teologia para leigos

4 de setembro de 2014

EUCARISTIA: CUME? [R.TAFT]

A frequência da Eucaristia ao longo da história



Jesus disse: «Fazei isto em memória de mim», mas não disse com que frequência. A questão que nos vai ocupar é a resposta que esta pergunta recebeu ao longo da história. Por questões de limitação de espaço, não nos é possível mais do que um breve esboço da evolução geral, ainda que deva reconhecer que existam excepções a este quadro geral.

Antes de avançar, importam algumas especificações. Por exemplo, existem eucaristias comunitárias e eucaristias de natureza mais privada. Existe a liturgia eucarística ou missa e a comunhão eucarística, dentro ou fora da missa - podemos elaborar acerca da frequência de ambas. Finalmente, cada uma dessas «eucaristias» tem o seu próprio ritmo e exige uma resposta particular no que diz respeito à sua frequência.

[…]


I.           Conclusão

A partir do século II observa-se uma evolução que vai da missa comunitária dominical e da comunhão diária em casa até à missa em alguns dias da semana. É evidente que o motivo desta evolução não é a «devoção eucarística», mas o desenvolvimento do ciclo litúrgico. Quando num dia particular se procede a uma solenidade litúrgica, a missa é celebrada como parte da festividade. É isso que acontece com os sábados, e depois com as estações das quartas e sextas-feiras, com os aniversários dos mártires, etc. Com a evolução, chega-se à possibilidade de, pelo menos, uma missa comunitária diária, excepto em certos tempos penitenciais, ainda que esta oportunidade só seja aproveitada em algumas tradições. Ironicamente, este engrandecimento da celebração é seguido de um decréscimo da frequência da "comunhão".

Será possível elaborar alguns juízos de valor sobre uma base tão movediça? Quanto a mim, constato alguns pontos constantes:

1.   A frequência eucarística variou muito ao longo do tempo, mas, nos tempos mais antigos, o ideal parece que foi a comunhão diária, sendo a missa diária conhecida em algumas igrejas já no século IV.
2.   A Eucaristia era um assunto eclesial sujeito a regulação da Igreja e, portanto, nunca deixado à mercê da «devoção» de cada um. A expressão da vida eclesial comunitária era um todo que não se limitava à Eucaristia. O seu ritmo não se determinou de modo independente, mas dependeu de outros factores, como por exemplo, do desenvolvimento do ciclo litúrgico.
3.   Dentro deste ciclo existiam tempos nos quais não celebrar a missa era considerado preferível do que celebrá-la, tempos em que se podia impor – e impunha-se mesmo – o abster-se dela. O excesso eucarístico foi condenado, o que significa que a Eucaristia tem valor relativo. Pode haver Eucaristia em demasia: às vezes, é melhor que não exista de maneira nenhuma.
4.   A tabela daquilo que é excessivo ou manifestamente insuficiente nunca foi sempre a mesma. Os extremos são indiscutíveis: menos de um domingo (em média por semana) é costume alheio à tradição; mais do que uma vez por dia é excessivo, excepto em circunstâncias particulares.
5.   A variedade existente entre estes dois extremos deve-se a factores diversos: necessidades pastorais, oscilações da teologia eucarística, diferentes sistemas simbólicos empregados nos distintos tempos e lugares, etc.
6.   Estes sistemas podem ser mutuamente contraditórios: os coptas celebram a Eucaristia diariamente apenas na Quaresma, ao passo que os bizantinos consideram as festividades eucarísticas incompatíveis com a Quaresma. Isto não significa que um sistema seja «verdadeiro» e o outro «falso». Significa, antes, que nenhum sistema pode ser absolutizado. Diga-se o mesmo das tentativas contemporâneas de construir sistemas simbólicos com vistas a serem usados como instrumento regulador do costume litúrgico. Estou a pensar no tópico actual de que somente o domingo é «escatológico» e, portanto, só o domingo é adequado para a celebração «escatológica» da Eucaristia, enquanto os dias da semana, dedicados à «santificação do tempo», deveriam destinar-se a celebrar a liturgia das Horas. Isto é ideologia e não teologia; ora, todos sabemos que a mente humana é capaz de construir uma ideologia que justifique até o injustificável…


Com isto, quero dizer que tudo é relativo? Não, porque por trás de tudo existe uma tradição comum. É claro que, para mim, só o sacrifício de Cristo tem valor absoluto. São inúteis as tentativas de conferir o mesmo valor ao sacramento de Cristo. Para além do mais, este sacramento tem carácter eclesial não privado, e a celebração da comunhão eclesial não se reduz à Eucaristia, a qual nunca poderá ser considerada isoladamente. As normas puramente individuais ou devocionais que não tenham em conta este contexto global carecem de legitimidade.

Quanto à questão da frequência, se a tradição é quod semper, quod ubique, quod ab omnibus, então a norma mais antiga para a comunhão é a recepção diária. E, para a missa, entre os dois extremos − «diária» ou «só aos domingos e dias festivos» − a única norma geral é, dentro de cada tradição, a adaptação às necessidades pastorais de tempo e lugar. Todas as tentativas de construir ideologias que absolutizem um determinado costume – p. ex., dizer que os «bons sacerdotes» são os que dizem missa diariamente, ou, que apenas o «domingo» é o dia adequado para celebrar a eucaristia por ser dia «escatológico» − são meros tópicos, produto de uma mente a-histórica.

Pessoalmente, também rejeito a ideia de que um sacerdote deve celebrar missa sempre que o assalte um pressentimento de aumento da fé e da devoção, uma presumível necessidade de participação existencial na cruz de Cristo. Tomado isoladamente, isto é demasiado individualista para encaixar com a minha ideia de relação que deve existir entre Igreja, Eucaristia e Ciclo Litúrgico. O mesmo deve dizer-se do presumível «direito» dos presbíteros a concelebrar seja lá em que missa for. Os critérios para decidir acerca destas questões são as necessidades pastorais da comunidade celebrante e a natureza da celebração em concreto, e não a devoção individual dos clérigos, os quais não possuem «direito» especial algum que tenha precedência sobre exigências eclesiais e pastorais mais amplas[1]. A Eucaristia não é apenas participação na cruz de Cristo, mas também Epifania da Igreja no contexto duma tradição litúrgica total, que requer, para a sua celebração, um juízo pastoral muito mais matizado do que qualquer «devoção» do indivíduo.

Dizer qual deverá ser, hoje, esse juízo pastoral é algo que não compete ao historiador. A História apresenta o passado sempre como algo instrutivo e nunca como normativo. Normativa é a tradição, mas a tradição, ao contrário do passado, é uma força viva, cujas expressões contingentes – na liturgia e em tudo o mais – são susceptíveis de mudança.

Robert Taft, jesuíta, USA.










[1] Pode ver-se um estudo mais amplo deste tema no meu artigo citado na nota 91, em Robert Taft, «Ex Oriente lux? Some Reflections on Eucharistic Concelebration»: «Worship» 54 (1980) 308-325.