teologia para leigos

28 de março de 2021

Las cosas deben cambiar - Bernhard Häring





NADA PODERÁ FICAR COMO ESTÁ

Uma confissão corajosa



«Não conheço este homem» (Mateus 26,72.74)

O conhecimento amoroso de Jesus como pressuposto do conhecimento do Pai é a essência e a síntese da «vida eterna» (João 17,3), da salvação. Ele é também a afirmação central da salvação e do anúncio salvífico. O vocábulo hebraico para ‘conhecer’ (yadá) indica um conhecimento amoroso revitalizante, o qual também abarca o conhecimento mútuo dos esposos durante o acto do amor transmissor de vida. Era este tipo de conhecimento de Jesus que faltava a Pedro, segundo o relato de Mateus. A sua obstinada negação e a sua resistência a abrir-se a este tipo de «conhecimento» de um Messias humilde e sofrido fê-lo carregar com a admoestação: «Satanás!» (Mateus 16,23). É precisamente isso que está no centro da «conversão»: o regresso ao conhecimento de Jesus como Filho do Homem.

Por conseguinte, não temos de ficar surpreendidos por, no relato das negações, Mateus ter posto o dedo na ferida! Pedro, relutante, insiste duas vezes: «Não conheço esse homem» (Mateus 26,72). «Pedro começou, então, a dizer imprecações e a jurar: “Não conheço esse homem!”» (Mt 26,74).

“Tomando a palavra, Simão Pedro respondeu: «Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo. Jesus disse-lhe em resposta: «És feliz, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que to revelou, mas o meu Pai que está no Céu».” (Mateus 16,16-17) Segundo Mateus 16, e outras passagens, é patente que a proclamação salvífica de que «Jesus é o Messias, o Cristo» pressupõe o «conhecimento do filho do homem», ficando assim claro que este tipo de «conhecimento» está na essência e no cerne da «conversão» de Pedro. Não basta um «conhecimento» meramente teórico de fórmulas de fé. Tem de ser um conhecimento que transforma toda a existência da pessoa e garanta a entrada numa vida autêntica, ou seja, na «vida eterna». Poderá então enjeitar-se a conclusão de que a credibilidade do ministério de Pedro depende de uma conversão existencial a este tipo de conhecimento, o qual deverá encharcar e marcar profundamente toda a vida do titular de dito ministério e de todos os seus colaboradores?

Frequentemente, o desejo de postos honoríficos, incluindo o «trono pontifício», foi, ao longo da história da Igreja, um obstáculo a dificultar a expressão da pureza dos sentimentos e do testemunho da fé, quando não até motivo para o efeito totalmente inverso. A sacralização de comportamentos atentatórios e o exercício autoritário do poder são coisas diametralmente opostas à mensagem salvífica e à missão de curar. Quando o sucessor de Pedro e os seus colaboradores mais próximos se entrincheiram em doutrinas que não foram reveladas nem pertencem seguramente ao núcleo da fé no filho do homem glorificado pelo Pai, então, eles põem em perigo a saúde e a salvação; e isso tanto mais quanto o seu «estilo de dominação» se afasta do carácter de serviço da sua vocação. Entretanto, tudo aquilo que foi dito a Pedro é igualmente dirigido a todos nós: ou entramos totalmente na solidariedade da salvação ou então ver-nos-emos capturados pelas armadilhas da perdição do egoísmo.

A doutrina da fé na redenção e da solidariedade na salvação concentra-se sobretudo na ideia que Jesus tem de si mesmo como «servo de Yahvé» e «filho do homem». Donde se conclui, portanto, que é particularmente nociva negar-nos a conhecer ou insistir em ignorar tal dimensão. É assim que se bloqueia «o caminho da paz» e se priva o mundo do testemunho salvífico através do Messias. Toda a cristandade se deve interrogar uma e outra vez e sempre sobre o que significa o “conhecimento” (no sentido bíblico) do filho do homem.

Caso insistamos em martelar incansavelmente em mandamentos e preceitos secundários e inclusivamente indemonstráveis passando ao largo da fé nuclear e do testemunho vivente da mesma fé, deslegitimaremos a fé e a alegria da fé dos nossos irmãos e irmãs. Esta afirmação é aplicável a todos nós, mas de um modo sobretudo urgente ao titular do ministério de Pedro e à totalidade dos seus colaboradores. Que fantástico futuro se abriria de par em par para toda a Igreja, para a cristandade inteira, se o bispo de Roma e todos os bispos e teólogos humildemente aprendessem a partir do testemunho existencial dos homens e das mulheres que encarnam esta fé nuclear! Para a Igreja católica, o ministério de Pedro é uma questão de vital importância. Acontece que a Igreja também precisa do ministério e do testemunho de João, que não menosprezou Pedro, apesar do seu grave fracasso, nem lhe virou as costas. Na senda das palavras de Maria de Magdala, ambos empreenderam juntos uma caminhada veloz em direcção ao sepulcro vazio. João foi mais rápido do que Pedro. A fé pascal acendeu-se, primeiramente, no discípulo que permanecera junto à Cruz. João foi não apenas acicate, mas o apoio de Pedro, no seu caminho da «conversão».



AS TRÊS TENTAÇÕES E OS TRÊS ÂMBITOS DA CONVERSÃO


Gostaria, pela mão do Midrash da tentação e da oração de Jesus diante das tentações diabólicas que falseiam a religião, expor algumas ideias que eventualmente pudessem ser proveitosas para a Igreja, para todos nós, incluindo o Vaticano. Ainda que, a princípio, isso possa ser doloroso, temos de arrancar a crosta à ferida a fim de a tratar e curar.


A religião rentável

O «Opus Dei» (a Obra de Deus) e com muito mais evidência a «Engelwerk» (a Obra dos anjos), são exemplos de marginalização do caracter religioso, sobretudo no que diz respeito à primeira das tentações da religião. Ambas instituições cultivam uma religião muito rentável. A Obra dos anjos, com a sua consagração e iniciações secretas aos arcanos misteriosos dum presumível “fim dos tempos”, conseguiu haver-se com dilatados donativos e fabulosas heranças.

