teologia para leigos

20 de setembro de 2024

A invenção de Deus 9

 «Obrigado a exilar-se, o povo judeu permaneceu fiel ao país de Israel durante todas as suas dispersões, sempre rezando para que voltasse, sempre com a esperança de ali restaurar a sua liberdade nacional. Motivados por esse apego histórico, os judeus esforçaram-se, ao longo de séculos, para voltar ao país dos seus ancestrais.»

Declaração de independência do Estado de Israel, 1948

 

«Como resultado da catástrofe histórica na qual Tito, imperador romano, destruiu a cidade de Jerusalém e exilou Israel da sua terra, eu nasci numa dessas cidades do exílio. Mas, o tempo todo e desde sempre, me vi como se tivesse nascido em Jerusalém.»

Shmuel Yosef Agnon, durante a cerimónia de entrega do prémio Nobel, 1966

 

 

A INVENÇÃO DO EXÍLIO

 

Aqueles israelenses que, porventura, nunca conheceram o preâmbulo histórico da sua “Carta de Independência” já tiveram certamente nos seus bolsos, pelo menos uma vez, uma nota de 50 shekels, sobre a qual estão gravadas as comoventes palavras que Shmuel Agnon pronunciou por ocasião da cerimónia de entrega do Prémio Nobel. O célebre escritor, assim como os redactores dessa declaração pronunciada na criação do Estado e a maioria dos cidadãos de Israel, sabia que a “nação judaica” havia sido exilada no momento da destruição do Segundo Templo, em 70 d.C., e que desde então passara a vaguear pelo mundo, tendo no coração uma única aspiração: “a esperança, velha de 2 000 anos, de se tornar novamente um povo livre” na sua antiga pátria.

O desenraizamento e o exílio estavam profundamente arraigados na tradição judaica ao longo de todas as suas transformações. Mas, na verdade, o seu significado evoluiu ao longo da história da religião, e os conteúdos laicos que foram insuflados na era da modernidade não eram comparáveis aos dos períodos anteriores. Como o monoteísmo judaico começou parcialmente a cristalizar-se nas elites culturais - que foram expulsas à força no tempo da destruição da Judeia no século VII a.C. - os ecos das percepções do exílio e da errância já repercutiam, de maneira metafórica ou directa, em importantes trechos do Pentateuco, assim como no livro dos Profetas e dos Hagiógrafos. Da expulsão do Jardim do Éden às tribulações de Abraão em marcha para Canaã e da partida de Jacó para o Egipto até às profecias de Zacarias, ou às de Daniel, o judaísmo foi pensado à luz da errância, do desenraizamento e do retorno. No Pentateuco já se encontra a frase: «O SENHOR vos dispersará entre todos os povos de uma extremidade à outra da terra; ali servireis a deuses de madeira e de pedra, que nem vós nem os vossos pais conheceram.» (Dt 28,64). A destruição do Primeiro Templo foi associada à expulsão, e essa lembrança de natureza literário-teológica reflectiu-se, depois, em toda a elaboração da sensibilidade judaico-religiosa (Sobre o conceito de “Exílio” na tradição judaica, ver Eisen, Arnold M., «Exile», in Cohen, Arthur A. & Mendes-Flohr, Paul (orgs.), “Contemporary Jewish Religious Thought: Original Essays on Critical Concepts, Movements, and Beliefs», Nova York, Free Press, 1988, pp 219-225, bem como o livro de Eisen, Arnold M., «Galut: Modern Jewish Reflexion on Homelessness and Homecoming», Bloomington: Indiana University Press, 1986).

No entanto, um exame mais detalhado do acontecimento histórico que levou à “segunda expulsão” após o ano 70 d.C. e a ‘investigação das fontes’ do conceito de “exílio” e da sua percepção no judaísmo tardio indicam que a consciência nacional histórica resultava de uma reconstituição de fragmentos de acontecimentos disparatados e de diversos fragmentos da tradição. Só assim é que o “exílio” se pôde estabelecer como mito fundador capaz de sustentar a armadura da identidade “étnica” dos judeus modernos. O meta-paradigma da expulsão respondia à necessidade de elaborar uma memória de longa duração na qual um povo-raça imaginado e exilado se situaria na continuidade directa do “povo da Bíblia” que o havia precedido. O Mito do Desenraizamento e da Expulsão, mantido, como se verá mais adiante, no património espiritual cristão e, a partir deste, novamente infiltrado na tradição judaica, transformou-se de seguida n’«A Verdade Absoluta» gravada na história nacional.

 

Shlomo Sand, «A invenção do povo judeu», Benvirá 2011, São Paulo BR, pp 233-235, ISBN 978-85-02-13477-5

 

 

EPÍLOGO E CONCLUSÃO

de «A invenção de Deus», por Thomas Römer

 

A nossa investigação - sobre as origens de Yhwh, a sua adoção como o deus de Israel, a sua ascensão como deus tutelar dos reinos de Israel e Judá, a sua transformação em um deus ‘uno’ sob Josias, e depois em um deus ‘único’ após o colapso da realeza davídica e a fragmentação geográfica do "povo de Yhwh" - cobriu aproximadamente um milénio, ou seja, desde o final do século XIII antes da era comum (a.e.c.) até à era helenística. Encerrámos o nosso passeio referindo a tradução da Torá para o grego no século III, o que marca a conquista do mundo ocidental por Yhwh, um deus que a partir desse momento é chamado de "kúrios", "Senhor". Poderíamos ter continuado a pesquisa, é claro, através dos séculos seguintes, mas o nosso objetivo era acima de tudo descrever a invenção do monoteísmo, sobre a qual o judaísmo, com suas diferentes correntes e sensibilidades, e mais tarde o cristianismo e o islamismo, foram construídos. Vamos delinear, a título de epílogo, a evolução histórica do judaísmo até aos tempos romanos.

Por volta de 200 a.e.c., a Palestina ficou sob o controle dos selêucidas, enquanto Roma começou a estender o seu poder a todo o Mediterrâneo. Antíoco IV Epifânio, na realidade já vassalo de Roma e apoiado por uma parte da aristocracia judaica, empreende a helenização de Jerusalém. No ano 167 a.e.c. impôs a transformação de Jerusalém numa pólis grega, e quis dedicar os templos de Yhwh em Jerusalém e Samaria a diferentes manifestações de Zeus, sem dúvida identificadas com Yhwh. Alguns anos depois, ele entrou no Templo de Jerusalém, aparentemente para levantar o dinheiro necessário para pagar o seu tributo aos romanos. Os distúrbios, que tal atitude causou, dão origem à literatura apocalíptica, da qual a Bíblia hebraica preservou poucos vestígios. O livro de Daniel, que é o seu melhor exemplo, reflete o período turbulento sob Antíoco IV; foi redigido no ano 164 a.e.c., pouco antes da morte deste último.

O “apocalipse” (um termo que significa “revelação”) é um género literário que está enraizado no profetismo e também na sabedoria do Próximo Oriente. Seu objetivo é instruir os destinatários, servindo-se da pseudonímia[1], sobre os eventos que se devem desenrolar antes do Fim dos Tempos. Esses eventos são apresentados como uma vitória de Deus contra as forças do Mal. No livro de Daniel, o Fim corresponde a um julgamento de toda a humanidade, após o qual os justos, que não foram recompensados durante sua vida terrena, serão ressuscitados. É o primeiro testemunho claro da ideia de que Deus trará os mortos de volta à vida. No capítulo 7 do livro de Daniel, o deus de Israel aparece como um “Ancião” sentado num trono sobre rodas[2] e acompanhado por outra figura celestial, chamada “Filho do Homem”, que recebe do Ancião a soberania sobre toda a terra. Esta constelação divina lembra, de modo assombroso, o casal “El” e “Baal” em Ugarit, onde “El” também é descrito como um homem velho que deixa o seu filho “Baal” administrar os assuntos do mundo. A figura do “Filho do Homem” desempenhará então um papel importante nas expectativas messiânicas, onde a expressão passa a designar o Messias, o Rei ideal, que virá. Na literatura apocalíptica, Yhwh não está sozinho no céu. O livro de Daniel menciona Miguel, comandante do exército de Yhwh, que é chamado de “príncipe de primeira ordem”; está, portanto, entre os arcanjos. A especulação sobre um céu povoado por todo o tipo de anjos é bem desenvolvida no primeiro livro de Henoch[3], o qual não foi integrado no Canon, mas cujas primeiras partes são provavelmente contemporâneas da época em que o livro de Daniel foi escrito, ou mesmo antes[4]. A parte denominada “Livro dos Vigilantes” (do Livro de Henoch) contém a lista mais antiga dos sete arcanjos[5].

Tal como no livro de Daniel, o livro de Henoch também descreve um Julgamento (Juízo Final) no qual não intervém apenas Deus, mas todo o tipo de ‘seres celestiais’. A ideia de uma luta final do bom deus e seu exército contra as forças do mal e das trevas é um elemento constitutivo da comunidade de Qümran; um desses escritos, o “Pergaminho da Guerra”, retrata o combate dos «filhos da luz» contra os «filhos das trevas». O mesmo roteiro reaparecerá no Novo Testamento, principalmente no Apocalipse de João, que descreve o combate do exército celestial contra Satanás (em grego, “Diabo”) e seu exército, um combate que levará a uma nova criação[6]. Essa visão dualista, segundo a qual Deus deve enfrentar as forças do mal nas descrições da luta futura, termina, no entanto, com a vitória do exército divino sobre o exército das trevas, uma concepção partilhada pelos autores do livro de Daniel. Este último veio do mesmo ambiente que o dos Macabeus, os quais empreenderam uma luta armada contra a helenização e conseguiram, em 162 a.e.c., tomar a cidade de Jerusalém e purificar o Templo, que segundo eles havia sido manchado por Antíoco IV e o grupo helenístico. Ao nível religioso, a luta dos Macabeus foi uma tentativa de retornar a um judaísmo não helenizado, um empreendimento que logo se mostrou impossível. Assim, a dinastia dos Asmoneus, que emergiu dos Macabeus, acabou por adoptar a cultura e a ideologia helenística combatidas anteriormente pelos Macabeus. Sob esta dinastia existiu um Estado judeu independente que, sob Alexandre Janeu (103-76), corresponde mais ou menos à extensão do território que os relatos bíblicos atribuem a David ou a Salomão. A independência do estado dos Asmoneus, no entanto, era relativa; o seu reino foi tão somente tolerado pelos romanos, porque desempenhava o papel de um contrapoder aos selêucidas e isso interessava a Roma.

No ano 63 antes da era comum (a.e.c.), essa tolerância finda: Pompeu toma Jerusalém, entra no Templo e descobre que o templo está vazio. Os Asmoneus são substituídos pelos Herodianos, os quais são idumeus (ou seja, são habitantes da região de Edom) convertidos ao judaísmo e helenizados, a quem Roma apoiou. Herodes, o Grande, ampliou o templo em Jerusalém entre os anos 27 e 20 a.e.c., mas os judeus detestavam-no por causa de sua origem e da sua submissão a Roma. No limiar da era cristã, o judaísmo aparece, segundo o historiador Flávio Josefo, dividido em quatro correntes ideológicas que refletem quatro conceitos religiosos diferentes. Os Saduceus[7], que constituem a aristocracia sacerdotal ligada ao templo de Jerusalém, são, por um lado, bastante abertos às influências gregas, mas no que diz respeito às práticas religiosas, eles defendem apenas a autoridade da Torá (Mandamentos e imolações de vítimas), do Pentateuco; rejeitam, portanto, novas doutrinas, como a ressurreição dos mortos, e defendem uma doutrina de retribuição segundo a qual todo homem é recompensado ou punido por suas ações durante sua vida terrena. Encontram-se, assim, em conflito com os fariseus[8], corrente que nasceu em oposição à helenização do judaísmo. Ao contrário dos saduceus, cuja religiosidade está centrada no Templo, os fariseus concentram-se no estudo e em pôr em prática a Torá na vida quotidiana[9]. Os essénios[10], a princípio aliados dos fariseus, estão na origem de fraternidades (comunidades), cujo exemplo mais conhecido é Qümran; seguem Regras muito rigorosas, rejeitam a cultura sacrificial do Templo de Jerusalém, têm um calendário religioso muito particular e esperam a chegada de um, ou de vários, messias, bem como o fim deste mundo. Pensou-se que os essénios tivessem desaparecido após a destruição do Templo no ano 70, mas é possível que ainda existissem alguns grupos durante os séculos II e III[11]. Os zelotes[12] eram um movimento de resistência armada contra os romanos. Segundo Flávio Josefo, que os qualifica de «quarta seita», os zelotes estariam próximos dos fariseus,

 

à excepção de que, aqueles que o professam, sustentam que somente Deus deve ser reconhecido como senhor e rei. Eles têm um amor tão ardente à liberdade que os tipos mais extraordinários de morte, as torturas mais atrozes que eles próprios sofram ou deixam infligir aos que lhes são mais queridos, os deixam indiferentes, desde que não tenham de conferir a nenhum homem o título de senhor e mestre.[13]

 

Este grupo, que está na origem da revolta contra os romanos, persegue um ideal teocrático e não reconhece nenhum poder terreno ao governo divino, prefigurando assim outros movimentos radicais, inclusivamente fanáticos, que podemos observar ao longo de toda a história das três grandes religiões monoteístas. A revolta do ano 70 da era cristã saldou-se com a destruição de Jerusalém. Ao contrário daquilo que aconteceu com a destruição do primeiro templo no ano de 587 a.e.c., perdurou uma instituição, a saber, as sinagogas, as quais passaram a ser definitivamente o lugar onde o judaísmo encontra a sua identidade.

