducos Estados Pontifícios, os papas manifestaram sinais de ira durante quase sessenta anos: trancaram-se dentro dos muros do Vaticano e repreendiam todos aqueles que procurassem adverti-los que era possível renunciar ao poder terreno e continuar a seguir em frente. O conluio entre o ministério de Pedro na Igreja e o poder político ‒ de facto, expresso nos constantes Pactos com sistemas políticos europeus doentios e por fim acabando por estabelecer a «Santa Aliança» com o Kaiser e o Czar ‒ tinha de acarretar forçosamente repercussões funestas à autoridade e ao poder dos Papas e da Igreja no seu conjunto. Já na Alta Idade Média se havia registado essa mescla confusa quando o ministério petrino se converteu no pomo de discórdia entre a aristocracia romana e italiana. Contudo, só durante o «cativeiro de Avinhão» (1309-1377) é que se iniciou o caminho rumo a um centralismo universal de carácter absolutista. Confluíram para isso então ‒ com efeitos devastadores ‒ dois elementos: em primeiro lugar, a corte pontifícia de Avinhão precisava de novas fontes de recursos económicos, já que se tinha secado a mina dos impostos vindos dos Estados Pontifícios. E, por outro lado, o Estado francês, organizado de modo fortemente centralizado, sugeria um novo modelo de domínio papal. Foi, sob esta dupla influência, que se passaram a produzir as nomeações de bispos feitas pelos Papas praticamente sem a intervenção das Igrejas orientais, nomeações acompanhadas sempre de um “tributo”. A concessão de títulos eclesiásticos honoríficos converteu-se, também, em importante fonte financeira.





É legítimo justificarem-se as nomeações pontifícias de bispos por parte dos Papas na medida em que, assim, elas arrancavam essas nomeações das mãos dos interesses do poder político de imperadores, reis e príncipes. No entanto, que ainda hoje continue a ser o Vaticano quem, na prática, seja a única autoridade competente para a escolha dos cerca de cinco mil bispos repartidos por toda a terra e que, recentemente e pela primeira vez na história, se reserve ao Vaticano a aprovação de todos os professores de teologia das universidades e faculdades eclesiásticas, isso significa uma enorme concentração de poder. A frase «o Papa decide» induz em erro. Como é que é possível um único homem reger com justiça a diocese de Roma e chamar a si ao mesmo tempo e eficazmente as tarefas de Metropolita da circunscrição romana, as funções de Primado de Itália e Patriarca do Ocidente, de África, etc. etc. para além das funções de Cabeça da Igreja Universal? Como é possível um Papa controlar, de forma minimamente aproximada, as cinco mil nomeações de bispos e as ainda mais numerosas ‘confirmações’ de Professores de Teologia? Estamos perante uma inversão do princípio da subsidiariedade tão expressamente proclamado pela Igreja. Desta instância de nomeação e controlo faz parte um imenso aparelho burocrático, informadores oficiais e extraoficiais e dossiês com quilómetros de comprimento. Mais: isto não tem nada que ver com o princípio, reactualizado no Concílio Vaticano II, da «Colegialidade». Nascem, assim, nocivas estruturas de poder com a consequente diminuição da confiança mútua. Volta a fazer sentido puxar para o centro desta realidade a pergunta: podem, Pedro e os seus colaboradores, anunciar a mensagem nuclear do Servo de Yahvé humilde, manso e sofrido, glorificado pelo Pai? Obviamente que existem por muitos lugares do mundo testemunhas da fé que gozam de grande credibilidade, mas a questão que está aqui sobre a mesa é: o ministério de Pedro confirma ou, pelo contrário, obscurece essa credibilidade? Aquilo que unicamente importa é: uma “aliança de amor” … com a qual não encaixa mesmo nada bem um «aparelho» de controlo pletoricamente centralizado! «Mas tu, uma vez convertido, confirma os teus irmãos!» (Anúncio das negações de Pedro (Mt 26,30-35; Mc 14,26-31; Jo 13,36-38) - E o Senhor disse: «Simão, Simão, olha que Satanás pediu para vos joeirar como trigo. Mas Eu roguei por ti, para que a tua fé não desapareça. E tu, uma vez convertido, fortalece os teus irmãos.» Ele respondeu-lhe: «Senhor, estou pronto a ir contigo até para a prisão e para a morte.» Jesus disse-lhe: «Eu te digo, Pedro: o galo não cantará hoje sem que, por três vezes, tenhas negado conhecer-me.» - Lucas 22, 31ss)

Afastemo-nos agora de algum tipo de pessimismo que eventualmente a descrição desta situação poderá ter causado e citemos um parágrafo de uma carta de um de entre os meus mais antigos doutorados, e que recentemente me chegou às mãos. O zeloso missionário escreve, cheio de confiança: «Aqui [na Indonésia] o cristianismo não tem a mais pequena mancha de bolor bafiento ou de religião retrógrada. Roma e o Vaticano estão demasiado longe e os dirigentes religiosos são homens e mulheres que dão o peito às balas, que se solidarizam com as preocupações e os temores, mas também com as esperanças e aspirações das suas comunidades e ninguém consegue ver neles a face do funcionário nomeado para vigiar autoritariamente a moral e as leis eclesiásticas. Aqui ninguém conhece a expressão «Igreja oficial» e penso até que nunca iremos ter necessidade de a traduzir para a nossa língua mãe.»


O caso da China

A Igreja perseguida da China há muito que teria tido a oportunidade de superar as suas enormes dificuldades se, diante daquele imenso povo e daquela excepcional cultura (um dos maiores espaços culturais planetários), Roma tivesse decididamente renunciado à nomeação dos bispos, ou seja, se pelo menos na China se tivesse regressado à ordenação eclesiástica inicial da Igreja dos começos. Para poder sobreviver, as igrejas locais teriam de assumir a responsabilidade de escolher os seus próprios pastores.

Porque será que Roma não consentiu? A nosso ver, porque não quis abrir nenhum precedente. De facto, se a Igreja abrisse a oportunidade de reactualizar, na China, o antigo ordenamento eclesial, como o poderia negar em África, na América Latina e nas restantes igrejas orientais? No novo Código de Direito Canónico, introduziu-se, pensando especialmente nas igrejas uniatas ‒ de pequena dimensão ‒, um modelo que está muito próximo do princípio da subsidiariedade. Porquê não o aplicar igualmente na China e, posteriormente, de forma definitiva, à Igreja universal? Não sairia afectada, bem pelo contrário, a “unidade na caridade” a que Roma deve presidir. A situação da Igreja na China é um kairos (um tempo desafiador) que merece profunda reflexão e coragem diante da oportunidade.


O caso da Checoslováquia

Em situações de necessidade extrema ‒ épocas de perseguição ‒ a Igreja recorreu, neste país, à ordenação sacerdotal (e episcopal?) de homens casados. Portanto, isto quer dizer que Roma estava de acordo com esta prática, ou não?! Hoje em dia, após a libertação [da submissão à URSS], existem regiões que sofrem de acentuada penúria de sacerdotes. E, no entanto, aquilo que parece pretender-se fazer neste momento é reduzir ao estado de diáconos todos aqueles homens casados feitos sacerdotes por extrema necessidade, passando uma esponja sobre tanto padecimento que, por causa da sua fé, esses sacerdotes sofreram. Estamos, mais uma vez, diante da atitude que visa não abrir precedentes. Também aqui estamos diante de um tempo-kairos. Até ao fim do século XIX, a Igreja da América Latina e a das Filipinas dependiam, exclusiva ou quase exclusivamente, de sacerdotes importados. Não se confiava na capacidade dos nativos em viver o celibato e nem sequer capacidade formativa sacerdotal de acordo com as concepções romanas. Com esta atitude, bloqueou-se, em primeiro lugar, a inculturação e, em segundo lugar, privavam-se aqueles povos do direito fundamental das comunidades cristãs a participar regularmente na celebração eucarística. O caso da Checoslováquia estava destinado a dar brado na Igreja universal. O que aqui estava, com efeito, em jogo era um direito cristão básico, a saber, o direito a celebrações eucarísticas autênticas e criadoras de comunidade. O “celibato pelo reino dos céus” é enorme e belo (Mateus 19,12). Mas, se por causa da lei do celibato se sacrifica a fidelidade ao solene testamento e mandato de Jesus bem como o direito radical à celebração eucarística, então estamos a pôr em perigo a ortodoxia e a confirmação, por intermédio de Pedro, da fé fundamental.

Coloca-se, além disso, em questão outro dos artigos do Credo: «Creio no Espírito Santo». Adianta-se frequentemente o argumento de que se se renunciasse ao imperativo legal de que só pode receber a ordenação sacerdotal aqueles que se obriguem a permanecer celibatários, seriam muito poucos os que escolheriam ser celibatários. No entanto, na minha opinião, o celibato livremente escolhido é um dom do Espírito, pelo que não se pode condicionar todo o potencial da acção do Espírito exclusivamente aos limitados canais da lei. Creio bem que, caso introduzíssemos uma radical mudança e fosse permitido o acesso ao sacerdócio a homens casados experimentados, postos à prova pela vida, teríamos um número maior de sacerdotes, com a vantagem de serem pessoas mais próximas da realidade concreta da vida, gente piedosa experimentada capaz de um testemunho em favor do reino dos céus mais credível do que o dos celibatários que o vivem de acordo com as circunstâncias. Neste caso, creio que aqueles que escolhessem não casar e ser mesmo celibatários por convicção tornariam essa escolha mais atraente. Entretanto, o que temos é a ortodoxia e quanto a isso o que há a dizer é que não é lícito sacrificar um mandato e um testamento divino a uma tradição legal meramente humana. Por fim, há que sublinhar que também neste caso o princípio da subsidiariedade deve adquirir plena vigência: todas as partes da Igreja universal devem ter “direito de codeterminação” ou, mais concretamente, de decisão dentro do seu próprio âmbito.

Das minhas actividades por África e dos meus contactos com os respectivos povos cheguei à seguinte conclusão: existem, nesse continente, tribos e culturas muitos jovens dispostos a aceitar o sacerdócio celibatário e bem capazes de o viver em plena fidelidade. Porém, também existem numerosas tribos em cuja cultura não haverá aceitação do celibato, pelo menos durante algumas gerações. Deverão, estas populações que também alcançaram altos valores culturais, depender de sacerdotes importados de outras tribos?

A Igreja católica necessita de uma drástica limitação do exercício centralizado do poder. Deve admitir de bom grado e com coragem complacente a existência de um certo pluralismo e respeitar o princípio da subsidiariedade e isto para o seu próprio bem e em benefício da missão que lhe foi confiada: promover saúde e salvação. Isto, que é tão urgente no âmbito interno, é imensamente benéfico e determinante para a causa do ecumenismo.


Restabelecer as relações de mútua confiança estruturalmente perturbadas

O Concílio foi, para muitos de nós, uma festa, uma experiência cimeira de fé na capacidade de renovação da Igreja, de fé no poder do Espírito Santo. Há que o dizer: também nos esforçamos por compreender e tratar com afecto humano a velha guarda da Cúria romana, totalmente impregnada de uma visão de Igreja marcadamente centralista, repleta duma mentalidade de cidadela assediada: uma Igreja como baluarte de todos os tesouros da verdade que teria de defender, desse por onde desse. Aqueles círculos curiais tinham preparado 72 documentos destinados a consolidar, com muito poucos retoques, a velha concepção da Igreja e a rígida estrutura eclesial centralizada, conjuntamente com todo o seu andaime teológico.

Foi enorme (e humanamente compreensível) a sua comoção quando viram como, nas sessões públicas do Concílio, se criticava abertamente a até então tão encomiada encíclica Casti connubii de Pio XI. As reacções da velha guarda curial raiaram o patológico quando se abordou a fundo o debate sobre a colegialidade. Apesar da expressa vontade, por parte da “maioria conciliar, de querer estabelecer sinceros compromissos e conciliações” em questões secundárias e, inclusivamente, no ponto muito importante do “colégio episcopal”, muitos dos oficiais da velha Cúria sofreram um sério traumatismo, do qual responsabilizaram sobretudo os teólogos conciliares. Nunca chegaram a ter consciência que aquele Concílio era o modelo arquetípico de uma colaboração exemplar entre os pastores da Igreja e a teologia científica.