Quanto ao Opus Dei, a apreciação deverá ser mais matizada. Nele agem forças e anseios verdadeiramente religiosos, ainda que dentro dele se perfile a tendência para se estabelecerem alianças com os ricos e os poderosos, sob o argumento de ser uma obra despensadora e esmoler dos pobres. Mesmo assim, ninguém alerta para que deste modo se alimenta um dos maiores perigos a que sempre esteve e ainda está exposta a Igreja: ao aliar-se aos ricos, incute-se nos pobres a falsa consciência de que as desigualdades entre ricos e pobres é algo querido por Deus, devendo, portanto, ser lícito aceitar resignadamente a «ordem» das coisas (na verdade, uma catastrófica desordem), enquanto gotejar a esmola… Este modo de ver induz os bispos a continuar a dormir em palácios e a fazer pronunciamentos a favor do restabelecimento da «antiga boa ordem» na Igreja e a dar mais atenção à rigorosa obediência do que à autêntica ética da responsabilidade dos cristãos adultos.

Hoje é particularmente urgente revelar e denunciar todas as formas de «religião rentável» e desmascarar a cegueira e as seduções satânicas, que lhe subjazem, lançando mão de uma dinâmica salvadora, seguindo assim o exemplo de Cristo. Isto é muitíssimo mais importante do que procurar responder à pergunta de se … não será que por trás de todas essas cegueiras não estará o Diabo?! Enquanto remetemos as causas dessa realidade para demónios e bruxas pessoais e concretas, assim se vai mantendo e inclusivamente consolidando a funesta teia envolvente. Dito isto, não quero de modo algum dar por encerrada e respondida a questão de se e até que ponto esta funesta teia terá, neste nosso pequeno planeta, uma dimensão transcendente.

De modo algum gostaria de ser mal interpretado, por exemplo, querer converter o Opus Dei numa espécie de bode expiatório. A sua característica de gostar de se relacionar com a riqueza e com o poder não é um exclusivo seu: é uma herança a que, de um certo ponto de vista, todos estamos submetidos. Se o Opus Dei for capaz de se dar conta disso, assinalar os respectivos perigos e com os olhos postos no Evangelho superá-los, contrairá grandes méritos no âmbito de uma autêntica renovação da Igreja. Entretanto, essa propensão para claudicar deveria proporcionar a todos nós uma séria oportunidade para um exame de consciência.

Dentro do conceito de «religião rentável» está também a realidade das «mãos mortas», ou seja, do constante aumento e multiplicação dos bens da Igreja. Este fenómeno chegou quase ao seu fim (o arcebispo Paul Casimir Marcinkus disse: «Não se pode dirigir a Igreja apenas com Avé-Marias») aquando da secularização sob Napoleão e com a dissolução dos Estados Pontifícios. Seja como for, ainda se mantém de pé, ainda que numa proporção bem mais pequena, a dita tentação.

Pertence igualmente, e continuam a pertencer a esta problemática da «religião rentável» as diversas conjugações de ‘recompensa e castigo’, ‘sistema de promoções e de sanções’, etc. Com a sua psicologia do comportamento, F. B. Skinner demonstrou, servindo-se de argumentos convincentes, que, tal como entre os animais, também os humanos podem ser manipulados à custa de uma combinação adequada de “pau e cenoura”. No entanto, este autor não teve em conta ‒ e isso para mim é importantíssimo ‒ que as pessoas que estejam profundamente motivadas pela experiência da gratuidade de Deus, diante de Deus e diante dos homens, nunca morderão esse isco! Sempre que os círculos eclesiásticos, incluindo o próprio Vaticano, consentiram em ser apanhados por este sistema, isso é a prova de que nunca foram tocados pela experiência radical da fé e pela vivência da gratuidade; se acaso o foram, não o foram em grau suficiente.


Conduta ostensiva sacralizada

O Midrash da tentação revela até que ponto é funesta e até satânica a sacralização do antiquíssimo mecanismo contagiante desencadeado pela “conduta ostensiva”. René Girard, e outros investigadores do tema da Paz, vêem com inteira razão no comportamento ostensivo [1]‒ sobretudo nas culturas patriarcais ‒ sempre que se associa a “comportamentos imitativos”, uma das raízes principais da violência, mas também ‒ por último, mas não menos importante ‒ a origem da «violência religiosa»[2]. O comportamento ostensivo como método de autoimposição e como meio para se situar acima dos demais acaba por ser mais perigoso para a autenticidade da religião do que a vaidade feminina. Existe também a vaidade masculina, por exemplo entre os teólogos, mas essa é relativamente inofensiva e não acarreta perigos para a religião, a não ser quando consegue chegar ao extremo de pretender dominar ou menosprezar os outros. Uma certa e moderada dose de vaidade até poderá funcionar como válvula de escape, na medida em que isso faz com que não consiga atingir aquelas formas perigosas de comportamento ostensivo, sobretudo quando a pessoa é capaz de se rir com toda a franqueza da sua própria vaidade.

A história da religião, e de maneira especial a história da Igreja, denuncia a presença de formas sumamente nocivas de consentimento e de sacralização de comportamentos ostentatórios próprios de sistemas mundanos, que tendem sempre para a autoexaltação e acentuação da autoridade. Na verdade, praticamente todos os sistemas de dominação baseados no poder procuram sacralizar os seus próprios comportamentos ostensivos e impositivos. São exemplos clássicos, quanto a este propósito, o culto ao imperador divinizado no Oriente, no Egipto, em Roma, etc.

Já desde os dias da «aliança entre o trono e o altar» sob Constantino até à «Santa Aliança» entre o Papa, o Czar e o Kaiser, têm vindo a actuar os mecanismos de mútuo reforço dos comportamentos impositivos e respectiva sacralização. Santos como Francisco de Assis e Filipe de Néri aperceberam-se deste jogo e foram certeiros a ridiculariza-lo, mercê de um sentido de humor cristão e, assim, ajudaram muitos a precaver-se diante de tal tendência.




Quando em 1968 dirigi Exercícios Espirituais aos cavaleiros da Ordem de Malta, em Roma, o Mestre de cerimónias avisou-me que sempre que eu fizesse a genuflexão diante do altar deveria, de seguida, fazer uma profunda vénia ante o Grande Mestre e que, antes de começar uma homilia ou conferência, deveria dirigir-me a ele com a saudação de “Alteza eminentíssima”. Acontece que aqueles homens da alta aristocracia, que se batiam pela sua caridade generosa, gozavam com aquele rito e estavam perfeitamente dispostos a renunciar a ele. Uma das formas mais ridículas de “mimese e sacralização” do comportamento ostensivo é o uso da púrpura nas vestes dos Cardeais e a denominação de «purpurados» e de Eminência Reverendíssima outorgada aos seus titulares. O ponto culminante foi a introdução da “cauda” da capa magna na roupa cardinalícia. Até Pio XII, um dos direitos fundamentais do cardinalato era o de poder usar uma cauda de 12 metros. Eu fui testemunha, em Roma, de como, em variadas ocasiões, os cardeais mantinham entre si esses 12 metros de respeitosa distância e como eles desfilavam na Basílica Vaticana, seguidos dos seus caudatários.

