teologia para leigos

27 de julho de 2018

EUTANÁSIA 1

Cardeal D. António Marto


A EUTANÁSIA (CATÓLICA) À PORTUGUESA

A EUTANASIA DEVE SER DESPENALIZADA?

"O problema da eutanásia reside aqui: a curto prazo, a 'nova' mentalidade da 'eliminação permitida' passará a 'eliminação exigida'. E a sociedade, que ainda se vai comprometendo com as fragilidades, qualquer dia tentará bani-las, banindo as pessoas"

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Confira a Opinião do Bispo do Porto, D. Manuel Linda e a opinião do arcebispo Tolentino Mendonça, e confronte-as com a realidade que se passa nos «Cuidados Continuados» na Santa Casa da Misericórdia (Reportagens da TVI), com 2 Link’s neste TEXTO AQUI.




25 de julho de 2018

A MORTE ASSISTIDA 7/7




A dimensão política do sofrimento
A partir de Ronald Dworkin e Eric J. Cassell

Paralelamente, mas cada um a seu modo, Ronald Dworkin, filósofo do Direito e da Política, e Eric J. Cassell, médico internista que, após se ter reformado em 1998, se manteve ligado aos cuidados paliativos, insistem no carácter único do ser humano, melhor, de cada ser humano. E como ambos acentuam de modo radical este carácter único, é também de modo radical que ressalta a desrazoabilidade de, em questões bioéticas e biopolíticas tão intensas quanto a da legitimidade da morte assistida (eutanásia e/ou suicídio medicamente assistido) e a da interpretação a dar ao sofrimento, se optar por respostas uniformes que ignoram a complexidade que cada um de nós é. É também por isso – de modo distinto mas essencial – que eles insistem em que só conhecendo a narrativa pessoal de quem sofre é que é possível compreender verdadeiramente a posição do doente perante a morte assistida ou o modo como encara e vive o seu sofrimento. A meu ver, é esta atenção muito especial que cada um destes autores dá às "narrativas pessoais" que faz com que ambos, embora através de argumentações muito distintas, aceitem a legitimidade da morte assistida.
 Esta é precisamente uma das ideias que tentarei defender e desenvolver ao longo deste texto. Por outro lado, esta mesma atenção especial que cada um dos autores atribui às narrativas pessoais far-me-á ressaltar a dimensão política do sofrimento, em todas as fases da vida e não apenas no seu final, ideia que podemos considerar implícita ou em não-contradição com as obras aqui analisadas, mas que não surge nelas de forma clara, e muito menos de forma desenvolvida. Para chegar a estas conclusões basear-me-ei no famoso e clássico livro de Ronald Dworkin, «Life's Dominion. An Argument about Abortion and Euthanasia» (1993), e no igualmente famoso e clássico livro de Eric Cassell intitulado «The Nature of Suffering and the Goals of Medicine» (1991; 2004, 2.ª edição), assim como num seu artigo de 2004 (cf. Cassell, «When Suffering Patients Seek Death», in QUILI, Timothy & BATTIN, Margaret (eds.), «Physician-Assisted Dying. The Case for Palliative Care & Patient Choice», Baltimore and London: The John Hopkins University Press, 75-88, 2004). Esta perspectiva obrigar-me-á a revisitar posições de Dworkin já expostas (sobretudo, neste livro: «Morte assistida e outras questões de fim-de-vida», Almedina, em 1.2.). Ainda assim, acabei por considerar produtiva esta minha opção, não só pela riqueza do pensamento de Dworkin neste âmbito, mas também por essa riqueza ajudar a perceber melhor a perspectiva de E. Cassell, contribuindo, assim, os dois, de forma muito significativa, para a reflexão sobre a temática extremamente importante daquilo que designei como a dimensão política do sofrimento.