Uma última revolta nos anos de 132 a 135, a revolta de Bar Kochba que se apresenta como o messias, termina com uma nova derrota. Os judeus, expulsos de Jerusalém, tornam-se então definitivamente uma minoria na Judeia e passam a instalar-se por toda a bacia mediterrânea. As tendências saduceias, essénias e zelotas desaparecem ou passam a ser minoritárias. Por conseguinte, o judaísmo farisaico passa a impor-se e, mais tarde, converter-se-á no judaísmo «rabínico»rabi» significa Mestre, aquele que ensina). Para definir a identidade deste judaísmo, mas também como reacção ao cristianismo nascente, os fariseus decidem, durante o século II, definir com rigor quais eram os livros que deveriam ser considerados sagrados para o judaísmo. É nessa época que nasce a Bíblia tripartida, ou seja, uma Bíblia composta por três livros: o Pentateuco (Thora), os Profetas (Nebiim) e os Escritos (Ketubim). Recordemos, contudo, que, para o judaísmo, ao contrário do que ocorre no cristianismo, estas três partes não têm a mesma autoridade. O Pentateuco constitui o centro, o qual é de “leitura integral” obrigatória durante o culto sinagogal, enquanto que os Profetas e os Escritos são considerados «complementos» da Thora. Ou seja, para o judaísmo, Deus revela-se sobretudo através dos 613 Mandamentos da Thora que foram transmitidos ao povo por Moisés. Ou seja, é sobretudo a prática e a busca do sentido dos mandamentos divinos que caracteriza o judaísmo e o seu deus, cujo nome nunca se pronuncia e cujo encontro com Israel é comemorado lendo o Pentateuco. É precisamente o Pentateuco aquele que conservou os traços da memória de um deus que, originariamente, era bem diferente do deus único e transcendente que as religiões monoteístas hoje confessam.

O objectivo da nossa investigação consistia em rastrear o caminho do deus de Yhwh, o qual, de um deus guerreiro do deserto, se converteu no deus único. Em jeito de conclusão, recordemos os resultados mais importantes da nossa análise, sublinhando, entretanto, e ao mesmo tempo, o seu carácter hipotético. O simples facto de o deus bíblico ter começado por ter um nome próprio – Yahû, Yahô ou Yahvé – quer dizer que no começo não era considerado como um ‘deus único’, mas como mais um deus entre os deuses venerados pelos povos do Próximo Oriente antigo.

Por outro lado, os relatos do livro do Êxodo sugerem que este deus nem sempre foi o deus de um grupo chamado Israel, grupo cujo nome contém o nome divino «El» e não o nome «Yhwh». Segundo os dois relatos de vocação de Moisés, Moisés não conhecia o nome do deus que se queria converter no deus de Israel. Com efeito, existem alguns textos bíblicos que evocam uma certa proveniência de Yhwh a partir do Sul e que também sugerem que Moisés é natural de «Seir» ou do «monte Paran». Dois textos até parecem identificar Yhwh com o Sinai, sem que possamos dizer exactamente onde essa montanha de Yhwh estava localizada para os autores desses textos[14]. A identificação com uma montanha talvez também se reflicta no facto de que os textos egípcios do último terço do segundo milénio a.e.c. mencionarem os nómadas Shasu, alguns dos quais são caracterizados por um termo egípcio que provavelmente corresponde ao nome de Yhwh que talvez designe uma montanha. Teríamos aqui, então, o primeiro testemunho do nome do deus que se tornou o deus de Israel.

A origem «estrangeira» de Yhwh reflecte-se também no facto de que, segundo o capítulo 3 do Livro do Êxodo, Yhwh se revelar a Moisés quando este se encontrava na terra de Madiã, ao serviço do sogro, que era um sacerdote. Daí a ideia de Yhwh ter sido adorado primeiro na terra de Madiã, e provavelmente também na terra de Edom. Por outro lado, a nossa investigação encontrou uma série de indicações de que Yhwh foi primeiro um deus tutelar dos edomitas, antes de se tornar o deus de Israel. Além disso, o culto de um “Yhwh do Sul” continuou, pelo menos até o século VIII a.e.c., tal como foi confirmado pelo Carbono 14 em Kuntillet Ajrud, que menciona um Yhwh de Teman, ou melhor, do sul[15]. A entrada tardia de Yhwh no território de Israel também é atestada pelo facto de quase nenhum nome Yahvista surgir nos nomes das cidades localizadas em Canaã, as quais, por outro lado, evocam muitas vezes outras divindades: Carmel («vinha de El»), Baal Hazor («povo de Baal»), Anatot (nome vinculado à deusa Anat), Jericó (lembra o nome do deus lunar) e outras mais.

A chegada de Yhwh ao território de Israel ocorreu, talvez, graças ao encontro de um grupo nómada - que adorava esse deus - com uma federação de tribos chamada Israel. Quanto a este encontro, não possuímos nenhum testemunho fora da Bíblia. O texto poético do capítulo 33,1-5 do livro do Deuteronómio [«33 - Benção das tribos: 1Esta foi a bênção com que Moisés, homem de Deus, abençoou os filhos de Israel, antes de morrer. 2Ele disse: «O SENHOR veio do Sinai, amanheceu para eles no horizonte de Seir! Resplandeceu do monte Paran, chegou de Meribá de Cadés, com a sua direita deu-lhes uma lei ardente. 3Ele ama as suas tribos; todos os seus santos estão na sua mão; eles deitam-se a seus pés, levantam-se à sua palavra. 4Moisés deu-nos a Lei, património da assembleia de Jacob. 5E houve um rei em Jechurun[16], quando se reuniram os chefes do povo e se juntaram todas as tribos de Israel.»] talvez reflicta a adopção de Yhwh por Israel. O mesmo poderia ter ocorrido com o estabelecimento de uma Aliança entre Yhwh e «o seu povo», relatado no capítulo 24 do livro do Êxodo; ainda que, na sua formulação actual, este texto seja fruto de uma fixação muito recente, não é impossível que represente uma encenação desse encontro inicial.

Tudo leva a crer que Yhwh esteja ligado ao estabelecimento da monarquia israelita, já que os relatos do livro de Samuel atribuem a vitória de Saúl sobre os filisteus à intervenção de Yhwh. O carácter guerreiro de Yhwh, que também era o deus do trovão, fazem dele um deus especialmente apto para exercer a função de um deus protector do primeiro rei de Israel. No entanto, quase com toda a certeza, Saúl também venerava outros deuses, já que um dos seus filhos tinha o nome de Isbaal, «homem de Baal» − a não ser que «baal», uma expressão que significa antes de tudo «amo» ou «senhor», se entenda aqui como um título de Yhwh. Quando David se apodera de Jerusalém, Yhwh acompanha-o numa arca, num cofre, maneira de Yhwh se manter sempre presente junto do exército do seu povo. Isto sublinha, mais uma vez, o seu carácter militar, tal como o título de Yhwh Sabaoth, «Yhwh dos exércitos».

Curiosamente, David, a quem a Bíblia considera como o fundador da dinastia davídica eleita por Yhwh, não ergue nenhum templo ao seu deus tutelar. De acordo com o relato dos livros de Samuel, Davi transporta a arca para Jerusalém, mas é Salomão quem é apresentado como o construtor do templo em Jerusalém. Uma análise do relato da construção nos capítulos 6 a 8 do primeiro Livro dos Reis, bem como a comparação do texto massorético com o texto grego, sugerem que não é realmente uma nova construção, mas sim a renovação de um santuário pré-existente. O texto grego da dedicação do templo parece indicar que inicialmente Yhwh não era a única divindade que nele seria adorada. Talvez ele tenha coabitado primeiro com uma divindade solar, Shamash, cujas funções ele gradualmente assumiu.

Para compreender plenamente a ascensão de Yhwh nos primeiros séculos do primeiro milénio antes da era comum, devemos inverter a apresentação dos autores bíblicos, os quais escrevem a história de Israel e de Judá a partir da perspectiva de Judá (a do Sul) e promovem uma ideologia segundo a qual o único santuário legítimo de Yhwh teria sido o templo em Jerusalém. A nossa investigação revelou a importância de Yhwh no reino do norte de Israel, tal como ficou atestado pela estela do rei moabita Mesa, que prova a existência de santuários dedicados a Yhwh em territórios moabitas anexados por Israel. Havia vários santuários yahvistas em Israel, de entre os quais, o mais importante era Betel, ao qual se acrescentaram um templo na capital da Samaria e quiçá, já no século VIII, um templo em Dan. No Norte venerou-se Yhwh sobretudo como um «baal», um deus do trovão. Segundo parece, Omeri e os seus sucessores preferiram um baal fenício (Melkart?) ao baal Yhwh, o que desencadeou um golpe de estado yahvista conduzido por Jeú, que, mesmo assim e de seguida, faz-se vassalo dos assírios. No reino de Israel, a veneração de Yhwh foi marcada por influências fenícias e aramaicas, enquanto que no Sul são observados motivos e conceitos religiosos provenientes do Egito. Na Samaria, Yhwh foi representado principalmente sob a forma bovina, como confirmam as polémicas contra o “bezerro da Samaria” contidas no livro de Oseias. No entanto, Yhwh continuava a ser “o deus que os salvou [que os fez sair] da terra do Egipto”. Segundo 1 Reis 12, 25ss, Jeroboão I seria o primeiro a caracterizar a função das estátuas bovinas dessa maneira, mas é possível que esta seja uma retroprojeção de uma iniciativa de Jeroboão II, sob quem Israel experimentou várias décadas de prosperidade no século VIII.

Os relatos da mudança de nome do patriarca Jacó para “Israel” (Gn 32) e da sua “descoberta” do santuário de Betel (Gn 28) reflectem a transformação da tradição de Jacó numa tradição nacional israelita, e a recuperação do santuário de Betel por Yhwh. No Norte, Yhwh mais tarde adquiriu os traços do Baal-shamen, o “baal do céu” conhecido na Síria e na Fenícia. A princípio é um título para o deus do trovão, deus da tempestade, que mais tarde se torna numa divindade autónoma. É possível que, no Norte, o Baal Yhwh também tenha integrado características que, por exemplo, em Ugarit, são atribuídas a «El». A tendência de Yhwh para assumir as funções de outros deuses, no Norte, não produziu uma monolatria, já que, quando os assírios no ano 722 a.e.c. põem fim ao reino de Israel, deportam uma parte da população, mas, segundo se diz, deportam também «os deuses em quem eles confiavam», provando assim que na Samaria havia diversas divindades. Os textos bíblicos não fornecem nenhuma informação sobre a história do antigo reino de Israel durante os séculos que se seguiram, mas não há dúvidas que o culto a Yhwh se manteve aí, pois a arqueologia comprova a existência de um templo de Yhwh no monte Garizim durante os séculos V ou IV.

