teologia para leigos

27 de outubro de 2017

O VOLUNTARIADO EM JULGAMENTO [JOAQUÍN PEREA]

 

IGREJA E VOLUNTARIADO SOCIAL


O tratamento deste tema requer que se explique, desde logo, alguns conceitos à volta dos quais gira a compreensão, o correcto enquadramento e até uma boa parte das respostas a dar à questão que temos entre mãos. Portanto, nada de admirar que as definições ou descrições que se seguem não sejam mesmo nada assépticas; antes pelo contrário, tomam partido em relação a certos pontos bem concretos.


Voluntariado cristão

As características com que se procura definir o voluntariado cristão não são exclusivas dele: podem ser atribuídas a voluntariados não crentes ou não confessionais. No entanto, já que os voluntários cristãos apresentam certas debilidades ou falências com um voluntariado de «restauração ou privatização, expressivo ou instrumental» — seja lá como lhe queiram chamar — convém deixar claros certos elementos que se deduzem desta opção cristã, que, no fundo, deverá ser a opção pelo seguimento de Jesus.

1 – Nesta linha, falamos de e defendemos um voluntariado social da margem, da marginalidade. Este tipo de voluntariado encarna-se em realidades próprias da exclusão social; trabalha directamente com os excluídos nos espaços sociais onde o progresso e o bem-estar fracassaram rotundamente. É um voluntariado que vive no interior da sociedade civil, aí se instala e se mantém, assistindo e curando as feridas que descobrir nessa sociedade, mas não prescindindo de lutar contra a injustiça que as causa. Faz este acompanhamento, mas vai mais longe: trabalha a questão da «promoção», ou seja, não perde de vista o horizonte da emancipação, dispondo-se a intervir na História com afã mobilizador. Pretende pôr em marcha uma dinâmica de transformação das estruturas e de remoção das causas que produzem a marginalização e a exclusão social. Deste seu compromisso nasce uma denúncia social reivindicativa. Com as suas práticas de assistência e acompanhamento desenvolve conteúdos de transformação social[1] e, em última análise, de resistência política, já que está avisado de que todo o voluntariado que nasça ou viva numa postura antipolítica será estéril.

Portanto, deixamos de fora todo o voluntariado que só serve para lavar a má consciência ou para compensar frustrações pessoais e profissionais, que se transforma num tapa-buracos do sistema neocapitalista ou que pratica a assistência e o paternalismo ingénua e acriticamente.

2 – Por conseguinte, o voluntariado cristão de que falamos é um desafio dirigido ao núcleo duro da nossa sociedade: não apenas pretende atingir o sistema económico, mas sobretudo, e para lá das leis económicas, pretende atacar os pressupostos culturais hegemónicos. Assim, quer contribuir para a construção de uma cultura alternativa.

3 – Este tipo de voluntariado cristão que defendemos caracteriza-se por um sentido radical da gratuidade. Este voluntariado carece de interesse económico pessoal, não espera nem aceita nada em troca. Entra em choque e rompe com o utilitarismo individualista.

4 – Responde a uma escolha totalmente livre da vontade da pessoa, e, por isso, é chamado voluntariado, mas a sua opção é movida pela solidariedade para com o outro e pelo compromisso com uma sociedade mais justa.

5 – O voluntariado desenvolve-se num âmbito mais ou menos organizado, mas a sua estrutura organizativa é flexível e bastante horizontal. Pressupõe uma estratégia de autorregulação colectiva que pretende que a sociedade civil tenha uma cada vez maior capacidade de intervenção na coisa pública. (…)


Necessidade de processos formativos

As opções a tomar, por parte das organizações de voluntariado cristão, a favor dos marginalizados exigem que elas estabeleçam processos formativos adequados para o acompanhamento dos marginalizados, bem como o respectivo confronto dos seus próprios membros.

O voluntário, que frequentemente começa a sua actividade como uma decisão fruto da sua generosidade visando preencher os seus tempos-livres, acaba por ir amadurecendo o seu compromisso tornando-o mais estável, consequência da sua liberdade (ou seja, continua a ser um amadurecimento voluntário). Acontece que esse processo acaba por alterar a vida do voluntário e isso fá-lo tomar opções de vida mais comprometidas e mais radicais (ou seja, opções de vida que atingem a raiz da sua existência humana e cristã).

Se o processo formativo for adequado, as atitudes do voluntário cristão irão mudar e pode produzir-se, então, um processo de conversão interior que acabará por criar rasgões na sua condescendência pessoal para com a injustiça, o que o levará à luta pela transformação do sistema.

Na hora de seleccionar os membros para as organizações de voluntariado cristão — mesmo sabendo da variedade de vocações seculares existentes — devemos verificar a presença à partida, a nosso ver imprescindível, de uma opção fundamental no momento actual que as nossas igrejas locais atravessam, que é coerente com tudo o que dissemos até aqui: procurar agrupar, incentivar e atrair o laicado que esteja disposto a transformar a realidade antecipando, assim, significativamente o Reino de Deus, o que constitui uma parte essencial da sua actividade no voluntariado.