Quando Pio XII diminuiu o comprimento da cauda cardinalícia para os 9 metros, produziu-se entre alguns deles um grande alvoroço. Aquando do funeral deste Pontífice, o cardeal Canali, chefe do grupo conservador à época, mais outros dois colegas, apresentaram-se ostensivamente em público, deslumbrantes, com a antiga ‘cappa magna’ luzidia de 12 metros.

O Papa João XXIII não deixou passar a mensagem subliminar deste curioso espectáculo. Nos primeiros dias da sua eleição como Sumo Pontífice, o «Osservatore Romano» ainda se mantinha fiel ao estilo do costume: «Pudemos ouvir dos augustos lábios de Sua Santidade…». O Papa tratou de chamar o redactor e comunicou-lhe: «Deixe-se de patetices e escreva: “O Papa disse”.» Antes do início da Quaresma de 1963, no primeiro ano do seu pontificado, Paulo VI enviou o seu mordomo a dizer-me que desejava que eu dirigisse os exercícios espirituais à Cúria. Perguntei ao mordomo com que títulos eu me deveria dirigir ao Papa e recebi como resposta uma desconcertante litania. Pedi-lhe então por favor: «Será que me podem pô-los por escrito? É que não sei se serei capaz de o fixar de memória…» O prelado apressou-se a comunicar ao Papa a minha pergunta e fez-me, então, chegar a resposta: «Proíbo-o de perder um tempo tão precioso com títulos inúteis. Caso concorde, pode saudar-nos a todos, a abrir a prática, com um “reverendos padres”.»

O meu cargo de secretário da redacção da Comissão para o ‘esquema’ «A Igreja no mundo actual» permitiu-me manter uma activa correspondência epistolar com os bispos que a integravam. Cedo descobri um sem número de bispos de espírito aberto, e também alguns muito conservadores, que recusavam o título de «excelência» e coisas parecidas. No fim do Concílio, vários bispos e cardeais mantinham frequentemente, em conjunto com alguns teólogos, uma reunião no Colégio belga, à qual também fomos convidados Yves Congar e eu. O assunto era um suposto «Esquema 14» acerca do retorno dos bispos e dos cardeais à simplicidade e à pobreza apostólica, bem como a supressão de todos os títulos não evangélicos. Várias centenas de prelados manifestaram a sua expressa aprovação à iniciativa. Estou convencido que ao regressarem às suas dioceses continuaram a alimentar as velhas fórmulas cerimoniosas. Provavelmente, a crise dos tempos pós-conciliares teria tido um cariz muito distinto e tivesse avançado por vias muito mais salvíficas se o Concílio tivesse tido a coragem de pôr um ponto final claro e definitivo a todo esse tipo de comportamento ostentatórios.

Advirto também para uma conexão entre a actual onda restauracionista e o regresso às velhas tradições ostentatórias. Caso não esteja errada esta suposição, então ficaria clara a existência de uma inter-relação psicológica entre as actuais tentativas de uma maior concentração do poder no Vaticano, um sistema mais generalizado de controlo e a imposição à força do conformismo em tudo aquilo que diz respeito a declarações vaticanas. Os líderes do movimento restauracionista tratam-se mútua e complacentemente com os ressonantes títulos de «Eminentíssimo e reverendíssimo senhor Cardeal», «Excelentíssimo e reverendíssimo senhor Bispo». Fica assim bem destacada a superior importância dos purpurados. Eu ouvi dos lábios de um dos mais acérrimos defensores da restauração e instigador da nomeação de bispos pertencentes à “linha dura” amargas lamentações porque tinha descido na escala muitos pontos a importância dos cardeais comparativamente aos bons velhos tempos em que cada cardeal dispunha do seu próprio palácio e de uma farta serventia de auxiliares. Fiquei surpreso que o Papa se tenha deixado levar por esse comportamento ostentatório sacralizador, sobretudo aquando da (posterior) confirmação do decreto que exige de todos aqueles que ocupam lugares de docência na Igreja uma confissão de fé e um juramento de fidelidade às doutrinas pontifícias (sem as definir em concreto). Os «Acta Apostolicæ Sedis» faziam notar que a aprovação pontifícia deste Decreto fora outorgada “ex audientia Sanctissimi”: aquando de uma audiência com o Santíssimo (AAS [1989], 1405). O documento, na verdade, é algo menos solene e, em vez do Santíssimo, contenta-se com um Beatíssimo, qualificações referidas ao Papa.

Impõe-se que Jesus leve a cabo uma nova purificação do Templo a fim de que se restabeleçam de novo na Igreja a salvação e as relações salvíficas para que se possa dar testemunho do Evangelho e da sua simplicidade. Desmascarar estas interconexões é um dever absoluto de todos quantos não queiram ser culpados das farsas e dos autoenganos «satânicos». A cobardia faz com que muitos se mantenham eternamente aprisionados nesta manobra do poder: a ostentação.

Para mútuo consolo, recordo a mim mesmo e aos meus leitores que a grande maioria dos nossos bispos já perceberam a marosca e amam a simplicidade evangélica. Contudo, são necessárias ainda algumas procissões rogativas e o ressoar de muitas trombetas de denúncia profética para que se desmoronem, como um castelo de cartas, os muros de Jericó e se abra na Igreja espaço livre para sãs relações, as quais nos permitam anunciar ao mundo de forma convincente o Messias manso e inimigo da ostentação.


As estruturas da tentação do poder religioso

Uma sentença proclama: «O poder corrompe. O poder absoluto corrompe absolutamente» (Lord Acton). É esse o sentido que se dá à expressão latina “Corruptio optimi pessima” (A corrupção do melhor é a pior). A natureza das tentações e a sua interpretação pela Bíblia e pelo próprio Cristo abrange a dimensão satânica, a abismal rede da solidariedade na perdição, a falsidade e o logro como uma terrível ameaça à verdadeira religião. Aquela realidade chamada «mundo», no sentido que o Evangelho de João lhe dá, à qual nunca nos podemos acomodar, culmina no abuso do poder em nome de Deus. Donde, a fé e o seguimento incondicional do Servo de Yahvé, humilde, pacífico e pronto ao sofrimento sejam parte do desmascaramento joanico das tentações satânicas. A esta fé e a este seguimento é que deve converter-se Pedro e, com não menos radicalidade, todos quantos participam de algum tipo de exercício de autoridade na Igreja. Temos de olhar olhos nos olhos a tentação e reflectir com rigor uma e outra vez e interrogar-nos: como enfrentar essa tentação?