Mais tarde, por ocasião do primeiro Sínodo dos bispos celebrado após o Concílio em Roma, o cardeal Ottaviani (1890-1979) e a sua equipa ‒ prontos para porem em andamento ‘a obra da restauração’ ‒ lançaram duros ataques contra «os teólogos», como se eles tivessem sido os únicos culpados das tensões pós-conciliares. Por trás de tudo isto estava o anteriormente referido traumatismo, que procuro enquadrar para compreender.

O cardeal Suenens, apoiado pelo cardeal Döpfner e outros, fez uma proposta que não se limitava a ser apenas uma escapatória para sairmos do atoleiro, mas que verdadeiramente abria um caminho com futuro: a nomeação de uma “comissão teológica internacional” verdadeiramente representativa, cuja missão seria coadjuvar o Papa e a «Congregação da Doutrina da Fé» ‒ a herdeira da «Suprema», quero dizer, do Santo Ofício ‒ garantindo assim um diálogo fecundo e permanente entre o Magistério romano e a comunidade teológica da Igreja universal. No momento de se passar, então, à constituição desta comissão, nomeando os futuros teólogos, Paulo VI acabou de ceder à pressão da mencionada Comissão da Doutrina da Fé enchendo a respectiva lista de nomes de pessoal da sua confiança (propostos pelas Conferências Episcopais).

Perante um protesto público e face à renúncia de Karl Rahner em fazer parte de uma lista constituída com base em critérios manipulados, foram muitos os olhos que se arregalaram diante da situação que acabava de se cozinhar ali, e que não passava do seguinte: as autoridades romanas, na prática, negavam-se a um diálogo seriamente representativo da realidade teológica universal. Não se tratava apenas de terem sido excluídos da proposta todos os nomes dos teólogos que trabalharam no Concílio pela renovação da Igreja, mas de se ter incluído apenas nomes de teólogos retrógrados, os minoritários do Concílio. Cito um exemplo, em matéria de teologia moral: foram incluídos na comissão homens como Carlo Caffara e William May que defendiam, entre outras coisas, que a Casti connubii era um documento infalível (“Reafirma o magistério da Igreja que se opõe ao adultério e ao divórcio. Afirma que o ato conjugal deve sempre estar aberto à vida e não deve ser frustrado o poder de gerar a vida deliberadamente. Casti Connubii é muito notada pela sua posição fortemente oposta à contracepção através de controle de natalidade por meios artificiais. Este documento, bem como a «Humanae vitae», representam bem o ensino do Magistério da Igreja sobre a matéria.”).

O processo doutrinal incoado contra mim em 1975, juntamente contra muitos outros nos dias de senectude de Paulo VI, constituiu a expressão clássica do objectivo fundamental da Congregação da Doutrina da Fé e da ala restauradora, em geral. Visava esmagar qualquer dissentimento acerca de matérias obviamente não infalíveis: de futuro, ficaria completamente proibido dissentir, mesmo que humilde e moderadamente que fosse, perante manifestações não infalíveis do magistério romano.

Acontece que, durante os muitos anos em que trabalhei em Roma, prestei ajuda, quer no campo espiritual quer no âmbito terapêutico (sem que o procurasse intencionalmente) a alguns teólogos que tiveram a infelicidade de serem apanhados pelo rodado do camião da «Santíssima Congregação do Santo Ofício». Esta situação particular deu-me experiência nestas matérias e circunstâncias. O tal processo, durante o qual estava totalmente excluída a possibilidade de um diálogo prévio, andava sobretudo à volta da «Humanæ vitæ», dos caminhos que conduziam a uma paternidade responsável e dos inerentes problemas de ética médica. O quilométrico laudo acusatório, semeado de imputações a cargo de moralistas anónimos, baseava-se numa tradução italiana do meu livro «Heilender Dienst» (cf. "Ministério da cura. Problemas éticos da Medicina moderna" e "Medical Ethics» e «Manipulation» – ambos por Bernhard Häring; cf. também "Perspective chrétienne pour une médicine humaine", Fayard 1975). Todo aquele que leia ou tenha lido este meu escrito concordará comigo que as afirmações que ali faço não rebaixam em nada tudo o que até agora fora formulado (sobre as pertinentes matérias) por prestigiadas conferências episcopais bem como pelos sínodos alemães. No meu processo, o único elemento novo era a declarada intenção de matar à nascença ‒ acompanhada de punições ‒ qualquer dissensão perante as declarações doutrinais do magistério romano, por exemplo, as contidas na declaração do ex-Santo Ofício intitulada «Persona Humana ‒ sobre algumas questões de moral sexual».

Transcrevo este excerto da carta, por mim recebida, vinda da Congregação da Doutrina da Fé, de 18 de Maio de 1977:

«Esta Congregação insta-o a que exprima o seu assentimento à doutrina católica quanto aos pontos em questão sobre os quais o magistério se pronunciou com verdade, e que no futuro evite qualquer manifestação, por palavras ou por escrito, que permita deixar dúvidas sobre tal assentimento… Caso isso se verifique, tal permitiria que a Congregação solicitasse o encerramento do seu processo à instância superior. Portanto, esta Congregação está a pedir-lhe que lhe faça chegar uma promessa por escrito no sentido acima indicado.»

Antes de mais, atentemos na estreita margem de manobra que é concedida a um teólogo que trata de cruciantes problemas pastorais. É aceitável que se exija a um teólogo que sopese cada palavra dita a fim de que não seja interpretada como sub-reptício dissentimento das declarações doutrinais das autoridades romanas ou do Papa? Até que ponto isso é digno de fé e ajuda as pessoas com mentalidade crítica? Durante os decénios em que pude conviver com a juventude italiana soube, por experiência, do escárnio que encerra a expressão: «Este fala como um Monsignore.» Esta experiência significa que, o teólogo ou o cura, a quem se aplica a expressão, antes de falar, não pensa na mensagem e nos seus ouvintes, mas naqueles de quem depende a sua promoção. Porém, no que me diz respeito, não se trata de promoções, mas da paz do meu espírito e da possibilidade de uma proclamação digna de fé.

Como teólogo, preocupam-me as seguintes questões: Como enfrentar a vida moderna, o pluralismo de culturas e a multiplicidade de formas éticas e costumes? Como colaborar, diante da exigência do assentimento às formulações doutrinais romanas, na inculturação da mensagem cristã num contexto diversificado de culturas e perante as novas gerações? É ainda possível um diálogo ecuménico? E como? Porém, a questão que mais directa e imediatamente me acusa é a seguinte: como compaginar esta exigência da Congregação da Doutrina da Fé com a afirmação paulina: “Tudo o que não é feito a partir da convicção da fé pura é pecado.” (Romanos 14,23)? Em nenhum dos processos doutrinais a que tive acesso consta, para além da pressão para conseguir a retratação e o consenso, a pergunta se um teólogo agiu ou falou de boa fé ou de consciência honesta. Está ou não em jogo, nesta questão tão inflexivelmente exigida, a missão autenticamente salvadora e santificadora da Igreja? Mais: não apenas no processo incoado contra mim, mas noutros parecidos, bem como em muitas outras ocasiões, as autoridades romanas, uma ou outra vez, desacreditam a assistência do Espírito Santo, como se essa assistência fosse algo garantido automaticamente. Portanto, o que está em questão são questões fundamentais.

Tudo isto poderia ser atirado tranquilamente para trás das costas e até ser desculpável e abafado pelo manto do silêncio, não fora porque o mencionado processo, que nunca teve nada a ver com dogmas, pudesse lançar uma luz reveladora sobre a evolução futura e sobre a situação actual. Que fique bem claro: o Papa João Paulo II não tem nada a ver com isso, mas que fique aqui bem expresso quanto me custou o processo ou a minha recusa a comprometer-me sob juramento àquela conformidade. Apesar de três operações cirúrgicas a um cancro durante o processo, e de um grave enfarto do miocárdio, e apesar da minha alusão pública a este meu delicado estado de saúde, o processo prolongou-se por mais dois anos, na sequência da minha recusa em pactuar com a obrigatoriedade de assinar uma retratação que eliminasse a mais pequena sombra de dissentimento.

Aquilo que precisamente estava por trás de tudo isto era o Novo Código de Direito Canónico de 1983 que estipula, no seu Cânone 1371, 1[3], o castigo a aplicar, no caso do meu processo: qualquer dissentimento face a declarações não infalíveis do magistério romano considera-se ‒ expressamente e segundo o dito cânone ‒ delito sempre que o culpado se negue a uma retratação incondicional. Também no meu processo, esta lei penal não faz referência alguma à existência ou não de fé verdadeira ou de convicção de consciência. Com base neste modelo, pode ser desencadeado todo o tipo de processos. É curioso ‒ e digno de nota relevante! ‒ que na Comissão Internacional para a preparação do novo Código jamais se mencionara esta lei punitiva. Ela fora introduzida, na última hora, pelo Vaticano…

Apesar de nos últimos anos se ter registado uma apreciável sequência de “procedimentos doutrinários” e inúmeras exortações à obediência ao Papa, é patente que as sanções punitivas não conseguiram atingir os seus objectivos persecutórios, a saber, um conformismo total. Assim se explica o facto de, de forma fulminante e talvez como reacção contra a chamada «Declaração de Colónia», tenha aparecido, com data de 9 de Janeiro de 1989, um documento muitíssimo controverso que prescreve aos teólogos uma «confissão de fé» e o respectivo “juramento de fidelidade” aos ensinamentos papais não infalíveis. Deu nas vistas a circunstância dessa publicação não vir acompanhada da Nota, regra geral habitual, de que havia sido confirmada pelo Papa. Esta falha grave foi em parte sanada a 19 de Setembro daquele mesmo ano mediante a declaração de que tinha sido ratificada pelo Sanctissimus et Beatissimus. (Como já disse, oficialmente o Vaticano trata o Papa por «santíssimo e beatíssimo») A propósito do sentido e objectivo de tão extraordinária prescrição só podemos formular hipóteses. Pretender-se-ia, por ventura, acrescentar ao ‘castigo por dissentimento’ uma sanção especial por ‘quebra de juramento’? Suspeito que sim.

Deixando agora de lado o caracter insuperável de tamanha impositividade deste decreto, peguemos num ponto singularmente débil. Sob a denominação «confissão de fé» inclui-se quer a fé em todos os dogmas e o assentimento inquebrantável em todos os ensinamentos não revelados a que Roma tenha conferido carácter definitivo ‒ ainda que sem citar um único exemplo ‒ como, imaginemos, o obsequium religiosum do entendimento e da vontade de todas as decisões doutrinais de Roma. É assim que se confundem de forma inadmissível as fronteiras invioláveis entre «verdades reveladas e ensinadas como infalíveis» e respectivos graus ‒ ainda que não devidamente detalhadas ‒ das «decisões do magistério» romano. Estamos, pois, diante de uma perigosa e intolerável confusão de matérias totalmente diferentes entre si. Estamos perante o mais claro exemplo de um «insidioso infalibilismo» (veja-se A. Schmied , «Schleichende Infallibisierung. Zur Diskussion um das kirchliche Lehramt», in “In Christus zum Leben befreit”, J. Römelt e B. Hildber [dir.], Friburgo 1992, p. 250-274).

