teologia para leigos

20 de setembro de 2024

A invenção de Deus 9

 «Obrigado a exilar-se, o povo judeu permaneceu fiel ao país de Israel durante todas as suas dispersões, sempre rezando para que voltasse, sempre com a esperança de ali restaurar a sua liberdade nacional. Motivados por esse apego histórico, os judeus esforçaram-se, ao longo de séculos, para voltar ao país dos seus ancestrais.»

Declaração de independência do Estado de Israel, 1948

 

«Como resultado da catástrofe histórica na qual Tito, imperador romano, destruiu a cidade de Jerusalém e exilou Israel da sua terra, eu nasci numa dessas cidades do exílio. Mas, o tempo todo e desde sempre, me vi como se tivesse nascido em Jerusalém.»

Shmuel Yosef Agnon, durante a cerimónia de entrega do prémio Nobel, 1966

 

 

A INVENÇÃO DO EXÍLIO

 

Aqueles israelenses que, porventura, nunca conheceram o preâmbulo histórico da sua “Carta de Independência” já tiveram certamente nos seus bolsos, pelo menos uma vez, uma nota de 50 shekels, sobre a qual estão gravadas as comoventes palavras que Shmuel Agnon pronunciou por ocasião da cerimónia de entrega do Prémio Nobel. O célebre escritor, assim como os redactores dessa declaração pronunciada na criação do Estado e a maioria dos cidadãos de Israel, sabia que a “nação judaica” havia sido exilada no momento da destruição do Segundo Templo, em 70 d.C., e que desde então passara a vaguear pelo mundo, tendo no coração uma única aspiração: “a esperança, velha de 2 000 anos, de se tornar novamente um povo livre” na sua antiga pátria.

O desenraizamento e o exílio estavam profundamente arraigados na tradição judaica ao longo de todas as suas transformações. Mas, na verdade, o seu significado evoluiu ao longo da história da religião, e os conteúdos laicos que foram insuflados na era da modernidade não eram comparáveis aos dos períodos anteriores. Como o monoteísmo judaico começou parcialmente a cristalizar-se nas elites culturais - que foram expulsas à força no tempo da destruição da Judeia no século VII a.C. - os ecos das percepções do exílio e da errância já repercutiam, de maneira metafórica ou directa, em importantes trechos do Pentateuco, assim como no livro dos Profetas e dos Hagiógrafos. Da expulsão do Jardim do Éden às tribulações de Abraão em marcha para Canaã e da partida de Jacó para o Egipto até às profecias de Zacarias, ou às de Daniel, o judaísmo foi pensado à luz da errância, do desenraizamento e do retorno. No Pentateuco já se encontra a frase: «O SENHOR vos dispersará entre todos os povos de uma extremidade à outra da terra; ali servireis a deuses de madeira e de pedra, que nem vós nem os vossos pais conheceram.» (Dt 28,64). A destruição do Primeiro Templo foi associada à expulsão, e essa lembrança de natureza literário-teológica reflectiu-se, depois, em toda a elaboração da sensibilidade judaico-religiosa (Sobre o conceito de “Exílio” na tradição judaica, ver Eisen, Arnold M., «Exile», in Cohen, Arthur A. & Mendes-Flohr, Paul (orgs.), “Contemporary Jewish Religious Thought: Original Essays on Critical Concepts, Movements, and Beliefs», Nova York, Free Press, 1988, pp 219-225, bem como o livro de Eisen, Arnold M., «Galut: Modern Jewish Reflexion on Homelessness and Homecoming», Bloomington: Indiana University Press, 1986).

No entanto, um exame mais detalhado do acontecimento histórico que levou à “segunda expulsão” após o ano 70 d.C. e a ‘investigação das fontes’ do conceito de “exílio” e da sua percepção no judaísmo tardio indicam que a consciência nacional histórica resultava de uma reconstituição de fragmentos de acontecimentos disparatados e de diversos fragmentos da tradição. Só assim é que o “exílio” se pôde estabelecer como mito fundador capaz de sustentar a armadura da identidade “étnica” dos judeus modernos. O meta-paradigma da expulsão respondia à necessidade de elaborar uma memória de longa duração na qual um povo-raça imaginado e exilado se situaria na continuidade directa do “povo da Bíblia” que o havia precedido. O Mito do Desenraizamento e da Expulsão, mantido, como se verá mais adiante, no património espiritual cristão e, a partir deste, novamente infiltrado na tradição judaica, transformou-se de seguida n’«A Verdade Absoluta» gravada na história nacional.

 

Shlomo Sand, «A invenção do povo judeu», Benvirá 2011, São Paulo BR, pp 233-235, ISBN 978-85-02-13477-5

 

 

EPÍLOGO E CONCLUSÃO

de «A invenção de Deus», por Thomas Römer

 

A nossa investigação - sobre as origens de Yhwh, a sua adoção como o deus de Israel, a sua ascensão como deus tutelar dos reinos de Israel e Judá, a sua transformação em um deus ‘uno’ sob Josias, e depois em um deus ‘único’ após o colapso da realeza davídica e a fragmentação geográfica do "povo de Yhwh" - cobriu aproximadamente um milénio, ou seja, desde o final do século XIII antes da era comum (a.e.c.) até à era helenística. Encerrámos o nosso passeio referindo a tradução da Torá para o grego no século III, o que marca a conquista do mundo ocidental por Yhwh, um deus que a partir desse momento é chamado de "kúrios", "Senhor". Poderíamos ter continuado a pesquisa, é claro, através dos séculos seguintes, mas o nosso objetivo era acima de tudo descrever a invenção do monoteísmo, sobre a qual o judaísmo, com suas diferentes correntes e sensibilidades, e mais tarde o cristianismo e o islamismo, foram construídos. Vamos delinear, a título de epílogo, a evolução histórica do judaísmo até aos tempos romanos.