1. Ronald Dworkin: uma narrativa sobre as condições necessárias para que cada um possa defender os seus melhores interesses
1.1. O valor intrínseco da vida humana
Dworkin está convencido de que a maior parte da humanidade tende a pensar que a vida humana tem valor por si mesma – um valor intrínseco –, independentemente de outros valores que lhe possam ser atribuídos. Para o entendermos melhor, vejamos como Dworkin distingue entre alguns tipos de valores. Assim, podemos dizer que algo tem "valor intrínseco" por ter um valor incrementalmente valioso, ou seja, quanto mais possuirmos esse objecto ou ele «ser» melhor. Nesta categoria podemos colocar "o conhecimento", que tem valor em si mesmo, mas que liga a ele a necessidade de ser cada vez maior, mesmo em áreas que aparentemente não trazem benefícios directos à humanidade, como a cosmologia. Contudo, a vida humana, embora tenha valor em si mesma, não tem, segundo Dworkin, um valor incremental: não dizemos que, quanto mais vida humana houver no planeta, melhor. O critério quantitativo não se aplica aqui. Por isso, Dworkin irá dizer que a vida humana, em vez de um valor incremental, tem um valor intrínseco que reputa de sagrado ou inviolável: «o seu valor é independente do que as pessoas gostam, desfrutam ou necessitam, ou do que é bom para elas» (Dworkin, 1993: 71). Não se trata, tão-pouco, de algo que é instrumentalmente valioso, no sentido de ter utilidade para conseguir um bem, como é o caso do dinheiro ou dos medicamentos. Tão-pouco estamos a falar de algo que é apenas subjectivamente valioso, como pode ser para mim apanhar muito sol ou ver filmes de determinado realizador.
Evidentemente, a vida humana é valiosa subjectivamente, na medida em que tem um valor pessoal para cada um de nós, assim como instrumentalmente importante, na medida em que beneficia os outros (por exemplo, fomos muito beneficiados pelas existências de Mozart ou Pasteur). Mas o que Dworkin quer ressaltar na vida humana é precisamente «algo que devemos respeitar, honrar e proteger por ser maravilhoso em si mesmo» (ibid.: 75), de modo que a sua destruição deliberada provocaria em nós uma sensação de vergonha (neste contexto, o termo «shame» pode ser abundantemente encontrado no livro de Dworkin). Neste caso, Dworkin diz-nos que costumamos encontrar dois modos de transformar algo em sagrado: através de um processo de associação ou designação – por exemplo, a bandeira que acaba por ser identificada com a vida de um país e representá-lo – e através do modo como algo chegou à existência, sobretudo através da sua história. Neste último caso, Dworkin chama-nos sobretudo a atenção para as obras de arte, as espécies animais e as culturas humanas. O que nestes três casos estaria presente seria um grande investimento criativo (quer fosse de ordem humano ou biológico) que nos sentiríamos obrigados a respeitar de um modo muito especial. Se todo esse investimento criativo fosse perdido, sentiríamos que um grande esforço natural ou biológico tinha sido frustrado, o que, já se disse, nos traria um sentimento de vergonha, por não conseguirmos dar condições de subsistência a tanto esforço desenvolvido.
Repare-se, no entanto, que estes três exemplos não se enquadram na categoria do que é incrementalmente valioso: não gostaríamos propriamente de ter mais pinturas de Botticelli, nem mais espécies animais vivas ou culturas humanas. O que valorizamos é o facto de terem chegado a existir, pelo esforço criativo que representam. Dworkin introduz ainda alguns matizes nestas categorizações: crê que a maior parte de nós admite graus de sagrado e, por outro lado, que somos selectivos na atribuição do carácter de inviolabilidade. Em termos concretos, quer isto dizer que atribuiríamos muito maior gravidade à destruição de uma pintura de Bellini do que à destruição de uma pintura de um autor menor e que, por exemplo no campo da natureza, não é simplesmente o facto de algo ter derivado de um longo processo natural que lhe confere imediata inviolabilidade. Este último caso seria o dos poços de petróleo, dos depósitos de carvão e de algumas espécies animais: «as nossas escolhas são moldadas pelas nossas necessidades e reflectem-nas, e, de modo semelhante, moldam outras opiniões que tenhamos e são moldadas por elas» (ibid.: 80).
Apesar destas ressalvas, vemos que as duas principais tradições do sagrado que Dworkin menciona são as que derivam do respeito por fortes investimentos naturais ou humanos. Na discussão do valor sagrado ou inviolável da vida humana, problemática que se coloca sobretudo no domínio das questões éticas sobre o aborto e a morte assistida, os argumentos expostos por Dworkin alicerçar-se-ão nestas duas tradições e no valor moral relativo dado a cada uma delas.