Cito, de seguida, um princípio de singular importância, fruto do Concílio Vaticano II, formulado no número 62 da constituição Gaudium et spes e dedicado às relações entre a Igreja e a cultura. Nele, recomenda-se encarecidamente ‒ a partir de uma visão da missão da Igreja como fermento de toda a vida cultural ‒ o diálogo interdisciplinar entre os teólogos e os mais destacados representantes das outras ciências. Estimula-se inclusivamente os leigos a estudar teologia. Chama expressamente a atenção ao seguinte: «… as recentes investigações e descobertas das ciências, da história e da filosofia, levantam novos problemas, que implicam consequências também para a vida e exigem dos teólogos novos estudos. (…) uma coisa é o depósito da fé ou as suas verdades, outra o modo como elas se enunciam, sempre, porém, com o mesmo sentido e significado. Na actividade pastoral, conheçam-se e apliquem-se suficientemente, não apenas os princípios teológicos, mas também os dados das ciências profanas, principalmente da psicologia e sociologia, para que assim os fiéis sejam conduzidos a uma vida de fé mais pura e adulta. (…) Vivam, pois, os fiéis em estreita união com os demais homens do seu tempo e procurem compreender perfeitamente o seu modo de pensar e sentir, qual se exprime pela cultura. Saibam conciliar os conhecimentos das novas ciências e doutrinas e últimas descobertas com os costumes e doutrina cristã, a fim de que a prática religiosa e a rectidão moral acompanhem neles o conhecimento científico e o progresso técnico e sejam capazes de apreciar e interpretar todas as coisas com autêntico sentido cristão. (…) A investigação teológica deve simultaneamente procurar um profundo conhecimento da verdade revelada e não descurar a ligação com o seu tempo (…). É mesmo de desejar que muitos leigos adquiram uma conveniente formação nas disciplinas sagradas e que muitos deles se consagrem expressamente a cultivar e aprofundar estes estudos. E para que possam desempenhar bem a sua tarefa, deve reconhecer-se aos fiéis, clérigos ou leigos, uma justa liberdade de investigação, de pensamento e de expressão da própria opinião, com humildade e fortaleza, nos domínios da sua competência.» Em nenhum dos documentos da Congregação da Doutrina da Fé, especialmente naqueles que combatem o dissentimento, se menciona alguma vez esta afirmação do Concílio, que é da máxima actualidade. Sendo assim, é hora de nos interrogarmos: em que sentido deverá ir a nossa ‘obediência responsável’?

A Igreja pós-conciliar encontra-se, pois, diante de um ponto de não retorno. Pode ser que a nossa Igreja peregrina consiga retirar ensinamentos para o futuro a partir deste «incidente», que em si é muitíssimo mais grave do que o conflito que a Inquisição teve com Galileo. Estou convencido que nos próximos tempos se irá produzir um volte-face radical, quanto a questões deste teor. A opinião pública está muito sensibilizada a estas questões eclesiais internas. Há que desarticular incondicionalmente e com a maior urgência e eficácia as estruturas que geram desconfiança, as já mencionadas bem como outras parecidas, as quais só podem favorecer um centralismo doentio, a fim de que a Igreja possa ser, em virtude da sua teologia, «sal da terra», bem como enfrentar a imensa tarefa da reevangelização.

Nunca é demais insistir em que nos encontramos diante de um dos pontos nevrálgicos do ecumenismo. Todo o mundo está farto de o saber! Não há encontro ecuménico algum em que esta questão não seja levantada. Acaba sempre por ser referido: ‘como são altos e sólidos os muros que rodeiam «o palácio do Santo Ofício»’! Será possível, nem que seja apenas imaginar, um diálogo ecuménico oficial frutuoso se, quanto às questões mais prementes, elas só possam ser expressas sob a forma de afirmações doutrinais autorizadas por Roma e que se tenha de passar por cima ‒ em matérias muito importantes ‒ da opinião unânime dissidente dos teólogos de todas as Igrejas? Parte-se do princípio que Magistério romano e Doutrina são uma e mesma coisa, tal como se pensava na época pré-conciliar. Como último exemplo, basta folhear o Novo Catecismo da Igreja Católica e reparar na expressão «doutrina da Igreja» como sendo única e exclusiva, mesmo em matérias nas quais é mais do que evidente que a postura romana não foi aceite pela Igreja universal. É minha opinião que existe contradição entre a situação presente e o ministério autêntico de Pedro.




E, assim, chegamos ao grandioso e radical sonho do Salvador! (continua)



Bernhard Häring, «Las cosas deben cambiar – una confesión valiente», Barcelona, Editorial Herder 1995, pp. 56-99. ISBN 978-84-254-1906-9.



 

LAS COSAS DEBEN CAMBIAR OCR

 

 «Intacta desde Sisto V (1585-1590)» - Expectativas muito em baixo...

 

 

 




[1] «Ostensivo é o adjetivo que qualifica algo ou alguém que se exibe exageradamente, que gosta de chamar a atenção, que é vistoso, exuberante e extravagante. Também pode se referir a uma ação ou atitude que seja agressiva, instantânea e de efeitos imediatos. Quando se diz que uma pessoa é ostensiva pode significar que possui um comportamento arrogante, provocativo e prepotente em comparação aos demais. Exemplo: “O seu modo ostensivo fez com que chegassem ao divórcio”.

Alguns dos principais sinônimos de ostensivo são: intencional, propositado, aparatoso, pomposo, descoberto, escancarado, evidente, visível, altivo, agressivo, aguerrido, exaltado, suntuoso, feérico e deslumbrante. Etimologicamente, a palavra “ostensivo” é originada a partir do latim ‘ostensivus’, que pode ser traduzido como “com o propósito de se mostrar” ou “próprio para exibir”.» («Significados» sítio consultado a 04/03/2021)

[2] «A paz é um dos bens mais apreciados pela humanidade e, ao mesmo tempo, um dos mais frágeis; o mais desejado, mas também o mais ameaçado. (…) Revisitando as andanças da História, não é fácil encontrar um estado de paz duradoiro. A paz, na opinião certeira de José Luis López Aranguren, acabou por se transformar num período intermédio entre duas guerras, sendo que esse período intermédio não é outra coisa senão um tempo dedicado a preparar uma nova guerra. Parece até que, quanto a este assunto, vem a calhar o velho provérbio: «se queres a paz, prepara a guerra». (…) Não são poucas as guerras [sobretudo depois do “11 de Setembro” de 2001] que se vêm sucedendo nas últimas décadas e que se remetem para “guerras religiosas” com as características de «violência do sagrado» de que falava René Girard (“La violence et le sacré”). Dá a sensação que a guerra está no coração das religiões. (…) Uma das teses do meu amigo e colega, o teólogo Hans Küng, diz: “Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões sem consensos éticos globais. Não haverá no nosso Globo sobrevivência em paz e com justiça sem um novo paradigma de relações internacionais baseado em níveis éticos globais.” Esta proposta constituiu a base do “II Parlamento das Religiões do Mundo”, celebrado em Chicago de 28 de Agosto a 4 de Setembro de 1993, onde crentes de todas as religiões expressaram pela primeira vez na História o seu consenso à volta de uma série de valores, atitudes e modelos éticos comuns. (…) Eis a alternativa à teoria do “Choque das Civilizações” proposta por Samuel P. Huntington no seu livro homónimo, o qual destina ao cristianismo uma nova função bélica contra outras religiões, muito especialmente contra o Islão, considerando-o “a civilização menos tolerante de todas as religiões monoteístas”.» Juan José Tamayo (Dir.), “La realidade de la violência y la aspiración a la paz en las religiones” in «10 palabras clave sobre PAZ Y VIOLENCIA EN LAS RELIGIONES», EVD 2003, pp. 11-13.

[3] A leitura dos “comentários” aos cânones 1371 e 1372 feitos pelos Professores de Direito Canónico da Universidade Pontifícia de Salamanca deveria ser suficiente para que qualquer cristão deixe de crer que esta Igreja Católica, assente nesta Lei, tenha futuro algum… Cf. «Código de Derecho Canónico», Edición bilingüe comentada por los Profesores de Derecho Canónico de la Universidad Pontifícia de Salamanca, BAC, Madrid MMXI, pp. 786-787. [NdT/pb]



2 de março de 2021

A Igreja que eu amo - Bernhard Häring


 

OS PEIXES E O LAGO ENVENENADO

As relações do Pe. B. Häring com “O Santo Ofício”

 

 

Pe. Bernhard Häring

 

 ENTREVISTA:

 

Como outros teólogos da maioria conciliar, também o P. Häring teve relações muito difíceis com o Santo Ofício, em primeiro lugar, e depois com a «Congregação para a Doutrina da Fé». Ultrapassando uma certa crítica fundada em preconceitos, que não tem sentido para quem aceita com convicção não só crescer na sua fé, mas também permanecer na Igreja-instituição e dar o seu contributo mais autêntico para o aperfeiçoamento dessa instituição, queria que abordasse este problema de modo concreto. Concorda?

Reflecti muito antes de me decidir a revelar acontecimentos que tinha decidido manter secretos até agora, e que me tocaram até ao mais profundo de mim mesmo. Esta hesitação estava ligada não somente ao medo das consequências que poderiam entristecer os últimos meses ou os últimos anos da minha vida, mas principalmente pela perturbação que poderiam provocar nos crentes. Contudo, finalmente, senti a necessidade de provocar um escândalo, que espero seja salutar, precisamente na medida em que pode contribuir para curar uma situação tornada patológica.

Sempre me impressionou favoravelmente a dimensão terapêutica da teologia da liberalização e foi no espírito não-violento de Gandhi que quis enfrentar as injustiças sofridas, até porque serei provavelmente também em parte responsável por algumas delas.

É nesta referência à transparência e à força da verdade gandhiana que hoje pretendo, por seu intermédio, revelar os aspectos que tinha mantido na sombra, sem nenhum rancor, antes pelo contrário num espírito de benevolente compreensão para com os que me fizeram sofrer, porque sei muito bem que certamente eles também sofreram.

Por outro lado, sendo a Igreja uma instituição, é natural que tenha sombras e luz. Porquê, então, não falar de tudo, sem procurar o escândalo, mas também sem nada esconder?

Concordo. Na verdade, é preciso lembrar que Jesus Cristo sofreu por causa dos discípulos e dos Apóstolos. E até previu para a cristandade sofrimentos motivados pelos comportamentos condicionados por algumas estruturas eclesiais. Abordo este assunto com um espírito sinceramente construtivo, considerando-o até como o meu contributo para esta reforma que me fala tanto ao coração: a unidade das Igrejas.

Durante a sua visita a Roma, o Patriarca Dimitrios I (1914-1991), dirigindo-se à Cúria romana, propôs que a Igreja de Roma tomasse por guia a exigência ecuménica[1]. É nessa perspectiva que situo a minha intervenção.

Que reflexão fundamental lhe inspirou esta experiência certamente pouco exaltante?

Trata-se de uma experiência que me trouxe grandes sofrimentos. O processo que a «Congregação para a Doutrina da Fé» intentou contra mim, em 1975, acabou em 1979. Depois começaram imediatamente as minhas dificuldades com a «Congregação para a Educação Católica». Foram oito anos de verdadeiro suplício na minha vida, os quais, ainda por cima, coincidiram com o desenvolvimento inesperado de um cancro na garganta, tendo sido submetido a sete intervenções cirúrgicas e a terapias de cobalto, além de outros cuidados muito constrangedores. E, contudo, numa certa perspectiva, foram anos fecundos, que viram a conclusão da minha obra principal “Livres e Fiéis em Cristo”, e a ocasião de poder sofrer pela Igreja. Quem não sofre com a Igreja, por causa da Igreja e pela Igreja não poderá nunca pronunciar uma palavra credível. Penso nos grandes teólogos do passado, como São Tomás, Santo Afonso, Rosmini, Newman e também K. Rahner, De Lubac, Y. Congar e tantos outros. Dirijo-me igualmente à nova geração para que saiba seguir-lhes o exemplo.

Este processo começou, portanto, quando redigia a sua obra principal. De que maneira foi por ele influenciado?

Exactamente. A partir do Concílio, os homens do Santo Ofício tinham aproveitado todas as ocasiões para me intimidar, o que me tornou mais vigilante e me obrigou à transparência do pensamento e da reflexão. Recordo-me de um encontro com esse octogenário intrépido, Máximos IV, Patriarca dos melquitas. Agradecia-lhe a coragem e franqueza que tinha demonstrado. Ele respondeu-me: «Meu caro padre, como estou tão perto do tribunal de Deus, não me posso permitir agradar aos homens». No decorrer destes anos sinto-me também neste estado. Por isso, a minha última obra devia ser de uma transparência e de uma franqueza proféticas.

Antes e depois de ter sido posto directamente em causa pelo «Santo Ofício», o senhor partilhou os sofrimentos de muitos dos seus colegas, por causa de algumas implicações. Pode falar dessas experiências?