Por volta de 200 a.e.c., a Palestina ficou sob o controle dos selêucidas, enquanto Roma começou a estender o seu poder a todo o Mediterrâneo. Antíoco IV Epifânio, na realidade já vassalo de Roma e apoiado por uma parte da aristocracia judaica, empreende a helenização de Jerusalém. No ano 167 a.e.c. impôs a transformação de Jerusalém numa pólis grega, e quis dedicar os templos de Yhwh em Jerusalém e Samaria a diferentes manifestações de Zeus, sem dúvida identificadas com Yhwh. Alguns anos depois, ele entrou no Templo de Jerusalém, aparentemente para levantar o dinheiro necessário para pagar o seu tributo aos romanos. Os distúrbios, que tal atitude causou, dão origem à literatura apocalíptica, da qual a Bíblia hebraica preservou poucos vestígios. O livro de Daniel, que é o seu melhor exemplo, reflete o período turbulento sob Antíoco IV; foi redigido no ano 164 a.e.c., pouco antes da morte deste último.

O “apocalipse” (um termo que significa “revelação”) é um género literário que está enraizado no profetismo e também na sabedoria do Próximo Oriente. Seu objetivo é instruir os destinatários, servindo-se da pseudonímia[1], sobre os eventos que se devem desenrolar antes do Fim dos Tempos. Esses eventos são apresentados como uma vitória de Deus contra as forças do Mal. No livro de Daniel, o Fim corresponde a um julgamento de toda a humanidade, após o qual os justos, que não foram recompensados durante sua vida terrena, serão ressuscitados. É o primeiro testemunho claro da ideia de que Deus trará os mortos de volta à vida. No capítulo 7 do livro de Daniel, o deus de Israel aparece como um “Ancião” sentado num trono sobre rodas[2] e acompanhado por outra figura celestial, chamada “Filho do Homem”, que recebe do Ancião a soberania sobre toda a terra. Esta constelação divina lembra, de modo assombroso, o casal “El” e “Baal” em Ugarit, onde “El” também é descrito como um homem velho que deixa o seu filho “Baal” administrar os assuntos do mundo. A figura do “Filho do Homem” desempenhará então um papel importante nas expectativas messiânicas, onde a expressão passa a designar o Messias, o Rei ideal, que virá. Na literatura apocalíptica, Yhwh não está sozinho no céu. O livro de Daniel menciona Miguel, comandante do exército de Yhwh, que é chamado de “príncipe de primeira ordem”; está, portanto, entre os arcanjos. A especulação sobre um céu povoado por todo o tipo de anjos é bem desenvolvida no primeiro livro de Henoch[3], o qual não foi integrado no Canon, mas cujas primeiras partes são provavelmente contemporâneas da época em que o livro de Daniel foi escrito, ou mesmo antes[4]. A parte denominada “Livro dos Vigilantes” (do Livro de Henoch) contém a lista mais antiga dos sete arcanjos[5].

Tal como no livro de Daniel, o livro de Henoch também descreve um Julgamento (Juízo Final) no qual não intervém apenas Deus, mas todo o tipo de ‘seres celestiais’. A ideia de uma luta final do bom deus e seu exército contra as forças do mal e das trevas é um elemento constitutivo da comunidade de Qümran; um desses escritos, o “Pergaminho da Guerra”, retrata o combate dos «filhos da luz» contra os «filhos das trevas». O mesmo roteiro reaparecerá no Novo Testamento, principalmente no Apocalipse de João, que descreve o combate do exército celestial contra Satanás (em grego, “Diabo”) e seu exército, um combate que levará a uma nova criação[6]. Essa visão dualista, segundo a qual Deus deve enfrentar as forças do mal nas descrições da luta futura, termina, no entanto, com a vitória do exército divino sobre o exército das trevas, uma concepção partilhada pelos autores do livro de Daniel. Este último veio do mesmo ambiente que o dos Macabeus, os quais empreenderam uma luta armada contra a helenização e conseguiram, em 162 a.e.c., tomar a cidade de Jerusalém e purificar o Templo, que segundo eles havia sido manchado por Antíoco IV e o grupo helenístico. Ao nível religioso, a luta dos Macabeus foi uma tentativa de retornar a um judaísmo não helenizado, um empreendimento que logo se mostrou impossível. Assim, a dinastia dos Asmoneus, que emergiu dos Macabeus, acabou por adoptar a cultura e a ideologia helenística combatidas anteriormente pelos Macabeus. Sob esta dinastia existiu um Estado judeu independente que, sob Alexandre Janeu (103-76), corresponde mais ou menos à extensão do território que os relatos bíblicos atribuem a David ou a Salomão. A independência do estado dos Asmoneus, no entanto, era relativa; o seu reino foi tão somente tolerado pelos romanos, porque desempenhava o papel de um contrapoder aos selêucidas e isso interessava a Roma.