O laicado pelo qual optamos deverá saber estabelecer um incentivo mútuo com o ambiente social, o bairro ou a povoação onde acontece a marginalização. É preciso que se consiga uma interacção, uma circularidade ou retroalimentação entre os projectos da organização de voluntariado e as inquietações dos marginalizados.

Ora, para que o compromisso do laicado nasça dessas actividades e seja genuinamente cristão, é preciso cuidar do desenvolvimento da fé mediante um verdadeiro acompanhamento eclesial.

Diante das dificuldades em romper com as rotinas existentes e face ao peso da longa história do dualismo separador existente entre e compromisso, é preciso rever os processos formativos a partir dos princípios evangelizadores e a partir da transformação da realidade. A formação doutrinal é importante, mas revela-se insuficiente.

Portanto, para levar por diante a proposta anterior é oportuno criar uma espécie de zona eclesial intermédia nova, a partir donde se consiga um desenvolvimento da fé mais pleno e equilibrado. Seria como que uma plataforma ou mediação eclesial à qual seriam convocados estes leigos, a que nos estamos a referir, com a finalidade de depurar as motivações do seu compromisso de transformação da realidade, provocando a sua clarificação, ao mesmo tempo que se exerceria o seu acompanhamento eclesial mediante o encontro entre si mas também com outros membros de outras organizações de voluntariado cristão.

O processo formativo deveria ser de carácter indutivo. Ou seja, deve:

— partir da vida de pessoas concretas, de situações que estão a acontecer nos seus ambientes locais concretos, para depois regressar à vida das pessoas.

— fazer com que se tragam à luz os problemas existentes na realidade do ambiente, do bairro, da povoação, dos vizinhos, etc.

— identificar os desafios e os respetivos «toques de chamada ao serviço» dos mais pobres.

— saber ler os sinais dos tempos.

— deixar bem claro que a solidariedade activa com os pobres é um dado que afecta o conjunto destas dimensões.

— estruturar-se a partir de uma pedagogia de acção transformadora, isto é, não como mera pedagogia activa nem mera instrução, mas como compromisso com o ambiente onde vivem as pessoas pobres.

— incorporar o compromisso transformador durante o processo e não achar que ele só entra no final do processo de formação do marginalizado.

— caracterizar-se pela personalização, pela progressividade e pela comunitariedade, bem como terá de se basear numa pedagogia do testemunho e do acompanhamento por parte do «voluntário».


Para potenciar os poucos recursos existentes, entre outras coisas, seria oportuno partilhar todo o tipo de informação acerca de materiais e experiências realizadas que digam respeito precisamente à formação do voluntariado e à transformação da realidade.


Conclusões – Está em jogo o rosto do Deus cristão

O Concílio Vaticano II deu como adquirido que hoje em dia vivemos num regime de rotura entre o cristianismo eclesial e a sociedade laica. Acontece que o Concílio, diante de tal situação, não se quis manter naquela atitude de uma Igreja assustada e medrosa diante das ameaças de desintegração interna, mas operou um golpe de rins, uma viragem, com a qual se propôs renovar a credibilidade do cristianismo através dum diálogo acerca da procura moderna dum sentido – social e cultural – mostrando como a opção crente não só não nega como assume, corrige e eleva à sua plenitude a exigência de todo o ser humano em optar por um sentido para a sua vida e de configurar um projecto de humanidade conforme a dita opção.

A revelação de Deus em Jesus, quando vivida historicamente na «comunidade de seguimento», descobre uma inesgotável capacidade de oferta de sentido. Este potencial só se desenvolve na medida em que seja vivido pela comunidade cristã através de tudo aquilo que constitua a acção humanizadora das pessoas.[2]

Por isso, no nosso tempo, a operação de legitimação do cristianismo consiste em acompanhar a marcha histórica da humanidade a partir duma fé activa que se transforme em fé eficaz pelo amor prático ao «comum dos mortais». Hoje em dia isso comporta uma enorme dificuldade, e por uma razão muito simples: ainda não nos distanciamos da contaminação que existe, desde há imenso tempo, entre o chamamento evangélico a servir, despojados de todas as estruturas de poder, e o poder (social ou político) realmente exercido pelo cristianismo eclesial.

Nós, os crentes, realizamos o acompanhamento da marcha histórica da humanidade, apoiados numa Promessa. Promessa que só nos é revelada através da fé e que consiste na recapitulação e na unificação de toda a realidade em Deus. Promessa que, contudo, ainda está por realizar historicamente e que, por já se ter realizado em Jesus Cristo, nos obriga a viver historicamente no fio da navalha, tal como os outros, a partir da esperança nessa Promessa.

Donde se conclui que a nossa prática é hermenêutica, é interpretação dos símbolos cristãos fundamentais, é tradução (prática) daquilo que queremos dizer quando afirmamos, por exemplo, que «Deus é nosso Pai», que «vivemos como irmãos», que «esperamos como filhos».

