teologia para leigos

23 de outubro de 2011

PARA SAIR DA CRISE 6/8

por onde começar?

6/8


Sair da Crise: por onde começar?






O enfraquecimento das sociedades causado pelos violentos ataques do sistema financeiro chegou a um ponto limite: as estruturas da economia tremem e o véu ideológico que confundia as suas representações desfez-se. Os defensores da globalização foram, portanto, obrigados a baixar o tom dos elogios entusiastas à eficiência dos mercados, tendo surgido um debate em torno da sua antítese: a desglobalização.

Este debate possui a originalidade de não opor os fervorosos da ortodoxia aos «anti-ortodoxia», antes atravessando as fileiras dos economistas e dos políticos que se ergueram contra a ditadura dos mercados financeiros, em particular na altura do combate contra o projecto de Tratado Constitucional Europeu.

Nos últimos meses, os temas do proteccionismo, da saída do euro e da desglobalização chegaram à praça pública, através de colunas na imprensa, de artigos e de livros.[1] Os argumentos mais frequentemente aduzidos remetem para a natureza da crise que o capitalismo atravessa, no quadro da necessária regulação, e para a questão da soberania democrática.

No início da década de 1980, as estruturas do capital foram construídas de tal forma que produziram uma rentabilidade máxima para os investimentos financeiros − a «criação de valor para o accionista» −, enquanto a desvalorização da força de trabalho era orquestrada de forma sistemática. Esta desvalorização permite aquela rentabilidade, à medida que a liberdade de circulação de que gozam os capitais torna possível a concorrência dos sistemas sociais e fiscais. O eufemismo «globalização» designa isto mesmo: a reestruturação do capitalismo à escala mundial para remediar a crise da taxa de lucro que o atinge na passagem da década de 1960 para a de 1970; a vitória das classes dominantes cujos activos financeiros ultrapassam os salários; e a obrigação imposta às estruturas de regulação de passarem a conformar-se às exigências dos mercados.

Bastaram duas décadas para esta arquitectura soçobrar: desde meados da década iniciada em 2000 que a taxa de lucro pára de aumentar nos Estados Unidos e que o crédito concedido aos pobres para disfarçar as insuficiências dos salários deixa de ser suficiente para absorver a sobreprodução industrial. O choque propaga-se à velocidade da circulação dos capitais.

A crise não é uma soma de dificuldades nacionais (grega, irlandesa, portuguesa, espanhola, etc.) desencadeada apenas por problemas específicos e internos a cada um dos países, caso em que teria de se perguntar que coincidência teria feito com que se manifestassem em simultâneo. Ela corresponde, desde logo, à crise de um capitalismo que atingiu a «maturidade» mundial e cuja lógica de criação de valor para o accionista foi levada ao extremo, porque tudo estava destinado a tornar-se mercadoria, desde a produção de bens e serviços essenciais até à saúde, à educação, à cultura, aos recursos naturais e a toda a vida. (…)

Será tudo isto motivo para se criticar a «quimera» [cf. Frédéric Lordon] das instituições internacionais fortes? Seguramente que sim, se for para rejeitar o estereótipo da «governança mundial» ou para condenar as hesitações e os fracassos dos G_8, G_20 e outros conciliábulos dos governantes dominantes.

Mas há um problema a ultrapassar: o da construção de uma regulação mundial.
O período que os defensores de esquerda da desglobalização citam como exemplo é, aliás, o do pós-guerra, marcado pela regulação de tipo keynesiano inaugurado em Bretton Woods.

Dois factos decisivos mostram a urgência de uma regulação, sem se ficar à espera que o capitalismo seja abolido ou simplesmente limitado na sua actuação.








O primeiro prende-se com a agricultura, hoje caracterizada por uma desregulamentação das trocas agrícolas em todos os sentidos, que tem como consequência a captação, nos países do Sul, das melhores terras para a cultura de exportação em detrimento da cultura de géneros alimentares, a diminuição da procura solvente e a extrema volatilidade dos preços mundiais, de base.