1.2. Discordâncias filosófico-espirituais acerca do valor intrínseco da vida humana
Ateus, agnósticos e crentes podem partilhar a mesma convicção de que a vida humana é extremamente valiosa, ao ponto de a considerarem sagrada, no sentido de que todo o respeito lhe é devido. Porém, os motivos que levam a essa mesma convicção partilhada podem revestir-se, como se disse já, de matizes diferentes, levando, em casos concretos da vida humana, a apreciações igualmente diferentes. Assim, no caso do aborto, os grupos menos conservadores (ou mais liberais) tenderão a olhar à qualidade das vidas em presença, não simplesmente ao facto natural de haver uma vida humana em gestação. Interessará identificar as situações em que haja menos frustração da vida (termo usado pelo próprio Dworkin, «frustration», cf., por ex., ibid.: 88), o que, nesta perspectiva, não poderá ser simplesmente apreciada ou medida pela perda de vida que possa ocorrer, no sentido de implicar a sua morte. Este último critério não é o mais adequado para Dworkin, por se centrar sobretudo no futuro e suas possibilidades, ignorando que é fundamentalmente em função do que já aconteceu no passado que podemos apreciar melhor o que denomina de desperdício de vidawaste of life», cf, por ex., ibid.: 86). Aliás, o que mais distinguirá a posição conservadora da posição liberal será precisamente o facto de esta última, perante escolhas difíceis e trágicas sobre o melhor modo de manifestar respeito pelo valor intrínseco da vida humana, estar sobretudo preocupada com o investimento humano já feito nessa vida – tanto mais importante quanto mais significativo ou substantivo – do que numa existência natural cujo futuro se desconhece, ou já se sabe ir ser extremamente penoso, para o próprio ou familiares. Por outras palavras, no campo mais liberal acredita-se «que o desperdício de vida, medido em termos de frustração mais do que de mera perda, é muito maior quando a vida de uma jovem mão solteira é arruinada do que quando um feto, nos seus inícios, deixa de viver, numa altura em que o investimento humano na sua vida é ainda muito negligenciável» (ibid.: 99; outro caso em que os liberais tendem a aprovar o aborto é quando se pressupõe que a vida do feto será altamente frustrada por vir a sofrer de grande deformidade). Daí que esta perspectiva liberal insista mais na vida que as pessoas já estão a viver do que na vida incerta que o futuro poderá trazer-lhes. Em linguagem grega, a que outros autores também já recorreram, Dworkin alerta-nos para a distinção entre zôé, «vida física ou biológica» (ibid.: 82) e bios, a vida «constituída pelas acções, decisões, motivos e acontecimentos que compõem o que agora chamamos uma biografia» (ibid.: 83). Na nota 7 do capítulo 3, Dworkin reconhece que a distinção foi já explorada por James Rachels, e, de facto, um dos grandes fios condutores da obra de Rachels — «The End of Life» — baseia-se na ideia de que há uma grande diferença entre «estar vivo e ter uma vida» (Rachels, 1987: 25), ou seja, que os seres humanos não estão simplesmente vivos, no sentido de terem um organismo que funciona biologicamente, mas que têm uma vida biográfica. Nesta perspectiva, se a morte é uma infelicidade, é-o acima de tudo por pôr termo a uma vida biográfica e não a uma vida biológica (cf. ibid.: 50). É também nesta perspectiva que se entende um exemplo dado por Rachels, em que a família de um doente que ficara em coma durante oito anos antes de falecer, comentou deste modo o seu falecimento: «O Miguel morreu com a idade de 34 anos depois de ter vivido 26» (ibid.: 55). Em tempos mais recentes, é de assinalar que é precisamente pela distinção entre zôé e bios que começa a Introdução do livro de Giorgio Agamben, «O poder soberano e a vida nua. Homo Sacer» (1998; original de 1995. A distinção entre vida biológica e vida biográfica foi já abordada neste livro – «A morte assistida e outras questões de fim-de-vida», Almedina –, sobretudo no cap. II, ponto 2.2.2).
Aparentemente, é também o interesse pela preservação da vida que foi objecto de vários investimentos humanos – ou seja, a vida biográfica – que torna os liberais mais sensíveis à defesa de legislações sociais que, entre outras coisas, defendam mais direitos para os deficientes. Nesta perspectiva, não há razões para fazer equivaler a morte prematura evitável à frustração mais grave que pode ocorrer à vida humana, tanto no caso do aborto como no da morte assistida. Não quer isto dizer, no entanto, que, para Dworkin, o aborto – ou qualquer terminação deliberada da vida – deva ser encarado com ligeireza, precisamente pelo imenso respeito que toda a vida humana nos merece (porque este texto não visa directamente esta problemática, não vou aqui explanar a argumentação de Dworkin, presente em vários dos capítulos do seu livro, segundo a qual o aborto é, a seu ver, condenado por causa do valor intrínseco dado à vida humana, e não pelos supostos interesses e direitos de que o embrião e o feto disporiam como pessoa).
Não obstante estas considerações, Dworkin não crê que a maior parte das pessoas possa ser situada claramente num extremo ou noutro destes posicionamentos – importância exclusiva dada à vida biológica ou dada à vida biográfica –, mas que é a sua maior aproximação a um dos lados que determina o seu carácter mais ou menos conservador ou liberal, mais ou menos religioso ou secular. Por outro lado, Dworkin pensa que estes posicionamentos têm na base uma apreciação do valor da vida humana que é de ordem filosófico-espiritual, devendo o Estado abster-se de pretender impor aos seus cidadãos convicções desta ordem. Mais ainda, pensa que a consideração de que o valor da vida humana transcende ou está para além do valor que a própria pessoa lhe possa dar, possuindo assim um valor cósmico impessoal e objectivo, é algo que caracteristicamente define uma crença religiosa, mesmo que sustentada por pessoas que se consideram alheias ao religioso. Logo, é em nome da liberdade religiosa que os estados democráticos deverão impedir-se de tentar obrigar os cidadãos a optar entre interpretações distintas do valor sagrado da vida humana, o que não quer dizer que não devam encontrar formas de incentivar o debate e contribuir para a tomada de posições esclarecidas e não para o conformismo. Nas palavras de Dworkin,

"Um estado não pode coarctar a liberdade, em ordem a proteger um valor intrínseco, quando o efeito sobre um grupo de cidadãos seria especialmente grave, quando a comunidade está seriamente dividida sobre o respeito que esse valor requer, e quando as opiniões sobre a natureza desse valor reflectem convicções essencialmente religiosas que são fundamentais para a personalidade moral" (Dworkin, 1993: 157).

No entanto, foi assim que procedeu o Supremo Tribunal dos Estados Unidos no famoso caso de Nancy Cruzan, quando a maioria afirmou que era legítimo continuar a manter a jovem mulher viva de modo a reafirmar o valor da defesa da vida humana, apesar de considerar que essa decisão ia decerto contra a defesa dos melhores interesses de Nancy — Nancy estava em estado vegetativo persistente há vários anos, sem qualquer expectativa de recuperação, e eram os próprios pais a pedir que a alimentação e a hidratação artificiais cessassem (cf. ibid.: 12 e 194-5). Como se diz mais adiante neste livro, posteriormente, com recurso a novos dados, foi obtida autorização judicial para «desligar as máquinas» e deixar Nancy morrer – cf. Colby, 2002). Cf. o «caso Nancy Cruzan» [Missuri] em «Eluana – a liberdade e a vida», no seguinte link, sobretudo na p. 13s:
(…)

Laura Ferreira dos Santos, «A dimensão política do sofrimento - A partir de Ronald Dworkin e Eric J. Cassell», in "A morte assistida e outras questões de fim-de-vida", Almedina, Coimbra. ISBN 978-972-40-6106-1.







24 de julho de 2018

A MORTE ASSISTIDA 6/7




Costumo dizer [ ... ] que nesta matéria [a da morte assistida] as autoridades competentes conjugam duas tácticas: a do muro de betão e a do edredão; o muro de betão porque elas estão decididas a não alterar nem um bocadinho o fundo do problema; o edredão para sufocar o mínimo procedimento susceptível de provocar um debate público, mesmo que tenham de fechar os olhos a comportamentos que, em princípio, reprovam (Jacques Pohier, «La mort opportune», Seuil, 1998: 243).