Na medida em que, como cristãos, interpretamos os símbolos bíblicos básicos através da nossa práxis social, o cristianismo fundamenta a sua legitimidade postando-se diante da sociedade actual, mostrando «a sua verdade» ao longo da História.

A questão da luta em prol da solidariedade tem a ver directamente com a imagem de Deus que os seguidores de Jesus dão enquanto reunidos em Igreja. Nós afirmamos que o Deus revelado por Jesus é um Deus-comunhão. Ora acontece que a comunidade hermenêutica de tal afirmação é a Igreja.

A extrema injustiça social do sistema económico vigente coloca graves perguntas acerca do Deus cristão. A pobreza, a exclusão, a marginalização não são apenas a outra margem da suposta civilização cristã, mas sobretudo o problema número um que afronta a nossa confissão de fé. Até porque a fé bíblica fala da salvação para os pobres; até porque a salvação que oferecemos em nome de Jesus não é meramente escatológica, ou seja, projectada para lá do fim da história humana, altura em que, então, os pobres seriam salvos. Se tudo se devesse passar assim, então, estaríamos a dar razão ao marxismo. O nosso messianismo é histórico: ele afirma a sua realização nesta terra. Se há algo específico do cristianismo é a esperança da realização da salvação já aqui, ainda que a sua plenificação seja no tempo definitivo.

Sem escuta do clamor dos pobres não pode haver Igreja de Jesus. Sem luta pela mudança de um sistema injusto não pode haver Igreja de Jesus. No interior da cultura economicista e consumista, e da mercantilização da existência, compete à Igreja promover a cultura da solidariedade com vistas a realizar uma sociedade algo parecida ao projecto de Jesus. Isso acarreta uma mudança de mentalidade quanto à maneira de enfrentar a situação injusta.

Às organizações de voluntariado cristão cabe-lhe uma parte desta tarefa. Elas não podem transformar-se em funcionários do sistema, em legitimadoras do sistema.


O poder do «um mais um»

O oceano de miséria e de marginalidade seria muito mais amargo sem esta pequena gota de voluntariado. Se as organizações de voluntariado não existissem, havia que as inventar neste preciso momento em que escrevo. Têm muitos defeitos, mas são imprescindíveis. A missão de todos os crentes, particularmente a dos cristãos embarcados nesta aventura, é a de as melhorar com uma crítica a partir de dentro.

Mantenhamos a persuasão expressada pelas palavras de Antonio Tabucchi, tomadas a partir da afirmação de um cientista: «o bater de asas de uma borboleta em Nova Iorque pode provocar um tufão em Pequim». Em pleno deslace da sociedade de bem-estar, onde impera a lei e a moral dos mais fortes e onde os milhentos rostos de marginalizados que Deus recrimina e que constitui uma realidade cada vez mais transbordante que parece tudo esmagar, nós, os que conhecemos a alternativa-esperança, sabemos do poder de «um mais um». No meio desta noite convém recordar a frase do poeta, prémio Nobel, Eugenio Montale: «Me contentaría com transmitir la luz de una cerilla» [Contentar-me-ia em emitir a luz de um fósforo]. É isso: a luz de milhões de fósforos juntos pode iluminar a noite.

Estou a chegar ao fim deste escrito sobre voluntariado. Falámos de noite. Nesta crua noite eclesial que nos tocou atravessar e cuja duração ignoramos, ainda que provavelmente não seja breve, existem alguns na Igreja que não desejam de maneira alguma que o laicado, até agora silencioso, se converta num laicado ilustrado que levanta problemas sérios e graves de reforma eclesial, como é o que acontece quando se levam a sério as iniciativas provenientes do voluntariado cristão.

Outros eclesiásticos, ainda que desejem um laicado ilustrado, temem que, diante das dificuldades que se lhes possam surgir por diante, a instituição eclesial não seja capaz de dar uma resposta pronta e adequada a essas dificuldades mais que razoáveis, e isso produza uma debandada geral, quer em bicos de pés, quer batendo em cheio com a porta. Esses eclesiásticos temem uma nova crise do laicado e preferem que nem se cheguem a colocar essas candentes questões.

Outros, porém, queremos confiar no Espírito que acompanha sempre a Igreja. Aqueles que sustentamos esta confiança, desejamos um laicado plenamente ilustrado, um laicado capaz de responder ao lema da Ilustração que I. Kant cunhou com a sua frase: «Atreve-te a pensar». É certo que tal atrevimento traz consigo riscos, mas também acreditamos que vale a pena corrê-los, pois só assim estaremos a gerar a Igreja de Jesus, Igreja do futuro que está aí a chegar.

Joaquín Perea
«Iglesia y Voluntariado Social», Instituto Diocesano de Teologia y Pastoral de Bilbao, N.6, Desclée De Brouwer 2001.