Como é que se pode imaginar que cada país consiga alcançar uma relativa autonomia, e ver assim instaurar-se uma soberania alimentar, se os mercados agrícolas não forem rigorosamente enquadrados à escala mundial a fim de subtrair os géneros alimentares agrícolas e, mais ainda, todas as matérias-primas, ao domínio da especulação e às aleatoriedades do mercado?







O segundo facto diz respeito à luta contra o aquecimento climático, o qual remete de imediato para a escala mundial. Ora, até ao momento, os fracassos das negociações no pós-Quioto, em Copenhaga em 2009, devem-se no essencial aos conflitos de interesses entre os Estados mais poderosos, prisioneiros da fidelidade aos lóbis e aos grupos multinacionais. A emergência de uma consciência cidadã para a salvaguarda dos bens comuns, dotada de uma perspectiva global, pode influenciar estas negociatas, por exemplo, através do apelo da Conferência Mundial dos Povos sobre Alterações Climáticas, que será realizada em Abril de 2010 por iniciativa do governo boliviano.

Além disso, tanto a agricultura como o clima são reveladores da necessidade imperiosa de revolucionar o modelo de desenvolvimento subjacente à globalização capitalista. Este aspecto é, por vezes, ignorado pelos defensores da desglobalização. (…)

A maior dificuldade que os povos têm de ultrapassar é a de reconstruir totalmente a sua soberania e não simplesmente reavivá-la. A tarefa deve ser executada, tanto no plano nacional, quanto − no que se refere aos europeus − no plano regional, porque o confronto com as forças do capital já não se joga apenas, e talvez nem sequer principalmente, no interior da nação. A contradição a ultrapassar prende-se com o facto de a democracia ainda se exprimir sobretudo na escala nacional, mas as regulações e transformações a operar, em particular as ecológicas, se situarem para lá das nações. Daí a importância da criação progressiva de um espaço democrático europeu. Não sendo a crise uma soma de crises nacionais, não haverá saída nacional da crise.

Fica, então, a questão de saber por onde começar o trabalho de desconstrução do capitalismo neo-liberal. A curto prazo, e com urgência, há que declarar ilegítima a maior parte das dívidas públicas e anunciar que elas não serão honradas, decidindo, à escala europeia, quais são os países prioritários, tendo em conta as suas dificuldades. Estas decisões devem ser fundadas numa auditoria às dívidas públicas.

Há que proceder a toda a socialização do sector bancário europeu.

E restaurar uma forte progressividade da fiscalidade.

Nada disto envolve qualquer impossibilidade prática, só exige vontade política de «eutanasiar o rentismo» (Keynes) através da sua anulação.[2]

A médio e longo prazos, o processo a levar a cabo é o da transformação radical do modelo de desenvolvimento num sentido não-capitalista. A destruição das actuais estruturas do sistema financeiro é o primeiro passo que podia dar início à proibição das transacções feitas por comum acordo, à dos produtos derivados e, ainda, à taxação das restantes transacções financeiras. Mas, a seguir, é indispensável delimitar, de forma estrita, o espaço mercantil governado pela procura do lucro, para que possam desenvolver-se actividades não-mercantis ou orientadas para a satisfação das necessidades das populações, preservando, ao mesmo tempo, os equilíbrios ecológicos.

Que nome dar a tudo isto?

As protecções que são necessárias (protecção do direito ao trabalho, protecção da segurança social, protecção da natureza) não formam necessariamente um sistema proteccionista.

A ideia da selectividade dos âmbitos a «desglobalizar» ou, pelo contrário, a universalizar é, sem dúvida, de concretização mais delicada, mas tem as vantagens de designar os verdadeiros alvos a atingir, de delinear uma bifurcação socioecológica das sociedades e de construir, passo a passo, uma verdadeira cooperação internacional. É aquilo a que se chama alterglobalismo, que não abandona rigorosamente nada da crítica à globalização, mas não recomenda o seu aparente oposto.

Jean-Marie Harribey
Docente e investigador na Universidade de Bordéus IV.

in, Le Monde diplomatique, edição portuguesa, Out 2011, p.5


[2] François Chenais, Les Dettes illégitimes. Quand les banques font main basse sur les politiques publiques. Raisons d’agir, Paris, 2011.