Essas experiências foram diferentes, mas tiveram todas um denominador comum: o isolamento total a que estavam reduzidos como leprosos os autores de livros inscritos no “Índice”. Neste ponto posso-me considerar feliz, não só por não ter sido condenado pelos meus Superiores religiosos, como veremos, mas até por ter podido contar sempre com a sua grande solidariedade nos momentos difíceis. Mas recordo-me da amargura que me causou, quando era jovem teólogo, o relato que me fizera um veterano da exegese sobre as suas próprias dificuldades. Estava-se no tempo em que vigorava um terrível ostracismo contra os exegetas. Foi por isso que um homem tão competente como Franz Schreibmayr Klemens Tilmann abandonou voluntariamente esta disciplina e se dedicou à Moral que então ainda não estava na linha de fogo; e pôde desta forma contribuir para a sua actualização. Que amargura pude descobrir em numerosos teólogos e pastores de almas, vítimas da profunda contradição entre a competência «legal» do Santo Ofício e a incompetência absoluta de muitos dos seus membros! Um douto e santo cardeal definiu o Santo Ofício como a «adequação perfeita entre ignorância e arrogância»! Mas não quero generalizar. Falarei, sobretudo, de alguns casos de colegas professores, cujas penas partilhei por causa do ostracismo, pois me tinham escolhido como ponto de referência.

O primeiro, Herbert Doms, padre e docente de teologia moral na Universidade de Munster, autor (entre outras) de uma obra profética para a época (1935): «O Sentido e os Fins do Matrimónio», posto no Índice dos livros proibidos.

Encontrei-o pela primeira vez num congresso no Luxemburgo, em 1952. Nos compridos passeios que fizemos a pé, contou-me o seu longo cativeiro na Rússia, a sua fuga, os sofrimentos que teve de suportar: «Que nada são acrescentou ele comparáveis com os que os homens e as estruturas do Santo Ofício me têm feito viver». Ainda revivo o drama da sua luta íntima de que me fez confidente quando fui seu hóspede para «suportar a enorme incompetência da Altíssima Competência».

Destituído, antes da Guerra, da cátedra de Breslau, teve, depois do conflito, ocasião de ocupar a de Múnster pela qual teve de continuar ainda a combater contra as suspeitas espalhadas em Roma a seu respeito por F. X. Hürth. Apesar de tudo, a sua fidelidade à Igreja nunca fraquejou.

E como não me lembrar do caso de Bernardino Krempel, autor de uma outra obra: «A Questão dos Fins do Matrimonio à Luz de um Novo Dia» posta no Índice sem o autor ter sido, não digo interrogado, sequer recebido no Santo Ofício? Em Roma e em toda a parte sentiu-se completamente isolado.

Aquando da primeira edição, em 1954, da minha «Lei de Cristo», ele escreveu-me e, desde então, mantivemos sempre contacto. Num momento de grande depressão, Krempel encontrou conforto numa mulher compreensiva que tinha conhecido e casou com ela civilmente. Perdeu então todos os privilégios e ganhou a excomunhão.

Mas foi uma experiência breve, porque bem depressa decidiram ambos, de comum acordo, separar-se. Krempel, apoiado pelos seus amigos, conseguiu finalmente a autorização para celebrar de novo e ensinar num seminário para refugiados em Koenigstein. Morreu antes do Concílio, deixando às Irmãs suíças que lhe assistiram um exemplo edificante de fé e de dignidade moral: a aceitação serena da morte na espera alegre do Senhor. Vivia-se já a preparação do Concílio e contei isto a Tromp e a Hürth, seus acusadores implacáveis. Vi então o P. Hürth chorar copiosamente. As suas lágrimas, embora tardias, foram para mim um bálsamo, porque eram o sinal de uma vivíssima compunção.

Foi testemunha de outros casos significativos?

Volto agora a pensar na experiência terrível do meu confrade, o holandês W. Duynstee, («Duynstee, Willem Jacobus Antonius Joseph; 1886-1968») professor de Direito na Universidade Católica de Nimega, que, por haver, num espírito de compreensão, prestado assistência a uma psicoterapeuta convertida, teve de aguentar numa visita canónica os “raios e coriscos” do próprio Padre Tromp, que foi a Nimega com preconceitos bem determinados. Sem sequer falar com o Pe. Duynstee, interrogou alguns pacientes (pessoas indubitavelmente doentes) sobre um ponto bem determinado e significativo: ‘se o Padre Duynstee, em confissão ou em conversas privadas, lhes tinha dito claramente e sem equívoco possível que a masturbação era um pecado grave’. Como a resposta foi, ao que parece, ‘negativa’, o Santo Ofício, sem fornecer a mínima explicação, ordenou ao nosso Superior Geral que exilasse imediatamente para Roma o Pe. Duynstee. Ninguém conhecia aqui (Roma), na Casa Generalícia, a razão da sua presença, excepto o Superior Geral e eu, pois fui escolhido para seu director espiritual.

Foi proibido durante anos de visitar a Holanda; interdição depois atenuada, graças ao cardeal Alfrink e ao nosso Superior geral, tendo-lhe sido desde então proibido apenas entrar em Nimega. Sofri com ele esta medida injusta e fiquei edificado com o seu exemplo. Recordo-me, como se fosse hoje, da pergunta exacta que um dia ele me fez: «Acredita que os homens do Santo Ofício compreenderam a injustiça que cometeram contra mim, impedindo-me de entrar na minha cidade?» Quando morreu, o Osservatore Romano fez o seu elogio, sublinhando a seu grande zelo pastoral e os seus grandes dons terapêuticos.

Lembro-me também da confusão do meu confrade, o arcebispo Hermaniuk, de rito romeno, um grande exegeta escolhido para ser membro da Comissão Preparatória do Concílio. Foi o primeiro que ousou levantar o problema da colegialidade, ainda em termos moderados, tendo provocado um verdadeiro furor theologicus nos teólogos «romanos» da Comissao, furor que se concretizou abertamente em censuras proferidas sem nenhuma discrição em plena assembleia.

Um outro caso que me impressionou profundamente foi o do Pe. Joseph Kentenich, fundador de congregações florescentes e principal promotor do movimento Schoenstatt, também condenado a um longo exílio. Foi proibido de voltar a Alemanha, sua pátria, e de ter contactos com as fundações. A pedido insistente de alguns bispos alemães, estudei atentamente os seus livros e manuscritos, não tendo encontrado neles nenhuma heresia, ou erro digno de sanção ou de censura grave. Escrevi um relatório sobre o assunto e enviei-o a Paulo VI, que, pouco depois, lhe levantou todas as sanções, de forma que pode regressar à Alemanha sem nenhuma restrição. Foi um homem muito santo e cheio de zelo e o seu amor pela Igreja nunca fraquejou, apesar das suas duras provas. Espero que um dia tenha as honras dos altares.

E que pode dizer da luta que a Universidade de Latrão moveu contra o Instituto Bíblico do reitor Bea e de que o senhor foi testemunha qualificada?

Fiquei particularmente admirado e escandalizado com a campanha de difamação lançada e mantida, em boa coordenação com o Santo Ofício, pelos professores e pela Universidade de Latrão contra o Instituto Bíblico. Esta luta mostrou-me ainda mais claramente que há um perigo real e temível de fazer da palavra «Magistério» um mito susceptível de um «uso político». De facto, nesses círculos, quando dominam a ambição e o carreirismo, fala-se muito de obediência ao Magistério, embora se use depois a palavra muito selectivamente. Neste sentido, o caso da grandiosa encíclica Divino afflante Spiritu, sobre o estudo da Sagrada Escritura foi um teste muito revelador. Este texto não foi redigido pelo Santo Ofício; saiu directamente do pensamento de Pio XII que escolhera, a propósito, para seu conselheiro o Pe. Agostino Bea (futuro cardeal).

Logo depois da morte do Papa, a Universidade de Latrão, instigada pelo cardeal Ernesto Ruffini, de Palermo, velho especialista da teologia romana, encetou a luta contra a encíclica. Era evidente que se queria demolir o «Instituto Bíblico», para se poder abrir um instituto semelhante em Latrão. O Reitor Piolanti falou sem rodeios d'«Esses cães jesuítas». Um número da revista Divinitas de Latrão, consagrado ao cardeal Ruffini, publicou um artigo de Mons. Antonino Romeo: «A encíclica Divino afflante Spiritu e as "opiniones novæ (cf. Divinitas, 1960, p. 387-456). O ataque ao Instituto Bíblico era frontal e violento e o seu grito de guerra: «Magistério». Sapienti sat! Aos meus estudantes do Instituto Pastoral de Latrão que me pediam a opinião sobre o artigo, não respondi directamente, mas com uma nova oração no fim da aula: «Oremos, a furore theologorum», e um Coro unânime respondeu: «Libera nos, Domine». E ficou tudo esclarecido.

Lembro-me também que o Santo Ofício tinha suspendido do ensino os dois melhores professores do Instituto Bíblico, Lyonnet e Zerwiek, dois gigantes da exegese que eram atacados por Mons. Romeo e pelos seus poderosos apoiantes. Falando em 1974 deste caso com Paulo VI, observei: ‒ «Esta sansão pesa ainda sobre o Concílio e constitui um escândalo de dimensões ecuménicas». O Papa respondeu-me: «Ainda não tive tempo de estudar o caso». E eu, depois de longo suspiro: «Santíssimo Padre, não é essa a vossa missão. Porque não confia a solução a alguém conhecedor da questão no seu conjunto, por exemplo o cardeal Bea ou o Superior Geral dos Jesuítas?». O Papa aprovou e, passados poucos dias, a questão foi regularizada.

Depois disso, no decorrer da sua primeira visita a Latrão, Paulo VI, aludindo claramente ao caso, a dada altura exclamou com firmeza: «Nunca mais». Os dois eminentes professores suspensos retomaram o seu insubstituível ensino e mais tarde o Pe. Lyonnet foi nomeado pelo Papa consultor da Congregação para a Doutrina da Fé. Quem julgar que pode tentar uma aproximação terapêutica à Cúria romana, da Congregação para a Doutrina da Fé, do meio eclesiástico romano em geral, deveria estudar minuciosamente este caso muito significativo. Há um perigo real de que o magistério do Sumo Pontífice se torne, nas mãos de carreiristas e manipuladores, um mito capaz de lhe minar a autoridade. Não é por acaso que na minha obra «Livres e Fiéis» me servi com muita insistência da categoria da ‘sociologia do conhecimento’, que distingue entre conhecimento salvador, conhecimento abstracto e o daqueles que pensam no poder.

Até os teólogos artífices do Concílio continuaram a ser atacados pelo Santo Ofício, não foi?

É absolutamente verdade. Basta pensar na carta de chamada à ordem que o arcebispo Pietro Parente, secretário da Congregação, enviou a Giovanni Rossi, fundador da «Pro Civitate Christiana» e director de Rocca, por causa de um artigo favorável a Yves Congar, publicado nesta revista e pelo anúncio de um outro sobre De Lubac: «É, pelo menos, pouco prudente publicar em Rocca os panegíricos de teólogos como Congar, cujas publicações suscitaram equívocos e reservas, apesar das suas qualidades intelectuais e da sua erudição[2]».

E isto, depois de Paulo VI ter claramente reabilitado Congar, fazendo publicamente o seu elogio durante o Concílio. «Foi por isso, confiou-me então o grande teólogo dominicano, sempre presente em São Pedro com o seu sorriso que os dominicanos me deram um quarto normal no convento, em vez do quarto arruinado que ocupava até agora!»

Ultimamente apoiou também Gutiérrez. O fundador da teologia da libertação, não é verdade?