No ano 63 antes da era comum (a.e.c.), essa tolerância finda: Pompeu toma Jerusalém, entra no Templo e descobre que o templo está vazio. Os Asmoneus são substituídos pelos Herodianos, os quais são idumeus (ou seja, são habitantes da região de Edom) convertidos ao judaísmo e helenizados, a quem Roma apoiou. Herodes, o Grande, ampliou o templo em Jerusalém entre os anos 27 e 20 a.e.c., mas os judeus detestavam-no por causa de sua origem e da sua submissão a Roma. No limiar da era cristã, o judaísmo aparece, segundo o historiador Flávio Josefo, dividido em quatro correntes ideológicas que refletem quatro conceitos religiosos diferentes. Os Saduceus[7], que constituem a aristocracia sacerdotal ligada ao templo de Jerusalém, são, por um lado, bastante abertos às influências gregas, mas no que diz respeito às práticas religiosas, eles defendem apenas a autoridade da Torá (Mandamentos e imolações de vítimas), do Pentateuco; rejeitam, portanto, novas doutrinas, como a ressurreição dos mortos, e defendem uma doutrina de retribuição segundo a qual todo homem é recompensado ou punido por suas ações durante sua vida terrena. Encontram-se, assim, em conflito com os fariseus[8], corrente que nasceu em oposição à helenização do judaísmo. Ao contrário dos saduceus, cuja religiosidade está centrada no Templo, os fariseus concentram-se no estudo e em pôr em prática a Torá na vida quotidiana[9]. Os essénios[10], a princípio aliados dos fariseus, estão na origem de fraternidades (comunidades), cujo exemplo mais conhecido é Qümran; seguem Regras muito rigorosas, rejeitam a cultura sacrificial do Templo de Jerusalém, têm um calendário religioso muito particular e esperam a chegada de um, ou de vários, messias, bem como o fim deste mundo. Pensou-se que os essénios tivessem desaparecido após a destruição do Templo no ano 70, mas é possível que ainda existissem alguns grupos durante os séculos II e III[11]. Os zelotes[12] eram um movimento de resistência armada contra os romanos. Segundo Flávio Josefo, que os qualifica de «quarta seita», os zelotes estariam próximos dos fariseus,

 

à excepção de que, aqueles que o professam, sustentam que somente Deus deve ser reconhecido como senhor e rei. Eles têm um amor tão ardente à liberdade que os tipos mais extraordinários de morte, as torturas mais atrozes que eles próprios sofram ou deixam infligir aos que lhes são mais queridos, os deixam indiferentes, desde que não tenham de conferir a nenhum homem o título de senhor e mestre.[13]

 

Este grupo, que está na origem da revolta contra os romanos, persegue um ideal teocrático e não reconhece nenhum poder terreno ao governo divino, prefigurando assim outros movimentos radicais, inclusivamente fanáticos, que podemos observar ao longo de toda a história das três grandes religiões monoteístas. A revolta do ano 70 da era cristã saldou-se com a destruição de Jerusalém. Ao contrário daquilo que aconteceu com a destruição do primeiro templo no ano de 587 a.e.c., perdurou uma instituição, a saber, as sinagogas, as quais passaram a ser definitivamente o lugar onde o judaísmo encontra a sua identidade.

Uma última revolta nos anos de 132 a 135, a revolta de Bar Kochba que se apresenta como o messias, termina com uma nova derrota. Os judeus, expulsos de Jerusalém, tornam-se então definitivamente uma minoria na Judeia e passam a instalar-se por toda a bacia mediterrânea. As tendências saduceias, essénias e zelotas desaparecem ou passam a ser minoritárias. Por conseguinte, o judaísmo farisaico passa a impor-se e, mais tarde, converter-se-á no judaísmo «rabínico»rabi» significa Mestre, aquele que ensina). Para definir a identidade deste judaísmo, mas também como reacção ao cristianismo nascente, os fariseus decidem, durante o século II, definir com rigor quais eram os livros que deveriam ser considerados sagrados para o judaísmo. É nessa época que nasce a Bíblia tripartida, ou seja, uma Bíblia composta por três livros: o Pentateuco (Thora), os Profetas (Nebiim) e os Escritos (Ketubim). Recordemos, contudo, que, para o judaísmo, ao contrário do que ocorre no cristianismo, estas três partes não têm a mesma autoridade. O Pentateuco constitui o centro, o qual é de “leitura integral” obrigatória durante o culto sinagogal, enquanto que os Profetas e os Escritos são considerados «complementos» da Thora. Ou seja, para o judaísmo, Deus revela-se sobretudo através dos 613 Mandamentos da Thora que foram transmitidos ao povo por Moisés. Ou seja, é sobretudo a prática e a busca do sentido dos mandamentos divinos que caracteriza o judaísmo e o seu deus, cujo nome nunca se pronuncia e cujo encontro com Israel é comemorado lendo o Pentateuco. É precisamente o Pentateuco aquele que conservou os traços da memória de um deus que, originariamente, era bem diferente do deus único e transcendente que as religiões monoteístas hoje confessam.

O objectivo da nossa investigação consistia em rastrear o caminho do deus de Yhwh, o qual, de um deus guerreiro do deserto, se converteu no deus único. Em jeito de conclusão, recordemos os resultados mais importantes da nossa análise, sublinhando, entretanto, e ao mesmo tempo, o seu carácter hipotético. O simples facto de o deus bíblico ter começado por ter um nome próprio – Yahû, Yahô ou Yahvé – quer dizer que no começo não era considerado como um ‘deus único’, mas como mais um deus entre os deuses venerados pelos povos do Próximo Oriente antigo.

Por outro lado, os relatos do livro do Êxodo sugerem que este deus nem sempre foi o deus de um grupo chamado Israel, grupo cujo nome contém o nome divino «El» e não o nome «Yhwh». Segundo os dois relatos de vocação de Moisés, Moisés não conhecia o nome do deus que se queria converter no deus de Israel. Com efeito, existem alguns textos bíblicos que evocam uma certa proveniência de Yhwh a partir do Sul e que também sugerem que Moisés é natural de «Seir» ou do «monte Paran». Dois textos até parecem identificar Yhwh com o Sinai, sem que possamos dizer exactamente onde essa montanha de Yhwh estava localizada para os autores desses textos[14]. A identificação com uma montanha talvez também se reflicta no facto de que os textos egípcios do último terço do segundo milénio a.e.c. mencionarem os nómadas Shasu, alguns dos quais são caracterizados por um termo egípcio que provavelmente corresponde ao nome de Yhwh que talvez designe uma montanha. Teríamos aqui, então, o primeiro testemunho do nome do deus que se tornou o deus de Israel.