Morte Assistida: uma reivindicação perversa ou a possibilidade, para alguns, de poder amar a vida até ao fim?[1]

Sem entrar para já em pormenores mais complexos, partamos de uma definição breve de morte assistida: trata-se da antecipação voluntária da morte em casos clínicos extremamente graves, irreversíveis, e no respeito de todas as salvaguardas existentes nas leis despenalizadoras. Pode revestir-se de duas formas − a auto e a hetero-administrada −, habitualmente designadas de «suicídio (medicamente) assistido» e «eutanásia».
O termo «eutanásia» é objecto de grande controvérsia, atendendo ao facto de, historicamente, ter assumido significados muito distintos, pluralidade de significações contraditórias que ainda hoje permanece. Neste campo, saliente-se apenas que o termo eutanásia, embora pouco frequente ao longo dos séculos, das poucas vezes em que era usado, era-o para indicar uma morte «natural» pacífica, sem dores nem angústia, numa transição suave para uma vida para além desta. Foi nesta acepção que Francis Bacon o utilizou, no início do século XVII, um dos raros autores antigos em quem encontramos o termo − mais concretamente, o conceito de euthanasia medica (cf., por ex., Bacon, 1905 e 1952 e, neste livro "A morte assistida e outras questões de fim-de-vida", Almedina, o cap. II.1, em que se aborda também o «Tratado sobre a Eutanásia», do grego Eugenius Voulgaris). Portanto, neste caso, morrer de eutanásia não implicava antecipar a morte, mas apenas morrer em paz.
Ainda quanto ao significado do termo «eutanásia», deve-se ter em consideração que a seringa hipodérmica é apenas uma conquista do século XIX. Através dela, era possível introduzir, no sistema sanguíneo, substâncias entretanto descobertas e que produziriam a morte, se dadas em determinada dosagem. Mas antes dessa descoberta, dificilmente podemos imaginar uma eutanásia tal como hoje a entendem os países que a despenalizaram: Holanda, Bélgica e Luxemburgo[2]. Por exemplo, na Lei despenalizadora luxemburguesa de 16 de Março de 2009, sobre a eutanásia e a assistência no suicídio, lei que segue de perto a belga, afirma-se no seu artigo 1º que se deve entender por eutanásia «o acto, praticado por um médico, que intencionalmente põe fim à vida de uma pessoa a pedido expresso e voluntário desta» (Loi du 16 mars 2009). No mesmo artigo, a assistência ao suicídio é definida como «o facto de um médico ajudar intencionalmente uma outra pessoa a suicidar-se ou lhe fornecer os meios para este fim, a seu pedido expresso e voluntário» (ibid.).
Em que circunstâncias é que estes actos poderão ocorrer? Para além de outros requisitos exigidos na lei, permito-me salientar o ponto 3 do artigo 2.°, em que se afirma que o doente deve encontrar-se «numa situação médica sem saída e evidenciar um sofrimento físico ou psíquico constante e insuportável, derivado de uma afecção acidental ou patológica" (ibid.).
Sem estas precisões, o termo eutanásia corre o risco de se tornar um significante de significado impreciso, imprecisão que os seus opositores gostam muito de explorar, de modo a lançar a confusão e o medo. De facto, a eutanásia já teve conotações eugénicas, no sentido de ser um método de eliminar quem se supunha poder deteriorar a «raça», e já teve conotações economicistas, no sentido de se eliminar quem, com a sua doença, pesava no orçamento dos Estados. E depois de os nazis terem empreendido um denominado "Programa Eutanásia", que mais não era senão um programa de assassínio (cf. por ex. Friedlander, 1995)"[3], os opositores da escolha no morrer estão constantemente a brandir este velho fantasma. Ainda em 2003, uma publicação do Conselho da Europa afirmava que a eutanásia tanto podia ser a pedido como sem ele (Conseil de l'Europe, 2003: 167). Depois desta história terminológica infeliz, penso que ao utilizarmos o termo «eutanásia» devemos imediatamente acrescentar, sobretudo se nos encontrarmos entre público pouco esclarecido sobre a questão, que apenas temos em vista a eutanásia activa e voluntária. «Voluntária» porque, como o termo indica, é realizada a pedido do próprio, «activa» para a distinguir do que alguns manuais antigos de bioética ainda designam como «eutanásia passiva», querendo assim apontar sobretudo para a limitação do esforço terapêutico, já considerado inútil e perto do encarniçamento. Por outro lado, temos também de usar com cautela a expressão «suicídio medicamente assistido», pois sabemos da oposição que algumas associações americanas a favor da escolha no morrer manifestam perante o uso do termo suicídio, pelo facto evidente de que as mortes de que estamos a falar diferirem muito dos suicídios comuns (ver mais pormenores sobre a questão americana em: «Ajudas-me a morrer? A morte assistida na cultura ocidental do século XXI», Laura Santos, Sextante, 2009).
A morte assistida é por muitos considerada uma reivindicação «perversa», no sentido de contrariar um princípio longamente prevalecente: o da santidade ou inviolabilidade da vida humana. No entanto, o desenvolvimento de uma moral secular, enfatizando a importância da qualidade de vida e da autonomia pessoal, abriu caminho para problematizar a noção de «vida» através dos conceitos de «vida biológica» e «vida biográfica». Deste modo, coloca-se a questão de saber se é a reivindicação da morte assistida que é uma reivindicação perversa, ou, antes, a sua proibição. Mais ainda, coloca-se a questão de saber se, como o título deste capítulo explicita, a sua despenalização não é o modo que algumas pessoas encontram para poderem amar a vida até ao seu final. Para nos adensarmos na complexidade desta problemática, proponho que, em seguida, nos confrontemos com casos concretos que nos ajudem nessa tarefa. (…)

Laura Ferreira dos Santos, «Morte Assistida: uma reivindicação perversa ou a possibilidade, para alguns, de poder amar a vida até ao fim?», in "A Morte Assistida e Outras Questões de Fim-de-Vida", Almedina, Coimbra 2015, pp.27-66. ISBN 978-972-40-6106-1.