Gutiérrez esteve aqui comigo na véspera do seu encontro com o cardeal Ratzinger. Oramos juntos e relemos a cartadocumento de acusação, assim como um estudo da Faculdade de Teologia Ecuménica de Berkeley, Califórnia. Documentos incríveis da Congregação para a Doutrina da Fé que provavam, quer uma malevolência diabólica, quer uma inacreditável e arrogante superficialidade. De facto, tratava-se de uma montagem de frases de Gutiérrez, tiradas do seu contexto, para justificar a acusação de ‘marxismo’ e de ‘heresia’ de que era objecto. E tratava-se de um homem muito humilde, zeloso, fisicamente provado por inúmeras doenças. Eu estava tanto mais à altura de o ajudar quanto havia em mim mesmo experimentado um sofrimento espiritual e físico semelhante ao seu; experiência que, graças a Deus, pus frequentemente ao serviço dos outros e que me permitiu compreender e confortar os que sofriam o peso duma rude prova.

Noutros casos assumiu a função de defensor oficial?

Muitos procuraram-me para receber conforto e conselho; seria muito longo falar de todos e expor os seus casos. Vou falar do último caso, o do Pe. Charles Curran, que resume todos muito bem. Curran foi meu aluno e pude acompanha-lo ao longo da sua difícil caminhada.

Charles Curran foi afastado da sua cátedra de teologia moral na Universidade Católica de Washington pelo dicastério do Vaticano, como se pode ler numa carta do cardeal Ratzinger com data de 25 de Julho de 1986. Como se chegou a tomar esta medida?

Li todos os documentos sobre este caso, como amigo, conselheiro espiritual e defensor do acusado. O primeiro acto acusatória remonta a 1979, quando se declarou a minha doença e também eu tinha sido processado. A partir desse momento, tornei-me para ele un apoio e un ponto de referência, ajudando-o a conservar a sua serenidade. Desde o princípio, foi acusado de estar em desacordo com a doutrina da Igreja sobre os problemas do divórcio, da homossexualidade, da masturbação, das relações sexuais pré-conjugais e de ter fomentado tais desvios. Acusação absurda, injusta, tanto do ponto de vista humano, como pastoral. De facto, Curran tinha-se limitado a tentar, para cada um destes problemas, soluções mais diferenciadas, mais próximas da realidade da vida dos nossos dias. É a famosa «flexibilidade» de algumas normas antigas.

E como se chegou então à condenação, apesar da entrevista que ele teve na sua companhia com o Prefeito e o Secretário da Congregação no dia 8 de Março de 1986? Como se desenrolou essa entrevista e que pontos abordaram?

Curran pediu-me que fosse com ele à convocação de que falei. Tratava-se para mim de uma decisão grave e mortificante no plano humano, pois tinha decidido nunca mais pôr os pés naquele Palácio. No entanto, aceitei, na perspectiva de um bem superior. Fui novamente ao Santo Ofício com Curran, convencido de que estava a prestar um serviço necessário, não ao meu amigo, mas também à Igreja e, em particular, à Congregação para a Doutrina da Fé.

Fomos acompanhados até à antecâmara de Ratzinger pelo deão da Faculdade de Teologia dos Dominicanos, e por George Higgins, talvez o padre mais célebre da América por ser secretário da Conferência Episcopal dos Estados Unidos, jornalista e professor. Enquanto esperávamos, orávamos todos, exprimindo espontaneamente cada um as suas intenções. Quando o último de nós dizia: «Senhor, ajuda-nos a procurar menos a nossa vitória pessoal do que a da Santa Igreja», chegou Ratzinger. Saudou-nos cordialmente, enquanto o convidávamos a unir-se a nós nesta intenção de oração.

O cardeal sentou-se entre o Secretário, Mons. Bovone, e um notário encarregado de organizar o processo verbal. Fui o primeiro a tomar a palavra, dizendo as coisas mais difíceis, com a intenção de facilitar a tarefa de Curran. «Quem é que está em desacordo com a doutrina da Igreja: a Congregação ou Curran? A história ensina inequivocamente continuei que sobre pontos importantes, relativos à Bíblia ou ao dogma, foram muitas vezes o Santo Ofício e a Inquisição que se revelaram em profundo desacordo com todos os outros fiéis e a maioria dos teólogos", e citei dois exemplos. Mas Ratzinger interrompeu-me: «Saiba que a decisão sobre o caso presente já foi tomada e que esta entrevista não poderá modificá-la».

Então porquê esta convocatória meramente formal?

Para uma conversa de homem a homem, responderam-nos. «Mas nesse caso repliquei renunciamos já ao diálogo, pois não teríamos a possibilidade de mostrar a verdade, já que tudo está decidido e nada pode ser mudado». Ratzinger, que talvez não tenha percebido o sentido da minha observação, respondeu: «Queremos ouvir-vos», e a atmosfera serenou.

Nesta altura, Curran apresentou a proposta que tinha preparado: renunciava voluntariamente ao ensino da ética sexual, que de resto já não ensinava há mais de quinze anos, e comprometia-se a não fazer nenhum seminário sobre este tema.

«Porque é que eu, que sou tudo menos um extremista perguntou ele ao cardeal Prefeito tenho de servir de “bode expiatório”? E eu prossegui: «Não só não queremos prestar-nos a isso, mas o cardeal Ratzinger deveria pensar que também Curran poderá ser transformado em “bode expiatório” pela opinião pública. Para evitar a um e a outro essa experiência disse eu para concluir impõe-se a procura de um compromisso aceitável e definitivo». Pedi então ao cardeal que apreciasse nesta perspectiva a proposta de Curran, atendendo sobretudo a sua humildade. Nenhum teólogo, vítima de acusações grosseiras, mostrou, tanto quanto sei, uma tão grande humildade perante o Santo Ofício.

E como terminou a sessão?

Cordialmente e, pareceu-me, de maneira frutuosa. Com efeito, Ratzinger prometeu apresentar a proposta à assembleia da Congregação. Alguns meses mais tarde, entretanto, a resposta foi negativa: proibição de ensinar como teólogo católico em qualquer instituto controlado juridicamente pela Igreja[3].

Atendendo a que numerosas cátedras lhe foram oferecidas pelas melhores faculdades de teologia ecuménicas do mundo, Curran, de acordo com a Comissão da Universidade Católica de Washington, confirmou a sua preferência pelo ensino de ética no Instituto desta universidade, que não é controlada juridicamente pela Cúria, e parecia que havia essa possibilidade.

Infelizmente, poderosos opositores tornaram impossível o compromisso proposto pelos seus colegas: se lhe fosse oferecida uma cátedra numa faculdade de sociologia, dariam o seu assentimento caso Curran prometesse «não ensinar a Teologia católica».

Entretanto, foi-lhe confirmado o convite da Conferência Episcopal Alemã, feito ainda antes da sua condenação. Eu sugeri-lhe que renunciasse. «Pelo contrário responderam os bispos alemães agora é que estamos interessados na sua presença». Na altura desta visita, esteve comigo dois dias, e ambos pudemos uma vez mais reflectir sobre o caso.

O meu contributo para a sua defesa, embora parcialmente negativo, esclareceu algumas realidades que a Congregação nunca mais poderá esquecer.

Problemas como a eutanásia, a masturbação, a contracepção artificial, as relações sexuais pré-conjugais, a homossexualidade beneficiam, sobretudo actualmente, dos estudos em evolução constante, tanto mais que outras ciências ligadas a tais problemas também se interessam por eles. Pode um teólogo especialista na matéria colaborar, na sua universidade e em publicações, numa tal evolução a fim de se conseguir uma relação sempre melhorada entre doutrina, verdade e ciência?

Trata-se de um problema de fundo. De facto, é preciso interrogar-nos sempre: somos uma Igreja que possui nos seus arquivos a resposta segura para todos os novos problemas, ou, pelo contrário, uma Igreja que reconhece que nem sempre tem respostas, sobretudo certas e definitivas? E essa procura não deverá ser conduzida com um grande sentido das responsabilidades e num grande respeito pela consciência?

Mas até agora o método da Congregação para a Doutrina da Fé não tem sido a de travar a pesquisa séria?

Na verdade, ela não favorece. Pessoalmente que as coisas fiquem bem claras ‒, não partilho de todas as opiniões expressas pelo Pe. Curran a este respeito. Mas ele foi meu aluno. É, portanto, mais jovem do que eu e enfrenta os problemas com coragem e com uma grande sinceridade. Além disso, ele próprio notou que as suas respostas não se deviam considerar categóricas e definitivas, por serem apenas tentativas sempre susceptíveis de serem reexaminadas.

Estes problemas revelaram-se o verdadeiro «calcanhar de Aquiles» da moral oficial, como ficou bem demonstrado no Concílio. Porque é que as universidades e os teólogos católicos não deveriam contribuir para a reflexão sobre estes problemas, numa total liberdade pela qual verdadeiramente o Magistério e a Igreja se desenvolvem?

Nem sempre necessitamos de respostas imediatas e decisivas. Neste caso, então, porque é que não se organiza em Roma, de tempos a tempos, um encontro entre as diversas escolas e pessoas competentes para estudar um determinado problema? O resultado poderia revelar-se melhor do que aquele a que chegou o grupo habitual de conservadores que depressa chega à resposta «desejada», nascida da presença ainda, em parte dominante, de uma eclesiologia da força, defendida por homens convencidos de «possuir toda a verdade». «Será verdade?», pergunto. É aqui que está o problema com os seus aspectos ecuménicos inegáveis. Se, na verdade, a Congregação para a Doutrina da Fé não favorece um diálogo aberto, respeitador e paciente entre os católicos, como poderá ela entrar no diálogo ainda mais aberto com todas as Igrejas cristãs?

O perigo de um bloqueio de todas as nossas esperanças ecuménicas não é certamente fantasioso.

Como acolheu Curran a proibição de ensinar?

Com um espírito de não-violência realmente exemplar. Escreveu um artigo muito belo, como comentário: «Porque amo a Igreja?», em que relativizava o seu próprio caso e acentuava a continuação diligente do seu sacerdócio.

Qual a sua opinião sobre o conteúdo da carta de Ratzinger e a autodefesa de Curran?

Era Curran quem tinha toda a razão. Na verdade, tanto a carta de Ratzinger como o artigo do Osservatore Romano (cf. Osservatore Romano, de 21 de Agosto de 1986) não lhe fizeram justiça como até poderiam ser um sério obstáculo à sua credibilidade pastoral. Podiam ser a caixa de ressonância da tese (errónea), segundo a qual a sua teologia fomentava o laxismo moral. Exactamente como as acusações que me tinham atingido.

Pode-se estabelecer uma relação entre este caso e o clima, certamente nada idílico, que se instalou entre os bispos americanos e a Santa Sé?

A Igreja é, doravante, muito diferente. Basta pensar que Curran, depois da sua condenação, recebeu em poucas semanas testemunhos de solidariedade da parte de 750 doutores e professores de teologia e de direito canónico de numerosas universidades dos Estados Unidos e também de alguns bispos. Quase ao mesmo tempo, rebentava o caso do bispo Hunthausen (Cf. «Hunthausen scagionato», in Il Regno, Att. nº. 2, 1986, p. 30) que Roma tentou destituir para depois aceitar um compromisso perante a solidariedade da grande maioria do episcopado americano. Certamente em Roma já estaria tudo a postos para ultrapassar o obstáculo nomeando bispos conservadores. E, se a manobra resultasse, o corte entre a hierarquia e o povo dos fiéis tornar-se-ia um abismo.

Passemos aos casos nos quais o Pe. Häring não esteve directamente implicado. A Hans Küng, que a Congregação acusara de estar «entre os teólogos que alteram a fé na infalibilidade da Igreja …[4]», apenas tiraram a cátedra de teologia católica. Este comportamento do Congregação não revelava uma certa incerteza da parte dela?

Não se trata de incerteza, mas de uma opção deliberada que preferia uma atitude clemente mais de acordo com a maneira de ser de João XXIII e Paulo VI. E talvez também de prudência, por causa das possíveis reacções da opinião pública. Trata-se de uma posição intermédia para controlar a doutrina. O caso de Küng e de Curran são fundamentalmente diferentes: enquanto que no primeiro se tratava de questões que mexiam com o dogma, no segundo o desacordo referia-se a pontos que em nada tocavam na infalibilidade. Esta forma de desacordo tornou-se, entretanto, um delito que o novo Código de Direito Canónico prevê sancionar. Eis uma situação explosiva, para a hora presente.

Embora se tratem de casos fundamentalmente diferentes, a condenação é a mesma nos dois, não é verdade?