Paralelamente ao comportamento ostensivo sacralizado, caminha o perigo da implantação de estruturas de poder não evangélicas e o respectivo exercício da autoridade. Quando em 1870, Garibaldi, (1807-1882), líder dos movimentos de libertação italianos e da unidade nacional, arrancou ao papado os caducos Estados Pontifícios, os papas manifestaram sinais de ira durante quase sessenta anos: trancaram-se dentro dos muros do Vaticano e repreendiam todos aqueles que procurassem adverti-los que era possível renunciar ao poder terreno e continuar a seguir em frente. O conluio entre o ministério de Pedro na Igreja e o poder político ‒ de facto, expresso nos constantes Pactos com sistemas políticos europeus doentios e por fim acabando por estabelecer a «Santa Aliança» com o Kaiser e o Czar ‒ tinha de acarretar forçosamente repercussões funestas à autoridade e ao poder dos Papas e da Igreja no seu conjunto. Já na Alta Idade Média se havia registado essa mescla confusa quando o ministério petrino se converteu no pomo de discórdia entre a aristocracia romana e italiana. Contudo, só durante o «cativeiro de Avinhão» (1309-1377) é que se iniciou o caminho rumo a um centralismo universal de carácter absolutista. Confluíram para isso então ‒ com efeitos devastadores ‒ dois elementos: em primeiro lugar, a corte pontifícia de Avinhão precisava de novas fontes de recursos económicos, já que se tinha secado a mina dos impostos vindos dos Estados Pontifícios. E, por outro lado, o Estado francês, organizado de modo fortemente centralizado, sugeria um novo modelo de domínio papal. Foi, sob esta dupla influência, que se passaram a produzir as nomeações de bispos feitas pelos Papas praticamente sem a intervenção das Igrejas orientais, nomeações acompanhadas sempre de um “tributo”. A concessão de títulos eclesiásticos honoríficos converteu-se, também, em importante fonte financeira.





É legítimo justificarem-se as nomeações pontifícias de bispos por parte dos Papas na medida em que, assim, elas arrancavam essas nomeações das mãos dos interesses do poder político de imperadores, reis e príncipes. No entanto, que ainda hoje continue a ser o Vaticano quem, na prática, seja a única autoridade competente para a escolha dos cerca de cinco mil bispos repartidos por toda a terra e que, recentemente e pela primeira vez na história, se reserve ao Vaticano a aprovação de todos os professores de teologia das universidades e faculdades eclesiásticas, isso significa uma enorme concentração de poder. A frase «o Papa decide» induz em erro. Como é que é possível um único homem reger com justiça a diocese de Roma e chamar a si ao mesmo tempo e eficazmente as tarefas de Metropolita da circunscrição romana, as funções de Primado de Itália e Patriarca do Ocidente, de África, etc. etc. para além das funções de Cabeça da Igreja Universal? Como é possível um Papa controlar, de forma minimamente aproximada, as cinco mil nomeações de bispos e as ainda mais numerosas ‘confirmações’ de Professores de Teologia? Estamos perante uma inversão do princípio da subsidiariedade tão expressamente proclamado pela Igreja. Desta instância de nomeação e controlo faz parte um imenso aparelho burocrático, informadores oficiais e extraoficiais e dossiês com quilómetros de comprimento. Mais: isto não tem nada que ver com o princípio, reactualizado no Concílio Vaticano II, da «Colegialidade». Nascem, assim, nocivas estruturas de poder com a consequente diminuição da confiança mútua. Volta a fazer sentido puxar para o centro desta realidade a pergunta: podem, Pedro e os seus colaboradores, anunciar a mensagem nuclear do Servo de Yahvé humilde, manso e sofrido, glorificado pelo Pai? Obviamente que existem por muitos lugares do mundo testemunhas da fé que gozam de grande credibilidade, mas a questão que está aqui sobre a mesa é: o ministério de Pedro confirma ou, pelo contrário, obscurece essa credibilidade? Aquilo que unicamente importa é: uma “aliança de amor” … com a qual não encaixa mesmo nada bem um «aparelho» de controlo pletoricamente centralizado! «Mas tu, uma vez convertido, confirma os teus irmãos!» (Anúncio das negações de Pedro (Mt 26,30-35; Mc 14,26-31; Jo 13,36-38) - E o Senhor disse: «Simão, Simão, olha que Satanás pediu para vos joeirar como trigo. Mas Eu roguei por ti, para que a tua fé não desapareça. E tu, uma vez convertido, fortalece os teus irmãos.» Ele respondeu-lhe: «Senhor, estou pronto a ir contigo até para a prisão e para a morte.» Jesus disse-lhe: «Eu te digo, Pedro: o galo não cantará hoje sem que, por três vezes, tenhas negado conhecer-me.» - Lucas 22, 31ss)

Afastemo-nos agora de algum tipo de pessimismo que eventualmente a descrição desta situação poderá ter causado e citemos um parágrafo de uma carta de um de entre os meus mais antigos doutorados, e que recentemente me chegou às mãos. O zeloso missionário escreve, cheio de confiança: «Aqui [na Indonésia] o cristianismo não tem a mais pequena mancha de bolor bafiento ou de religião retrógrada. Roma e o Vaticano estão demasiado longe e os dirigentes religiosos são homens e mulheres que dão o peito às balas, que se solidarizam com as preocupações e os temores, mas também com as esperanças e aspirações das suas comunidades e ninguém consegue ver neles a face do funcionário nomeado para vigiar autoritariamente a moral e as leis eclesiásticas. Aqui ninguém conhece a expressão «Igreja oficial» e penso até que nunca iremos ter necessidade de a traduzir para a nossa língua mãe.»


O caso da China

A Igreja perseguida da China há muito que teria tido a oportunidade de superar as suas enormes dificuldades se, diante daquele imenso povo e daquela excepcional cultura (um dos maiores espaços culturais planetários), Roma tivesse decididamente renunciado à nomeação dos bispos, ou seja, se pelo menos na China se tivesse regressado à ordenação eclesiástica inicial da Igreja dos começos. Para poder sobreviver, as igrejas locais teriam de assumir a responsabilidade de escolher os seus próprios pastores.