A origem «estrangeira» de Yhwh reflecte-se também no facto de que, segundo o capítulo 3 do Livro do Êxodo, Yhwh se revelar a Moisés quando este se encontrava na terra de Madiã, ao serviço do sogro, que era um sacerdote. Daí a ideia de Yhwh ter sido adorado primeiro na terra de Madiã, e provavelmente também na terra de Edom. Por outro lado, a nossa investigação encontrou uma série de indicações de que Yhwh foi primeiro um deus tutelar dos edomitas, antes de se tornar o deus de Israel. Além disso, o culto de um “Yhwh do Sul” continuou, pelo menos até o século VIII a.e.c., tal como foi confirmado pelo Carbono 14 em Kuntillet Ajrud, que menciona um Yhwh de Teman, ou melhor, do sul[15]. A entrada tardia de Yhwh no território de Israel também é atestada pelo facto de quase nenhum nome Yahvista surgir nos nomes das cidades localizadas em Canaã, as quais, por outro lado, evocam muitas vezes outras divindades: Carmel («vinha de El»), Baal Hazor («povo de Baal»), Anatot (nome vinculado à deusa Anat), Jericó (lembra o nome do deus lunar) e outras mais.

A chegada de Yhwh ao território de Israel ocorreu, talvez, graças ao encontro de um grupo nómada - que adorava esse deus - com uma federação de tribos chamada Israel. Quanto a este encontro, não possuímos nenhum testemunho fora da Bíblia. O texto poético do capítulo 33,1-5 do livro do Deuteronómio [«33 - Benção das tribos: 1Esta foi a bênção com que Moisés, homem de Deus, abençoou os filhos de Israel, antes de morrer. 2Ele disse: «O SENHOR veio do Sinai, amanheceu para eles no horizonte de Seir! Resplandeceu do monte Paran, chegou de Meribá de Cadés, com a sua direita deu-lhes uma lei ardente. 3Ele ama as suas tribos; todos os seus santos estão na sua mão; eles deitam-se a seus pés, levantam-se à sua palavra. 4Moisés deu-nos a Lei, património da assembleia de Jacob. 5E houve um rei em Jechurun[16], quando se reuniram os chefes do povo e se juntaram todas as tribos de Israel.»] talvez reflicta a adopção de Yhwh por Israel. O mesmo poderia ter ocorrido com o estabelecimento de uma Aliança entre Yhwh e «o seu povo», relatado no capítulo 24 do livro do Êxodo; ainda que, na sua formulação actual, este texto seja fruto de uma fixação muito recente, não é impossível que represente uma encenação desse encontro inicial.

Tudo leva a crer que Yhwh esteja ligado ao estabelecimento da monarquia israelita, já que os relatos do livro de Samuel atribuem a vitória de Saúl sobre os filisteus à intervenção de Yhwh. O carácter guerreiro de Yhwh, que também era o deus do trovão, fazem dele um deus especialmente apto para exercer a função de um deus protector do primeiro rei de Israel. No entanto, quase com toda a certeza, Saúl também venerava outros deuses, já que um dos seus filhos tinha o nome de Isbaal, «homem de Baal» − a não ser que «baal», uma expressão que significa antes de tudo «amo» ou «senhor», se entenda aqui como um título de Yhwh. Quando David se apodera de Jerusalém, Yhwh acompanha-o numa arca, num cofre, maneira de Yhwh se manter sempre presente junto do exército do seu povo. Isto sublinha, mais uma vez, o seu carácter militar, tal como o título de Yhwh Sabaoth, «Yhwh dos exércitos».

Curiosamente, David, a quem a Bíblia considera como o fundador da dinastia davídica eleita por Yhwh, não ergue nenhum templo ao seu deus tutelar. De acordo com o relato dos livros de Samuel, Davi transporta a arca para Jerusalém, mas é Salomão quem é apresentado como o construtor do templo em Jerusalém. Uma análise do relato da construção nos capítulos 6 a 8 do primeiro Livro dos Reis, bem como a comparação do texto massorético com o texto grego, sugerem que não é realmente uma nova construção, mas sim a renovação de um santuário pré-existente. O texto grego da dedicação do templo parece indicar que inicialmente Yhwh não era a única divindade que nele seria adorada. Talvez ele tenha coabitado primeiro com uma divindade solar, Shamash, cujas funções ele gradualmente assumiu.

Para compreender plenamente a ascensão de Yhwh nos primeiros séculos do primeiro milénio antes da era comum, devemos inverter a apresentação dos autores bíblicos, os quais escrevem a história de Israel e de Judá a partir da perspectiva de Judá (a do Sul) e promovem uma ideologia segundo a qual o único santuário legítimo de Yhwh teria sido o templo em Jerusalém. A nossa investigação revelou a importância de Yhwh no reino do norte de Israel, tal como ficou atestado pela estela do rei moabita Mesa, que prova a existência de santuários dedicados a Yhwh em territórios moabitas anexados por Israel. Havia vários santuários yahvistas em Israel, de entre os quais, o mais importante era Betel, ao qual se acrescentaram um templo na capital da Samaria e quiçá, já no século VIII, um templo em Dan. No Norte venerou-se Yhwh sobretudo como um «baal», um deus do trovão. Segundo parece, Omeri e os seus sucessores preferiram um baal fenício (Melkart?) ao baal Yhwh, o que desencadeou um golpe de estado yahvista conduzido por Jeú, que, mesmo assim e de seguida, faz-se vassalo dos assírios. No reino de Israel, a veneração de Yhwh foi marcada por influências fenícias e aramaicas, enquanto que no Sul são observados motivos e conceitos religiosos provenientes do Egito. Na Samaria, Yhwh foi representado principalmente sob a forma bovina, como confirmam as polémicas contra o “bezerro da Samaria” contidas no livro de Oseias. No entanto, Yhwh continuava a ser “o deus que os salvou [que os fez sair] da terra do Egipto”. Segundo 1 Reis 12, 25ss, Jeroboão I seria o primeiro a caracterizar a função das estátuas bovinas dessa maneira, mas é possível que esta seja uma retroprojeção de uma iniciativa de Jeroboão II, sob quem Israel experimentou várias décadas de prosperidade no século VIII.