[1] Considera-se muito útil a leitura das conclusões do debate interno que o Instituto Diocesano de Teologia e Pastoral de Bilbao levou a cabo (1988-1990), nomeadamente naquilo que diz respeito ao processo de catequese de adultos e à promoção laical. Recomenda-se meditar, sobretudo nas páginas 66-69, sobre aquilo que tradicionalmente é considerado específico (ou até exclusivo) dos leigos: viver a fé ao nível do temporal. O que significa, por exemplo, ser militante no temporal? «Pode ser-se cristão sem se ser militante? Não constitui uma falha do processo — de todos os processos de formação catecumenal — não promover militantes«Se desde o início do processo de formação [dos leigos] não se utiliza uma metodologia que desague sempre na transformação da realidade, dificilmente se criará depois um tipo específico de acção laical no mundo» (p. 66) Cf. «Fieles a la tierra y constructores del Reino – el conflicto de los laicos cristianos», Desclée De Brouwer 1991; citado das pp. 66-67. [NdT]
[2] Cf. F. Manresa, «Asumir, corrigir, plenificar (II). Una proposta teológica», Cuadernos «Institut de Teologia fonamental», n. 1 18, Barcelona (Cristinisme i Justicia) 1991, 70-71.


8 de outubro de 2017

TER OU SER? [ERICH FROMM]



A GRANDE PROMESSA,
O SEU FRACASSO E AS NOVAS ALTERNATIVAS


O fim de uma ilusão
A Grande Promessa de Progresso Ilimitado - a promessa de domínio da Natureza, de abundância material, de maior felicidade para o maior número de indivíduos, e de liberdade pessoal irrestrita - alimentou a esperança e a fé de inúmeras gerações desde o início da Revolução Industrial. Para sermos precisos, a nossa civilização iniciou-se quando a raça humana começou a ter controlo activo sobre a Natureza; mas esse controlo manteve-se limitado até ao advento da Revolução Industrial. Com o progresso da indústria, desde a energia, primeiro mecânica e depois nuclear, que vieram substituir as energias animal e humana, até ao computador que veio substituir a mente do Homem, foi possível sentir que estávamos a avançar para a produção ilimitada e, portanto, para o consumo ilimitado; que a técnica nos tornava omnipotentes; que a ciência nos tornava omniscientes. Estávamos a caminho de nos tornarmos deuses, seres supremos, capazes de criar um segundo mundo, usando o mundo natural apenas como bloco integrante da nossa nova criação.
O homem, e um número crescente de mulheres, experimentaram um novo sentido de liberdade; tornaram-se donos das suas próprias vidas: os grilhões feudais tinham sido quebrados e cada um podia fazer o que quisesse, liberto de todas as algemas. Pelo menos foi assim que as pessoas se sentiram. E ainda que isto fosse apenas verdade para as classes média e alta, a sua conquista levou os outros à crença de que, eventualmente, a nova liberdade poderia estender-se a todos os membros da sociedade, contanto que a industrialização prosseguisse a sua marcha. O Socialismo e o Comunismo depressa passaram de um movimento cujo objectivo era uma nova sociedade e um novo homem para outro movimento cujo ideal era uma vida burguesa para todos, o burguês universalizado nos homens e mulheres do futuro. A conquista da riqueza e do conforto para todos era vista como o culminar de uma felicidade sem restrições. A trindade da produção ilimitada, liberdade absoluta e felicidade irrestrita formaram o núcleo de uma nova religião.
O progresso e uma nova cidade terrena de progresso substituiriam a cidade de Deus. Não é de espantar que esta nova religião fornecesse aos seus crentes energia, vitalidade e esperança.
É importante visualizar a imensidão da Grande Promessa, as maravilhosas conquistas materiais e intelectuais da Revolução Industrial para podermos compreender o trauma que a constatação do seu fracasso está a produzir nos dias de hoje. Porque a Revolução Industrial falhou efectivamente no cumprimento da sua Grande Promessa, e um número cada vez maior de pessoas está a tomar consciência de que:
1 - A satisfação irrestrita de todos os desejos não conduz ao bem-estar, não é o caminho para a felicidade nem para o máximo prazer.
2 - O sonho de sermos independentes, donos das nossas próprias vidas terminou quando começámos a acordar para o facto de que nos havíamos tornado todos nós, rodas dentadas da máquina burocrática, com os nossos pensamentos, sentimentos e gostos manipulados pelo governo, pela indústria e pela comunicação de massas que eles controlam.
3 - O progresso económico manteve-se confinado às nações ricas e o abismo entre estas e as nações pobres aumentou imensamente.
4 - O próprio progresso tecnológico criou perigos ecológicos e os riscos de uma guerra nuclear, podendo qualquer um deles, ou ambos, pôr fim a toda a civilização e a qualquer possibilidade de vida.
Quando veio a Oslo, receber o Prémio Nobel da Paz (1852), Albert Schweitzer desafiou o mundo «a ousar encarar a situação... o Homem tornou-se um super-homem... Mas o super-homem, com o poder super humano, não atingiu o nível da razão super-humana. À medida que o seu poder aumenta ele torna-se cada vez mais um pobre homem ... É preciso abanar a nossa consciência, pois, quanto mais nos assemelhamos a super-homens, mais desumanos estamos a tornar-nos».