Porque será que Roma não consentiu? A nosso ver, porque não quis abrir nenhum precedente. De facto, se a Igreja abrisse a oportunidade de reactualizar, na China, o antigo ordenamento eclesial, como o poderia negar em África, na América Latina e nas restantes igrejas orientais? No novo Código de Direito Canónico, introduziu-se, pensando especialmente nas igrejas uniatas ‒ de pequena dimensão ‒, um modelo que está muito próximo do princípio da subsidiariedade. Porquê não o aplicar igualmente na China e, posteriormente, de forma definitiva, à Igreja universal? Não sairia afectada, bem pelo contrário, a “unidade na caridade” a que Roma deve presidir. A situação da Igreja na China é um kairos (um tempo desafiador) que merece profunda reflexão e coragem diante da oportunidade.


O caso da Checoslováquia

Em situações de necessidade extrema ‒ épocas de perseguição ‒ a Igreja recorreu, neste país, à ordenação sacerdotal (e episcopal?) de homens casados. Portanto, isto quer dizer que Roma estava de acordo com esta prática, ou não?! Hoje em dia, após a libertação [da submissão à URSS], existem regiões que sofrem de acentuada penúria de sacerdotes. E, no entanto, aquilo que parece pretender-se fazer neste momento é reduzir ao estado de diáconos todos aqueles homens casados feitos sacerdotes por extrema necessidade, passando uma esponja sobre tanto padecimento que, por causa da sua fé, esses sacerdotes sofreram. Estamos, mais uma vez, diante da atitude que visa não abrir precedentes. Também aqui estamos diante de um tempo-kairos. Até ao fim do século XIX, a Igreja da América Latina e a das Filipinas dependiam, exclusiva ou quase exclusivamente, de sacerdotes importados. Não se confiava na capacidade dos nativos em viver o celibato e nem sequer capacidade formativa sacerdotal de acordo com as concepções romanas. Com esta atitude, bloqueou-se, em primeiro lugar, a inculturação e, em segundo lugar, privavam-se aqueles povos do direito fundamental das comunidades cristãs a participar regularmente na celebração eucarística. O caso da Checoslováquia estava destinado a dar brado na Igreja universal. O que aqui estava, com efeito, em jogo era um direito cristão básico, a saber, o direito a celebrações eucarísticas autênticas e criadoras de comunidade. O “celibato pelo reino dos céus” é enorme e belo (Mateus 19,12). Mas, se por causa da lei do celibato se sacrifica a fidelidade ao solene testamento e mandato de Jesus bem como o direito radical à celebração eucarística, então estamos a pôr em perigo a ortodoxia e a confirmação, por intermédio de Pedro, da fé fundamental.

Coloca-se, além disso, em questão outro dos artigos do Credo: «Creio no Espírito Santo». Adianta-se frequentemente o argumento de que se se renunciasse ao imperativo legal de que só pode receber a ordenação sacerdotal aqueles que se obriguem a permanecer celibatários, seriam muito poucos os que escolheriam ser celibatários. No entanto, na minha opinião, o celibato livremente escolhido é um dom do Espírito, pelo que não se pode condicionar todo o potencial da acção do Espírito exclusivamente aos limitados canais da lei. Creio bem que, caso introduzíssemos uma radical mudança e fosse permitido o acesso ao sacerdócio a homens casados experimentados, postos à prova pela vida, teríamos um número maior de sacerdotes, com a vantagem de serem pessoas mais próximas da realidade concreta da vida, gente piedosa experimentada capaz de um testemunho em favor do reino dos céus mais credível do que o dos celibatários que o vivem de acordo com as circunstâncias. Neste caso, creio que aqueles que escolhessem não casar e ser mesmo celibatários por convicção tornariam essa escolha mais atraente. Entretanto, o que temos é a ortodoxia e quanto a isso o que há a dizer é que não é lícito sacrificar um mandato e um testamento divino a uma tradição legal meramente humana. Por fim, há que sublinhar que também neste caso o princípio da subsidiariedade deve adquirir plena vigência: todas as partes da Igreja universal devem ter “direito de codeterminação” ou, mais concretamente, de decisão dentro do seu próprio âmbito.

Das minhas actividades por África e dos meus contactos com os respectivos povos cheguei à seguinte conclusão: existem, nesse continente, tribos e culturas muitos jovens dispostos a aceitar o sacerdócio celibatário e bem capazes de o viver em plena fidelidade. Porém, também existem numerosas tribos em cuja cultura não haverá aceitação do celibato, pelo menos durante algumas gerações. Deverão, estas populações que também alcançaram altos valores culturais, depender de sacerdotes importados de outras tribos?

A Igreja católica necessita de uma drástica limitação do exercício centralizado do poder. Deve admitir de bom grado e com coragem complacente a existência de um certo pluralismo e respeitar o princípio da subsidiariedade e isto para o seu próprio bem e em benefício da missão que lhe foi confiada: promover saúde e salvação. Isto, que é tão urgente no âmbito interno, é imensamente benéfico e determinante para a causa do ecumenismo.


Restabelecer as relações de mútua confiança estruturalmente perturbadas

O Concílio foi, para muitos de nós, uma festa, uma experiência cimeira de fé na capacidade de renovação da Igreja, de fé no poder do Espírito Santo. Há que o dizer: também nos esforçamos por compreender e tratar com afecto humano a velha guarda da Cúria romana, totalmente impregnada de uma visão de Igreja marcadamente centralista, repleta duma mentalidade de cidadela assediada: uma Igreja como baluarte de todos os tesouros da verdade que teria de defender, desse por onde desse. Aqueles círculos curiais tinham preparado 72 documentos destinados a consolidar, com muito poucos retoques, a velha concepção da Igreja e a rígida estrutura eclesial centralizada, conjuntamente com todo o seu andaime teológico.

Foi enorme (e humanamente compreensível) a sua comoção quando viram como, nas sessões públicas do Concílio, se criticava abertamente a até então tão encomiada encíclica Casti connubii de Pio XI. As reacções da velha guarda curial raiaram o patológico quando se abordou a fundo o debate sobre a colegialidade. Apesar da expressa vontade, por parte da “maioria conciliar, de querer estabelecer sinceros compromissos e conciliações” em questões secundárias e, inclusivamente, no ponto muito importante do “colégio episcopal”, muitos dos oficiais da velha Cúria sofreram um sério traumatismo, do qual responsabilizaram sobretudo os teólogos conciliares. Nunca chegaram a ter consciência que aquele Concílio era o modelo arquetípico de uma colaboração exemplar entre os pastores da Igreja e a teologia científica.