Os relatos da mudança de nome do patriarca Jacó para “Israel” (Gn 32) e da sua “descoberta” do santuário de Betel (Gn 28) reflectem a transformação da tradição de Jacó numa tradição nacional israelita, e a recuperação do santuário de Betel por Yhwh. No Norte, Yhwh mais tarde adquiriu os traços do Baal-shamen, o “baal do céu” conhecido na Síria e na Fenícia. A princípio é um título para o deus do trovão, deus da tempestade, que mais tarde se torna numa divindade autónoma. É possível que, no Norte, o Baal Yhwh também tenha integrado características que, por exemplo, em Ugarit, são atribuídas a «El». A tendência de Yhwh para assumir as funções de outros deuses, no Norte, não produziu uma monolatria, já que, quando os assírios no ano 722 a.e.c. põem fim ao reino de Israel, deportam uma parte da população, mas, segundo se diz, deportam também «os deuses em quem eles confiavam», provando assim que na Samaria havia diversas divindades. Os textos bíblicos não fornecem nenhuma informação sobre a história do antigo reino de Israel durante os séculos que se seguiram, mas não há dúvidas que o culto a Yhwh se manteve aí, pois a arqueologia comprova a existência de um templo de Yhwh no monte Garizim durante os séculos V ou IV.

No reino de Judá existiam também, ao lado do de Jerusalém, vários santuários, especialmente em Láquis e Arade, bem como os “altos” [lugares], santuários ao ar livre mais modestos e sem dúvida mais frequentes que atendiam às necessidades de populações menos numerosas. Nos livros dos Reis, os santuários de Láquis e Arade não são mencionados, e os ‘lugares altos’ são condenados, apesar do facto de serem santuários nos quais Yhwh era venerado, provavelmente na companhia de outras divindades. A visão dos editores bíblicos já pressupõe a ideia, desenvolvida no final do século VII, de uma centralização do culto e de uma centralização do poder político em Jerusalém. Antes dessa época, a adoração de Yhwh assemelhava-se à dos deuses tutelares dos vizinhos a Este e a Norte.

Ainda que aos redactores dos textos bíblicos e a alguns teólogos lhes custe, Yhwh tinha uma companheira, a «deusa Asherá», também denominada «Rainha do Céu». Também é provável que houvesse uma estátua de Yhwh no templo em Jerusalém, talvez de um Yhwh sentado em um trono de querubins, à maneira de «El», em Ugarit. Tal conjunto está subjacente à visão do profeta Isaías, e provavelmente também à descrição do trono de Yhwh no primeiro capítulo do livro de Ezequiel. A existência de uma estátua de Yhwh é também confirmada por certas proibições contidas em textos do período persa, conferindo legitimidade à pergunta: “Porquê proibir algo que nunca existiu?” Nos "lugares altos" e talvez também no santuário de Arad, o deus Yhwh e a deusa Ashera eram adorados na forma de duas estelas verticais ou então uma estela e uma árvore estilizada simbolizando a deusa. Durante os séculos IX e VIII, Yhwh assumiu definitivamente o “panteão celestial” e assumiu as funções de outros deuses, como o deus sol, que também era o deus juiz. De fato, há uma série de salmos que transferem para Yhwh características e funções do deus sol. Yhwh, que inicialmente era considerado filho de «El»[17], mais tarde assumiu as funções de chefe do panteão cananeu e tornou-se, como «EI», o deus criador do céu e da terra.

A evolução do Yhwh de Judá, ou mesmo ‘de’ Jerusalém, para a divindade mais importante adorada pelo povo da Judeia, acelerou após a queda de Samaria em 722. A derrota do irmão mais velho do Norte convenceu o clero e os altos funcionários de Jerusalém de que o “verdadeiro” Yhwh era o Yhwh de Jerusalém (do Sul). O cerco (abortado) da cidade pelos assírios em 701 reforçou ainda mais a convicção de que Yhwh defenderia para sempre Sião, a sua montanha, em Jerusalém. Apesar do facto de que, como resultado da política anti-assíria de Ezequias, o reino de Judá ter sido amputado pelos assírios, que também haviam deportado parte de sua população, o relato bíblico transformou essa derrota em vitória. Os acontecimentos do ano 701 estão na origem da ideia de que existe uma ligação indissolúvel entre Yhwh e Jerusalém. Esse vínculo foi fortalecido durante a reforma de Josias, por volta de 620 a.e.c. Após e como consequência da derrota de Samaria, Jerusalém cresceu muito e tornou-se a cidade do rei. A política de centralização do rei Josias e seus conselheiros fez do templo da capital de Judá o único santuário legítimo, o que significava exercer o poder para autorizar a prática de sacrifícios “profanos” em outro lugar, com a condição de que pagassem as taxas ao Templo de Jerusalém. Aproveitando o enfraquecimento assírio, o templo foi esvaziado de estátuas e símbolos que reflectiam as práticas religiosas assírias. O slogan da reforma de Josias era "Yhwh é UM", conforme declarado no versículo 4 do capítulo 6 de Deuteronómio, que serviu de preâmbulo à primeira edição do livro. Essa ideia significa que existe apenas um Yhwh, ou seja, o Yhwh de Jerusalém. Aparentemente, também foi feita uma tentativa de erradicar o culto popular da “rainha do céu”, ou seja, a deusa Ashera. Mais tarde, quando Jerusalém foi destruída, alguns de Judá entenderam essa catástrofe como uma manifestação da ira da deusa, a quem haviam deixado de venerar. Por trás da reforma de Josias está o desejo de estabelecer um culto monolátrico (tentativas semelhantes são observadas em outras partes do antigo Oriente Próximo), no qual a existência das outras divindades não é negada, ainda que apenas um deus devesse ser adorado. Embora a reforma de Josias não tenha sido imediatamente bem-sucedida, ela representa um momento-chave na trajetória do deus Yhwh e estabelece, com a ideia de centralidade em Jerusalém e a veneração exclusiva de Yhwh, um dos fundamentos sobre os quais o judaísmo será construído mais tarde. Recordemos também que foi certamente sob Josias que se pôs em prática uma verdadeira actividade literária, que deu origem às primeiras edições dos livros do Deuteronómio, de Josué, de Samuel e dos Reis, da história de Moisés e de outros textos.