[1] Este título é parcialmente inspirado em palavras de André Comte-Sponville num comentário a um livro de Catherine Leguay: «Não deixemos que a degradação ou a agonia nos façam lamentar o termos nascido; dêmo-nos antes os meios de amar a vida até ao fim» (in Leguay, 2000: 197).
[2] Quanto à Suíça, não existe eutanásia, mas apenas suicídio (medicamente) assistido (sobre estes países, cf. Laura Santos, «Ajudas-me a morrer? A morte assistida na cultura ocidental do século XXI», Lisboa:Sextante, 2009). Há quem fale de suicídio medicamente assistido apenas quando o médico está efectivamente presente até ao fim do acto.
[3] Nesta obra, Henry Friedlander (1930-1912), notável historiador do Holocausto (sendo ele próprio um sobrevivente dos campos), traça o itinerário que, segundo ele, partiu do chamado "Programa Eutanásia" e desembocou na "Solução Final". Ao lado da página inicial com o título do livro, colocou, em alemão, a autorização de Hitler (única cópia a ter chegado até nós, pois o original e todas as outras cópias foram destruídas), no sentido de «alargar a competência de certos médicos, designados pelo seu nome, de modo a que fosse concedida a morte misericordiosa [Gnadentod] aos doentes que, depois de um diagnóstico reflectido [...], fossem considerados incuráveis». Esta autorização foi assinada em meados de Outubro de 1939, mas datada de 1 de Setembro do mesmo ano, para assim dar a ideia de que se tratava de uma medida tomada em tempo de guerra.




18 de julho de 2018

A MORTE ASSISTIDA 5/7



Fim-de-vida e não-abandono.
Um tríptico a partir de Timothy E. Quill[1]

«Penso que este [T. Quill] é o tipo de médico que gostaria de ter junto de mim quando estiver a morrer: sério, cuidadoso e solícito – capaz de saber ajuizar bem de que tipo de «ajuda» eu possa estar a precisar e pretender quando pedir «ajuda médica no morrer» (Constance E. Putnam, «Hospice or Hemlock? Searching for Heroic Compassion», Foreword by Thimothy E. Quill, Westport (Connecticut)/London:Praeger, 2002: 138).


I. Introdução: a razão de ser de um tríptico em torno do não-abandono
Numa perspectiva de não-abandono, escreveu-se neste livro que as pessoas a ponto de morrer foram já consideradas os nossos "boat people»: querem ser acolhidos dentro das nossas fronteiras, mas são constantemente repelidos para os seus países de origem, de vulnerabilidade extrema. Contra esta situação tem-se debatido Timothy E. Quill, respeitado médico norte-americano, Professor de Medicina, Psiquiatria e Medical Humanities na Universidade de Rochester, School of Medicine and Dentistry (Nova Iorque), tendo, durante oito anos, dirigido uma unidade de cuidados paliativos.[2]
Nos Estados Unidos, o seu nome tornou-se conhecido fundamentalmente por duas razões. Por um lado, por ter publicado, em 1991, no New England Journal of Medicine, um artigo (NEJM, 1991;324:691-694) em que assumia a sua cumplicidade no suicídio de uma doente sua de longa data, num caso de leucemia muito grave.[3] Por outro, por ter sido um dos médicos que, entre 1994 e 1997, esteve envolvido numa acção que chegou ao Supremo Tribunal dos EUA e que visava alterar a lei do estado de Nova Iorque sobre a proibição do suicídio medicamente assistido. T. E. Quill tem dedicado uma grande atenção às questões de fim-de-vida, preocupando-se com o cuidado e os direitos das pessoas que estão para morrer. Grande adepto dos cuidados paliativos, pensa que nem sempre eles conseguem fornecer a melhor resposta, pretendendo a despenalização do que, à falta de uma expressão mais adequada, se chama habitualmente «suicídio medicamente assistido», como instância de último recurso para os casos de processos de morte que implicam um sofrimento impossível de controlar, quer seja ou não acompanhado de dor física.
Fundamentalmente, Quill pretende que entre quem cuida e quem é cuidado se possa estabelecer uma relação estreita pautada pelo compromisso de não-abandono por parte de quem cuida. A partir da leitura de três dos seus livros (e de um que editou em 2004 conjuntamente com Margaret Battin), o capítulo que aqui apresento pretende elaborar um tríptico em torno das questões ligadas ao morrer, à morte e ao não-abandono de quem se encontra gravemente doente ou na fase final da sua vida. Embora se trate de um tríptico escrito, o que lhe serve de inspiração e modelo são na verdade os trípticos medievais e renascentistas da pintura ocidental e, dentro deles, os que também têm os painéis laterais posteriores pintados. De facto, antes de escrever este texto desenhei vagamente em duas folhas o tríptico de que queria falar, como se alguém pudesse depois vir a tomá-lo em conta e concretizá-lo plasticamente. Nunca antes como neste texto senti a necessidade de utilizar este recurso prévio, nem nunca pensar poder vir a utilizá-lo. Penso que, fundamentalmente, dois motivos me conduziram nesta direcção.
Em primeiro lugar, o facto de já ter investigado muita literatura sobre eutanásia e suicídio assistido que, frequentemente, se faz acompanhar de vários casos concretos em que, consoante as/os autores, se vê ou não a pertinência de recorrer a essas hipóteses. Muitas dessas histórias permaneceram no meu cérebro, como se se tratasse de pequenos excertos de filme, com os dramas vividos pelas suas personagens principais. O próprio Timothy Quill é considerado um óptimo «story-teller», estando um dos seus livros – «A Midwife through the Dying Process», (1996) – fundamentalmente dedicado à descrição do que vai acontecendo a nove «almas» em processo de morte. Nove histórias dramáticas, nove documentários que se poderiam realizar em torno de cada uma delas.
Por outro lado, o cinema do início deste século XXI – e quem diz cinema diz também imagens – tem-nos ajudado a pensar nestas questões, como já se disse neste livro no início do capítulo dedicado à Philosopher's Brief. De um modo ainda mais decisivo do que nos livros, os filmes impregnam-nos de histórias e de imagens. Por isso, para mim, debater a temática das diversas formas de «morte assistida» está associada a pessoas, a casos difíceis com que se debatem, a alguns dos seus nomes, mesmo que fictícios. Como que reforçando implicitamente esta minha abordagem, Michael J. Hyde, a propósito de Timothy Quill, afirma o seguinte:
«[ ... ] depois de ler as suas narrativas [o autor refere-se também a Joni Eareckson Tada] sobre a humanidade ferida, fica-se com a sensação de que se o debate sobre a eutanásia for alguma vez decidido, o resultado será determinado, pelo menos numa grande parte, por aqueles que contam as «melhores» histórias sobre os actos heróicos de pessoas que, como eles próprios, têm frequentemente de olhar a morte de frente» (Hyde, 2001: 231).
Talvez que, de facto, o debate sobre a eutanásia e o suicídio assistido seja na verdade «ganho» por quem souber contar as melhores histórias em torno deles, não no sentido de histórias melhor compostas literariamente, mas histórias mais «verdadeiras», no sentido de nos revelarem toda a complexidade das problemáticas nelas envolvidas. Segundo o próprio Timothy Quill, «Se vai haver mudança, ela será accionada pelas histórias e paixões destas testemunhas» (Quill, «Death and Dignity: Making Choices and Taking Charge», 1993, p. 22), ou seja, destas pessoas que testemunharam «indignidade» e abandono no fim-de-vida, quer se tratasse de familiares ou amigos/as. De uma forma semelhante, afirma noutro livro: «Através de narrativas, aprendemos frequentemente mais sobre a natureza multidimensional da vida humana — as intenções, emoções e significados aparecem matizados, contraditórios, e muito mais complexos do que é capaz de reconhecer a ética habitual, baseada em regras» (Quill, «Caring for Patients at the End of Life. Facing an Uncertain Future Together», NY, Oxford University Press, 2001, p. 70).
Daí o interesse destas narrativas para mim. No meu caso concreto e nesta temática concreta, não consigo apenas pensar princípios abstractos sem os ligar à experiência concreta de algumas pessoas, pois são elas que, em última análise, julgam os princípios, não o contrário, melhor, os princípios só terão validade se ajudarem a respeitar a vulnerabilidade de cada uma delas, possibilitando-lhes uma morte mais de acordo com a sua situação particular de doença e os seus valores mais arraigados e reflectidos. (…)