Porque falhou a Grande Promessa?
O fracasso da Grande Promessa, para além das contradições económicas essenciais do industrialismo, foi criado dentro do sistema industrial pelas suas duas principais premissas: (1) que a finalidade da vida é a felicidade, ou seja o máximo prazer, definido como a satisfação de todos os desejos ou necessidades subjectivas do Homem (hedonismo radical); (2) que o egocentrismo, o egoísmo e a avidez, que o sistema necessita de gerar a fim de assegurar o seu funcionamento, conduzem à harmonia e à paz.
1 — É sabido que, ao longo da história, os ricos praticaram o hedonismo radical. Os de infindáveis posses, tais como a elite de Roma, das cidades italianas da Renascença, e da Inglaterra e da França nos séculos XVIII e XIX, tentaram encontrar um sentido para a vida no prazer ilimitado.
Mas, enquanto o máximo prazer, para o hedonismo radical, era uma prática de certos grupos em certas ocasiões, apenas com uma excepção anterior ao século XVII, nunca a teoria do bem-estar foi expressa pelos grandes mestres da vida na China, Índia, Próximo Oriente e Europa.
A única excepção foi o filósofo grego Aristippus, um pupilo de Sócrates (primeira metade do século IV antes de Cristo), que defendeu a teoria de que experimentar o auge do prazer físico era o objectivo da vida, sendo a felicidade a soma total dos prazeres usufruídos. O pouco que sabemos da sua filosofia devemo-lo a Diógenes Laertius, mas basta que consideremos Aristippus como o único verdadeiro hedonista, para quem a existência de um desejo constitui base legítima para a sua satisfação, atingindo deste modo o objectivo da vida: o prazer.
Epicuro dificilmente pode ser visto como representante do tipo de hedonismo de Aristippus. Para Epicuro o prazer «puro» era o objectivo mais elevado, este prazer significava «ausência de dor» (aponia) e quietude da alma (ataraxia). Segundo Epicuro, o prazer e a satisfação de um desejo não podem constituir o objectivo da vida, porque esse prazer é obrigatoriamente seguido de uma insatisfação e deste modo mantém a Humanidade afastada da sua finalidade real: a ausência de dor. (A teoria de Epicuro é, de várias formas, semelhante às de Freud.) Todavia, ao que parece, Epicuro representou um certo tipo de subjectivismo contrário à posição de Aristóteles, como se depreende dos relatos contraditórios sobre as declarações.
Nenhum dos outros grandes mestres defendeu que a existência concreta de um desejo constituía uma norma ética. A sua preocupação era o máximo bem-estar da Humanidade (vivere bene). O elemento essencial no seu modo de pensar é a distinção feita entre as necessidades (desejos) que apenas são sentidos de forma subjectiva e cuja satisfação leva a um prazer momentâneo, e aquelas que estão enraizadas na natureza humana e cuja realização conduz ao crescimento do Homem e produz eudaimonia, ou seja, bem-estar. Por outras palavras, era sua preocupação a distinção entre as necessidades sentidas de forma puramente subjectiva e as necessidades objectivamente válidas - podendo parte da primeira distinção ser perniciosa para o crescimento humano e estando a segunda de acordo com os requisitos da natureza humana.
A teoria de que o objectivo da vida é a satisfação de todos os desejos foi amplamente proclamada, pela primeira vez desde Aristippus, por filósofos dos séculos XVII e XVIII. Tratava-se de um conceito que iria facilmente destacar-se quando «benefício» deixasse de significar «benefício para a alma» (como acontece na Bíblia e até mais tarde, em Spinoza) e passasse a ter um significado material, de lucro monetário, no período em que a classe média se desfez não só das suas algemas políticas, mas também de todas as dependências amorosas e de solidariedade, e acreditou que "existir apenas em função de si" significava ser mais ela própria e nunca menos. Para Hobbes a felicidade é o contínuo progresso de uma avidez (cupiditas) para outra; La Mettrie chegou a aconselhar as drogas como oferecendo pelo menos a ilusão de felicidade; para o marquês de Sade a satisfação dos impulsos cruéis é legítima, apenas porque eles existem e anseiam por satisfação. Estes foram os pensadores que viveram na Idade da vitória final da classe burguesa. O que antes tinham sido as práticas não filosóficas dos aristocratas, transformou-se na teoria e na prática da burguesia.
Muitas teorias éticas têm sido desenvolvidas desde o século XVIII - algumas constituíram formas mais aceitáveis de hedonismo, como, por exemplo, o utilitarismo; outras foram estritamente sistemas anti-hedonistas, como as de Kant, Marx, Thoreau e Schweitzer. Contudo, a nossa época, de uma maneira geral, desde o fim da Primeira Grande Guerra, voltou à prática e à teoria do hedonismo radical. O conceito de prazer ilimitado estabelece uma estranha contradição com o ideal de trabalho disciplinado, semelhante à contradição entre a aceitação de uma obsessiva moral do trabalho e o ideal de um ócio total no resto do dia e durante o tempo de férias. O que tornou possível esta visão tão contraditória foi, por um lado, a infindável corrente de transmissão da linha de montagem e a rotina burocrática, por outro, a televisão, o automóvel e o sexo. O trabalho obsessivo, por si só, levaria as pessoas à loucura, tanto quanto o ócio total. A combinação dos dois permite-lhes viver. Além disso, as duas atitudes contraditórias correspondem a urna necessidade económica: o capitalismo do século XX baseia-se no consumo máximo de bens e serviços produzidos, assim corno no rotineiro trabalho de equipa.
As considerações teóricas demonstram que o hedonismo radical não pode conduzir à felicidade e explicam o porquê com base na natureza humana. Mas, mesmo sem análises teóricas, as informações que nos chegam mostram claramente que a forma como «buscamos a felicidade» não produz bem-estar. Somos uma sociedade de gente visivelmente infeliz: sós, ansiosos, deprimidos, destrutivos, dependentes - gente que se alegra quando "matou o tempo" que tão desesperadamente tentou poupar.