Mais tarde, por ocasião do primeiro Sínodo dos bispos celebrado após o Concílio em Roma, o cardeal Ottaviani (1890-1979) e a sua equipa ‒ prontos para porem em andamento ‘a obra da restauração’ ‒ lançaram duros ataques contra «os teólogos», como se eles tivessem sido os únicos culpados das tensões pós-conciliares. Por trás de tudo isto estava o anteriormente referido traumatismo, que procuro enquadrar para compreender.

O cardeal Suenens, apoiado pelo cardeal Döpfner e outros, fez uma proposta que não se limitava a ser apenas uma escapatória para sairmos do atoleiro, mas que verdadeiramente abria um caminho com futuro: a nomeação de uma “comissão teológica internacional” verdadeiramente representativa, cuja missão seria coadjuvar o Papa e a «Congregação da Doutrina da Fé» ‒ a herdeira da «Suprema», quero dizer, do Santo Ofício ‒ garantindo assim um diálogo fecundo e permanente entre o Magistério romano e a comunidade teológica da Igreja universal. No momento de se passar, então, à constituição desta comissão, nomeando os futuros teólogos, Paulo VI acabou de ceder à pressão da mencionada Comissão da Doutrina da Fé enchendo a respectiva lista de nomes de pessoal da sua confiança (propostos pelas Conferências Episcopais).

Perante um protesto público e face à renúncia de Karl Rahner em fazer parte de uma lista constituída com base em critérios manipulados, foram muitos os olhos que se arregalaram diante da situação que acabava de se cozinhar ali, e que não passava do seguinte: as autoridades romanas, na prática, negavam-se a um diálogo seriamente representativo da realidade teológica universal. Não se tratava apenas de terem sido excluídos da proposta todos os nomes dos teólogos que trabalharam no Concílio pela renovação da Igreja, mas de se ter incluído apenas nomes de teólogos retrógrados, os minoritários do Concílio. Cito um exemplo, em matéria de teologia moral: foram incluídos na comissão homens como Carlo Caffara e William May que defendiam, entre outras coisas, que a Casti connubii era um documento infalível (“Reafirma o magistério da Igreja que se opõe ao adultério e ao divórcio. Afirma que o ato conjugal deve sempre estar aberto à vida e não deve ser frustrado o poder de gerar a vida deliberadamente. Casti Connubii é muito notada pela sua posição fortemente oposta à contracepção através de controle de natalidade por meios artificiais. Este documento, bem como a «Humanae vitae», representam bem o ensino do Magistério da Igreja sobre a matéria.”).

O processo doutrinal incoado contra mim em 1975, juntamente contra muitos outros nos dias de senectude de Paulo VI, constituiu a expressão clássica do objectivo fundamental da Congregação da Doutrina da Fé e da ala restauradora, em geral. Visava esmagar qualquer dissentimento acerca de matérias obviamente não infalíveis: de futuro, ficaria completamente proibido dissentir, mesmo que humilde e moderadamente que fosse, perante manifestações não infalíveis do magistério romano.

Acontece que, durante os muitos anos em que trabalhei em Roma, prestei ajuda, quer no campo espiritual quer no âmbito terapêutico (sem que o procurasse intencionalmente) a alguns teólogos que tiveram a infelicidade de serem apanhados pelo rodado do camião da «Santíssima Congregação do Santo Ofício». Esta situação particular deu-me experiência nestas matérias e circunstâncias. O tal processo, durante o qual estava totalmente excluída a possibilidade de um diálogo prévio, andava sobretudo à volta da «Humanæ vitæ», dos caminhos que conduziam a uma paternidade responsável e dos inerentes problemas de ética médica. O quilométrico laudo acusatório, semeado de imputações a cargo de moralistas anónimos, baseava-se numa tradução italiana do meu livro «Heilender Dienst» (cf. "Ministério da cura. Problemas éticos da Medicina moderna" e "Medical Ethics» e «Manipulation» – ambos por Bernhard Häring; cf. também "Perspective chrétienne pour une médicine humaine", Fayard 1975). Todo aquele que leia ou tenha lido este meu escrito concordará comigo que as afirmações que ali faço não rebaixam em nada tudo o que até agora fora formulado (sobre as pertinentes matérias) por prestigiadas conferências episcopais bem como pelos sínodos alemães. No meu processo, o único elemento novo era a declarada intenção de matar à nascença ‒ acompanhada de punições ‒ qualquer dissensão perante as declarações doutrinais do magistério romano, por exemplo, as contidas na declaração do ex-Santo Ofício intitulada «Persona Humana ‒ sobre algumas questões de moral sexual».

Transcrevo este excerto da carta, por mim recebida, vinda da Congregação da Doutrina da Fé, de 18 de Maio de 1977:

«Esta Congregação insta-o a que exprima o seu assentimento à doutrina católica quanto aos pontos em questão sobre os quais o magistério se pronunciou com verdade, e que no futuro evite qualquer manifestação, por palavras ou por escrito, que permita deixar dúvidas sobre tal assentimento… Caso isso se verifique, tal permitiria que a Congregação solicitasse o encerramento do seu processo à instância superior. Portanto, esta Congregação está a pedir-lhe que lhe faça chegar uma promessa por escrito no sentido acima indicado.»

Antes de mais, atentemos na estreita margem de manobra que é concedida a um teólogo que trata de cruciantes problemas pastorais. É aceitável que se exija a um teólogo que sopese cada palavra dita a fim de que não seja interpretada como sub-reptício dissentimento das declarações doutrinais das autoridades romanas ou do Papa? Até que ponto isso é digno de fé e ajuda as pessoas com mentalidade crítica? Durante os decénios em que pude conviver com a juventude italiana soube, por experiência, do escárnio que encerra a expressão: «Este fala como um Monsignore.» Esta experiência significa que, o teólogo ou o cura, a quem se aplica a expressão, antes de falar, não pensa na mensagem e nos seus ouvintes, mas naqueles de quem depende a sua promoção. Porém, no que me diz respeito, não se trata de promoções, mas da paz do meu espírito e da possibilidade de uma proclamação digna de fé.

