teologia para leigos

15 de fevereiro de 2012

JESUS, O ROSTO HUMANO DE DEUS LIBERTADOR



A humanidade de Jesus
como divindade e amor

José Ignacio González Faus acredita que, depois de Jesus, fica muito claro e normativo que toda a moral se condensa no amor desinteressado ao próximo. Na entrevista que aceitou conceder, o teólogo jesuíta González Faus alerta para o risco de deixarmos de lado a humanidade de Jesus: “é que, daí, ficamos com um Deus falso, porque a humanidade de Jesus é a única imagem, ou o único rosto que temos de Deus”. E explica: “por não se ter atendido devidamente à dimensão «humanidade de Jesus», boa parte da teologia tradicional eliminou por completo o carácter ‘revelador de Deus’ em Jesus, e ficou só com seu caráter ‘redentor’. Isso foi fatal, ainda que possa compreender-se como «a portagem» paga para a respectiva «entrada/inculturação» do cristianismo no mundo grego. E hoje é imprescindível superar isso porque senão estaremos anunciando um deus falso: o deus de Platão ou de Aristóteles, mas não o Deus de Jesus”. González Faus ainda acrescenta que “a fé em Jesus Cristo implica hoje uma conversão não só de nossa dimensão ‘pagã’ ou incrédula, como também de nossa dimensão religiosa”. José Ignacio González Faus é jesuíta, doutorado em Teologia, foi professor de Teologia Sistemática na Faculdade de Teologia de Barcelona [hoje, Professor Emérito] e na UCA, de San Salvador. Além disso, leccionou como professor convidado em vários países da América Latina. Atualmente é responsável académico do Centro de Estudos "Cristianismo e Justiça". Entre as suas obras mais importantes, citamos: «A Humanidade Nova - Ensaio de Cristologia», e «Acesso a Jesus».



Instituto Humanitas Unisinus [IHU, on-line] - Como descreve o rosto humano de Jesus?
José Ignacio González Faus [JIGF] - Podemos valer-nos das duas expressões que mais são usadas, acerca dele, nos evangelhos: “lhe comoveram as entranhas”; “se admiravam de sua eksousía ” (palavra que traduzirei em seguida); e de outras duas que aparecem exclusivamente em sua boca: se auto-denominava “O Filho do Homem”, e acusava a muitos homens religiosos de seu tempo de “hipócritas”.
A - Jesus viveu nesta terra com as entranhas comovidas pela dor dos homens. Essas entranhas comovidas são a fonte da liberdade e da autoridade com que actua. B - A palavra eksousía não traduzi porque em grego significa liberdade e autoridade. O Novo Testamento a usa com ambos os significados, às vezes mudando em um mesmo texto: Jesus chama a atenção por uma liberdade que é fonte de sua autoridade, não fala nem actua segundo os clichês oficiais, mas segundo sua experiência da vontade de Deus. E certamente, creio que não há maior fonte de liberdade que uma experiência profunda de Deus, de Jesus e que essa liberdade engendra sempre uma autoridade que não é exterior (como a de nossas autoridades que Santa Teresa chamava “postiças”), mas que brota de dentro. C- Além disso, Jesus se qualificava a si mesmo como “O Homem” (com uma expressão aramaica ambígua – “Filho do Homem” - que pode significar simplesmente “ser humano”, mas pode ser também um título de dignidade: autodefine-se a partir essa ambiguidade de homem que inclui a pequenez e a grandeza máximas). E, sendo judeu até a medula, entra às vezes em conflito, porque também seu povo havia caído no que é a máxima tentação de toda religiosidade: usar a Deus em proveito próprio. D - Jesus costumava chamar isso de hipocrisia, palavra que vem do teatro grego (e que, segundo alguns críticos, Jesus pode ter aprendido em Séforis, cujo teatro parece ter estado em construção ou remodelação na época de Jesus e onde alguns suspeitam que pode ter ido vender suas pequenas manufaturas). Essa hipocrisia faz os homens enormemente “cegos” (outra palavra que também aparece muito nos lábios de Jesus).