O acontecimento decisivo para que «Yhwh, o deus Uno» se tornasse em «Yhwh, o deus Único» foi a destruição de Jerusalém em 587 e a dispersão geográfica dos povos de Judá, primeiro através da Palestina, da Babilónia e do Egipto, regiões às quais se juntaram logo a Ásia Menor e a bacia mediterrânica. A ausência de um rei, um templo em funcionamento e um país autónomo tornava impossível a veneração de Yhwh como um deus nacional ou guardião da realeza. Como mostra a segunda parte do Livro de Isaías, muitos de Judá pensaram que o “braço de Yhwh” era muito curto[18] e que outros deuses a quem eles teriam que se confiar deveriam ser procurados. Foi nessa situação de crise que, paradoxalmente, diferentes grupos do clero e ex-funcionários da Suprema Corte elaboraram vários modelos explicativos para superar a crise e inventar uma nova maneira de entender a relação entre Yhwh e Israel.

O grupo dos «deuteronomistas» compõem um enorme fresco histórico que abarca os livros do Deuteronómio, Josué, Samuel e os Reis. O objectivo que esta história persegue consiste em mostrar que a destruição de Jerusalém e o exílio não aconteceram por causa da fraqueza de Yhwh, mas o próprio Yhwh foi quem causou essa catástrofe; ele usou a Babilónia para punir o seu povo e reis, que não respeitaram os mandamentos divinos registrados no livro de Deuteronómio. Portanto, se Yhwh pode fazer uso dos babilónios, é porque ele os controla e, portanto, é mais poderoso do que os deuses babilónios. Desta forma, a ideia monoteísta é preparada como aparece nos capítulos 40 a 55 do livro de Isaías, capítulos que insistem no facto de que Yhwh, identificado com «El», é o único deus verdadeiro, e que as estátuas das outras divindades nada mais são do que quimeras, feitas por mãos humanas.

O texto sacerdotal, que abrange o tempo das origens, defende, ao contrário do pensamento deuteronomista, um monoteísmo inclusivo; assim, ele afirma que todos os povos, sem o saberem, veneram o mesmo Deus, cuja verdadeira identidade só Israel conhece, o que o torna um povo à parte. De facto, a ideia monoteísta também levanta a questão da relação específica entre o único deus e o único povo. Essa relação é explicada em vários livros bíblicos, e especialmente em Deuteronómio, pela ideia de eleição. Yhwh, de todos os povos, escolheu Israel para fazer dele a “sua parte pessoal”. A controvérsia contra as estátuas e imagens dos outros deuses certamente levou à invenção de um culto anicónico de Yhwh e à ausência de uma estátua no templo reconstruído em Jerusalém. De fato, as sinagogas puderam desenvolver-se ao lado do templo, provavelmente desde os tempos persas, nos quais o culto de Yhwh não se baseava mais no clero e nos sacrifícios sangrentos, mas na leitura da Torá. Esta Torá - o Pentateuco - foi publicada numa primeira versão em meados do período persa, por volta de 400-350 a.e.c. Reúne os escritos sacerdotais, parte dos textos deuteronomistas e alguns outros, e encontra a sua coerência no facto de conter todos os mandamentos divinos transmitidos ao povo por Moisés no Sinai. Isso significa que se pôs fim à necessidade de realeza e de terra (o Pentateuco pára antes da conquista do país: Deuteronómio 32, 48-52), enquanto condições obrigatórias, para se conhecer as disposições de Yhwh.

De algum modo, podemos dizer que o judaísmo nascente inventa a separação entre o poder político e a prática religiosa e entre uma prática religiosa e um território específico permitindo-lhe que ele funcione como uma espécie de «religião da diáspora». A transformação de Yhwh em deus único culmina com a recusa, por parte do povo, em pronunciar o nome do seu deus, mas sobretudo com a tradução da Torah do hebraico para o grego, o que permite ao mundo inteiro (‘inteiro’, bem entendido, numa perspectiva greco-romana) descobri-lo e eventualmente aderir a ele.

 

 

POSFÁCIO

de «A invenção de Deus», por Thomas Römer

 

É possível inventar Deus? Muitos especialistas das religiões diriam que sim, enquanto os teólogos resistiriam a tal. No entanto, nos começos da Reforma, o teólogo Martinho Lutero perguntava no seu «Catecismo Maior»: «O que é um deus?». E respondia: «Aquele a quem o teu coração adere e confia: esse é o teu deus». Nesta definição podemos ler o reconhecimento de que é possível, ao ser humano, inventar deuses.

Desde 2014 que procuramos, com este livro, a origem e o processo de desenvolvimento do deus bíblico, aquele deus que acabou por ser convertido no «deus único». Falar de “invenção” em relação às religiões, politeístas ou monoteístas, não é algo óbvio. Embora em muitas religiões o clero e os teólogos definam a versão oficial do seu culto e crenças, e concebam mandatos divinos, a questão da origem dos deuses escapa (quase sempre) à ideia de uma invenção “ad hoc”. O historiador, por outro lado, pode basear a sua investigação em documentos - egípcios, assírios, babilónios, etc. - em textos bíblicos, em arqueologia e em epigrafia. Usando essa metodologia, tracei as origens do deus Yhwh, o início de sua veneração por “Israel” e o seu caminho rumo ao “deus único”.