No reino de Judá existiam também, ao lado do de Jerusalém, vários santuários, especialmente em Láquis e Arade, bem como os “altos” [lugares], santuários ao ar livre mais modestos e sem dúvida mais frequentes que atendiam às necessidades de populações menos numerosas. Nos livros dos Reis, os santuários de Láquis e Arade não são mencionados, e os ‘lugares altos’ são condenados, apesar do facto de serem santuários nos quais Yhwh era venerado, provavelmente na companhia de outras divindades. A visão dos editores bíblicos já pressupõe a ideia, desenvolvida no final do século VII, de uma centralização do culto e de uma centralização do poder político em Jerusalém. Antes dessa época, a adoração de Yhwh assemelhava-se à dos deuses tutelares dos vizinhos a Este e a Norte.

Ainda que aos redactores dos textos bíblicos e a alguns teólogos lhes custe, Yhwh tinha uma companheira, a «deusa Asherá», também denominada «Rainha do Céu». Também é provável que houvesse uma estátua de Yhwh no templo em Jerusalém, talvez de um Yhwh sentado em um trono de querubins, à maneira de «El», em Ugarit. Tal conjunto está subjacente à visão do profeta Isaías, e provavelmente também à descrição do trono de Yhwh no primeiro capítulo do livro de Ezequiel. A existência de uma estátua de Yhwh é também confirmada por certas proibições contidas em textos do período persa, conferindo legitimidade à pergunta: “Porquê proibir algo que nunca existiu?” Nos "lugares altos" e talvez também no santuário de Arad, o deus Yhwh e a deusa Ashera eram adorados na forma de duas estelas verticais ou então uma estela e uma árvore estilizada simbolizando a deusa. Durante os séculos IX e VIII, Yhwh assumiu definitivamente o “panteão celestial” e assumiu as funções de outros deuses, como o deus sol, que também era o deus juiz. De fato, há uma série de salmos que transferem para Yhwh características e funções do deus sol. Yhwh, que inicialmente era considerado filho de «El»[17], mais tarde assumiu as funções de chefe do panteão cananeu e tornou-se, como «EI», o deus criador do céu e da terra.

A evolução do Yhwh de Judá, ou mesmo ‘de’ Jerusalém, para a divindade mais importante adorada pelo povo da Judeia, acelerou após a queda de Samaria em 722. A derrota do irmão mais velho do Norte convenceu o clero e os altos funcionários de Jerusalém de que o “verdadeiro” Yhwh era o Yhwh de Jerusalém (do Sul). O cerco (abortado) da cidade pelos assírios em 701 reforçou ainda mais a convicção de que Yhwh defenderia para sempre Sião, a sua montanha, em Jerusalém. Apesar do facto de que, como resultado da política anti-assíria de Ezequias, o reino de Judá ter sido amputado pelos assírios, que também haviam deportado parte de sua população, o relato bíblico transformou essa derrota em vitória. Os acontecimentos do ano 701 estão na origem da ideia de que existe uma ligação indissolúvel entre Yhwh e Jerusalém. Esse vínculo foi fortalecido durante a reforma de Josias, por volta de 620 a.e.c. Após e como consequência da derrota de Samaria, Jerusalém cresceu muito e tornou-se a cidade do rei. A política de centralização do rei Josias e seus conselheiros fez do templo da capital de Judá o único santuário legítimo, o que significava exercer o poder para autorizar a prática de sacrifícios “profanos” em outro lugar, com a condição de que pagassem as taxas ao Templo de Jerusalém. Aproveitando o enfraquecimento assírio, o templo foi esvaziado de estátuas e símbolos que reflectiam as práticas religiosas assírias. O slogan da reforma de Josias era "Yhwh é UM", conforme declarado no versículo 4 do capítulo 6 de Deuteronómio, que serviu de preâmbulo à primeira edição do livro. Essa ideia significa que existe apenas um Yhwh, ou seja, o Yhwh de Jerusalém. Aparentemente, também foi feita uma tentativa de erradicar o culto popular da “rainha do céu”, ou seja, a deusa Ashera. Mais tarde, quando Jerusalém foi destruída, alguns de Judá entenderam essa catástrofe como uma manifestação da ira da deusa, a quem haviam deixado de venerar. Por trás da reforma de Josias está o desejo de estabelecer um culto monolátrico (tentativas semelhantes são observadas em outras partes do antigo Oriente Próximo), no qual a existência das outras divindades não é negada, ainda que apenas um deus devesse ser adorado. Embora a reforma de Josias não tenha sido imediatamente bem-sucedida, ela representa um momento-chave na trajetória do deus Yhwh e estabelece, com a ideia de centralidade em Jerusalém e a veneração exclusiva de Yhwh, um dos fundamentos sobre os quais o judaísmo será construído mais tarde. Recordemos também que foi certamente sob Josias que se pôs em prática uma verdadeira actividade literária, que deu origem às primeiras edições dos livros do Deuteronómio, de Josué, de Samuel e dos Reis, da história de Moisés e de outros textos.

O acontecimento decisivo para que «Yhwh, o deus Uno» se tornasse em «Yhwh, o deus Único» foi a destruição de Jerusalém em 587 e a dispersão geográfica dos povos de Judá, primeiro através da Palestina, da Babilónia e do Egipto, regiões às quais se juntaram logo a Ásia Menor e a bacia mediterrânica. A ausência de um rei, um templo em funcionamento e um país autónomo tornava impossível a veneração de Yhwh como um deus nacional ou guardião da realeza. Como mostra a segunda parte do Livro de Isaías, muitos de Judá pensaram que o “braço de Yhwh” era muito curto[18] e que outros deuses a quem eles teriam que se confiar deveriam ser procurados. Foi nessa situação de crise que, paradoxalmente, diferentes grupos do clero e ex-funcionários da Suprema Corte elaboraram vários modelos explicativos para superar a crise e inventar uma nova maneira de entender a relação entre Yhwh e Israel.

O grupo dos «deuteronomistas» compõem um enorme fresco histórico que abarca os livros do Deuteronómio, Josué, Samuel e os Reis. O objectivo que esta história persegue consiste em mostrar que a destruição de Jerusalém e o exílio não aconteceram por causa da fraqueza de Yhwh, mas o próprio Yhwh foi quem causou essa catástrofe; ele usou a Babilónia para punir o seu povo e reis, que não respeitaram os mandamentos divinos registrados no livro de Deuteronómio. Portanto, se Yhwh pode fazer uso dos babilónios, é porque ele os controla e, portanto, é mais poderoso do que os deuses babilónios. Desta forma, a ideia monoteísta é preparada como aparece nos capítulos 40 a 55 do livro de Isaías, capítulos que insistem no facto de que Yhwh, identificado com «El», é o único deus verdadeiro, e que as estátuas das outras divindades nada mais são do que quimeras, feitas por mãos humanas.

O texto sacerdotal, que abrange o tempo das origens, defende, ao contrário do pensamento deuteronomista, um monoteísmo inclusivo; assim, ele afirma que todos os povos, sem o saberem, veneram o mesmo Deus, cuja verdadeira identidade só Israel conhece, o que o torna um povo à parte. De facto, a ideia monoteísta também levanta a questão da relação específica entre o único deus e o único povo. Essa relação é explicada em vários livros bíblicos, e especialmente em Deuteronómio, pela ideia de eleição. Yhwh, de todos os povos, escolheu Israel para fazer dele a “sua parte pessoal”. A controvérsia contra as estátuas e imagens dos outros deuses certamente levou à invenção de um culto anicónico de Yhwh e à ausência de uma estátua no templo reconstruído em Jerusalém. De fato, as sinagogas puderam desenvolver-se ao lado do templo, provavelmente desde os tempos persas, nos quais o culto de Yhwh não se baseava mais no clero e nos sacrifícios sangrentos, mas na leitura da Torá. Esta Torá - o Pentateuco - foi publicada numa primeira versão em meados do período persa, por volta de 400-350 a.e.c. Reúne os escritos sacerdotais, parte dos textos deuteronomistas e alguns outros, e encontra a sua coerência no facto de conter todos os mandamentos divinos transmitidos ao povo por Moisés no Sinai. Isso significa que se pôs fim à necessidade de realeza e de terra (o Pentateuco pára antes da conquista do país: Deuteronómio 32, 48-52), enquanto condições obrigatórias, para se conhecer as disposições de Yhwh.

De algum modo, podemos dizer que o judaísmo nascente inventa a separação entre o poder político e a prática religiosa e entre uma prática religiosa e um território específico permitindo-lhe que ele funcione como uma espécie de «religião da diáspora». A transformação de Yhwh em deus único culmina com a recusa, por parte do povo, em pronunciar o nome do seu deus, mas sobretudo com a tradução da Torah do hebraico para o grego, o que permite ao mundo inteiro (‘inteiro’, bem entendido, numa perspectiva greco-romana) descobri-lo e eventualmente aderir a ele.

 

 

POSFÁCIO

de «A invenção de Deus», por Thomas Römer

 

É possível inventar Deus? Muitos especialistas das religiões diriam que sim, enquanto os teólogos resistiriam a tal. No entanto, nos começos da Reforma, o teólogo Martinho Lutero perguntava no seu «Catecismo Maior»: «O que é um deus?». E respondia: «Aquele a quem o teu coração adere e confia: esse é o teu deus». Nesta definição podemos ler o reconhecimento de que é possível, ao ser humano, inventar deuses.

Desde 2014 que procuramos, com este livro, a origem e o processo de desenvolvimento do deus bíblico, aquele deus que acabou por ser convertido no «deus único». Falar de “invenção” em relação às religiões, politeístas ou monoteístas, não é algo óbvio. Embora em muitas religiões o clero e os teólogos definam a versão oficial do seu culto e crenças, e concebam mandatos divinos, a questão da origem dos deuses escapa (quase sempre) à ideia de uma invenção “ad hoc”. O historiador, por outro lado, pode basear a sua investigação em documentos - egípcios, assírios, babilónios, etc. - em textos bíblicos, em arqueologia e em epigrafia. Usando essa metodologia, tracei as origens do deus Yhwh, o início de sua veneração por “Israel” e o seu caminho rumo ao “deus único”.

As hipóteses que eu apresento sobre uma origem meridional e não israelita do deus Yhwh são baseadas no corpo de documentação disponível hoje. Obviamente, as minhas conclusões são conjecturais e dependem de interpretações dos dossiês textuais e arqueológicos. Por outro lado, a tese segundo a qual Yhwh era originariamente um deus do deserto, provavelmente também venerado na região que mais tarde passou a ser chamada “Edom”, é questionada sobretudo por investigadores das universidades de Berlim e Göttingen[19]. Para estes últimos autores, Yhwh foi desde sempre uma divindade israelita autónoma e os textos que o situam no deserto e no Sul seriam apenas invenções de escribas, os quais, após a destruição do Templo de Jerusalém, o passaram a viver (e, por conseguinte, a referir) como sendo um deus do deserto.

Essa hipótese, que refuta acima de tudo a antiguidade dos textos que evocam uma origem de Yhwh no Sul, é desmentida por várias evidências. Primeiro, não há nome de lugar em Israel ou Judá que contenha o elemento teofórico “Yhwh”, o que é surpreendente para quem quiser defender a hipótese de que esse deus era uma divindade indígena. Em segundo lugar, as ligações entre Yhwh e os países de Madiã e Edom não podem ser entendidas como invenções recentes, pois em textos do período persa (século V a.e.c.) os madianitas e, até certo ponto, também os edomitas, passaram a ser inimigos de Israel.

Acrescentemos outra observação que não incluí no meu livro, mas que é importante: é a figura de Caleb, que, segundo o seu nome como «quenicita», é edomita, e em Números, Deuteronómio e Josué é apresentado como «aquele que segue fielmente Yhwh» (expressão que lhe é reservada em toda a Bíblia). Pois bem, este yahvista está ligado à conquista da região de Hebron e mais tarde é identificado como pertencente a Judá. Este personagem reflete uma estreita relação entre Yhwh e o país de Edom, o que é atestado pela menção de "Yhwh de Teman" nas inscrições Kuntillet Ajrud. Parece-me, portanto, que a melhor hipótese continua a ser a de que a origem de Yhwh se situa nesses territórios, ao sul do Neguev.