IHU On-Line - Como responde hoje à pergunta: quem foi Jesus (do ponto de vista histórico)?
José Ignacio González Faus – Têm-se escrito milhares de páginas para responder a essa pergunta. O que direi deverá ser muito simples. Jesus era um judeu até à medula que, não obstante, entrou em conflitos muito sérios com o sector mais poderoso do judaísmo de seu tempo. Era um homem até ao tutano, o que resulta conflituoso (e sedutor também) para todo o género humano. Deduzia como iminente a chegada de uma nova situação humana que ele qualificava, com o léxico de seu tempo, como Reinado de Deus[ou «Império de Deus» por oposição ao «Império de Roma» - na expressão de Warren Carter] e que significa duas coisas: a) uma situação na qual nenhum poder terreno reina sobre o homem (o que mais tarde levará a conflitos com o Imperador), e: b) uma situação na qual se torna claro que Deus “faz justiça aos oprimidos, dá pão aos famintos, liberta os cativos, dá vista aos cegos, sustenta aos que sucumbem, ama aos justos, acolhe aos peregrinos, recebe o órfão e a viúva, e transforma o caminho dos malvados”. É numa situação destas (diz o Salmo 146) que, então, “Deus reina”. E isso era o que Jesus anunciava.

IHU On-Line - Em que sentido a realidade do Jesus histórico pode interferir nas origens da fé cristã?
José Ignacio González Faus - Na fé cristã interferem decisivamente não só a realidade do Jesus histórico antes esboçada, mas seu destino. Jesus fracassou historicamente; e triunfou meta-historicamente: sua morte na cruz foi a “desautorização de sua pretensão” (Moltmann), feita em nome de Deus. E a sua ressurreição é a confirmação desta pretensão da parte de Deus, com alguns alcances insuspeitos: porque sua ressurreição inclui a todos nós em um duplo sentido: a) com a chegada do Messias (o do Reino), inclui-se todo o género humano mesmo o que existe para lá do judaísmo, cuja chegada significa, mais do que o seu ‘cumprimento absoluto’, a universalização da promessa. E b), porque afecta não só a vítima (e, n’Ele, todas as vítimas da história), como também aos carrascos e cúmplices daquele destino.

Eu costumo dizer que a Páscoa ilumina a cruz, mas não a elimina. Não a elimina porque a cruz é histórica e a páscoa meta-histórica. Ilumina-a porque a Meta-história é o fundamento de uma história com sentido e concebida como progresso. O céu do além não elimina esta terra, mas ilumina-a: porque não pode haver fé cristã sem uma tentativa de antecipar o céu na terra. E digo apenas antecipar, e não traduzir ou substituir o céu pela terra, porque isso só leva a criar infernos.

 IHU On-Line - Quais os principais impactos que Jesus provocou na sociedade de sua época?
José Ignacio González Faus - É preciso expressá-los de maneira dialéctica: a esperança e o desconcerto (que terminam na pergunta: «quem será este); a sedução e a subversão (que põem em marcha o seguimento, com os seus riscos); e a irradiação e as dificuldades (que convertem o “ir com Ele” em “tomar a cruz de cada dia”).

IHU On-Line - Como a postura humana do nazareno influi na base moral do cristianismo?
José Ignacio González Faus - Depois de Jesus fica muito claro e normativo que toda a moral se condensa no amor desinteressado ao próximo e que toda moralidade à margem desse amor (não digamos contra ele) deixa de ser moralidade e se converte em farisaísmo. Isto pode não ser totalmente novo, mas agora explicita-se e reafirma-se muito mais. Pois bem: o amor chega muito mais além que a “Lei”: obriga menos, mas pode pedir mais. Isso abrirá a porta para que, devendo haver uma moral “racional” comum a todos e útil para viver na comunidade humana, pode haver demandas e responsabilidades maiores precisamente para os cristãos. (Devo acrescentar com dor que às vezes a Igreja oficial parece proceder ao contrário).

IHU On-Line - Quais os riscos de se deixar de lado a humanidade real de Jesus?
José Ignacio González Faus – O risco é que daí ficamos com um Deus falso, porque a humanidade de Jesus é a única imagem, ou o único rosto que temos de Deus. Por se ter dado pouca importância à humanidade de Jesus, boa parte da teologia tradicional eliminou por completo o carácter “revelador de Deus” em Jesus, e ficou só com seu carácter “redentor”. Isso foi fatal, ainda que possa compreender-se como «a portagem» paga pela entrada-inculturação do cristianismo no mundo grego. E hoje é imprescindível superar isso porque senão estaremos anunciando um deus falso: o deus de Platão ou de Aristóteles, mas não o Deus de Jesus. Com muita razão escreveu Bonhoeffer nas suas cartas da prisão que “o Deus que se revela em Jesus põe do avesso tudo o que o homem religioso espera de Deus”. E daí que a fé em Jesus Cristo implique hoje uma conversão não só de nossa dimensão “pagã” ou incrédula, como também de nossa dimensão religiosa.