A nossa experiência social é a maior alguma vez feita no sentido de resolver a questão de se o prazer (enquanto afecto passivo em contraste com o afecto activo, o bem-estar e a alegria) poderá ou não ser uma resposta satisfatória para o problema da existência humana. Pela primeira vez na História, a satisfação do prazer não constitui apenas o privilégio de uma minoria. Tornou-se acessível a mais de metade da população. A experiência respondeu já à questão, pela negativa.
2 — A segunda premissa psicológica da Revolução Industrial, de que a procura do egoísmo individual conduz à paz e à harmonia, ao alargamento do bem-estar de todos, é igualmente errónea em bases teóricas e mais uma vez a sua falácia é comprovada através de documentos disponíveis. Porque motivo este princípio, rejeitado apenas por um dos grandes economistas clássicos, David Ricardo, seria verdadeiro? Ser egoísta não se relaciona apenas com o meu comportamento mas com o meu carácter. Ou seja: que "querer tudo para mim; possuir, não partilhar, me dá prazer"; que "devo tornar-me ávido", porque, se o meu objectivo é ter, eu sou tanto mais quanto mais tiver; que "devo sentir todos os outros como meus adversários": os meus clientes a quem quero iludir, os meus concorrentes a quem quero destruir, os meus trabalhadores que pretendo explorar. Nunca poderei estar satisfeito, porque não existe fim para os meus desejos; devo sentir inveja daqueles que têm mais e receio daqueles que têm menos. Mas tenho de reprimir todos estes sentimentos para poder revelar-me (aos outros e a mim próprio) como o ser humano sorridente, racional, sincero e amável que toda a gente pretende ser.
A paixão pelo ter conduzirá a uma interminável luta de classes
A visão dos comunistas de que o seu sistema porá fim a essa luta é pura ficção, dado que o seu sistema se baseia no princípio de consumo ilimitado como objectivo de vida. Enquanto toda a gente quiser ter mais, haverá constituição de classes, haverá luta de classes e, em termos globais, haverá guerra internacional. Avidez e paz anulam-se mutuamente.
O hedonismo radical e o egoísmo ilimitado não poderiam ter surgido como princípios condutores do comportamento económico, se uma mudança drástica não tivesse ocorrido durante o século XVIII. Na sociedade medieval, como em muitas outras altamente desenvolvidas e também nas sociedades primitivas, o comportamento económico era determinado pelos princípios éticos. Assim, para os teólogos eruditos, as categorias económicas, tais como a propriedade pública e privada, faziam parte da teologia moral. É certo que os teólogos encontraram expressões para adaptar o seu código moral às novas exigências económicas (por exemplo, Tomás de Aquino na qualificação do conceito de «preço justo»). Todavia, o comportamento económico continuou a ser um comportamento humano e, portanto, sujeito aos valores da ética humanística. Através de várias etapas, o capitalismo do século XVIII foi sujeito a uma mudança radical: o comportamento económico foi separado dos valores éticos e humanos. Com efeito, a máquina económica deveria ser uma entidade autónoma, independentemente das necessidades e desejos do Homem. Foi um sistema que decorreu naturalmente e de acordo com as suas próprias leis. O sofrimento dos trabalhadores, assim como a destruição de um número sempre crescente de pequenas empresas em nome do crescimento de corporações cada vez maiores, foi uma necessidade que, ainda que pudesse ser lamentada, havia que aceitar como o resultado de uma lei natural.
O desenvolvimento deste sistema económico não era já determinado pela pergunta: "O que é bom para o Homem?" mas por uma outra: "O que é bom para o crescimento do sistema?". Tentou-se ocultar a desonestidade deste conflito assumindo que o que era bom para o crescimento do sistema (ou mesmo de uma única corporação) era igualmente bom para o povo. Esta interpretação foi patrocinada por uma outra, auxiliar: que as próprias características que o sistema exigia dos seres humanos - egocentrismo, egoísmo e avidez - eram inatas na sua natureza e que, portanto, não era apenas o sistema que as alimentava, mas a própria natureza do Homem. As sociedades em que o egocentrismo, o egoísmo e a avidez não existiam eram consideradas «primitivas», os seus habitantes «infantis». As pessoas recusavam-se a admitir que estas características não eram vias naturais e que apenas serviam para levar a sociedade industrial a existir e que, além disso, foram os produtos das circunstâncias sociais.
Não é de considerar menos importante um outro factor: a relação das pessoas com a Natureza tornou-se profundamente hostil. Sendo, como somos, «fenómenos da Natureza», existindo dentro dela pelas próprias condições do nosso ser e transcendendo-a pela dádiva da razão, tentámos resolver o nosso problema existencial desistindo da visão messiânica da harmonia entre a Natureza e a Humanidade, optando por conquistá-la, transformá-la, de acordo com os nossos interesses, até que essa conquista se tornou cada vez mais semelhante à destruição. O nosso espírito de conquista e a nossa hostilidade cegaram-nos para os factos de que as fontes naturais têm os seus limites e podem eventualmente esgotar-se, e de que a Natureza pode voltar-se contra a violação humana.
 A Sociedade Industrial despreza a Natureza - assim como todas as coisas que não são máquinas e as pessoas que não as fabricam (as raças de cor, com as recentes excepções do Japão e da China). As pessoas são hoje atraídas para a mecânica, a máquina poderosa, o vazio e cada vez mais para a destruição.