O objetivo de “A Invenção de Deus” é oferecer uma investigação completamente histórica para explicar a origem do judaísmo, a religião monoteísta na qual o cristianismo e o islamismo se baseiam. Hoje, quando o obscurantismo e as “verdades alternativas” estão ganhando cada vez mais terreno, parece necessário lembrar que esses três monoteísmos têm mais convergências em comum do que divergências, e, para além disso, têm o mesmo fundamento. Nos ambientes não crentes, as religiões monoteístas costumam ser mal recebidas. São censuradas por engendrar intolerância, violência e fanatismo. O presente parece confirmar essa avaliação. Muitos conflitos e ataques terroristas contêm componentes ideológicos. Em nome do ‘Deus único’ mata-se, exclui-se, prega-se o ódio e a intolerância. No entanto, durante séculos, o advento do monoteísmo foi considerado como representando um progresso intelectual e filosófico na história humana. Não fora o monoteísmo moisaico - o qual está na origem do judaísmo e sem o qual nem o cristianismo nem o islamismo existiriam - a humanidade nunca teria abandonado a divinização da natureza e nunca se teria libertado de uma submissão supersticiosa aos elementos cósmicos. Daqui se concluiu que o monoteísmo favoreceu a autonomia do ser humano e da sua capacidade para controlar as forças naturais e cósmicas. Não é em vão que o primeiro capítulo da Bíblia afirma que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus e que sobre os seus ombros repousa a responsabilidade de cuidar do mundo e de tudo aquilo que nele existe. Será que o monoteísmo acabará por ser, então, o primeiro passo para o abandono do pensamento religioso por parte do Homem – tal como alguns filósofos[20] afirmam? E será também o monoteísmo o grande responsável pelas catástrofes ecológicas que os humanos não param de multiplicar desde que os humanos puseram em marcha a revolução industrial, bem como as «guerras de religião» que hoje em dia ocorrem? Pelo que me toca, ao rastrear o advento do monoteísmo procurei mostrar que ele contém em si um componente segregacionista e um componente universalista.

Em numerosos relatos do Pentateuco, Moisés surge como violento. Na história do bezerro de ouro, ele é um iconoclasta: ele destrói a obra de seu irmão Aarão, que representava Yhwh em forma bovina, e assim anuncia o culto anicónico do templo de Jerusalém reconstruído na época persa, no final do século VI a.e.c. Porém, também massacrou uma grande parte do povo, que venerava esta estátua de Yhwh. Moisés torna-se assim o campeão de uma religião yahvista intransigente. Em algumas passagens de Deuteronómio, como por exemplo os capítulos 4 e 7, Moisés apresenta Yhwh de facto como o “deus único” que criou os céus e a terra, porém, com uma relação específica com Israel pelo simples facto de o ter «eleito» como propriedade privada, razão pela qual Israel deve manter-se separado das outras nações. Este discurso deuteronómico, colocado assim na boca de Moisés, corresponde a um monoteísmo excludente.

No entanto, juntamente com o discurso segregacionista, também encontramos textos que reflectem uma posição de coabitação religiosa. Por exemplo, Moisés, que havia fugido para Madiã, casa-se com Séfora, madianita e, também, filha de um sacerdote. Da mesma forma, José, que em seu exílio egípcio torna-se chanceler do faraó, casa-se com a filha de um sumo sacerdote e não tem nenhum problema em ter discussões teológicas com o rei do Egito. A tendência inclusiva do monoteísmo é apresentada de maneira ainda mais forte no relato da vocação de Moisés, escrito por um grupo de sacerdotes. Neste relato (Êxodo 6), os sacerdotes desenvolvem a ideia de uma revelação divina em três etapas. Toda a humanidade conhece Deus como Elohim, um nome que é plural e singular; para Abraão e seus descendentes - que incluem as tribos árabes, os edomitas e outros povos a leste do Jordão - Deus dá-se a conhecer como El Shaddai («deus dos campos»); e revela o seu «verdadeiro» nome, YHWH, exclusivamente a Israel – por intermédio de Moisés –, nome que logo de seguida passa a ser tabu no Judaísmo. Segundo esta lógica, TODOS OS POVOS VENERAM O MESMO DEUS, inclusivamente aqueles povos que possuem panteões. Ou seja, não há motivo algum para que os seres humanos se enfrentem em nome de deus.

Assim, na Bíblia hebraica coabitam dois monoteísmos diferentes. Deste modo cria-se uma tensão entre inclusão e segregação, entre coabitação e confrontação. No plano psicológico podemos sublinhar que toda e qualquer identidade assenta sobre dois pilares e ergue-se a partir desses dois pilares. Porém, no plano histórico e político há que assinalar que as religiões monoteístas favoreceram sempre mais a versão exclusiva, e com muita frequência guerreira, do monoteísmo.

Está na hora de a lembrar e de falar desta vertente pacifista, bem como de a explorar no contexto actual, o qual, mais uma vez, está dominado por uma retórica belicosa, seja ela religiosa ou laica.

 

Thomas Römer, “La invención de Dios”, Sígueme 2022, 277-294

 

 




 



[1] Por exemplo, o livro de Daniel, escrito por volta do ano 164 a.e.c., está atribuído a um sábio e visionário que teria vivido durante o cativeiro da babilónia, contexto que reforça a autoridade das suas visões quanto ao Fim dos Tempos. Em algumas visões, facilmente decifráveis, encontramos uma sucessão de Impérios até à época de Antíoco IV. Se esta visão se revelou histórica e cumprida, então muito provavelmente tudo o que ele diz quanto ao Fim do tempo presente possui um fundo de verdade.

[2] O que faz lembrar a visão do profeta Ezequiel no capítulo 1 do livro que lhe é atribuído.

[3] O texto completo deste livro apenas se preservou completo em alguns manuscritos etíopes da Idade Média. Com a descoberta de fragmentos deste livro na primeira parte do livro de Qümran, fica provada a antiguidade de algumas partes deste livro, que, originariamente, fora redigido em aramaico.

[4] A parte do livro denominada «livro dos vigilantes», por vezes, é datada do século III a.e.c.

[5] Uriel, que vigia o trajecto das estrelas e os anjos do Tártaro; Rafael, que protege os espíritos dos humanos e conhece as moradas dos mortos; Raguel, que castiga o mundo das luminárias; Miguel, chefe do exército celeste; Sarakiel, encarregado dos espíritos malvados; Gabriel, que vigia o Paraíso e os querubins, e que também desempenha o papel de mensageiro da vontade divina; e Ramiel, encarregado dos ressuscitados.

[6] Ao nível da história das religiões, observamos que este é o mesmo tema do segundo milénio a.e.c. aquando da civilização Mesopotâmica: o deus criador deve derrotar um ou mais monstros aquáticos (cobra ou dragão), que simbolizam o caos, a fim de colocar em movimento a criação do mundo. [PB: Este “caos” pode ser visto de modos diferentes consoante a época histórico-política em que se esteja; tal como a expressão “suíno”, ela pode ser uma designação insultuosa cifrada - sigilosa - para referir a ocupação estrangeira (romana) e sua espoliação tributária, a qual Jesus enfrentou - cf. Mateus 8,28-34 - e às mãos da qual deu a sua vida; os suínos - os romanos infiéis - são ‘mar’ ou seja são ‘o caos’. A referência aos porcos que se precipitam no mar o comprova]

[7] O nome, atestado pela primeira vez em 1 Mac 12,18, procede provavelmente de “Sadoq”, o qual aparece nos livros de Samuel e mais tarde no livro de Ezequiel como o nome de um sumo sacerdote.

[8] Este nome procede de um verbo hebraico que significa «pôr de lado», «apartar».

[9] De alguma maneira, os saduceus e os fariseus são, respectivamente e por esta ordem, os sucessores das correntes ‘sacerdotal’ e ‘deuteronomista’.

[10] As informações acerca deste grupo provêm sobretudo de Flávio Josefo, «Antiguidades Judaicas» 13, 171-173; 15, 371s; 18, 11-25. O seu nome (essénios) deriva eventualmente de uma raiz aramaica que significa «puro», «santo».

[11] Émile Puech, «Khirbet Qumrân et les Esséniens»: Revue de Qumrân 25 (2011) 63-102.

[12] O nome vem do grego e significa «zelo».

[13] «Antiguidades judaicas» XVIII, 2.

[14] Lembremo-nos de que o local do atual Sinai se baseia numa tradição cristã do século IV.

[15] Em algumas inscrições de «Teman» o nome de Yhwh está precedido por um “artigo definido”, o que sugere que o nome é encarado não como “nome próprio”, mas como um substantivo.

[16] Nome poético para Israel…

[17] Cf. as nossas observações acerca da versão original de Deuteronómio 32,8, onde Yhwh surge como um dos filhos de «El».

[18] Com efeito, nos capítulos 40 até ao 55 de Isaías, surge, em várias ocasiões, uma afirmação que é colocada na boca de Yhwh: «Não, o meu braço não é curto».

[19] Cf. sobretudo, H. Pfeiffer, «Jahwes Kommen von Süden: Jdc 5, Hab 3, Dtn 33 und Ps 68 in ihrem literatura- und theologiegeschichtlichen Umfeld», Göttingen 2005; M. Köckert, «YHWH in the Northern and Southerner Kingdom», in R. G. Kratz-H. Spieckermann (dirs.), “One God, One Cult, One Nation. Archeological and Biblical Perspectives”, Berlin-New York 2010, 357-394; R. Müller, «Die frühe Jahweverehrung im Spiegel der ältestan Psalmen»: BThZ 30 (2013) 89-113.

31 de agosto de 2024

A invenção de Deus 8


 

Reconstrução da oscilação do território do
Reino de Judá no séc. IX a.e.c. (in Francisco Martins©)

 

O IMPÉRIO NEOASSÍRIO

“Ao longo deste capítulo e também já em capítulos anteriores, referimo-nos repetidas vezes ao império assírio ou neo-assírio. Sem outra pretensão que a de ajudar o leitor a contextualizar estas referências, oferece-se aqui uma breve síntese histórica da ascensão e queda daquele que é frequentemente considerado o primeiro império mundial da História.

No século XIV a.e.c., a cidade-estado de Assur, que já tinha então uma longa História (remontava à primeira metade do terceiro milénio a.e.c.), conseguiu impor-se como a capital de um vasto território que chegou a incluir a Babilónia, ao sul. Dois séculos depois, contudo, esta primeira tentativa de expansão territorial e domínio imperial (o império médio-assírio) tinha colapsado. A partir do reinado de Adad-Narari II (c. 912-891), começa um lento processo de ressurgimento que inclui a recuperação de territórios perdidos e a conquista de novas terras. Com Assurnasirpal II (c. 884-859 a.e.c.) e o seu filho Salmanasar III (c. 859-824 a.e.c.), a Assíria torna-se outra vez uma superpotência político-militar. O verdadeiro apogeu imperial, todavia, só começa a vislumbrar-se com Tiglat-Falasar III (c. 745-727 a.e.c.); na prática, manifesta-se plenamente nos reinados de Sargão II (c. 722-705 a.e.c.) e Senaqueribe (c. 705-681 a.e.c.). Deste zénite até ao colapso e queda definitivos foram precisas apenas poucas décadas: Assurbanipal (c. 669-631 a.e.c.) é comumente considerado o último grande rei do império, ainda que a então capital, Nínive, só tenha sido capturada e destruída em 612 a.e.c.

Como já se disse no capítulo IV (de «A Bíblia tinha mesmo razão?» por Francisco Martins, Temas & Debates 2023) o império neo-assírio foi capaz de impor a sua hegemonia em grande parte graças a uma impressionante máquina de guerra. O exército assírio foi o primeiro exército regular (”profissional”) da História e o paradigma de uma nova forma de combater. Os Assírios foram ainda os primeiros a usar armas de ferro, que eram superiores em qualidade e resistência às armas de bronze utilizadas pelos seus inimigos. Desenvolveram igualmente novos engenhos, armas e técnicas de cerco, que lhes permitiram “semear o terror” e forçar a rendição das cidades sitiadas ou, em caso de necessidade, submetê-las pela força. Finalmente, os reis e oficiais assírios recorriam também frequentemente a técnicas de guerra psicológica, a mais eficaz das quais a ameaça, frequentemente concretizada, de deportações em massa.