O que significa que, no interior da Igreja, se deterioraram as relações. Na Comissão de redação do novo Código de Direito Canónico, não havia nenhuma proposta de inserção da norma que o caso de Küng ilustra. Foi aí introduzida no último momento por vontade da Cúria ou do Papa. E uma novidade que, mais do que outra qualquer, contradiz o espírito eclesiológico do Vaticano II.

Dois pesos, duas medidas: parece-me ser o método empregado pela Congregação a um outro teólogo, o Pe. Jacques Pohier, dominicano («Quand je dis Dieu»; Cf. Il Regno. Att n.º 18, 1979, p. 397). Através de um processo urgente, foi simplesmente privado do direito de presidir à Eucaristia e de ensinar e fazer conferências. Tudo isto no período de um ano. Que pensa a propósito?

Procurei informar-me, li muito sobre o assunto, mas não estou em condições de lhe responder.

A Congregação intentou igualmente um processo em relação a algumas teses sobre a humanidade de Cristo defendidas pelo dominicano holandês Edward Schillebeeckx, eminente perito conciliar. As explicações fornecidas no decorrer da entrevista em Dezembro de 1979 mostraram os limites muito estreitos que Roma pretende impor à pesquisa teológica. Ora o teólogo holandês sempre se dedicou à investigação científica e a sua linha não é fazer oposição para chamar a atenção. Que pensa?

Trata-se de um dominicano, tomista integral e padre exemplar. Somente posso acrescentar que a sua saúde foi terrivelmente provada com acusações imerecidas. É incrível que, numa Igreja tão atormentada como a Igreja holandesa, se ataque o melhor teólogo profundamente enraizado na tradição de São Tomás. E, embora não tenha sido condenado, foi certamente admoestado, o que lhe causou graves sofrimentos: O Santo Ofício tem sempre razão…

O outro processo deste último decénio foi o do teólogo da nova geração, o brasileiro Leonardo Boff, que procurou enunciar, através da experiência quotidiana do Brasil, os princípios de uma evangelização adaptada. Trata-se de uma das aplicações da teologia da libertação. Pela primeira vez, a hierarquia eclesiástica local, na pessoa dos cardeais Aloísio Lorscheider e Paulo Evaristo Arns, que acompanharam Boff ao interrogatório romano, lhe demonstraram a sua inteira solidariedade. Como julga esta tomada de posição tão aberta de bispos tão eminentes?

Trata-se de um acontecimento maravilhoso para toda a Igreja brasileira porque, exceptuando alguns tradicionalistas, todos estavam solidários com a pessoa do incriminado: Boff. E Roma certamente compreendeu que tinha cometido um erro crasso de avaliação. Os cardeais que acompanharam Boff e que intervieram por ele com toda a autoridade vieram depois a pagar caro o seu gesto. Um visitador apostólico, na pessoa do cardeal Hoeffner (de Colónia), recentemente desaparecido, chegou inesperadamente a São Paulo e, sem visitar o arcebispo, o cardeal Arns, nem o avisar, dirigiu-se ao seminário. Depois mandou substituir o reitor. Mas, uma vez mais, Arns se solidarizou com o acusado e impediu a sua destituição. No entanto, eu soube da destituição do reitor de um seminário canadiano e de um deão da faculdade de teologia, que foram afastados sem sequer saberem o motivo; e sempre depois da passagem de um visitador: tudo isto, vinte e cinco anos depois do Concílio!

Os dois vieram procurar-me em Roma e aceitaram este acontecimento com verdadeiro espírito gandhiano.

Boff declarou abertamente que aceitava as observações formuladas pela Congregação e que preferia caminhar com a Igreja a avançar sozinho com a sua teologia. O que não quer dizer que Boff tenha renunciado à sua linha. Que reflexões lhe inspiram esta atitude?

Eu teria respondido da mesma maneira. Convém, no entanto, notar que Boff não cedeu uma polegada. Permaneceu sereno, não-violento, mas forte na sua transparência e na sua sinceridade. Temos realmente necessidade de teólogos como ele.

Depois da sua participação nas dificuldades dos outros, foi também directamente implicado num processo que a Congregação lhe moveu. Quer começar a falar dele?

Reflecti muito repito uma vez mais sobre a oportunidade de tornar público o que me concerne pessoalmente e que foi até agora mantido no segredo mais absoluto, por decisão minha. Por outro lado, estava preocupado com as possíveis implicações que poderiam daí resultar para a própria estrutura da nossa casa, a Igreja.

Mas, finalmente, fiquei convencido de que o conhecimento da minha dor poderia constituir uma ajuda eficaz na caminhada que conduz a corresponsabilidade na Igreja. Esta corresponsabilidade deve levar ao exercício credível e eficaz da autoridade segundo o espírito do Concílio que, além de não poder ser abafado, deve espalhar-se sempre cada vez mais.

Tive provas de confiança de personalidades do interior da Igreja, e, antes de mais, as dos dois Papas do Vaticano II: João XXIII, que quis que me comprometesse e pusesse toda a minha competência ao serviço deste grande acontecimento; Paulo VI, que confirmou a minha participação, e foi meu amigo e me apoiou até ao fim da sua vida.

Não me inspira nenhum preconceito anti-romano, tanto mais que vivi quase quarenta anos em Roma, perfeitamente à vontade tanto na sua Igreja como na de Itália.

Por outro lado, a sua colaboração que durou mais de dez anos na «Famiglia Cristiana», foi uma referência para um grande número de fiéis da Itália, não foi?

Tratou-se de uma colaboração que me permitiu entrar pela capilaridade de inúmeros problemas e que me abriu as portas de muitas salas nas maiores cidades da Itália para conferências seguidas por uma multidão numerosa e, em particular, por jovens. Daí os milhares de cartas que me foram enviadas por pessoas de classe e cultura diferentes, onde me exprimiam amizade e reconhecimento pela acessibilidade da minha teologia que afirmavam ter-lhes sido de grande proveito. Entre todas estas cartas recordo-me da de um operário agradecido, por ter podido aproximar-se sem dificuldade embora tivesse frequentado a escola primária de textos que o tinham enriquecido espiritualmente.

Pude experimentar uma Igreja aberta à compreensão e à disponibilidade humanas no mundo inteiro, Roma incluída, onde tive e continuo a ter excelentes amigos, e até na Cúria, de que alguns membros continuam a ser meus amigos. Pretendo relatar os abusos e as distorções da verdade, não os atribuindo à Cúria como instituição, mas a alguns responsáveis do Santo Ofício, hoje Congregação para a Doutrina da Fé, que abusaram e continuam a abusar da sua autoridade.

De facto, o Concílio, acontecimento estranho a essa mentalidade, não só lhes provocou um traumatismo, mas assinou a derrota definitiva da sua concepção de Igreja como era apresentada pelos setenta Esquemas [‘base de trabalho’] que tinham preparado na mira de uma aprovação e que, pelo contrário, foram completamente rejeitados pela Assembleia conciliar.

 

 

“Corruptio optimi pessima est” (1º Barão Acton, 1834-1902)

 

Daí a resistência, o ressentimento e também o sofrimento, compreensíveis, daqueles que, agarrados à defesa de uma fé que parecia afundar-se, não chegaram a aprovar corajosamente posições inovadoras e a compreender as suas motivações. Eis porque hoje olho para esse drama compreensivamente e talvez até com uma certa compaixão. Por isso, a acusação de heresia, com que eles quiseram condenar a teologia que a maioria conciliar acabou por aprovar, suscita mais amargura do que espanto.

Já lhe contei algumas reacções de altos dirigentes do Santo Ofício a propósito da minha obra «A Lei de Cristo» em 3 volumes (original alemão editado em 1954): as provocações e os espiões lançados no meu encalço para controlar sem tréguas a minha actividade.

Quero aqui referir, para confirmar essa atitude, o que soube pelo Pe. Hurth. Encontrara-o novamente na sede da Comissão preparatória do Concílio e mostrava-se, a princípio, muito hostil às minhas teses. Confiou-me: «Há alguns anos tivemos de examinar os seus três volumes, “A Lei de Cristo”, obra que não agradou nada a Roma, mas não encontramos nenhuma heresia».

Já se referiu anteriormente a uma intervenção do delegado apostólico nos Estados Unidos da América num caso que o atingia. De que se tratou?

Já durante o Concílio pudera confirmar a hostilidade crescente a meu respeito. Um dia o bom cardeal F. Cento advertiu-me explicitamente: «Padre, há manobras perigosas para o desacreditar na Igreja; deve defender-se». Respondi-lhe: «Tenho coisas mais importantes em que pensar: anunciar o Evangelho». Mas o cardeal insistiu: «Deve reagir contra essas manobras». Foi João XXIII que quis nomear-me perito da Comissão preparatória e depois confirmar a minha participação no Concílio, apesar das oposições. Paulo VI, ao convidar-me a pregar os exercícios espirituais no Vaticano, como já referi, exortara-me à franqueza. Começava, então, a compreender melhor e a tronar-me vigilante. De forma que, quando soube que os tradicionalistas faziam pressão sobre o delegado apostólico nos Estados Unidos, Egidio Vagnozzi, para me desacreditar e que ele tinha enviado para Roma certas informações, decidi tomar as precauções que se impunham. Foi assim que encarreguei um dos meus confrades de me acompanhar no cicIo de conferências que tive nos Estados Unidos no Verão de 1964 e gravar em fita magnética todas as minhas intervenções, tanto públicas como privadas. De regresso a Roma, o cardeal Cento pôs-me ao corrente do agravar da minha situação. De facto, pouco depois, o arcebispo Pietro Parente, Secretário do Santo Ofício, convocou-me pelo telefone (refiro aqui que ele nunca me escreveu uma única letra, preferindo sempre convocar-me telefonicamente … para não deixar o seu rasto em nada). Desde que cheguei, tratou-me sempre com dureza, censurando-me declarações que eu teria feito durante a minha passagem pelos Estados Unidos da América do Norte, contra o magistério do Papa: «O senhor defendeu exclamou ele que uma pessoa com juízo nunca dará atenção ao magistério; o senhor negou o magistério do Papa».

E que replicou?

«Quero dizer-lhe duas coisas respondi com calma. Em primeiro lugar, estou ao corrente da missão que o Santo Ofício ordenou aos seus “espiões” que me seguissem no meu périplo americano; em segundo lugar, sei que a cardeal Ottaviani já referiu ao Papa tudo o que o senhor me censura e que a sua resposta foi um convite para me ouvir. Porque me acusa, sem sequer me deixar falar? Não é nem prudente nem justo. Saiba que, seja como for, foram gravadas todas as palavras que pronunciei em terras americanas». Parente encaixou o golpe e convidou-me a remeter-lhe as fitas, o que fiz. Três meses mais tarde, como não tivesse notícia, solicitei uma resposta. O Secretário Pietro Parente assegurou-me pelo telefone que depois da escuta das gravações, o caso tinha sido definitivamente esclarecido. E até precisou: «Todos ficaram maravilhados com o equilíbrio das suas palavras.», e, por fim, textualmente: «Um dos auditores observou que se tratava de textos dignos de serem publicados!». Parente nunca mais falou do episódio, mas também não achou oportuno enviar-me uma linha de desculpas! São estes os métodos do Santo Ofício!

 



Teve outras relações com Pietro Parente?

Uma outra vez, disse-me com um tom irónico: «Se continuar assim, nunca fará carreira». E eu: «Gostaria de saber se se trata de uma expressão de admiração feita a um homem da Igreja que não tem a ambição de fazer carreira ou se de uma manipulação skinneriana: ameaças, promessas, chantagem, para que eu mude». Respondeu imediatamente: «Não, admiro-o muito», declaração que eu deveria classificar de hipócrita, mas não fiz.

Numa breve entrevista na Rocca, em 1967, a uma pergunta sobre as decisões que poderiam ser tomadas depois do relatório final da Comissão sobre a população, eu respondi: «É ao Papa que compete tomar as decisões; por isso, não tenho nada a dizer. De qualquer modo, estou certo de que Paulo VI decidirá no espírito do Concílio».

