teologia para leigos

13 de fevereiro de 2014

SEXUALIDADE [JD WERDT]

POLIVALÊNCIA DA SEXUALIDADE





O conteúdo do número 100 desta revista Concilium [Dez. 1974], apresenta o tema da sexualidade sob um ponto de vista crítico, e, por isso, opõe-se à monovalência da sexualidade ensinada pela doutrina oficial da Igreja católica, que se baseia na equação «sexualidade=procriação» (dentro do quadro do matrimónio). Não incluo, nessa doutrina oficial, os textos conciliares que se exprimem de modo bem distinto. Aquela equação [«sexualidade=procriação»] não resiste a uma análise crítica por parte do método indutivo das ciências naturais e das ciências do Homem, na medida em que os dados que estas disciplinas abarcam excedem, em muito, a equação sexualidade=procriação. Mesmo assim, este nosso texto não tem como finalidade indicar o caminho para a verdade, baseado nos contributos orientadores dessas ciências. Cingir-nos-emos, estritamente, ao tema proposto e situá-lo-emos, fenomenologicamente, como uma descrição sistemática daquelas dimensões semióticas da sexualidade, que se podem descobrir na experiência humana e no conhecimento científico da mesma.

[…]


II – Estudo estratigráfico da sexualidade

A partir destes princípios que acabamos de enunciar devem deduzir-se diferentes dimensões semióticas da sexualidade, sem que nos detenhamos a valorizá-las.

1. A partir da conduta e da experiência pessoal é possível descrever, a sexualidade, segundo três direcções:

a)   Como uma vivência interior possuidora dum conteúdo bem definido. É o que acontece com os desejos, fantasias, sonhos, sensações e excitações sexuais, bem como o prazer, o medo, a alegria ou a repugnância sexuais. Neste sentido, o processo sexual ou é voluntário ou é provocado por pessoas ou objectos (reais ou imaginários). Aquilo que cada coisa representa para cada indivíduo depende de muitas razões: da sua história pessoal, do momento e da situação presente, de condições internas e externas.
b)  Como um comportamento do indivíduo para consigo próprio, com conteúdo bem concreto (aceitação ou rejeição da sua corporeidade e sexualidade) com que se autoexcita mediante estímulos imaginários ou manuais (auto sexualidade sem parelha real), etc.
c)   Como um comportamento do indivíduo, de conteúdo bem definido, com pessoas e / ou objectos.

Mesmo uma pessoa sob continência sexual tem vivências e comportamentos deste tipo, pois só seria assexual o homem não sexuado, e isso não existe.

2. Através dessas dimensões, podemos traçar um outro corte segundo as funções da sexualidade, nas quais, pelo menos parcialmente se actualizam as três dimensões atrás resumidas, com o seu valor específico. Enumeremos as mais importantes:

a)   O prazer, graças ao contacto, a estímulos ópticos ou acústicos, graças a jogos amorosos, o orgasmo, etc.
b)  O relaxamento, na medida em que deixa o indivíduo satisfeito durante experiências prazenteiras genitais ou extra-genitais.
c)   A relação, no sentido geral e até certo ponto não especificado, que vai desde a atracção ao amor e até à agressividade. Esta função «social» da sexualidade apresenta muitíssimas variantes e múltiplos níveis de intensidade (desde a união extática até à radical separação entre sexualidade e amor), de acordo com todos as formas de entendimento ou oposição e desavença entre os seres humanos (aversão aos homens e às mulheres, discriminações de minorias sexuais, etc.).
d)  A reprodução: quer nos atenhamos à biografia geral de cada indivíduo quer ao período de «capacidade reprodutiva» da pessoa, esta função é temporalmente limitada, ao passo qua as mencionadas anteriormente persistem durante toda a vida. Por conseguinte, durante a fase procriativa, a sexualidade significa algo mais que apenas reprodução: a reprodução não é uma forma mais de experiência sexual, mas, somente, uma consequência possível da sexualidade, caso aconteçam determinadas condições biológicas. Não tem nada a ver com a qualidade da relação inter-humana nem com a forma como o indivíduo vive a experiência sexual. De facto, nem todas as crianças são «fruto» do amor. Além disso, até pode dar-se o caso que se deseje ter um filho, mas não é a intenção em si que faz com que a reprodução aconteça. Em resumo, o plano a que ela pertence é diferente das outras funções da sexualidade anteriormente mencionadas.

Esta enunciação não pretende, de modo algum, hierarquizar, ainda que, num simples relance, ela denuncie uma certa ordenação enraizada na tradição católica (mas não apenas nela). O prazer, regra geral, ou nunca aparece ou é citado como função última, no fim, coisa que se compreende, e até é lógica, caso se persista e insista no primado da função reprodutiva, se tivermos em conta a insignificância do orgasmo da mulher para efeitos da procriação. Para tal finalidade, o orgasmo do homem é obrigatório, ao passo que o da mulher é supérfluo. Isto define uma concepção discriminatória da mulher, que fica condenada a uma sexualidade passiva. Do ponto de vista etnológico, isto significa uma humilhação, por exemplo, do inimigo (cf. as cenas…).

[…]


VII – Polivalência e cristianismo

Caso nos decidamos a volver o olhar para as fontes genuínas do cristianismo, não encontraremos nelas nenhum argumento sólido para uma concepção monovalente da sexualidade. Na verdade, deveríamos dizer que aquelas fontes não nos proporcionam nenhuma concepção particular da sexualidade, mas, sim, uma visão global do homem todo.

O Homem é concebido como uma realidade criada, no que está incluída a sua sexualidade, uma obra em cujo conjunto se pode contemplar uma dupla dimensão: a

a)   Horizontal – como pessoa em relação com os outros homens, e a
b)  Vertical – como pessoa diante de Deus.

É a partir deste conceito central que devemos entender as valências da sexualidade humana. Dito por outras palavras: é da pessoa humana que a sexualidade recebe o seu significado e o seu sentido. O Homem, ao enfrentar-se com a sua sexualidade, sente-se responsável não por algo que seja pré-pessoal ou sub-pessoal, mas perante uma realidade que ficou para sempre radicalmente integrada na sua categoria como pessoa.

A norma da sexualidade é o Homem criado na sua dupla dimensão: enquanto aquele que vive diante de Deus e, ao mesmo tempo, se relaciona com todos os demais.

Josef Duss-von Werdt

Revista Internacional de Teología, Concilium, nº 100, Madrid Dez. 1974, pp. 488-496.