As hipóteses que eu apresento sobre uma origem meridional e não israelita do deus Yhwh são baseadas no corpo de documentação disponível hoje. Obviamente, as minhas conclusões são conjecturais e dependem de interpretações dos dossiês textuais e arqueológicos. Por outro lado, a tese segundo a qual Yhwh era originariamente um deus do deserto, provavelmente também venerado na região que mais tarde passou a ser chamada “Edom”, é questionada sobretudo por investigadores das universidades de Berlim e Göttingen[19]. Para estes últimos autores, Yhwh foi desde sempre uma divindade israelita autónoma e os textos que o situam no deserto e no Sul seriam apenas invenções de escribas, os quais, após a destruição do Templo de Jerusalém, o passaram a viver (e, por conseguinte, a referir) como sendo um deus do deserto.

Essa hipótese, que refuta acima de tudo a antiguidade dos textos que evocam uma origem de Yhwh no Sul, é desmentida por várias evidências. Primeiro, não há nome de lugar em Israel ou Judá que contenha o elemento teofórico “Yhwh”, o que é surpreendente para quem quiser defender a hipótese de que esse deus era uma divindade indígena. Em segundo lugar, as ligações entre Yhwh e os países de Madiã e Edom não podem ser entendidas como invenções recentes, pois em textos do período persa (século V a.e.c.) os madianitas e, até certo ponto, também os edomitas, passaram a ser inimigos de Israel.

Acrescentemos outra observação que não incluí no meu livro, mas que é importante: é a figura de Caleb, que, segundo o seu nome como «quenicita», é edomita, e em Números, Deuteronómio e Josué é apresentado como «aquele que segue fielmente Yhwh» (expressão que lhe é reservada em toda a Bíblia). Pois bem, este yahvista está ligado à conquista da região de Hebron e mais tarde é identificado como pertencente a Judá. Este personagem reflete uma estreita relação entre Yhwh e o país de Edom, o que é atestado pela menção de "Yhwh de Teman" nas inscrições Kuntillet Ajrud. Parece-me, portanto, que a melhor hipótese continua a ser a de que a origem de Yhwh se situa nesses territórios, ao sul do Neguev.

O objetivo de “A Invenção de Deus” é oferecer uma investigação completamente histórica para explicar a origem do judaísmo, a religião monoteísta na qual o cristianismo e o islamismo se baseiam. Hoje, quando o obscurantismo e as “verdades alternativas” estão ganhando cada vez mais terreno, parece necessário lembrar que esses três monoteísmos têm mais convergências em comum do que divergências, e, para além disso, têm o mesmo fundamento. Nos ambientes não crentes, as religiões monoteístas costumam ser mal recebidas. São censuradas por engendrar intolerância, violência e fanatismo. O presente parece confirmar essa avaliação. Muitos conflitos e ataques terroristas contêm componentes ideológicos. Em nome do ‘Deus único’ mata-se, exclui-se, prega-se o ódio e a intolerância. No entanto, durante séculos, o advento do monoteísmo foi considerado como representando um progresso intelectual e filosófico na história humana. Não fora o monoteísmo moisaico - o qual está na origem do judaísmo e sem o qual nem o cristianismo nem o islamismo existiriam - a humanidade nunca teria abandonado a divinização da natureza e nunca se teria libertado de uma submissão supersticiosa aos elementos cósmicos. Daqui se concluiu que o monoteísmo favoreceu a autonomia do ser humano e da sua capacidade para controlar as forças naturais e cósmicas. Não é em vão que o primeiro capítulo da Bíblia afirma que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus e que sobre os seus ombros repousa a responsabilidade de cuidar do mundo e de tudo aquilo que nele existe. Será que o monoteísmo acabará por ser, então, o primeiro passo para o abandono do pensamento religioso por parte do Homem – tal como alguns filósofos[20] afirmam? E será também o monoteísmo o grande responsável pelas catástrofes ecológicas que os humanos não param de multiplicar desde que os humanos puseram em marcha a revolução industrial, bem como as «guerras de religião» que hoje em dia ocorrem? Pelo que me toca, ao rastrear o advento do monoteísmo procurei mostrar que ele contém em si um componente segregacionista e um componente universalista.

Em numerosos relatos do Pentateuco, Moisés surge como violento. Na história do bezerro de ouro, ele é um iconoclasta: ele destrói a obra de seu irmão Aarão, que representava Yhwh em forma bovina, e assim anuncia o culto anicónico do templo de Jerusalém reconstruído na época persa, no final do século VI a.e.c. Porém, também massacrou uma grande parte do povo, que venerava esta estátua de Yhwh. Moisés torna-se assim o campeão de uma religião yahvista intransigente. Em algumas passagens de Deuteronómio, como por exemplo os capítulos 4 e 7, Moisés apresenta Yhwh de facto como o “deus único” que criou os céus e a terra, porém, com uma relação específica com Israel pelo simples facto de o ter «eleito» como propriedade privada, razão pela qual Israel deve manter-se separado das outras nações. Este discurso deuteronómico, colocado assim na boca de Moisés, corresponde a um monoteísmo excludente.

No entanto, juntamente com o discurso segregacionista, também encontramos textos que reflectem uma posição de coabitação religiosa. Por exemplo, Moisés, que havia fugido para Madiã, casa-se com Séfora, madianita e, também, filha de um sacerdote. Da mesma forma, José, que em seu exílio egípcio torna-se chanceler do faraó, casa-se com a filha de um sumo sacerdote e não tem nenhum problema em ter discussões teológicas com o rei do Egito. A tendência inclusiva do monoteísmo é apresentada de maneira ainda mais forte no relato da vocação de Moisés, escrito por um grupo de sacerdotes. Neste relato (Êxodo 6), os sacerdotes desenvolvem a ideia de uma revelação divina em três etapas. Toda a humanidade conhece Deus como Elohim, um nome que é plural e singular; para Abraão e seus descendentes - que incluem as tribos árabes, os edomitas e outros povos a leste do Jordão - Deus dá-se a conhecer como El Shaddai («deus dos campos»); e revela o seu «verdadeiro» nome, YHWH, exclusivamente a Israel – por intermédio de Moisés –, nome que logo de seguida passa a ser tabu no Judaísmo. Segundo esta lógica, TODOS OS POVOS VENERAM O MESMO DEUS, inclusivamente aqueles povos que possuem panteões. Ou seja, não há motivo algum para que os seres humanos se enfrentem em nome de deus.