 A necessidade económica de uma mudança humana
 Até aqui a questão que se tem colocado tem sido a de que os traços de carácter desenvolvidos pelo nosso sistema socioeconómico, ou seja, pelo nosso tipo de vida, são patogénicos e efectivamente produzem um ser enfermo e, portanto, uma sociedade doente. Existe, contudo, um segundo argumento, de um ponto de vista totalmente diferente, a favor das profundas mudanças psicológicas do Homem, como alternativa à catástrofe económica e ecológica. Tem a sua origem em duas comunicações patrocinadas pelo Clube de Roma, uma delas da autoria de D. H. Medows e a outra de M. D. Mesarovic e E. Pestel. Ambas as comunicações tratam as tendências tecnológicas, económicas e populacionais à escala mundial. Mesarovic e Pestel concluem que só através dessas mudanças drásticas a nível global, de acordo com um plano director, poderá ser evitada a maior e irreversível catástrofe; e as informações que apresentam a comprovar a sua tese baseiam-se na mais global e sistemática pesquisa efectuada até aos dias de hoje (o seu livro contém certas vantagens metodológicas em relação à comunicação de Medows, mas este estudo inicial prevê medidas económicas ainda mais drásticas, como alternativa para a catástrofe). Mesarovic e Pestel concluem ainda que essas mudanças económicas só são possíveis se ocorrerem alterações fundamentais nos valores e atitudes do Homem (ou, como diria eu, na orientação do seu carácter), tais como uma nova ética e uma nova atitude para com a Natureza. As suas afirmações apenas vêm confirmar o que outros disseram antes e após a publicação do seu trabalho: que uma nova sociedade só é possível se ao longo do processo do seu desenvolvimento surgir um novo ser humano, ou, em termos mais simples, se uma mudança fundamental ocorrer na estrutura do carácter do Homem contemporâneo.
 Infelizmente, as duas comunicações estão escritas dentro do espírito da quantificação, abstracção e despersonalização, tão característico do nosso tempo, e além disso negligenciam por completo todos os factores políticos e sociais, sem os quais nenhum plano realista pode ser efectuado. Apresentam, todavia, informações válidas e, pela primeira vez, encaram a situação económica da raça humana como um todo, com as suas possibilidades e os seus perigos. A conclusão de que é necessária uma nova ética e uma nova atitude para com a Natureza é tanto mais válida quanto se trata de uma exigência totalmente contrária às premissas filosóficas dos autores.
 A outra possibilidade da questão, trata-a E. F. Schumacher, que é também um economista e simultaneamente um humanista radical.
 A sua exigência de uma mudança humana total baseia-se em dois argumentos: que a ordem social da actualidade nos torna doentes e que nos estamos a encaminhar para uma catástrofe económica, a menos que alteremos radicalmente o nosso sistema social.
 A necessidade de profundas mudanças humanas emerge não só como uma busca moral ou religiosa, não só como uma necessidade psicológica surgida de uma natureza patogénica do nosso presente carácter social, mas também como uma condição para a pura sobrevivência da raça humana. A forma correcta de viver deixou de ser apenas o cumprimento de uma necessidade moral ou religiosa (pela primeira vez na história a sobrevivência física da raça humana depende de uma alteração profunda do coração do Homem). Todavia, essa mudança terá de acompanhar a dimensão das alterações económicas e sociais ocorridas, capazes de dar ao coração humano uma hipótese de mudar e coragem e visão para o conseguir.
Existirá alternativa para a catástrofe?
 Todas as informações até aqui referidas estão publicadas e são do conhecimento geral. O que é quase inacreditável é que nenhum verdadeiro esforço tenha sido feito no sentido de evitar o que parece ser um decreto definitivo do destino. Enquanto ao nível da nossa vida privada, ninguém, a não ser um louco, ficaria passivo face a uma ameaça à sua própria existência, aqueles que se encontram à frente dos cargos públicos não fazem praticamente nada e os que colocaram o seu destino nas mãos deles permitem que continuem a nada fazer.