À incomparável supremacia militar juntava-se uma agressiva ideologia da conquista mundial. O rei assírio gozava, de acordo com a ideologia oficial, de um poder absoluto, que lhe tinha sido confiado pela divindade tutelar do império, o deus Assur. Por esta razão, cabia-lhe, entre outras coisas, trazer ordem e “paz” ao caos que reinava fora do coração do império, o território à volta da cidade de Assur. A conquista dos territórios estrangeiros e a sua anexação eram, por isso, um imperativo “civilizador” de origem divina, ao serviço do qual o exército assírio podia cometer todo o género de atrocidades.”

 

In Francisco Martins, «A Bíblia tinha mesmo razão?», Ed. Temas & Debates 2023, 243-244

 

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DO DEUS «UNO» AO DEUS «ÚNICO»

As origens do monoteísmo bíblico no começo da “Época Persa”

 

1.DA MORTE DE JOSIAS À DESTRUIÇÃO DE JERUSALÉM

Após a morte de Josias no ano de 609 a.e.c., os babilónios tomam rapidamente controlo do Próximo Oriente, ao mesmo tempo que os egípcios lhes procuram fazer frente. O rei que sucedeu a Josias, seu filho Joacaz, acaba destituído pelo faraó Necao. Necao substitui Joacaz pelo seu irmão Eliaquim e muda-lhe o nome próprio para Joaquim (609-598), nome yahvista (que quer dizer «Yhwh seja erguido ao alto»). Tal mudança de nome leva a supor que o faraó reconhece Yhwh como o deus nacional de Judá. Mais tarde, Joaquim converte-se em vassalo de Nabucodonosor II no ano de 605 a.e.c., quando este vence o exército egípcio em Carquemis. O rei babilónio, que nesse momento controla a Síria-Palestina, mantém Joaquim no seu cargo, provavelmente para que, pelo menos, em Judá esteja garantida a estabilidade política. Tudo leva a crer que, durante algum tempo, Joaquim foi leal a Nabucodonosor (cf. a História de Daniel em Dn 1,1-21). Porém, no ano de 601 a.e.c., este último sai derrotado numa campanha contra o Egipto, razão porque Joaquim se vê forçado a pedir o apoio do Egipto. Sem pestanejar, a Babilónia avança sobre Joaquim e assegura-lhe a vitória sobre os egípcios. Segundo a descrição que consta do segundo livro dos Reis, «O rei do Egipto nunca mais saiu fora do seu país, porque o rei da Babilónia se apoderara de todas as possessões do rei do Egipto, desde a torrente do Egipto até ao Eufrates.» (2 Reis 24,7). Nabucodonosor sitia Jerusalém para punir Joaquim, mas Joaquim morre durante o cerco. Seu filho Jeconias, que reinou apenas três meses, submete-se em 597 a.e.c. e assim evita a destruição de Jerusalém. Mesmo assim, os babilónios decidem-se por uma deportação em larga escala de toda a cidade de Jerusalém. O rei é desterrado conjuntamente com a elite da corte: altos funcionários, clero e artesãos. Esta primeira deportação foi a mais importante. Os babilónios designam Sedecias (Matanias?[1]), outro filho de Josias e tio do rei exilado. Manteve o título de rei ou foi considerado um governador? Os escritores do livro de Ezequiel parecem ver em Joaquim aquele que foi o último rei legítimo.

Durante o reinado de Sedecias (597-586), uma revolta na Babilónia e outros problemas diminuíram a presença babilónica no Oriente Próximo. O rei egípcio Psaméticho II (595-589; filho de Necao II) provavelmente encorajou uma rebelião na qual Sedecias participou. O livro de Jeremias,37-43 narra os últimos dias de Jerusalém, e apresenta uma fação anti-babilónica na corte de Jerusalém, enquanto o profeta prega a submissão aos babilónios, o que lhe vale o epíteto de traidor. Sedecias parece hesitante [Jr 38,19: «O rei Sedecias disse a Jeremias: “Tenho medo dos judeus que se passaram para o lado dos caldeus; temo que me entreguem nas mãos deles e me maltratem.”»], mas no final está ao lado daqueles que defendem a revolta, o que provoca uma reação imediata dos babilónios e a destruição do templo, da cidade e dos muros de Jerusalém em 587 a.e.c.. Jerusalém não é a única cidade destruída, já que os babilónios arrasam outros centros judaicos. Em consequência destes acontecimentos, ocorre uma segunda deportação. Os babilónios ergueram a pequena cidade de Mispá como o novo centro administrativo no território de Benjamim, muito menos destruído do que o de Judá,  e aí instalaram como governador Godolias, membro da família Safânida (neto de Shaphan).

A situação demográfica em Judá é de difícil avaliação. De acordo com Oded Lipschits, a população baixa de cerca de 100 mil a 40 mil habitantes devido a mortes, deportações e movimentos de fuga, enquanto Benjamin parece menos afetado[2]. Não sabemos se os babilónios deram um nome específico ao antigo reino de Judá. É claro que uma parte de Judá, especialmente o Sul, foi invadida por tribos Árabes e edomitas. O governador Godolias foi assassinado muito cedo por um partido anti-babilónico e, em represália, os babilónios organizaram uma terceira deportação no ano 582. Os textos bíblicos que relatam estes últimos dias de Judá, a saber, 2 Re 2425 e Jr 3744 e 52, não coincidem quanto à dimensão das deportações.

 

2Reis 2425: número de deportados

597 a.e.c.        cap.24,14: 10 mil       cap.24,16: 8 mil

587 a.e.c.        «o resto da população»

582 a.e.c.        ?

 

Jeremias 52: número de deportados

597 a.e.c.        cap.52,28: 3.023 deportados

587 a.e.c.        cap.52,29: 832 deportados

582 a.e.c.        cap.52,30: 745 deportados

 

Os números no final do livro de Jeremias parecem mais precisos do que os dos capítulos 24-25 do segundo livro de Reis, mas são bastante baixos, o que não corresponde ao aparente declínio da taxa populacional em Judá. Uma possível explicação para a diferença entre o segundo livro dos Reis e o de Jeremias seria considerar que os números dados por este último dizem respeito apenas aos chefes de família. Se forem multiplicados por 5 ou 6, chegamos a valores comparáveis aos números redondos de 2 Reis 24 no que diz respeito à primeira deportação.

Embora alguns textos bíblicos dêem a impressão de que o país estava vazio durante o chamado período de exílio babilónico[3], a vida continuou em Judá e especialmente em Benjamim. A importância de Benjamim e Mispá pode ter levado ao renascimento de algumas tradições relativas a Saúl, um nativo de Benjamim, que alguns gostariam de favorecer em detrimento da continuidade da linha davídica[4]. Sabemos muito pouco sobre a vida das pessoas que ficaram no país. As fontes babilónicas não falam sobre isso. É plausível que os babilónios tenham nomeado outro governador após o assassinato de Godolias. Quanto aos textos bíblicos (com algumas exceções), quando narram o essencial fazem-no a partir da perspetiva dos exilados na Babilónia[5], a elite, que se considerava o "verdadeiro Israel". Assim, especialmente no Livro de Ezequiel, encontramos polémicas virulentas contra aqueles que permaneceram na terra, que são considerados como tendo sido ‘rejeitados’ por Yhwh: segundo os editores do livro, Yhwh deixara o seu país para acompanhar os exilados na Babilónia. Ao contrário dos assírios, os babilónios permitiram que os exilados se reagrupassem de acordo com a sua origem. É certo que altos funcionários também foram empregados em tarefas administrativas. Os textos bíblicos mencionam uma série de lugares habitados por deportados de Judá: Tel Aviv, às margens do Chebar (Ez 3,15), provavelmente no centro da Babilónia, não muito longe de Nipur; Tel Meiach, Tel Jarsa, Querubim-Adam e Imer (Esdras 2,59); Kasifyah (Esdras 8,17). Fora destes textos e infelizmente para nós, estes topónimos são desconhecidos. Flávio Josefo evoca a cidade de Nearda[6] (também atestada no Talmud), ou seja, Tel Nihar, situada na margem esquerda do Eufrates, ao norte de Sippar, sede de uma famosa academia no século III da era cristã. Uma tabuleta cuneiforme babilónica da coleção Moussaieff (se autêntica[7]), datada do início do período persa, contém um contrato para a venda de animais no qual pessoas com nomes Yahwistas são citadas. Além disso, este contrato teria sido celebrado em uma cidade chamada "Ai-Yahûdû" ("a [nova] Judá") "no 24º ano de Dario, rei da Babilónia, rei das terras[8]". Este nome corresponde ao que surge numa crónica babilónica para designar Jerusalém. Trata-se, portanto, de uma "nova Jerusalém" fundada pelos exilados de Judá na Babilónia, cuja identificação ainda não é possível, mas que mostra a importância e a folga financeira e económica da Golah[9] babilónica.

 

2.CRISE IDEOLÓGICA E LITERATURA DE CRISE

Os acontecimentos dos anos 597 e 587/586 a.e.c. produziram, sem dúvida alguma, uma enorme crise de identidade colectiva da Judeia. Dada a importância das destruições e das movimentações de população, esta crise foi bem real. Isso não significa que a destruição de Jerusalém não tenha afetado mais as elites deportadas do que as populações rurais e pobres que permaneceram no país[10]. As elites, e especialmente os oficiais reais[11], tinham sido afastados da fonte do seu poder. De um modo mais geral, após os acontecimentos de 597/587, os pilares tradicionais que sustentavam a coerência ideológica e política de um Estado monárquico no Médio Oriente desmoronaram-se. O rei tinha sido deportado, o templo tinha sido destruído e a integridade geográfica de Judá tinha sido pulverizada por deportações e emigrações voluntárias.

Era inteiramente lógico que se explicasse a nova situação como resultado de uma vitória dos deuses babilónicos, mais poderosos, sobre a divindade nacional, Yhwh, que assim saíra derrotada; ou, então, explicar a situação lançando mão da seguinte narrativa: tudo o que aconteceu foi fruto de Yhwh ter abandonado o seu povo!

Dentro da aristocracia, diferentes grupos tentaram superar a crise elaborando ideologias que deram sentido à queda de Judá. Podemos apresentá-los de acordo com um modelo proposto por Armin Steil. Este sociólogo, influenciado por Max Weber, analisou as crises semânticas ligadas à Revolução Francesa[12]. No entanto, o seu modelo também pode ser aplicado às reações diante da queda de Jerusalém que encontramos na Bíblia Hebraica. Steil distingue três tipos de atitude perante uma crise: a do profeta, a do sacerdote e a do mandarim. A atitude profética procura ver, na crise, o início de uma nova era; os seus defensores são gente marginal, porém, capaz de comunicar as suas convicções. A postura dos representantes conservadores das estruturas sociais desmoronadas corresponde à atitude sacerdotal, cuja forma de superar a crise é apelar às origens sagradas da sociedade, origens por Deus concedidas, e ignorar a nova realidade acabada de chegar. Quanto à postura dos mandarins, ela exprime a opção predileta dos altos funcionários que procuram compreender a nova situação bem como a forma de se adaptarem a ela de modo a poderem conservar os seus velhos privilégios. Os «mandarins» procuram explicações para o ocorrido num sistema histórico que lhes dê as razões que estão por trás do desmoronamento das antigas estruturas sociais. Podemos resumir as três atitudes no Quadro seguinte:

 

Três tipos de atitude perante uma crise

 

Estas três atitudes estão presentes na Bíblia hebraica e nas interpretações que ela oferece para a destruição de Jerusalém. Costuma-se afirmar que essas reações passaram a escrito durante o período chamado de exílio (587-539[13]). Talvez seja mais lógico pensar que esses textos datam da Era Persa, quando as condições socioeconómicas eram mais estáveis.

Em 539 a.e.c., Ciro II (559-529), apoiado pelo clero de Marduk (o principal deus do panteão babilónico) e insatisfeito com a política religiosa de Nabonido, conquistou a Babilónia e ampliou seu império, que se caracterizou por uma certa tolerância para com as populações submetidas. Os exilados são autorizados a regressar ao seu país, bem como a restaurar e praticar cultos locais. Um número significativo de textos bíblicos, tentando explicar a destruição de Jerusalém e o papel de Yhwh nesta catástrofe, provavelmente viram a luz do dia entre os intelectuais judeus da "golah" babilónica.