Como teólogo, preocupam-me as seguintes questões: Como enfrentar a vida moderna, o pluralismo de culturas e a multiplicidade de formas éticas e costumes? Como colaborar, diante da exigência do assentimento às formulações doutrinais romanas, na inculturação da mensagem cristã num contexto diversificado de culturas e perante as novas gerações? É ainda possível um diálogo ecuménico? E como? Porém, a questão que mais directa e imediatamente me acusa é a seguinte: como compaginar esta exigência da Congregação da Doutrina da Fé com a afirmação paulina: “Tudo o que não é feito a partir da convicção da fé pura é pecado.” (Romanos 14,23)? Em nenhum dos processos doutrinais a que tive acesso consta, para além da pressão para conseguir a retratação e o consenso, a pergunta se um teólogo agiu ou falou de boa fé ou de consciência honesta. Está ou não em jogo, nesta questão tão inflexivelmente exigida, a missão autenticamente salvadora e santificadora da Igreja? Mais: não apenas no processo incoado contra mim, mas noutros parecidos, bem como em muitas outras ocasiões, as autoridades romanas, uma ou outra vez, desacreditam a assistência do Espírito Santo, como se essa assistência fosse algo garantido automaticamente. Portanto, o que está em questão são questões fundamentais.

Tudo isto poderia ser atirado tranquilamente para trás das costas e até ser desculpável e abafado pelo manto do silêncio, não fora porque o mencionado processo, que nunca teve nada a ver com dogmas, pudesse lançar uma luz reveladora sobre a evolução futura e sobre a situação actual. Que fique bem claro: o Papa João Paulo II não tem nada a ver com isso, mas que fique aqui bem expresso quanto me custou o processo ou a minha recusa a comprometer-me sob juramento àquela conformidade. Apesar de três operações cirúrgicas a um cancro durante o processo, e de um grave enfarto do miocárdio, e apesar da minha alusão pública a este meu delicado estado de saúde, o processo prolongou-se por mais dois anos, na sequência da minha recusa em pactuar com a obrigatoriedade de assinar uma retratação que eliminasse a mais pequena sombra de dissentimento.

Aquilo que precisamente estava por trás de tudo isto era o Novo Código de Direito Canónico de 1983 que estipula, no seu Cânone 1371, 1[3], o castigo a aplicar, no caso do meu processo: qualquer dissentimento face a declarações não infalíveis do magistério romano considera-se ‒ expressamente e segundo o dito cânone ‒ delito sempre que o culpado se negue a uma retratação incondicional. Também no meu processo, esta lei penal não faz referência alguma à existência ou não de fé verdadeira ou de convicção de consciência. Com base neste modelo, pode ser desencadeado todo o tipo de processos. É curioso ‒ e digno de nota relevante! ‒ que na Comissão Internacional para a preparação do novo Código jamais se mencionara esta lei punitiva. Ela fora introduzida, na última hora, pelo Vaticano…

Apesar de nos últimos anos se ter registado uma apreciável sequência de “procedimentos doutrinários” e inúmeras exortações à obediência ao Papa, é patente que as sanções punitivas não conseguiram atingir os seus objectivos persecutórios, a saber, um conformismo total. Assim se explica o facto de, de forma fulminante e talvez como reacção contra a chamada «Declaração de Colónia», tenha aparecido, com data de 9 de Janeiro de 1989, um documento muitíssimo controverso que prescreve aos teólogos uma «confissão de fé» e o respectivo “juramento de fidelidade” aos ensinamentos papais não infalíveis. Deu nas vistas a circunstância dessa publicação não vir acompanhada da Nota, regra geral habitual, de que havia sido confirmada pelo Papa. Esta falha grave foi em parte sanada a 19 de Setembro daquele mesmo ano mediante a declaração de que tinha sido ratificada pelo Sanctissimus et Beatissimus. (Como já disse, oficialmente o Vaticano trata o Papa por «santíssimo e beatíssimo») A propósito do sentido e objectivo de tão extraordinária prescrição só podemos formular hipóteses. Pretender-se-ia, por ventura, acrescentar ao ‘castigo por dissentimento’ uma sanção especial por ‘quebra de juramento’? Suspeito que sim.

Deixando agora de lado o caracter insuperável de tamanha impositividade deste decreto, peguemos num ponto singularmente débil. Sob a denominação «confissão de fé» inclui-se quer a fé em todos os dogmas e o assentimento inquebrantável em todos os ensinamentos não revelados a que Roma tenha conferido carácter definitivo ‒ ainda que sem citar um único exemplo ‒ como, imaginemos, o obsequium religiosum do entendimento e da vontade de todas as decisões doutrinais de Roma. É assim que se confundem de forma inadmissível as fronteiras invioláveis entre «verdades reveladas e ensinadas como infalíveis» e respectivos graus ‒ ainda que não devidamente detalhadas ‒ das «decisões do magistério» romano. Estamos, pois, diante de uma perigosa e intolerável confusão de matérias totalmente diferentes entre si. Estamos perante o mais claro exemplo de um «insidioso infalibilismo» (veja-se A. Schmied , «Schleichende Infallibisierung. Zur Diskussion um das kirchliche Lehramt», in “In Christus zum Leben befreit”, J. Römelt e B. Hildber [dir.], Friburgo 1992, p. 250-274).

Cito, de seguida, um princípio de singular importância, fruto do Concílio Vaticano II, formulado no número 62 da constituição Gaudium et spes e dedicado às relações entre a Igreja e a cultura. Nele, recomenda-se encarecidamente ‒ a partir de uma visão da missão da Igreja como fermento de toda a vida cultural ‒ o diálogo interdisciplinar entre os teólogos e os mais destacados representantes das outras ciências. Estimula-se inclusivamente os leigos a estudar teologia. Chama expressamente a atenção ao seguinte: «… as recentes investigações e descobertas das ciências, da história e da filosofia, levantam novos problemas, que implicam consequências também para a vida e exigem dos teólogos novos estudos. (…) uma coisa é o depósito da fé ou as suas verdades, outra o modo como elas se enunciam, sempre, porém, com o mesmo sentido e significado. Na actividade pastoral, conheçam-se e apliquem-se suficientemente, não apenas os princípios teológicos, mas também os dados das ciências profanas, principalmente da psicologia e sociologia, para que assim os fiéis sejam conduzidos a uma vida de fé mais pura e adulta. (…) Vivam, pois, os fiéis em estreita união com os demais homens do seu tempo e procurem compreender perfeitamente o seu modo de pensar e sentir, qual se exprime pela cultura. Saibam conciliar os conhecimentos das novas ciências e doutrinas e últimas descobertas com os costumes e doutrina cristã, a fim de que a prática religiosa e a rectidão moral acompanhem neles o conhecimento científico e o progresso técnico e sejam capazes de apreciar e interpretar todas as coisas com autêntico sentido cristão. (…) A investigação teológica deve simultaneamente procurar um profundo conhecimento da verdade revelada e não descurar a ligação com o seu tempo (…). É mesmo de desejar que muitos leigos adquiram uma conveniente formação nas disciplinas sagradas e que muitos deles se consagrem expressamente a cultivar e aprofundar estes estudos. E para que possam desempenhar bem a sua tarefa, deve reconhecer-se aos fiéis, clérigos ou leigos, uma justa liberdade de investigação, de pensamento e de expressão da própria opinião, com humildade e fortaleza, nos domínios da sua competência.» Em nenhum dos documentos da Congregação da Doutrina da Fé, especialmente naqueles que combatem o dissentimento, se menciona alguma vez esta afirmação do Concílio, que é da máxima actualidade. Sendo assim, é hora de nos interrogarmos: em que sentido deverá ir a nossa ‘obediência responsável’?