«O senhor nega a supremacia do Papa sobre o Concílio», exclamou Parente, no decurso de um encontro para que me tinha convocado.

«Exprimir a minha confiança de que o Papa será coerente com o espírito de tudo o que foi promulgado pelo Concílio, repliquei, é muito diferente de negar a sua supremacia sobre o Concílio. Agora compreendo bem qual é o seu verdadeiro objectivo...», disse eu em conclusão.

Não teve mais relações com Pietro Parente?

Fui de novo convocado pelo poderoso Secretário; já não me lembro exactamente por que motivo. O facto é que, aquando das suas ulteriores recriminações, eu respondi, mostrando sem fazer comentários, as cópias das cartas oficiais da Congregação, assinadas pelo seu punho: a primeira dirigida ao director de Rocca, don Giovanni Rossi, em que manifestava contrariedade por causa de um artigo a favor de Congar e do anúncio de outro artigo sobre De Lubac. Aí se afirmava que os dois, «pelas suas publicações tinham provocado equívocos, e por isso, reservas». A segunda carta era endereçada a um bispo e, entre outras coisas, dizia mal de mim.

Ao vê-Ias, o prelado empalideceu e perguntou imediatamente: «Quem é que lhas deu?». «Não se inquiete, respondi, que não tenho o costume de espiar: foram elas que aterraram em minha casa. Quer que as publique?». Quase cambaleou, pois teve de se sentar e receei um desmaio. Então, apressei-me a garantir-lhe: «Não tenha medo, não tenho nenhuma intenção de publicar seja o que for. No entanto, desejo que me peça desculpa pela injustiça que sofri». Ele respondeu: «Peço que me desculpe, perdoe-me». Acrescentei: «Quer continuar a lutar contra os teólogos que fizeram o Concílio?». Ele replicou: «Prometo não continuar por esse caminho. Pelo contrário, vou reunir uma conferência para manifestar a estima que tenho por si». E fê-lo. Desde então, não mais me inquietou. E o Santo Ofício deixou-me em paz até 1975.

Depois Seper e Hamer substituiram Ottaviani e Parente[5].

Seper sempre me tratou com humildade e dele tenho boas recordações, embora a sua assinatura apareça em quase todos os documentos do meu processo. De facto, na minha opinião, a iniciativa não partiu dele.

A carta que abria o seu processo tem a data de 16 de Dezembro de 1975; nela a Congregação para a Doutrina da Fé comunicava ao seu Superior Geral censuras bem determinadas ao seu livro «Ética Médica» publicado em França com o título: «Perspectives chrétiennes pour une medecine humaine». Pedia-se ao seu Superior Geral que convidasse o Pe. Häring a responder.

Conforme o costume da Congregação, o cardeal Prefeito Seper comunicou ao meu Superior Geral a abertura de um processo doutrinal contra mim, aprovado pelo Papa em 13 de Junho de 1975. Este intervalo de seis meses entre a contestação e a decisão é significativo.

Não tinha já sentido antes que algo se tramava contra si, sobretudo depois do acolhimento pouco entusiasta que deu à Humanae Vitae?

Conhecendo, repito, a hostilidade que me votaram alguns homens da Cúria, descansava na confiança de Paulo VI, que era muito meu amigo, e na prudência do cardeal Seper com quem tinha colaborado na Comissão doutrinal durante o Concílio. Embora os mal-entendidos se fossem agravando por causa de algumas entrevistas que deformavam o meu pensamento, nunca esperava um processo. Por isso, foi como um trovão num céu azul, que me atingiu ainda mais profundamente quando li as motivações (como se pode verificar claramente da resposta que o teólogo enviou ao cardeal Prefeito a 5 de Fevereiro de 1976 doc. n.º 2, anexo).

Nunca pôde encontrar-se com os seus acusadores?

Recusaram sempre peremptoriamente as minhas exigências de conhecer os redactores do documento de acusação e de indicar um defensor oficial.

O senhor respondeu, ponto par ponto, à Acta de acusação, numa longa carta, a que a Congregação para a Doutrina da Fé entendeu responder globalmente (Carta do cardeal F. Seper de 5 de Março de 1976 - doc. n.º 3, anexo). Soube o que se passou nos bastidores?

Só sabia que as suas respostas repetiam a insatisfação da Congregação e insistiam para que eu esclarecesse e aprofundasse o meu pensamento, particularmente sobre o Magistério autêntico. Respondi com uma breve exposição teológica sobre o conceito de autenticidade e suas condições; não insistiram.

Por outro lado, a minha situação agravou-se depois de um artigo na “Famiglia Cristiana”, no qual eu me referia à posição expressa pelos bispos franceses em caso de conflitos graves (Cf. «Famiglia Cristiana», 23 de Maio de 1976, p. 9; 20 de Junho de 1976, p.5-6).

Reacção imediata no Osservatore Romano, de G. B. Guzzetti que ignorava totalmente que o artigo «incriminado» não era mais do que uma citação literal do pensamento do episcopado francês (Cf. G. B. Guzzetti, «Nuovi attachi alla Humanæ Vitæ», in Osservatore Romano, de 14 de Julho de 1976, p. 2). A este propósito, é realmente significativa a carta que o cardeal Seper me dirigiu em francês: fazendo claramente referencia à Conferência episcopal, o Prefeito da Congregação observava-me que o cardeal Renard, presidente do Episcopado francês, tinha enviado esclarecimentos a Roma, dos quais eu já tivera conhecimento. Tratava-se, de facto, de três formulações diferentes, tendo-me servido de uma no meu artigo em «Famiglia Cristiana» (Cf. carta do cardeal F. Seper de 3 de Julho de 1976 e resposta do P. Häring de 14 de Setembro de 1976, doc. n.º 5, anexo). Apesar disso e sem me ouvir, a Congregação pediu ao meu Superior Geral que tomasse novas medidas contra mim.

Para agravar as coisas, um semanário alemão inventou uma pseudo-entrevista, limitando-se, contudo, a transcrever o texto de “Famiglia Cristiana”. Novas recriminações contra mim (Cf. carta do cardeal F. Seper de 11 de Novembro de 1976), que não deram lugar a desculpas quando provei que se tratava duma falsificação, remetendo ao Santo Ofício toda a documentação, juntamente com a carta do director do semanário que dizia estar consternado com este equívoco jornalístico. Contentaram-se com tomar conhecimento (Cf. carta do cardeal J. Hamer de 22 de Março de 1977).

Por fim, a minha reacção ao documento da Congregação «Persona Humana» foi a terceira ocasião de um agravamento das nossas relações (Cf. Osservatore Romano, de 16 de Janeiro de 1976, p. 2: «Alcune questioni de etica sessuale»).

Telefonaram-me diversas agências noticiosas a pedir a minha opinião. Disse-lhes que se tratava de um documento que se baseava na doutrina tradicional e que se devia apreciar a sua solicitude pastoral. Até o Osservatore Romano publicou a minha opinião na primeira página (Cf. Osservatore Romano, 28 de Janeiro de 1976). Contudo, não se pode negar que o documento continha afirmações inaceitáveis para muitos dos meus colegas moralistas, como a declaração solene de que o Magistério transmitiu sem erros a doutrina de Cristo em matéria de moral, ou a conclusão do texto que afirma a certeza de que tudo o que nele é exposto é a doutrina de Cristo e reflecte exactamente a lei natural. Um tal infalibilismo era, e continua a ser, incompreensível e foi por isso que não faltaram recções, até mesmo violentas.

Senti-me, por isso, obrigado, em consciência, a intervir com moderação num artigo em alemão, em que precisava o valor e os limites do documento, enviando antecipadamente o texto à Congregação para a Doutrina da Fé, a fim de evitar as críticas e para que tudo ficasse bem claro. Apesar disso, não faltaram as censuras, e até bem pesadas, particularmente do Secretario Hamer. Todavia, não me impediram de publicar o texto que retomava os pontos positivos do documento na perspectiva da pastoral e relativizava o seu infalibilismo.

Recebi muitas cartas entusiastas, como a do teólogo moralista alemão mais cotado, o professor R. Egenter, que apreciou especialmente o realce dado aos motivos pastorais (Cf. carta do professor R. Egenter de 7 de Maio de 1976). Apesar de saber que a minha intervenção crítica só iria agravar ainda mais a minha situação, não podia renunciar a ela por honestidade para comigo próprio.

Da leitura dos documentos do seu processo, verifica-se que se desenrolou essencialmente por escrito. Exceptuando o encontro de Fevereiro de 1979, teve outros com os dirigentes da Congregação?

Depois de três intervenções cirúrgicas para a extração do meu tumor na garganta, a última das quais parecia anunciar o meu fim, recebi em minha casa a visita de Mons. Bovone, subsecretário da Congregação. Vinha-me apresentar os cumprimentos do cardeal e as suas desculpas por não me visitar. Além disso, convidava-me para um encontro amistoso na sede do Santo Ofício, convite que imediatamente recusei não só porque estava esgotado, mas também porque sentia em mim uma espécie de alergia ao Palácio. Mas, depois, reflectindo na não-violência em que fundara a minha vida, acabei por aceitar o convite.

Fui recebido muito cordialmente pelo cardeal Seper, que me confessou humildemente a sua falta de preparação específica para a importante responsabilidade que lhe fora confiada e igualmente em relação à minha competência especial em Teologia Moral.

Foi para mim um dia muito particular. Naquela manhã, a corda vocal que me tinham enxertado recomeçara a funcionar, confirmando assim o sucesso do enxerto. Nesse dia pude recomeçar a falar com a minha própria voz.

Depois deste encontro privado, foi a vez do encontro oficial com todos os dirigentes da Congregação por causa do seu processo, não foi?

Exactamente. Fui convocado no dia 27 de Fevereiro de 1979 para responder na Congregação, cujo fim era fazer-me «ir a Canossa» (como soube de fontes particulares). Exigiam que me comprometesse solenemente a abster-me, doravante, de qualquer crítica sobre os comunicados ou sobre os documentos da Congregação. Na prática, exigia-se que eu fizesse uma declaração servil. Mas declarei imediata e claramente que de forma nenhuma estava disposto a executar-me (a suicidar-me), convencido de que todo o acto contrário à própria consciência deve ser considerado pecado. Foi com estes antecedentes que me apresentei à convocação (Cf. carta de 1 de Fevereiro de 1979 do cardeal Seper ao P. Häring - doc. n.º 11, anexo).

O cardeal Seper, que presidia, manifestou-me novamente a sua cordialidade. Além disso, não me fez nenhum reparo; essa tarefa, desempenharam-na «impecavelmente» os dois colaboradores, o Secretário Jérôme Hamer e o subsecretário Bovone, que, logo de início, me notificaram com toda a firmeza ser impossível a um teólogo estar em desacordo com o seu magistério.

Extenuado e indignado, repliquei que, graças a Deus, nunca tinha conseguido confundir a Igreja com a Congregação para a Doutrina da Fé, doutra forma não poderia permanecer ali sequer um minuto. E que, ademais, sempre acreditara na Igreja, mesmo como Instituição, e era por causa dela que levava a sério o meu processo doutrinal, apesar das incompetências dos «peritos», autores do meu libelo de acusação. Convidei, então, a Congregação a lembrar-se de todas as sombras que a Inquisição romana tinha, no decorrer dos tempos, acumulado naquele Palácio. Então, o arcebispo Hamer replicou que não sentia nenhuma vergonha desse passado. Saí, depois de cerca de duas horas de interrogatório e de «sermões» que me fizeram parecer um rapazinho diante do mestre; esgotado e enojado, com a cabeça oca, mas interiormente feliz e agradecendo a Deus por me ter ajudado a não me vergar a nenhum acto de servilismo.

Depois deste encontro, recebeu a carta de 2 de Abril de 1979 que é, de facto, a conclusão do processo ...

O encontro foi depois da saída do primeiro volume de «Livres e Fiéis em Cristo», que eles imediatamente estudaram, e acabou com uma admoestação para que cortasse radicalmente todo o desacordo público com a Congregação; a carta de que falou confirmou isso mesmo (Cf. carta do cardeal F. Seper de 2 de Abril de 1979 - doc. n. 12, anexo).