IHU On-Line - Em que medida conhecer melhor o Jesus homem pode contribuir para a construção da sociedade e da cultura pós-moderna e para o diálogo inter-religioso?
José Ignacio González Faus - Primeiro: creio que a fé em Jesus poderia libertar toda a Modernidade (da qual viemos) da sua conversão em “maldição da Lei” que – como já dizia Pedro no “concílio de Jerusalém” - acaba impondo cargas insuportáveis, e que gerou a reação pós-moderna, tão desenganada dos ideais de nossa Modernidade como podia estar o “fariseu irrepreensível” (Paulo) de sua antiga militância fariséia. Mas, a fé em Jesus é uma dura crítica a esse niilismo descafeinado de nossa pós-modernidade que utiliza o desengano como desculpa para a própria preguiça, e que ficou só com o progresso tecnológico da Modernidade, e com a redução dos direitos humanos a só “meus próprios direitos” (que acabam sendo meus próprios egoísmos). Neste sentido, a partir de Jesus, poderia acontecer algo que se tem reclamado tanto desde o cristianismo como mesmo a partir de fora dele: uma crítica séria da Modernidade, feita a partir de dentro dela mesma. Segundo: entendo o diálogo como diálogo da vida: convivência e colaboração; [cf. Aloysius Pieris e um novo paradigma para o diálogo religioso] não como diálogo no sentido intelectual que (a meu modo de ver) é algo que só pode acontecer quando já existe deveras o outro diálogo da vida, sob pena de converter-se em um exercício pouco útil de esgrima intelectual. A partir daqui, responderia: Todas as religiões podem ser chamadas, sem perder sua identidade, a seguir a Jesus, ainda que não sejam chamadas a crer n’Ele [cf. a obra de Andrés Torres Queiruga]. A interpelação do homem Jesus sobre a identidade entre amor, misericórdia e liberdade e sobre a sacralidade de “pobres e enfermos”, vale para todos os homens, em minha opinião. O cristão não poderá pedir aos homens de outras religiões que olhem a cruz de Jesus como “morte de Deus”, mas sim que a erijam às vítimas da terra e da história como “controle de qualidade” que deve atravessar toda fé em Deus, venha ela de onde vier, sem negar nenhuma das verdades que possa aportar. Neste sentido, gostaria de dizer que, mais que ‘teocentrismo’, ‘cristocentrismo’ ou ‘eclesiocentrismo’, [que são as posturas de Bento XVI na chamada «NOVA EVANGELIZAÇÃO»] o ponto comum a todas as religiões deve ser um antropocentrismo pneumatológico.

IHU On-Line - Qual a importância da humanidade de Jesus para a compreensão de sua divindade?
José Ignacio González Faus – A humanidade de Jesus leva-nos a compreender a divindade não como poder, mas como amor. O balanço de todo o Novo Testamento foi a frase da primeira carta de João “Deus é Amor”, e não: Deus é poder. E a chamada omnipotência de Deus deve ser entendida como o poder débil do amor. Sintomático deste esquecimento me parece a constante presença, nas orações da Igreja, do adjectivo “Deus Todo Poderoso”. Esse adjectivo está ausente na Bíblia: só se acalenta no Apocalipse, para apoiar os cristãos perseguidos recordando que, apesar de tudo, Deus é mais forte que seus perseguidores e continua tendo a última palavra sobre a história. Depois disso passou para a linguagem eclesiástica a partir da visão neo-platónica de Deus que difunde o chamado Pseudodionísio. E quero acrescentar que isto tem consequências importantes: já no século II, Santo Ignacio de Antioquia, em uma de suas cartas, critica os que negavam que o messias veio “na carne” (onde a palavra carne não tem só o sentido neutro de matéria, mas um sentido mais negativo de pouquidade humana). E a crítica que lhes faz é: precisamente por isso não se preocupam com os pobres, nem com o órfão, nem com a viúva, nem com o amor aos irmãos... A Humanidade de Jesus força-nos a buscar a Deus não em uma suposta “verticalidade” abstracta, mas em uma horizontalidade transformada e agraciada pela presença de Deus nela. Com uma frase dita muitas vezes: Deus encarnou para que não O procurássemos nas igrejas, mas nos irmãos. Se vamos, se devemos ir à Igreja não é para O encontrar a Ele, mas para buscar a luz, o calor e a força que nos permitam encontrá-lo nos irmãos. [Fim]

Graziela Wolfart, IHU, entrevistou.
Revista do Instituto Humanitas Unisinos on-Line
06:VII:2010