 

Extensão geográfica do Império Persa

 

3.«A HISTÓRIA DEUTERONOMISTA»: O CAMINHO QUE LEVARÁ AO MONOTEÍSMO

O equivalente bíblico da postura «mandarim» perante a crise é a “Escola Deuteronomista”. Os seus membros são descendentes dos escribas e de outros funcionários da corte de Judá, cujos antecessores acompanharam ou mesmo realizaram a reforma de Josias. Trata-se de um grupo fanático que está obcecado com o fim da monarquia e com a deportação das elites de Judá, que tenta explicar o exílio construindo uma história de Yhwh e do seu povo desde os primórdios, sob Moisés, até à destruição de Jerusalém e à deportação da aristocracia: é a história que a Bíblia Hebraica narra desde o Livro do Deuteronómio até ao segundo livro dos Reis[14].

Para isso, os deuteronomistas reelaboram os antigos pergaminhos da era assíria e, assim, constroem uma história coerente, dividida em diferentes períodos (Moisés, a conquista do país sob Josué, o tempo dos Juízes líderes carismáticos anteriores à realeza o advento da monarquia, o tempo dos dois reinos, a história de Judá desde a queda de Samaria até à queda de Jerusalém). Trata-se de apresentar todos os acontecimentos negativos a divisão da realeza em dois reinos, Judá e Israel, ou as invasões assírias e babilónicas como consequências “lógicas” da desobediência do povo e dos seus líderes à vontade de Yhwh. Ou seja, a vontade de Yhwh é expressa precisamente no livro do Deuteronómio, que recorda a “aliança”[15] ou o tratado original entre Yhwh e Israel. Foi o próprio Yhwh que provocou a invasão babilónica com o fim de punir Judá por ter adorado outras divindades (2 Reis 24:3.20). Os deuteronomistas tentam, assim, contrariar a ideia de que Marduk e os outros deuses babilónicos teriam derrotado Yhwh. Assim, a “história deuteronomista” constitui a primeira tentativa de escrever uma história completa de Israel e Judá, do início ao fim.

Na Antiguidade há outros exemplos de ligação de uma situação de crise com a historiografia. Por exemplo, no século V a.e.c. Tucídides escreve a «História da Guerra do Peloponeso» para “aqueles que desejam um conhecimento preciso do passado, a fim de ajudá-los a interpretar o futuro” (1.22). Heródoto também compõe a sua «História» para explicar as razões das guerras persas e seus dramas[16]. Obviamente, a história deuteronomista não é uma obra de historiografia ou de História no sentido moderno do termo, como Leopold von Ranke apontou no século XIX (“aquilo que realmente aconteceu”[17]); porém, não deixa de ser uma tentativa de construir o passado para explicar o presente.

O exílio e a deportação são o tema global desta história, que liga as várias tradições e períodos até chegar ao fim da monarquia, à destruição de Jerusalém e à perda do país; estes acontecimentos, segundo os deuteronomistas, são o resultado da ira de Yhwh contra o seu povo e os seus líderes. Judá e Jerusalém não podem escapar ao ataque babilónico porque é o próprio Yhwh que enviou este exército com o propósito de aniquilar Judá e Jerusalém:

«Yhwh mandou contra Joaquim as tropas dos caldeus, dos sírios, dos moabitas e dos amonitas; enviou-os contra Judá para o destruir, conforme Ele anunciara pela boca dos profetas, seus servos. […]  Assim aconteceu a Jerusalém e a Judá, porque o SENHOR, irritado, queria afastá-los da sua presença.» (2Reis 2.20)

Com esta afirmação, os autores da história deuteronomista queriam mostrar que a queda de Jerusalém não significava que os deuses babilónicos tinham derrotado o deus nacional de Judá. Os eventos de 697 e 587 só poderiam ser explicados se fosse a ira de Yhwh o agente do colapso de Judá. Se Yhwh tinha usado o rei da Babilónia e seus deuses, isso também significava que ele os controlava, que eles eram seus instrumentos. Ou seja, esta ideia abre caminho para as reivindicações manifestamente “monoteístas” que se encontram nos retoques finais do texto da história deuteronomista.

Numerosos textos do livro do Deuteronómio convidam os seus destinatários a «não se deixarem levar por outros deuses». Nesses textos, a perspectiva é claramente monolátrica: na verdade nunca negam a existência de «outros deuses», apenas se proíbe, aos israelitas, que sigam na peugada desses deuses, uma alusão a procissões que eram encabeçadas por estátuas divinas. Em textos mais recentes, acrescentados durante o período persa, insiste-se que Yhwh é o único deus e não há outros deuses ao seu lado: «Reconhece, agora, e medita no teu coração que que só Yhwh é Deus, tanto no alto do céu como em baixo, sobre a terra, e que não há outro." (Dt 4, 39).

Mas se Yhwh não é apenas a divindade tutelar de Israel, mas também o único “Deus verdadeiro”, como explicar que ele mantém uma relação privilegiada com Israel? Para os deuteronomistas, a resposta está na ideia de escolha: Yhwh escolheu Israel como seu povo particular no meio de todas as nações. Nos últimos textos monoteístas do livro de Deuteronómio, a alegação de que Yhwh criou os céus e a terra está geralmente ligada à reivindicação da eleição de Israel[18]:

«Ao SENHOR, teu Deus, pertencem os céus e os céus dos céus, a terra e tudo o que nela existe. No entanto, foi só a teus pais que Yhwh se apegou com amor. Elegeu a sua descendência, que sois vós, dentre todos os povos, como ainda hoje. Circuncidai, portanto, a impureza do vosso coração[19] e não endureçais mais a vossa cerviz, porque Yhwh, vosso Deus, é o Deus dos deuses e o Senhor dos senhores, o Deus supremo, poderoso e temível, que não faz distinção de pessoas nem aceita presentes. Ele faz justiça ao órfão e à viúva, ama o estrangeiro e dá-lhe pão e vestuário. Amarás o estrangeiro, porque foste estrangeiro na terra do Egipto.» (Dt 10,14-19)

Assim, para os deuteronomistas, Yhwh é certamente o deus que reina sobre todos os povos, mas mantém uma relação especial com Israel. Esta é uma maneira notável de manter a antiga ideia de Yhwh como um deus nacional ou tutelar, afirmando que ele é o único deus verdadeiro.

 

4.O MONOTEÍSMO DO DEUTEROISAÍAS

A reflexão monoteísta mais exaustiva da Bíblia Hebraica está reunida na segunda parte do livro de Isaías (capítulos 40-55), conhecido como Deuteroisaías. Trata-se de uma coleção de oráculos anónimos cuja escrita se estende pelo menos por dois séculos[20] e cujo núcleo é constituído por um texto de propaganda que celebra a chegada do rei persa Ciro II à Babilónia em 539 a.e.c. Este núcleo do Deuteroisaías foi fortemente inspirado no "cilindro de Ciro", no qual o rei persa é ‘venerado’ (pelo clero de Marduk) como o eleito de Marduk para governar os povos e restaurar a paz[21]. O “cilindro de Ciro” diz que Marduk tomou Ciro pela mão para o guiar e o levar a fazer aquilo que o deus Marduk quisesse, enquanto que, em Isaías 45,1, podemos ler: «Ciro, a quem eu peguei pela mão direita»; Marduk escolhe um nome para Ciro, ou seja, «nomeia-o», ao passo que, em Isaías 45,3, Yhwh chama-o pelo seu nome próprio. O cilindro diz que Marduk «submeteu aos seus pés o país de Guti e as tropas de Medes»; Isaías 45 afirma que Yhwh escolheu Ciro «para submeter as nações a ele». Segundo o cilindro, Marduk «sempre fez com que fosse alimentado com justiça e retidão»; Yhwh diz de Ciro: «Ele é o meu pastor» (Is 44, 28). O cilindro diz que Marduk marchou incessantemente ao seu lado, enquanto Yhwh promete a Ciro: «Eu mesmo marcharei diante de vós» (Is 45, 2). O cilindro insiste em que Ciro conduza sem falta as populações exiladas: «Reunirei todo o vosso povo e trá-lo-ei para dentro», o que corresponde ao discurso de Yhwh sobre o rei persa: «Ele devolverá os meus deportados às suas localidades» (Is 45, 13: «Ele reconstruirá a minha cidade e libertará os meus desterrados, sem nada exigir como recompensa ou suborno.»). O autor deste texto dá sinais de grande universalismo ao apresentar Ciro como o messias de Yhwh, ao mesmo tempo que se inspira na propaganda do rei persa, que por sua vez retoma a ideologia assírio-babilónica. 

Outros textos de Deuteroisaías vão mais longe e propõem é um caso bastante raro, talvez único, na Bíblia Hebraica uma “demonstração teórica” do monoteísmo. Nos primeiros capítulos da coletânea, os povos e os seus deuses são convocados diante de Yhwh para admitir que não há Deus além dele: «para que reconheçam, de leste a oeste, que não há nada além de mim. Eu sou Yhwh e não há outro» (Is 45, 6). As outras divindades são quimeras, «madeira para queimar» (Is 44, 15). O autor ironiza o comércio de estátuas de divindades, que só serve para enriquecer os artesãos: «Aqueles que fazem ídolos são todos inúteis, as figuras que esculpem não servem de nada... Quem já fez um deus sem perseguir sobretudo o lucro?» (Is 44,9-10) Esta demonstração da unidade de Yhwh, que Deuteroisaías geralmente identifica com “El”[22], é apresentada como uma espécie de revolução teológica. A manifestação de Yhwh como o único Deus de todos os povos e do universo equivale a uma nova revelação:

«Eis o que diz Yhwh, aquele que vos liberta, o Santo de Israel: “Por vossa causa, mandei uma expedição à Babilónia, fiz cair os ferrolhos dos cárceres, e os caldeus lamentam-se em altos brados. Eu sou Yhwh, o vosso Deus Santo, o criador de Israel, o vosso rei.” Assim fala Yhwh, que outrora abriu um caminho através do mar, uma estrada nas torrentes das águas; que pôs em campanha carros e cavalos, tropa de soldados e chefes; caíram para nunca mais se levantarem, extinguiram-se como um pavio que se apaga: ”Não vos lembreis dos acontecimentos de outrora, não penseis mais no passado, pois vou realizar algo de novo, que já está a aparecer: não o notais? Vou abrir um caminho no deserto, e fazer correr rios na estepe. Glorificar-me-ão os animais selvagens, os chacais e as avestruzes, porque hei-de fazer brotar água no deserto e rios na terra árida, para dar de beber ao meu povo, o meu eleito, o povo que Eu formei para mim, e assim hão-de proclamar os meus louvores.”» (Isaías 43,14-20)

A exortação a abandonar as memórias funestas dos primeiros acontecimentos pode ser lida como uma crítica ao discurso deuteronomista, obcecado com a destruição de Jerusalém e com o exílio[23]. Para o autor desta passagem, essa página já havia sido virada, e Yhwh irá manifestar seu poder pondo em movimento um “novo Êxodo” enviando (através do rei Ciro) os deportados da Babilónia[24]. O monoteísmo de Deuteroisaías insiste, como o discurso do Deuteronómio, que o único Deus tem uma relação especial com Israel. Mas, tal como já expressado em Isaías 40-55, procura também resolver dois problemas importantes colocados pela afirmação de um único deus: a questão das funções «femininas» do divino e a da origem do mal.

 

5.A INTEGRAÇÃO OU A ELIMINAÇÃO DO FEMININO NO DISCURSO MONOTEÍSTA

O surgimento do monoteísmo é acompanhado pelo desaparecimento da deusa, que os partidários da reforma de Josias já haviam querido banir do culto oficial de Jerusalém. Essa eliminação da deusa pode estar refletida numa visão do profeta Zacarias (Zc 5,5-11)[25]. Nela, o profeta vê uma mulher chamada “ris'ãh” (“impiedade”)[26], encerrada num alqueire [caixote de madeira, de origem árabe, que tanto podia ter capacidade para conter 13 como 22 litros de cereal], que duas mulheres aladas tiram da terra e levam para a Babilónia, onde ela terá um santuário e permanecerá imóvel em seu pedestal. Esta visão pode ser entendida como uma metáfora para a supressão do culto à deusa Asherá (ou Acherá) de Judá, que a partir de então só pode ter um espaço entre os povos pagãos[27].