Depois disso, deixaram-me em paz, talvez porque também o novo agravamento do meu cancro parecesse indicar a iminência da minha morte. Acontecimentos posteriores à minha cura inesperada confirmaram que a atitude tida a meu respeito não mudou, mas, em certo sentido, voltou ao que era antes. De facto, fui injustamente atacado pela Congregação para a Educação Católica por causa do meu artigo publicado em «Studia Moralia» intitulado «25 anos de ética sexual», que me valeu uma apreciação injusta e caluniosa, a que respondi com a minha habitual franqueza (Cf. o ensaio crítico, in Studia Moralia, n.9 XX/1 de 1982, e, em particular, o ensaio do Pe. B. Häring: Observações do teólogo moralista à Congregação da Educação Católica, de 3 de Marco de 1983, em virtude da falta de resposta ao seu pedido para uma confrontação aberta - doc. nºs 13 e 14, anexo). Este ataque não só não teve desenvolvimentos ulteriores, como também o próprio dicastério mostrou melhor disposição para com a Academia Alfonsina, embora (como sempre em tais casos) não reconhecesse os seus erros nem me pedisse desculpa.

O Osservatore Romano, publicou, por fim, uma recensão muito positiva do meu tratado em três volumes «Livres e fiéis em Cristo», sinal evidente de paz e de reconciliação da parte da Cúria. Iniciativa que, penso eu, veio da Secretaria de Estado.

A partir de Fevereiro de 1979, portanto, nunca mais foi objecto de contestação por parte da Congregação para a Doutrina da Fé e da Cúria Romana?

Tudo acalmou. O próprio cardeal Baum, prefeito da Educação Católica, mostrou-se muito cordial comigo aquando da defesa de uma tese de doutoramento que um estudante americano tinha preparado comigo. O cardeal Baum foi assistir, em companhia do cardeal B. Dearden, ex-arcebispo do candidato. O Papa enviou-me várias vezes cumprimentos durante a minha doença, a qual, repito, parecia permitir poucas esperanças.

Depois da experiência que viveu, que reforma gostaria de ver na Congregação?

Uma autêntica maturidade exige uma assimilação completa da experiência do passado que todos nós temos no inconsciente. Sobre o Palácio da antiga Inquisição romana pesa o fardo incrível de um passado que, de modo nenhum, honra a Igreja e que é mais um obstáculo ao ministério do sucessor de Pedro. O cardeal Frings, de Colónia, no memorável discurso que fez no Concílio, falou do Santo Ofício como de um escândalo para todo o mundo. No decorrer da conferência de imprensa, em inglês, a que era habitualmente convidado, todos os jornalistas me pediram um comentário a essa intervenção, porque estavam persuadidos de que tinha sido eu o seu redactor. Quando os desmenti, alguns perguntaram-me quais seriam, na minha opinião, os remédios que deveriam estar na base de uma reforma do Santo Ofício. Respondi com uma paIavra: «discontinuity», «ruptura». Embora assumindo o seu passado, a Congregação deve separar-se dele corajosamente.

O primeiro passo nesse sentido, parece-me, deveria ser uma pausa para uma reflexão de alguns anos, durante os quais deveria suspender a toda a sua actividade: um verdadeiro período sabático. A Igreja aguenta bem sem essa estrutura, como o prova a Igreja ortodoxa que tão bem conservou a sua fé e uma grande espiritualidade, não tendo semelhante instituição.

É, portanto, favorável à extinção deste dicastério?

Não afirmo isso, porque não sou anti-institucionalista. Mas proporia, depois dessa pausa, uma nova estrutura mais leve, sobretudo no concernente à competência relativa a matérias estranhas à doutrina da fé, como as relativas a delitos ligados ao sacerdócio, que deveriam ser entregues a outro organismo. Urna estrutura, em que estariam reunidas todas as escolas existentes na Igreja universal, a fim de tornarem a doutrina da fé e a doutrina moral inteligíveis e credíveis a todas as culturas, para além da mera conservação de conceitos abstractos. Tudo isso, num espírito ecuménico, com uma grande competência no conhecimento sociológico das diferentes culturas, da arte da comunicação, da história da Igreja e, muito particularmente, da Inquisição. Em segundo lugar, é necessário fixar normas de procedimento muito precisas, hoje totalmente insuficientes para não dizer inexistentes. Antes de mais, estabelecer uma nítida distinção entre acusador e juiz, como em qualquer tribunal que se preze, e dar uma publicidade total a ambos. Efectivamente, como será possível continuar com o costume actual (como se conclui igualmente dos documentos do meu processo) que prevê que o acusador deva permanecer secreto? Mas, ao pertencer ao mesmo organismo, torna-se também juiz num processo, sem defensor nem regras claras. Em terceiro lugar, é necessário um colégio de peritos que tenha como tarefa a conciliação preventiva, para evitar, se possível, o processo propriamente dito, permitindo um diálogo livre e franco em completa igualdade. Esse organismo teria certamente permitido evitar o meu processo.

Existe presentemente um tribunal autónomo que julga as acusações formuladas pela Congregação?

É precisamente isso que falta. Pensei sempre num tribunal que estivesse à altura da cultura moderna, com diversos níveis de juízo, e com a possibilidade de recusar o juiz designado. A propósito, penso com interesse na competência dos juízes italianos. Mas para já (porque seria utópico pensar na realização imediata de uma tal reforma), poder-se-ia conceber uma espécie de «Amnistia Internacional», que desempenharia a sua missão no interior da Igreja católica com a transparência que o mundo hodierno exige, insistindo muito particularmente no anúncio do Evangelho. É que isto, com toda a certeza, não pode continuar assim!

Desejo tudo isto, porque estou convencido da necessidade da autoridade da Igreja. Não se trata de um discurso contra o magistério do Papa e do Colégio dos bispos; quero apenas contribuir para uma transparência e para uma abertura sempre mais conformes com o testamento de Cristo: «Que todos sejam um». Na verdade, a perspectiva ecuménica deve inspirar a reforma desejada, precisamente para uma melhor compreensão recíproca, entravada pela prática actual que, pelo contrário, suscita um clima patológico de suspeitas e de denúncias injustas e caluniosas. Seja como for, devemos todos acreditar na inevitabilidade de uma transformação. E é exactamente neste optimismo que enraíza a minha decisão de tornar público o meu caso, que é bastante sintomático.

Presentemente, o responsável da Congregação para a Doutrina da Fé é o teólogo Joseph Ratzinger. O senhor, que nunca teve aborrecimentos com este novo Prefeito, como é que vê neste lugar um teólogo de uma escola muito especial?

Muito bem. Mas o problema continua a ser o da reforma da instituição: os peixes não poderão viver com muita saúde num lago envenenado. Portanto, antes de mais, uma instituição nova, sem a funesta continuação do passado, aberta a todas as escolas teológicas para um desenvolvimento positivo da comunicabilidade do Evangelho. (Capítulo 5)

 

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“A Igreja que eu amo” (Ed. Figueirinhas, Porto/Lisboa 1992, com Prefácio de Dom Manuel da Silva Martins) é o título da edição portuguesa do livro «Quelle morale pour l’Église», CERF (1989), por sua vez traduzido a partir da versão italiana das “Edizioni Borla” (1989), intitulada «Fede storia morale».

O link abaixo oferece a Entrevista na íntegra, a qual anda também à volta das “tensões” ante-, durante e pós-conciliares; da questão da polémica encíclica «Humanæ Vitæ»; dos Documentos da Congregação para a Doutrina da Fé emitidos durante os vinte anos pós-conciliares; da questão do Papado, bem como de algumas perspectivas para a Moral do Terceiro Milénio (isto para além das relações do Pe. Bernhard Häring com o Santo Ofício, acima editadas). No final do livro existe o «Manifesto de Colónia», as conclusões do «Congresso dos Moralistas em Latrão» e as peças do «Processo» movido pela Congregação da Doutrina da Fé contra B. Häring.

 

EDIÇÃO PORTUGUESA AQUI

 

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Teólogo Eugen Drewermann®

 

A PSIQUE CLERICAL VAI ALÉM DO GÉNERO…

“Não haverá homilia por ocasião da tomada de hábito de uma religiosa ou da ordenação de um sacerdote que deixe passar a oportunidade sem recordar as palavras pronunciadas por Jesus na última Ceia: «Vós não me escolhestes a mim, eu vos escolhi a vós» (João 15,16) ou as da parábola da videira e dos ramos: «Sem mim, nada podeis fazer» (João 15,5). Do ponto de vista teológico, faz parte integrante que cada eclesiástico considere estas palavras como a chave da sua nova existência ‘vivida dentro da função’: ser eclesiástico agora não é uma coisa a mais dentro da sua vida, mas aquilo que é decisivo de toda a sua existência, algo que ele deve não a si mesmo, mas única e exclusivamente à graça divina. 

“Daí que seria um sinal de altivez, orgulho e insurreição que alguém pense que foi a sua própria pessoa que escolheu a função eclesiástica, que a revestiu e lhe deu realização. Pelo contrário: o que um eclesiástico é, e o que marca no tempo e na eternidade, é a circunstância de Deus actuar nele e por ele. Por si, nada é ‒ eis o que deve construir o parecer máximo da sua vida; somente a sua função como eclesiástico o determina e distingue. (…) A «graça de estado» que assim lhe é comunicada impõe e estimula a que se despoje da sua existência inteira e da inteira consciência do seu valor pessoal, em favor do valor objectivo da função. (…) 

“Só quem sentir a necessidade interior de deixar que a sua existência seja virada do avesso e de consentir que o campo pessoal seja transmutado para o institucional e ainda por cima veja em tudo isso a graça da libertação não só de si mesmo como em vista de si mesmo, só esse é que corresponde totalmente ao estado ideal da psique clerical. 

“É o ponto de vista de uma submissão total, de uma resignação verdadeiramente desesperada; é o autêntico oposto à filosofia de Sartre, e, em ponderação teológica, é uma ideologia extrema da astenia e da limitação do ego ‒ contraposição máxima de uma Psicologia da «realidade pessoal» e do «querer-se ser quem se é».”

 

Eugen Drewermann, «Funcionários de Deus», Inquérito, Mem Martins - Portugal 1994, p. 51.

 


[1] Cf. «Que o serviço pelo ideal da unidade dos cristãos presida a todo o compromisso da Igreja», in Osservatore Romano, de 6 de Dezembro de 1987, p. 4.

[2] Carta do assessor do Santo Ofício, Pietro Parente, a don Giovanni Rossi, de 24 de Fevereiro de 1964. Esta carta do Secretário do Santo Ofício confirma posteriormente a distância, e até, por vezes, a oposição, entre certos meios da Cúria e o PapaH. Fesquet escrevia, em 29 de Outubro de 1963, a propósito de Congar: «Recentemente o Papa, numa das suas audiências privadas, afirmou (não se trata de um boato, mas de uma certeza...): O P. Congar é um dos teólogos que mais contribuíram para a preparação do Vaticano II e o seu pensamento honra muito os Padres conciliares.”» (Cf. H. Fesquet, «Diário del Concílio», Ed. Mursia, 1967, p. 265; idemHenri Fesquet, «Diário del Concílio», Ed. Nova Terra, Tamarit, 191 – Barcelona-11, 1967, pp. 320-321).

[3] Como se conclui da nota nº 48/66 da Congregação para a Doutrina da Fé; cf. Il Regno. Att. nº 16, 1968, p. 427.

[4] Cf. «Alcuni punti della dottrina teológica del Prof. H. Küng», in Osservatore Romano, de 19 de Dezembro de 1979; Il Regno, doc. 1980, p. 13, Att. nº 2. p. 35.

[5] Pietro Parente foi ‘feito’ cardeal durante o Consistório de 26 de Junho de 1967 e substituído no cargo de Secretário por Mons. Philippe; o cardeal Ottaviani apresentou a sua demissão e foi substituído pelo arcebispo do Zagreb, o cardeal Franjec Seper, em 8 de Janeiro de 1968. No dia 26 de Fevereiro de 1973, Jérôme Hamer foi nomeado Secretário da Congregação para a Doutrina da Fé, para o lugar de Philippe, ‘feito’ cardeal.