 Como é possível que o mais forte de todos os instintos que é o da sobrevivência, pareça ter cessado de nos motivar? Uma das explicações mais óbvias é o facto de os dirigentes levarem a cabo muitas acções que lhes permitem fingir que estão a tomar medidas efectivas para evitar a catástrofe: inúmeras conferências, resoluções, discursos sobre o desarmamento, vêm dar-nos a impressão de que existe o reconhecimento da dimensão dos problemas e de que algo está a ser feito no sentido de os resolver. Nada de verdadeiramente importante acontece, mas tanto os dirigentes como os seus seguidores anestesiam a consciência e o desejo de sobreviver, transmitindo-nos a imagem de conhecer bem o caminho e de estar a avançar na direcção certa.
 Outro ponto de vista é o de que o egoísmo gerado pelo sistema faz com que os dirigentes valorizem mais o êxito pessoal do que a responsabilidade social. Deixou de ser chocante que os dirigentes políticos e os executivos tomem decisões notoriamente do seu interesse pessoal, que simultaneamente são nocivas e perigosas para a comunidade. Com efeito, se o egoísmo é um dos pilares da prática moral contemporânea, porque deveriam agir de outro modo? Eles parecem ignorar que a avidez (tal como a submissão) torna as pessoas estúpidas, na própria definição dos seus interesses, como é o caso da sua vida, das suas mulheres e dos seus filhos. (J. Piaget, The Moral Judgment ofthe Child - "O julgamento moral da criança") Ao mesmo tempo, o público, em geral, está tão egoisticamente centrado nos seus próprios problemas que presta muito pouca atenção a tudo o que transcende o seu domínio pessoal.
 Existe ainda outra explicação para o amortecimento do nosso instinto de sobrevivência. É a que defende que as mudanças no tipo de vida que nos seriam exigidas são de tal modo drásticas que as pessoas preferem a futura catástrofe ao sacrifício que teriam de fazer agora.
 A descrição de Arthur Koestler de uma sua experiência durante a guerra civil espanhola constitui um exemplo vivo desta atitude generalizada.
 Koestler instalou-se na confortável mansão de um amigo enquanto o avanço das tropas de Franco era noticiado; não havia qualquer dúvida de que eles chegariam durante a noite, e de que provavelmente ele seria morto. Poderia ter continuado livre se fugisse, mas a noite estava fria e chuvosa e a casa quente e confortável. Por isso ficou, foi feito prisioneiro e salvou-se muitas semanas mais tarde, quase por milagre, graças aos esforços dos seus amigos jornalistas. É este o tipo de comportamento das pessoas que arriscam morrer porque recusam submeter-se a um exame que pode diagnosticar uma doença grave, passível de exigir uma operação cirúrgica.
 Para além destes motivos, que explicam a passividade fatal da Humanidade em questões de vida e de morte, há um outro que constitui uma das razões para escrever este livro. Refiro-me ao facto de não termos alternativas para os modelos de capitalismo corporativo, social-democracia, socialismo soviético ou «fascismo tecnocrático com ar risonho». A divulgação desta ideia deve-se, em grande parte, ao facto de muito poucos esforços terem sido feitos no sentido de estudar a viabilidade de modelos sociais inteiramente novos e de os pôr à experiência.
 Na verdade, enquanto os problemas da reconstrução social não ocuparem, ainda que parcialmente, a atenção dos nossos melhores cérebros, actualmente preocupados com a ciência e a técnica, a imaginação não conseguirá visualizar alternativas novas e realistas.
 O principal objectivo deste livro é introduzir a análise dos dois modos básicos de estar no mundo: o modo ter e o modo ser. No capítulo de abertura apresento uma primeira abordagem relativa às diferenças entre os dois modos. O segundo capítulo demonstra essa diferença, utilizando diversos exemplos retirados da experiência do dia-a-dia, que os leitores poderão facilmente relacionar com a sua própria experiência.
 O capítulo III apresenta as perspectivas de Ter e Ser no Antigo e Novo Testamento e nos escritos do mestre Eckhart. Os capítulos subsequentes tratam dos pontos mais complexos: a análise da diferença entre os modos de estar no mundo segundo o Ter ou Ser, nos quais tento elaborar conclusões teóricas com base em informações empíricas. Até este ponto o livro refere-se principalmente aos aspectos individuais dos dois modos básicos de existência. Os capítulos finais dão relevância a estes modos na formação do Novo Homem e da Nova Sociedade e encaminham-se para possíveis alternativas à debilitante doença do ser e ao catastrófico desenvolvimento socioeconómico em todo o mundo.

INTRODUÇÃO a «Ter ou ser?», Erich Fromm, Presença 22002 (a partir do original em inglês de 1976), pp.13-22.