No entanto, esse desaparecimento da deusa levanta o problema da gestão do feminino nessa “nova” religião monoteísta que é o judaísmo nascente. Por um lado, Yhwh torna-se o único Deus transcendente e, por outro, mantém os seus títulos masculinos, como “senhor”, “rei”, “mestre”, etc. Não é por acaso que no Deutero-Isaías, que é o que expressa mais claramente a ideia monoteísta, existem inúmeras imagens femininas aplicadas a Yhwh. É assim que ele responde, pela boca do profeta, ao medo de ter esquecido o seu povo: «Pode uma mulher esquecer-se do seu filho? Não mostrará ela ternura para com o filho de seu ventre? Porque, mesmo que se esqueçam, Eu não vos esquecerei» (Is 49, 15). A atitude de Yhwh em relação ao povo judeu é aqui comparada ao amor de uma mãe para com os seus filhos. Da mesma forma, em Isaías 44,24 e 46,3, Yhwh é apresentado como aquele que formou Israel no ventre de sua mãe. Em Is 42,14 a metáfora do parto também está presente. Neste versículo, o exílio do povo de Judá é explicado pelo facto de que Yhwh permaneceu inativo. Porém, tudo isso é passado e, agora, Yhwh prepara-se para agir: «Como uma mulher em trabalho de parto, vou soprar, respirar e inspirar ao mesmo tempo». O regresso da comunidade exilada ao seu país é apresentado como um novo nascimento, e Yhwh aqui assemelha-se à deusa mãe, que cria algo novo com as dores do parto. No entanto, no versículo anterior (42,13) este mesmo Yhwh aparece como um guerreiro que persegue os seus inimigos. Temos, então, a passagem de um deus guerreiro, masculino, para um deus materno que dá à luz o seu povo. Um passo comparável é encontrado no poema inserido no final de Deuteronómio, capítulo 32, que vem de um autor contemporâneo de Deutero-Isaías; neste poema, Yhwh aparece primeiro como um pai: «Não é seu pai, aquele que lhe deu a vida?» (v. 6). Mas imediatamente encontramos esta acusação: «Esqueceste-te do Deus que te deu à luz[28]» (v. 18). Assim, Yhwh aparece tanto como pai como mãe de Israel.

Nos últimos capítulos do livro de Oseias, que foram reelaborados ou quiçá redigidos na transição do século VI para o século V a.e.c., observa-se igualmente a integração do feminino em Yhwh[29]. O capítulo 11, por exemplo, pega nas funções e representações de Ishtar e integra-as num discurso sobre Yhwh[30]. Nos versículos 3-4, Yhwh é claramente apresentado como uma mãe carinhosa: «3Eu ensinava Efraim a andar, trazia-o nos meus braços, mas não reconheceram que era Eu quem cuidava deles. 4Segurava-os com laços humanos, com laços de amor, fui para eles como os que levantam uma criancinha contra o seu rosto; inclinei-me para ele para lhe dar de comer.» É Yhwh quem ensina Efraim (ou seja, Israel) a andar, levanta-o até ao rosto como a um bebé, protege-o e alimenta-o. Em 14,9 Yhwh é comparado a uma árvore fértil ("Sou como um cipreste perene, e de mim vêm todos os frutos"), símbolo da deusa Asherah. O início deste versículo pode ter-se, acidentalmente ou mesmo intencionalmente, tornado obscuro; de acordo com Julius Wellhausen, a versão inicial desta passagem teria começado com esta declaração de Yhwh: «Eu sou a sua 'Anat' e a sua 'Asherah'[31]». Se esta conjectura for verdadeira, teríamos aqui outra indicação da vontade de integrar as funções das deusas no próprio Yhwh.

O documento sacerdotal, que abordaremos muito brevemente, abre com o relato da criação do mundo, dos animais e dos seres humanos por parte de Deus. Quando pensa em criar o ser humano, diz que quer criá-lo à sua “imagem”. E a execução desta decisão é contada da seguinte forma: «Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher» (Gn 1,27). O fato de o ser humano à imagem de Deus ser homem e mulher pode refletir o fato de que a ideia tradicional do casal divino (Yhwh e Asherah) é retomada e transferida para o casal humano ou que o próprio Deus contém em si as funções masculina e feminina[32].

Outra forma de compensar o desaparecimento da deusa opera-se através da personificação do conceito de Sabedoria (hokmah), facto que se observa a partir do final da época persa e sobretudo na época helenística[33]. No capítulo 8 do livro dos Provérbios, a própria Sabedoria toma a palavra e apresenta-se como uma deusa que se encontra junto a Yhwh ainda antes da criação do mundo:

«22Yhwh criou-me, como primícias das suas obras, desde o princípio, antes que criasse coisa alguma. 23Desde a eternidade fui formada, desde as origens, antes dos primórdios da terra. 24Ainda não havia os abismos e eu já tinha sido concebida; ainda as fontes das águas não tinham brotado; […] 30 Eu estava com Ele como arquitecto, e era o seu encanto, todos os dias, brincando continuamente em sua presença; 31brincava sobre a superfície da Terra, e as minhas delícias é estar junto dos seres humanos.» (Pr. 8,22-31)

A Sabedoria surge aqui como uma filha de Yhwh, por ele criada a fim de que o acompanhe enquanto ele cria o universo e, de certo modo, faça de mediadora entre Yhwh e os homens. Ou seja, a deusa não havia desaparecido e eis que regressa sob outras roupagens.[34]

 

6.O MONOTEÍSMO DIANTE DO PROBLEMA DO MAL

Numa concepção politeísta, em que a sorte do universo depende da actuação de uma multidão de deuses, a irrupção do mal e do sofrimento poderá ser atribuída a deuses ou a demónios maléficos, os quais os humanos terão de apaziguar ou deles se protegerem com amuletos ou outros meios. Numa concepção politeísta admite-se que os deuses são imprevisíveis e que as suas ações em relação aos humanos podem ser desastrosas, sem que estes tenham necessariamente cometido uma falta contra eles. Porém, a partir do momento em que exista apenas um deus, a questão da origem e da razão do mal é colocada com veemência. Vejamos como os textos bíblicos oferecem respostas as mais diversas.

Em alguns textos, diz-se que o mal e o sofrimento são punições divinas dirigidas contra aqueles que cometeram actos repreensíveis. Essa “teologia da retribuição” é, no entanto, com muita frequência questionada. Assim, o livro de Jó mostra que o protagonista, ao contrário do que afirmam os seus amigos, não merece aquele destino. Mesmo assim, o autor não dá uma resposta para a origem do mal que Yhwh envia contra Jó[35]. Da mesma forma, o relato da criação com que abre o Livro do Génesis apresenta as trevas, a desordem e o abismo como símbolos do mal ou do caos primordial, não criados por Deus, mas “domados” por Ele, na medida em que Ele os integra na Criação. Esses textos, portanto, concedem uma certa autonomia ao mal, sem desenvolver um sistema teológico dualista.

O Deutero-Isaías, por outro lado, propõe uma solução radical e afirma que o próprio Deus é quem cria o mal[36]:

5Eu sou Yhwh e não há outro, não existe outro deus além de mim. Concedo-te a insígnia do poder, embora tu[37] não me conheças. 6Assim saberão, do Oriente ao Ocidente, que não há outro fora de mim. Eu é que sou Yhwh. Não há outro. 7Formo a luz e crio as trevas, faço o bem (šālōm[38]) e mando a infelicidade (ra’). Eu sou Yhwh, que faço todas estas coisas.” (Isaías 45,5-7)

Este texto é provavelmente o único texto em toda a Bíblia hebraica[39] que diz taxativamente que Deus não só criou o šālōm”, mas também o seu contrário, o mal ou o caos. Para o Deutero-Isaías, o qual no modelo de A. Steil é o que mais se aproxima da atitude profética, procura insistir no facto de que todos os poderes, mesmo que nefastos, têm a sua origem em Yhwh e sob o seu controlo eles se encontram. Na medida em que existe apenas um Deus, e fora dele nada existe (v. 5), não há nada que possa escapar a este Deus. Seja como for, no contexto dos escritos bíblicos esta afirmação manter-se-á à margem, não será a grande questão central dos escritos bíblicos.

 

7.O MONOTEÍSMO DOS CÍRCULOS SACERDOTAIS

A terceira forma de «reacção à crise» de acordo com o modelo de A. Steil é a do tipo “sacerdotal”. Essa atitude corresponde à chamada escrita ou ‘tradição sacerdotal’, um conjunto de escritos redigidos nos círculos sacerdotais na Babilónia ou em Jerusalém, no início da Época Persa. A ‘teologia sacerdotal’ [“P”=Priester-Codex] é composta por textos que hoje em dia se encontram incorporados nos livros do Génesis, Êxodo e na primeira parte do Levítico, sendo possível reconstruí-los com bastante facilidade.

Para os círculos sacerdotais, a única coisa que conta é o tempo das origens (a origem do mundo, o tempo dos patriarcas e o tempo de Moisés). Ao contrário da História Deuteronomista [D], a escrita Sacerdotal [P] não está interessada na história da monarquia ou na perda do país. Para ele, tudo já fora dado, tudo fora estabelecido desde o início: a proibição do consumo de sangue (decreto real estabelecido após o Dilúvio), a circuncisão (ritual ordenado a Abraão), a Páscoa (na época do êxodo do Egipto), bem como as leis rituais e sacrificiais e tudo mais foi apresentado ao povo no deserto por meio de Moisés. A primeira edição deste escrito sacerdotal, que foi posteriormente ampliada, terminava provavelmente com o ritual do Yom Kippur (o “Dia da Expiação”), que se encontra no capítulo 16 do livro de Levítico[40] e que insiste na possibilidade de purificar regularmente o santuário e a comunidade através do sumo sacerdote. No extremo oposto do discurso deuteronomista que insiste na segregação estrita entre o povo de Yhwh e os outros povos o ambiente sacerdotal apresenta um discurso monoteísta inclusivo, que busca definir o lugar e o papel de Israel e Yhwh entre todos os povos, e o de seus respectivos deuses. Para esse fim, os círculos sacerdotais desenvolvem, lançando mão de nomes divinos, “três círculos” ou três estádios da manifestação de Yhwh[41].

Nos relatos sacerdotais das origens do mundo e da humanidade, assim como no do Dilúvio, Yhwh revela-se a toda a humanidade como «elohim». Esta palavra pode ser traduzida como “(um) deus”, “(uns) deuses” ou como “Deus”. Provavelmente, os círculos sacerdotais foram os primeiros a usar esse termo «'elohim» no sentido de “(apenas) Deus”[42], como é evidente no relato da criação no primeiro capítulo de Génesis. Este nome pode ser usado tanto no singular quanto no plural. De certa forma, todos os deuses podem ser manifestações do único deus. Para o meio sacerdotal, isso significa que todos os povos que adoram um deus criador, sem saber, adoram o deus que mais tarde se manifestará a Israel sob o nome de Yhwh.

Aos patriarcas e aos seus descendentes, Yhwh revela-se – segundo a escola sacerdotal – como «El Shaday». O círculo sacerdotal utiliza este nome para explicar que o deus que se revelou a Abraão foi, por conseguinte, conhecido também por Ismael, o primeiro filho de Abraão e antepassado dos edomitas. Ao recorrerem a «El Shaday», os redactores sacerdotais utilizam um nome arcaico, mas que à época continuava a ser venerado como nome divino na Arábia[43].

Somente a Moisés, e através dele a Israel, é que será revelado sob o nome de «Yhwh». Este será um privilégio exclusivo de Israel, que assim poderá render a esse deus o culto adequado. Contudo, Israel não deverá «aproveitar-se» deste conhecimento, pelo que daí derivou a proibição de se pronunciar o nome de Yhwh, proibição que passará a ser mandatária na segunda parte da época persa.

Essa representação sacerdotal também pressupõe que os povos vizinhos de Israel e relacionados com “Israel” por meio de Abraão e Jacó, ou seja, as tribos árabes (por meio de Ismael), os moabitas, os amonitas (por meio de Loth) e os edomitas (por meio de Esaú), estão mais próximos de Israel do que as nações distantes[44].