A Igreja pós-conciliar encontra-se, pois, diante de um ponto de não retorno. Pode ser que a nossa Igreja peregrina consiga retirar ensinamentos para o futuro a partir deste «incidente», que em si é muitíssimo mais grave do que o conflito que a Inquisição teve com Galileo. Estou convencido que nos próximos tempos se irá produzir um volte-face radical, quanto a questões deste teor. A opinião pública está muito sensibilizada a estas questões eclesiais internas. Há que desarticular incondicionalmente e com a maior urgência e eficácia as estruturas que geram desconfiança, as já mencionadas bem como outras parecidas, as quais só podem favorecer um centralismo doentio, a fim de que a Igreja possa ser, em virtude da sua teologia, «sal da terra», bem como enfrentar a imensa tarefa da reevangelização.

Nunca é demais insistir em que nos encontramos diante de um dos pontos nevrálgicos do ecumenismo. Todo o mundo está farto de o saber! Não há encontro ecuménico algum em que esta questão não seja levantada. Acaba sempre por ser referido: ‘como são altos e sólidos os muros que rodeiam «o palácio do Santo Ofício»’! Será possível, nem que seja apenas imaginar, um diálogo ecuménico oficial frutuoso se, quanto às questões mais prementes, elas só possam ser expressas sob a forma de afirmações doutrinais autorizadas por Roma e que se tenha de passar por cima ‒ em matérias muito importantes ‒ da opinião unânime dissidente dos teólogos de todas as Igrejas? Parte-se do princípio que Magistério romano e Doutrina são uma e mesma coisa, tal como se pensava na época pré-conciliar. Como último exemplo, basta folhear o Novo Catecismo da Igreja Católica e reparar na expressão «doutrina da Igreja» como sendo única e exclusiva, mesmo em matérias nas quais é mais do que evidente que a postura romana não foi aceite pela Igreja universal. É minha opinião que existe contradição entre a situação presente e o ministério autêntico de Pedro.




E, assim, chegamos ao grandioso e radical sonho do Salvador! (continua)



Bernhard Häring, «Las cosas deben cambiar – una confesión valiente», Barcelona, Editorial Herder 1995, pp. 56-99. ISBN 978-84-254-1906-9.



 

LAS COSAS DEBEN CAMBIAR OCR

 

 «Intacta desde Sisto V (1585-1590)» - Expectativas muito em baixo...

 

 

 




[1] «Ostensivo é o adjetivo que qualifica algo ou alguém que se exibe exageradamente, que gosta de chamar a atenção, que é vistoso, exuberante e extravagante. Também pode se referir a uma ação ou atitude que seja agressiva, instantânea e de efeitos imediatos. Quando se diz que uma pessoa é ostensiva pode significar que possui um comportamento arrogante, provocativo e prepotente em comparação aos demais. Exemplo: “O seu modo ostensivo fez com que chegassem ao divórcio”.

Alguns dos principais sinônimos de ostensivo são: intencional, propositado, aparatoso, pomposo, descoberto, escancarado, evidente, visível, altivo, agressivo, aguerrido, exaltado, suntuoso, feérico e deslumbrante. Etimologicamente, a palavra “ostensivo” é originada a partir do latim ‘ostensivus’, que pode ser traduzido como “com o propósito de se mostrar” ou “próprio para exibir”.» («Significados» sítio consultado a 04/03/2021)

[2] «A paz é um dos bens mais apreciados pela humanidade e, ao mesmo tempo, um dos mais frágeis; o mais desejado, mas também o mais ameaçado. (…) Revisitando as andanças da História, não é fácil encontrar um estado de paz duradoiro. A paz, na opinião certeira de José Luis López Aranguren, acabou por se transformar num período intermédio entre duas guerras, sendo que esse período intermédio não é outra coisa senão um tempo dedicado a preparar uma nova guerra. Parece até que, quanto a este assunto, vem a calhar o velho provérbio: «se queres a paz, prepara a guerra». (…) Não são poucas as guerras [sobretudo depois do “11 de Setembro” de 2001] que se vêm sucedendo nas últimas décadas e que se remetem para “guerras religiosas” com as características de «violência do sagrado» de que falava René Girard (“La violence et le sacré”). Dá a sensação que a guerra está no coração das religiões. (…) Uma das teses do meu amigo e colega, o teólogo Hans Küng, diz: “Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões sem consensos éticos globais. Não haverá no nosso Globo sobrevivência em paz e com justiça sem um novo paradigma de relações internacionais baseado em níveis éticos globais.” Esta proposta constituiu a base do “II Parlamento das Religiões do Mundo”, celebrado em Chicago de 28 de Agosto a 4 de Setembro de 1993, onde crentes de todas as religiões expressaram pela primeira vez na História o seu consenso à volta de uma série de valores, atitudes e modelos éticos comuns. (…) Eis a alternativa à teoria do “Choque das Civilizações” proposta por Samuel P. Huntington no seu livro homónimo, o qual destina ao cristianismo uma nova função bélica contra outras religiões, muito especialmente contra o Islão, considerando-o “a civilização menos tolerante de todas as religiões monoteístas”.» Juan José Tamayo (Dir.), “La realidade de la violência y la aspiración a la paz en las religiones” in «10 palabras clave sobre PAZ Y VIOLENCIA EN LAS RELIGIONES», EVD 2003, pp. 11-13.

[3] A leitura dos “comentários” aos cânones 1371 e 1372 feitos pelos Professores de Direito Canónico da Universidade Pontifícia de Salamanca deveria ser suficiente para que qualquer cristão deixe de crer que esta Igreja Católica, assente nesta Lei, tenha futuro algum… Cf. «Código de Derecho Canónico», Edición bilingüe comentada por los Profesores de Derecho Canónico de la Universidad Pontifícia de Salamanca, BAC, Madrid MMXI, pp. 786-787. [NdT/pb]