Laura Ferreira dos Santos, doutorada em Filosofia da Educação e Professora Associada da Universidade do Minho.
«Fim-de-vida e não abandono. Um tríptico a partir de Timothy E. Quill», in "A morte assistida e outras questões de fim-de-vida", Almedina, Coimbra 2015, pp. 185-207. ISBN 978-972-40-6106-1.








17 de julho de 2018

A MORTE ASSISTIDA 4/7



«Dêem-me liberdade
e, se eu quiser, dêem-me a morte»

Pensar o suicídio medicamente assistido a partir de duas posições antagónicas

1. Introdução: a necessidade de educar para o debate
Geralmente, são tão diversos e contraditórios os argumentos de quem se manifesta a favor ou contra a legalização ou despenalização da eutanásia ou/e do suicídio medicamente assistido (em inglês, "physician-assisted suicide", PAS), que uma conhecida expressão de Thomas Kuhn nos ocorre para caracterizar este «estado de coisas»: incomensurabilidade de paradigmas (cf. Th. Kuhn, «La structure des révolutions scientifiques», Flammarion, 1983: 172). Mesmo quando há acordos pontuais – necessidade de melhorar os mecanismos de alívio da dor, por exemplo –, logo surgem divisões quanto aos modos eticamente legítimos de a eliminar ou atenuar e quanto ao que entender por «dor» ou «sofrimento».
As posições a tomar e a defender, no seio deste debate, em torno do morrer e da morte, exige formação e, sobretudo, educação. Como tenho repetido por diversas vezes ao longo deste livro, entendo o processo educativo na linha de Paulo Freire: criar condições para que as pessoas possam ler e escrever as suas próprias vidas. É um processo que ocorre dentro e fora das instituições educativas, abrangendo todas as idades e tentando unir de uma forma criativa as componentes mais teóricas e mais práticas da vida humana. Paulo Freire acentuou sobretudo as possibilidades críticas e socialmente transformadoras deste processo, visando em primeira instância uma maior consciencialização das relações de domínio existentes, denunciando privilégios injustos e tentando dar uma voz consciencializada a quem se encontra sujeito à dominação. Inspirado no pensamento existencial cristão e no dialogismo buberiano[1], Paulo Freire reforçou a base teórica da defesa dos oprimidos indo buscar também elementos a Hegel (dialéctica do escravo-senhor e problemática da consciência), a Marx (crítica do capitalismo, para a qual se socorre também de E. Mounier), a Erich Fromm (oposição biofilia-necrofilia) e à fenomenologia (a consciência como intencionalidade). Experimentando de perto as injustiças sociais da realidade latino-americana, Paulo Feire não dirigiu a sua atenção para os aspectos ligados ao morrer e à morte. Afinal, para quê insistir na defesa de uma «boa morte» se se vive num continente em que a maior parte da população nem sequer tem direito a uma vida «razoável», pelo menos em termos económicos, culturais e de cuidados de saúde?[2] Provavelmente por isso, o movimento para a escolha quanto ao morrer será tipicamente um movimento de países económica, cultural e medicamente desenvolvidos, como, entre outros, a Holanda, a Suíça, a Bélgica, o Luxemburgo, os Estados Unidos, o Canadá, o Reino Unido ou a França. Não quer isto dizer, no entanto, que o modo como P. Freire encarava a educação não possa ser legitimamente apropriado para mostrar a necessidade de, individual e colectivamente, reflectirmos sobre o morrer e a morte. Afinal, o morrer e a morte ocorrem ainda dentro da vida, constituindo o seu último capítulo, e não será decerto preciso invocar aprofundadamente o pensamento de Ronald Dworkin para nos apercebermos da importância do último acto de uma peça teatral ou da última estrofe de um poema, pois todas/os nós sabemos como esse último acto ou última estrofe pode alterar substancialmente ou arruinar toda a peça ou todo o poema (cf. Dworkin, «Life’s Dominion», 1993: 199). Por isso, creio ser legítimo dizer que o processo educativo deve tentar proporcionar-nos condições para que possamos ler e escrever as nossas próprias vidas, mesmo quando se trata do seu capítulo derradeiro.
Neste sentido, vou recorrer a dois livros organizados por nomes importantes do mundo norte-americano ligado à reflexão sobre o suicídio medicamente assistido e que, nos últimos anos, consubstanciaram os principais argumentos que se poderiam invocar na sua oposição ou defesa. Estou a referir-me a «The Case Against Assisted Suicide. For The Right to End-of-Life Care» (Foley & Hendin, 2002, adiante designado apenas por «The case against») e «Physician-Assisted Dying. The Case for Palliative Care & Patient Choice» (Quill & Battin, 2004, adiante designado apenas por «The case for»). Ao tomar estes dois livros como ponto de referência, faço-o na convicção não só da sua importância, mas também na convicção de que, fora da Europa, os Estados Unidos, provavelmente mais do que qualquer outro país (faltaria fazer um levantamento da literatura sobre este tema existente no Canadá, sobretudo na província do Quebeque), têm debatido arduamente as questões de fim-de-vida, mais concretamente as que dizem respeito às escolhas que o processo de morrer deve ainda permitir a quem se encontra num estado terminal. De um lado e do outro da barricada, erguem-se vozes a salientar a necessidade de não só educar os profissionais de saúde para este debate, mas também o público em geral (ver, por ex., «The case against»: 306-7,326-7, e «The case for»: 152).
No entanto, atendendo precisamente a que o debate de ideias se fará aqui a partir da realidade americana, julgo ser necessário, antes de avançar na temática, introduzir três informações.