Assim, na Bíblia hebraica coabitam dois monoteísmos diferentes. Deste modo cria-se uma tensão entre inclusão e segregação, entre coabitação e confrontação. No plano psicológico podemos sublinhar que toda e qualquer identidade assenta sobre dois pilares e ergue-se a partir desses dois pilares. Porém, no plano histórico e político há que assinalar que as religiões monoteístas favoreceram sempre mais a versão exclusiva, e com muita frequência guerreira, do monoteísmo.

Está na hora de a lembrar e de falar desta vertente pacifista, bem como de a explorar no contexto actual, o qual, mais uma vez, está dominado por uma retórica belicosa, seja ela religiosa ou laica.

 

Thomas Römer, “La invención de Dios”, Sígueme 2022, 277-294

 

 




 



[1] Por exemplo, o livro de Daniel, escrito por volta do ano 164 a.e.c., está atribuído a um sábio e visionário que teria vivido durante o cativeiro da babilónia, contexto que reforça a autoridade das suas visões quanto ao Fim dos Tempos. Em algumas visões, facilmente decifráveis, encontramos uma sucessão de Impérios até à época de Antíoco IV. Se esta visão se revelou histórica e cumprida, então muito provavelmente tudo o que ele diz quanto ao Fim do tempo presente possui um fundo de verdade.

[2] O que faz lembrar a visão do profeta Ezequiel no capítulo 1 do livro que lhe é atribuído.

[3] O texto completo deste livro apenas se preservou completo em alguns manuscritos etíopes da Idade Média. Com a descoberta de fragmentos deste livro na primeira parte do livro de Qümran, fica provada a antiguidade de algumas partes deste livro, que, originariamente, fora redigido em aramaico.

[4] A parte do livro denominada «livro dos vigilantes», por vezes, é datada do século III a.e.c.

[5] Uriel, que vigia o trajecto das estrelas e os anjos do Tártaro; Rafael, que protege os espíritos dos humanos e conhece as moradas dos mortos; Raguel, que castiga o mundo das luminárias; Miguel, chefe do exército celeste; Sarakiel, encarregado dos espíritos malvados; Gabriel, que vigia o Paraíso e os querubins, e que também desempenha o papel de mensageiro da vontade divina; e Ramiel, encarregado dos ressuscitados.

[6] Ao nível da história das religiões, observamos que este é o mesmo tema do segundo milénio a.e.c. aquando da civilização Mesopotâmica: o deus criador deve derrotar um ou mais monstros aquáticos (cobra ou dragão), que simbolizam o caos, a fim de colocar em movimento a criação do mundo. [PB: Este “caos” pode ser visto de modos diferentes consoante a época histórico-política em que se esteja; tal como a expressão “suíno”, ela pode ser uma designação insultuosa cifrada - sigilosa - para referir a ocupação estrangeira (romana) e sua espoliação tributária, a qual Jesus enfrentou - cf. Mateus 8,28-34 - e às mãos da qual deu a sua vida; os suínos - os romanos infiéis - são ‘mar’ ou seja são ‘o caos’. A referência aos porcos que se precipitam no mar o comprova]

[7] O nome, atestado pela primeira vez em 1 Mac 12,18, procede provavelmente de “Sadoq”, o qual aparece nos livros de Samuel e mais tarde no livro de Ezequiel como o nome de um sumo sacerdote.

[8] Este nome procede de um verbo hebraico que significa «pôr de lado», «apartar».

[9] De alguma maneira, os saduceus e os fariseus são, respectivamente e por esta ordem, os sucessores das correntes ‘sacerdotal’ e ‘deuteronomista’.

[10] As informações acerca deste grupo provêm sobretudo de Flávio Josefo, «Antiguidades Judaicas» 13, 171-173; 15, 371s; 18, 11-25. O seu nome (essénios) deriva eventualmente de uma raiz aramaica que significa «puro», «santo».

[11] Émile Puech, «Khirbet Qumrân et les Esséniens»: Revue de Qumrân 25 (2011) 63-102.

[12] O nome vem do grego e significa «zelo».

[13] «Antiguidades judaicas» XVIII, 2.

[14] Lembremo-nos de que o local do atual Sinai se baseia numa tradição cristã do século IV.

[15] Em algumas inscrições de «Teman» o nome de Yhwh está precedido por um “artigo definido”, o que sugere que o nome é encarado não como “nome próprio”, mas como um substantivo.

[16] Nome poético para Israel…

[17] Cf. as nossas observações acerca da versão original de Deuteronómio 32,8, onde Yhwh surge como um dos filhos de «El».

[18] Com efeito, nos capítulos 40 até ao 55 de Isaías, surge, em várias ocasiões, uma afirmação que é colocada na boca de Yhwh: «Não, o meu braço não é curto».

[19] Cf. sobretudo, H. Pfeiffer, «Jahwes Kommen von Süden: Jdc 5, Hab 3, Dtn 33 und Ps 68 in ihrem literatura- und theologiegeschichtlichen Umfeld», Göttingen 2005; M. Köckert, «YHWH in the Northern and Southerner Kingdom», in R. G. Kratz-H. Spieckermann (dirs.), “One God, One Cult, One Nation. Archeological and Biblical Perspectives”, Berlin-New York 2010, 357-394; R. Müller, «Die frühe Jahweverehrung im Spiegel der ältestan Psalmen»: BThZ 30 (2013) 89-113.