Em primeiro lugar, relembrar que, nos Estados Unidos, até 1992, tentou promover-se a legalização da eutanásia, tendo a primeira proposta sido elaborada e derrotada no Ohio, em 1906 (cf. Ezekiel J. Emanuel[3], «The History of Euthanasia Debates in the United States and Britain», in Shannon, Thomas A. (ed.), «Death and Dying. A Reader», 1994: 793; e Ian R. Dowbiggin, «A Merciful End. The Euthanasia Movement in Modern America», New York:Oxford University Press, 2003: 18 e 45). Porém, a partir de 1992, passou a reivindicar-se apenas o "suicídio medicamente assistido", por se ter verificado que não havia adesão pública à reivindicação anterior, pelos temores de abuso que suscitava (cf Quill & Battin, 2004: 254). Como se sabe, no suicídio medicamente assistido não se trata de aplicar uma injecção letal a pedido da/o doente, procedimento típico da eutanásia, mas é o/a próprio/a doente que ingere uma medicação que lhe dará a morte, com ou sem a presença do médico (para obter pormenores muito concretos sobre esta prática no estado do Oregon, cf. Barbara C. Lee, «Compassion in Dying: Stories of Dignity and Choice», Troutdale (Oregon): NewSage Press, 2003). Cumpre no entanto acrescentar que, na Suíça, numa prática que se pode considerar atípica ao nível europeu, a assistência final no suicídio está fundamentalmente entregue a não-médicos/as, prevendo o código penal que tal ajuda não é considerada crime desde que nela não se encontrem motivações egoístas (cf Hurst & Mauron, 2003; tanto no caso do Oregon como no da Suíça, cf mais pormenores em Laura F. dos Santos, «Ajudas-me a morrer?», Lisboa:Sextante, 2009).
Em segundo lugar, chamo a atenção para que, na «Introdução» a «The case for», Timothy Quill e Margaret Battin esclarecem que, ao longo do livro — e para além da expressão utilizada no seu próprio título, "physician-assisted dying" —, encontraremos vários termos para com eles significar a ajuda que um médico pode proporcionar a um/a doente quando esteja, em estado terminal (como já se disse, a definição deste estado implica, segundo o entendimento americano, que a pessoa terá menos de seis meses de vida), deseja antecipar a sua morte. Esses termos a que Quill e Battin se referem são: physician-assisted suicide, physician aid in dying e physician-assisted death. Como também já foi referido, atendendo às conotações negativas do termo suicídio, tido muitas vezes por um acto «irracional» ou fruto da depressão, há quem se preocupe em evitá-lo, pois quando se apresenta uma situação de suicídio assistido não há uma escolha entre a vida e a morte, típica dos suicídios habituais, mas uma escolha entre duas formas de morrer, uma mais rápida, outra mais lenta. De qualquer modo, atendendo a que a expressão «suicídio medicamente assistido» é, a meu ver, a que oferece menos dúvidas sobre a prática de que estamos a falar — sobretudo num país como Portugal, em que estas questões são bastante subtraídas ao debate público —, foi por ela que optei no título deste texto e ao longo dele.
Em terceiro lugar, deve ser dito que, nos Estados Unidos, existe o entendimento já muito enraizado de que ser-se tocado sem consentimento prévio constitui um ataque (a battery). Aplicando esse princípio aos procedimentos médicos a que uma pessoa doente pode ser submetida, considerou-se que o «consentimento informado», impedindo precisamente esse «ataque» ou «invasão» do corpo, possibilitava também que a/o doente, em estado terminal ou não, recusasse um tratamento médico — como cirurgia, transfusões de sangue, diálise, antibióticos, reanimação cardiorrespiratória, alimentação e hidratação artificiais —, mesmo que daí derivasse a morte. Com base neste mesmo princípio, admite-se também muitas vezes que mesmo tratamentos ou procedimentos médicos de ordem vital podem ser interrompidos ou não iniciados a pedido da pessoa doente adulta, capaz ("competent") e informada.[4]
Voltando agora aos dois livros que vão aqui ser tomados como ponto de referência para o debate sobre o suicídio medicamente assistido — «The Case Against Assisted Suicide» e «Physician-Assisted Dying» —, devo desde já avisar que a opção que me guia na sua abordagem assume certos constrangimentos: para não tornar o capítulo demasiado extenso, optou-se por não trazer ao de cima todos os argumentos invocados de um lado e do outro da polémica.
Assim, em primeiro lugar assume-se que nada será mencionado sobre as questões que dizem respeito à legalização do suicídio medicamente assistido no estado do Oregon, à despenalização da eutanásia e suicídio medicamente assistido na Holanda ou ao breve período (nove meses, entre 1996 e 1997) em que o Northern Territory da Austrália despenalizou também estas duas práticas (este país, porém, não é objecto de comentário em «The case for»). Deve ser dito, no entanto, que, a este propósito, em «The case for», todos ou quase todos os argumentos inflamados apresentados em «The case against» são discutidos, sendo-nos dada uma perspectiva completamente diferente (e positiva) das questões abordadas no outro livro. A meu ver, é aliás notável o modo aberto e claro como os autores holandeses que participam em «The case for» falam das dificuldades que o seu país tem enfrentado no sentido de que os médicos declarem oficialmente todos os casos de eutanásia, por receios vários. Assume-se a dificuldade, mas tenta-se dar uma explicação razoável para ela, contrariando os argumentos de «slippery slope» ("rampa escorregadia") habitualmente invocados pelos adversários[5].
Em segundo lugar, também não vai ser abordada toda a problemática ética que se levanta hoje em torno de formas permitidas e não permitidas de antecipar a morte, espelhada nesta frase de Dan Brock: «Em termos éticos, nem a doutrina do duplo efeito, nem a distinção activo-passivo, justificam que se autorize deixar voluntariamente de comer e beber, assim como a sedação terminal (ou abandonar suportes vitais), se ao mesmo tempo pretenderem proibir o suicídio medicamente assistido» («The case for»: 144).
Em terceiro lugar, assumo que só de raspão irei falar de um argumento muito utilizado pelos defensores do suicídio medicamente assistido, que é o do não-abandono da/o doente por parte da/o médica/o. Implícito na temática do sofrimento, não será aqui objecto da abordagem que mereceria. Tão-pouco se abordará o tema do modo como as relações médico/a–doente poderiam ser alteradas com a introdução do suicídio medicamente assistido (temas desenvolvidos mais adiante neste livro, «A morte assistida e outras questões de fim-de-vida», por ex. nos caps. X «Fim-de-vida e não-abandono. Um tríptico a partir de Timothy E. Quill» e cap. XII, «A dimensão política do sofrimento. A partir de Ronald Dworkin e Eric J. Cassell»). No entanto, algumas reflexões sobre outras problemáticas poderão deixar algumas pistas sobre esses assuntos.
Em resumo, tratarei apenas as questões da autonomia, das finalidades da medicina e do sofrimento. (…)


Laura Ferreira dos Santos, «Dêem-me liberdade e, se eu quiser, dêem-me a morte. Pensar o suicídio medicamente assistido a partir de duas posições antagónicas», in "A morte assistida e outras questões de fim-de-vida", Almedina, pp. 155-181. ISBN 978-972-40-6106-1.






[2] A Colômbia é o único país latino-americano em que a eutanásia se encontra despenalizada, em virtude de uma decisão do Tribunal Constitucional em 1997 (votação de 6 contra 3). No entanto, como o Congresso ainda não estabeleceu as salvaguardas que ficara encarregado de estabelecer, elas ainda não existem. O juiz Carlos Gaviria, autor da decisão maioritária do Tribunal, ao tornar-se senador em 2005, manifestou a intenção de propor uma lei ao Congresso que introduza salvaguardas semelhantes às existentes na Holanda e na Bélgica. No momento presente, o assunto parece ser resolvido apenas entre a/o médica/o e a/o doente (cf. Scherer & Simon, 1999: 93-95; Housego, 2005; e Santos, 2009, 158-164).
[3]  Ezekiel J. Emanuel, «The History of Euthanasia Debates in the United States and Britain»: 
[4] Para esclarecer melhor este ponto, obtive informações através de Roland L. Halpern, «Director of Community Relations» de uma das mais importantes organizações americanas a favor do que designamos como suicídio assistido, «Compassion & Choices».
[5] Mais uma vez, digamos que esta imagem da «encosta resvaladiça» ou «vertente escorregadia» (slippery slope) é utilizada para significar que as consequências da despenalização da eutanásia seriam imparáveis, passando-se de um modo «escorregadio» da eutanásia voluntária para uma forma de terminação da vida não precedida dos procedimentos necessários para impedir abusos, ou seja, para uma forma de terminar com a vida que não respeitaria a vontade das pessoas.