De acordo com o relato sacerdotal, todas as instituições de culto e todos os rituais são concedidos aos Patriarcas e a Israel antes da organização política de Israel, o que significa que não há necessidade de um país ou realeza para se adorar Yhwh de maneira adequada. Essa não-conexão forçosa, quer do culto de Yhwh com as instituições políticas, quer de um vínculo com o país, de alguma forma prepara a ideia de uma separação entre o âmbito religioso e o âmbito político.

Estas instituições dizem respeito, de modo distinto, a diversas etapas da humanidade: a proibição do sangue depois do Dilúvio deve ser aplicada, segundo o “círculo sacerdotal”, a toda a humanidade, pois toda a humanidade está sob a autoridade de “Elohim”; a circuncisão deve ser aplicada (e aplica-se) a todos os descendentes de Abraão que veneram “El Shaday”. Finalmente, a Páscoa, os rituais de sacrifício e as prescrições dietéticas, bem como o “yom Kippur” (Dia da Expiação) são ritos específicos pelos quais Israel adora ‘o Deus único’, que se revelou, por meio de Moisés, sob o nome de Yhwh.

Ou seja, no começo da Época Persa vemos elaborar-se diferentes discursos que redefinem a veneração a “Yhwh como deus único”, ao mesmo tempo que esses discursos reforçam a especificidade da relação de Yhwh com Israel. Impõe-se, então, investigar a questão das possíveis influências persas nesta redefinição do deus Yhwh.

 

8.AS INFLUÊNCIAS PERSAS SOBRE O MONOTEÍSMO BÍBLICO

É muito difícil ter uma ideia clara do sistema religioso adotado pelos governantes aqueménidas[45]. A isso se acrescenta o problema da datação e origem de Zoroastro, bem como da sua "mensagem" original. A reconstrução da história da composição do Avesta, o livro sagrado do mazdeísmo e do zoroastrismo que lhe sucedeu e cujo manuscrito mais antigo data do século XIII, é em muitos aspectos uma reminiscência dos problemas encontrados pelos exegetas da Bíblia hebraica. Hoje em dia parece improvável que houvesse um corpus mazdeano escrito no período aqueménida, embora a maioria dos investigadores pareça confiante de que os "Gathas" (ditos de Zoroastro) possam ser rastreados até ao início do primeiro milénio aC. Inclusivamente, se seguirmos os "minimalistas" que se vão afastando da tradição segundo a qual Zoroastro teria vivido 258 anos antes de Alexandre, isso não colocaria em questão a existência de alguma forma de mazdeísmo no período aqueménida. O mazdeísmo está claramente atestado no âmbito da religião real oficial desde Dario (521-486), que na inscrição de Behistun legitima a sua realeza pela vontade e apoio de Ahura Mazda; e na inscrição de Elvend onde o denomina de "o grande deus que criou esta terra aqui, que criou o céu lá, que criou o homem, que criou a felicidade para o homem"[46]. No entanto, junto com Ahura Mazda, "todos os outros deuses que existem" são mencionados. Também parece que os soberanos persas permitiram que os súbditos do seu império venerassem as divindades locais. Portanto, faz sentido interrogar-nos se devemos falar de monoteísmo quando nos referimos a uma tal constelação, a menos que queiramos postular que o mazdeísmo dos persas constituía uma espécie de monoteísmo sincretista ou inclusivo, que considerava as outras divindades como manifestações locais de Ahura Mazda. Por outro lado, não há dúvidas que os autores dos livros de Esdras e Neemias insistem num vínculo forte e positivo entre o Império Persa e os seus protagonistas, por exemplo, entre o governador Neemias e o escriba e sacerdote Esdras. Neemias é apresentado como um oficial real em Susa (Neemias 1, 1), a capital do Império Aqueménida, e como copeiro, o que implica um alto estatuto social[47]; quanto a Esdras, escriba e sacerdote na Babilónia, ele é reconhecido, pela autoridade real, pelo seu desempenho. Segundo o capítulo 7 do livro de Esdras, Esdras vai a Jerusalém para proclamar ali uma lei que é tanto a do "Deus do céu" (v. 12) quanto a "lei do rei" (v. 26). Nesse contexto, pouco importa saber se esses dois personagens são históricos ou fictícios[48]; simbolizam de uma forma ou de outra a ideia de uma estreita colaboração entre as autoridades judaicas e persas. Por outro lado, nenhum texto na Bíblia hebraica assume uma posição abertamente crítica em relação a um governante aqueménida. Nos livros de Esdras e Neemias, os reis persas aparecem como instrumentos de Yhwh, como soberanos sábios que permitem e encorajam a restauração do culto yahvista em Jerusalém. Podemos dizer, portanto, que o judaísmo nascente da era persa aceitou a ideia de uma "translatio imperio" (como se diria na Idade Média para falar de uma transferência de poder) em benefício dos reis aqueménidas[49].

A questão referente à hipotética ‘influência directa sobre o judaísmo nascente’ é mais difícil de resolver. Por exemplo, constatamos que em numerosos salmos da época persa, mas também em outros textos, Yhwh é apresentado a presidir à Assembleia celeste revelando uma superioridade clara sobre todos os outros deuses, os quais são relegados para a categoria de «anjos» ou «santos» (Salmo 89,6; 103,20). Vermos que o antigo panteão se mantém poderá ser explicado, pelo menos em parte, por uma dupla influência persa: Yhwh surge sob a imagem do grande rei persa, o qual, na verdade, é o único rei verdadeiro que exerce domínio sobre todos os reis de todos os outros povos[50]; só que, deste modo, Yhwh acaba por corresponder igualmente a Ahura Mazda, o qual, pelo menos depois da reforma de Zoroastro, tem a sua sede, enquanto Deus único e verdadeiro, soberanamente estabelecido no lugar mais alto do panteão tradicional.

Por outro lado, é unanimemente reconhecido que a figura de Satanás como membro de uma corte celestial não está atestada nos textos bíblicos, antes pertence à era persa. Vemos isto, de facto, no prólogo do Livro de Job, onde Yhwh aparece no céu rodeado dos seus ministros, entre os quais há um «satanás», um «adversário»[51], o que faz recordar os agentes secretos dos reis persas. No prólogo do livro de Jó, a figura de Satanás foi introduzida para que não tenhamos que acusar Yhwh de ter derramado sobre Jó, sem motivo aparente, todo o tipo de infortúnios[52].

A mesma tendência para autonomizar o mal pode ser percebida na reescrita que é feita, nos livros das Crónicas, de uma história mais antiga apresentada nos livros de Samuel[53]. Retrata um censo realizado por Davi que provoca punição divina, o que leva à descoberta, por parte de Davi, do local do futuro templo[54]. O relato mais antigo de 2 Samuel 24, começa assim: «A cólera de Yhwh voltou a inflamar-se de novo contra Israel e excitou David contra eles». É o próprio YHWH, então, que provoca uma ação pela qual milhares de homens terão de morrer, já que Davi será punido com uma praga. Em 1 Crónicas 21, a mesma história começa da seguinte forma: «Salém voltou-se contra Israel e instou Davi a fazer o recenseamento de Israel». É difícil dizer se Satanás é entendido aqui como o oponente negativo de Yhwh ou, melhor, como uma espécie de hipóstase da ira divina. A insistência em Satanás como protagonista do mal leva, no entanto, a um dualismo, onde o mal aparece virtualmente tão poderoso quanto o Deus criador do bem. E podemos perguntar, de fato, se o seu surgimento é influenciado pelo dualismo persa que se observa no confronto entre Ahura Mazda e Angra Mainyu (Ariman). Nos textos da Bíblia hebraica, esse dualismo não se desenvolve; por outro lado, aparece cada vez mais em certas correntes do judaísmo dos períodos helenístico e romano[55], e não é impossível que nessas correntes apocalípticas uma forte influência iraniana possa ser detectada[56].

Também é possível detectar outras influências persas no judaísmo à medida que se desenvolveu a partir dos séculos VI ou V a.e.c. É o caso, por exemplo, de um texto como o do livro de Malaquias, que apresenta Yhwh à imagem do grande rei persa: «Pois de leste a oeste é o meu nome grande entre as nações. Em toda parte é oferecida ao meu nome uma oferta de incenso, bem como uma oferta pura, pois grande é o meu nome entre as nações, diz Yhwh dos exércitos» (Malaquias, 1,11). Yhwh é o deus universal, a quem todos os povos apresentam oferendas. A substituição de sacrifícios de animais por sacrifícios de incenso também pode refletir uma influência persa, uma vez que o mazdeísmo prefere sacrifícios de vegetais a sacrifícios sangrentos[57].

Em suma, é muito provável que tenha havido influências persas na elaboração do monoteísmo yahvista no contexto do judaísmo nascente, embora nem sempre sejam tão fáceis de provar quanto alguns o afirmam.

 

9.RESISTÊNCIA AO MONOTEÍSMO

Na era helenística, o discurso monoteísta tornou-se cada vez mais a marca identificadora do judaísmo. Essa religião monoteísta intriga os intelectuais gregos e romanos e também seduz uma parte da aristocracia do Império Romano. No entanto, a ideia monoteísta não se impõe desde o início. O exemplo mais óbvio é encontrado na comunidade judaica de Elefantina, uma ilha localizada no Nilo, no sul do Egito, em frente a Syene (Assuão). Em documentos desta comunidade, junto com a veneração de Yhwh, aparece a veneração a uma deusa chamada Anat. Por exemplo, num juramento feito a respeito de um jumento propriedade de duas pessoas e vendido por uma delas, diz-se: "Juro que Menacre, filho de Salum … ele emprestou Meshullan, filho de Natã [ ... ] para o santuário e para 'Anat-Yahô"[58]. De acordo com Pierre Grelot, Anat, uma deusa conhecida em Ugarit como o amparo (“waller”) de Baal, seria idêntica à deusa 'Atti, que também aparece em alguns dos documentos de Elefantina e que P. Grelot identifica como a "Rainha do Céu".

Numa lista de ‘pagamentos de actos cultuais’ constata-se que existe uma tríade divina: «O dinheiro que chegou hoje às mãos de Yedonyah, filho de Gamaryah, no mês de Pamenotep[59]: um total de 31 kars[60] e 8 siclos; para Yahô 12 kars e 6 siclos; para 'Asim-Bet'el 7 kars; para 'Anat-Bet'el 12 kars»[61]. Ou seja, dentro da colónia judaica eram adorados Yahô (Yhwh) e Bet 'eI, provavelmente uma divindade dos arameus de Syene; esses dois deuses faziam parte de uma tríade divina na qual a deusa Anat aparece como a “waller” de Yahô e, aparentemente, 'Asim-Bet'el seria o filho.

Apesar dessa veneração pouco ortodoxa de Yhwh, os líderes dessa colónia mantiveram contatos epistolares com as autoridades de Jerusalém e da Samaria, que de alguma forma parecem aceitar essa comunidade, provavelmente por ser uma comunidade economicamente abastada. Em 407 a.e.c, após a destruição do templo judaico de Elefantina pelo clero egípcio com a colaboração do sátrapa persa, os responsáveis escreveram ao governador persa da província de Yehud (Judéia) pedindo permissão para reconstruir o seu santuário[62]. Não é certo que o templo tenha sido reconstruído, uma vez que a documentação sobre esta comunidade pára por volta de 399 aC[63]. No entanto, isso mostra que até ao final do século V ainda era possível praticar um culto sacrificial fora de Jerusalém e venerar Yhwh na companhia de outras divindades.

Ou seja, o politeísmo não desaparece de imediato e facilmente. Como recorda Pierre Grelot, «o monoteísmo é difícil de ser concebido»[64]. Por outro lado, a própria expressão “monoteísmo” é um conceito moderno. A Bíblia hebraica não conhece o termo «monoteísmo» nem o seu oposto «politeísmo». Este último parece surgir pela primeira vez no século I da nossa era comum em Fílon de Alexandria, o qual opõe a mensagem bíblica à “doxa polutheia” dos gregos[65]. Quanto à expressão ‘monoteísmo’, parece tratar-se de um neologismo do século XVII. Os deístas falavam de «monoteísmo» para designar a religião universal da humanidade. Thomas More e outros aplicaram esta expressão ao cristianismo para o distinguir de outras crenças da Antiguidade e para o defender da crítica judaica segundo a qual o cristianismo não respeitava o mandamento da exclusividade de Deus[66]. Enquanto os “deístas” utilizam o conceito num sentido inclusivo, os campeões das “Religiões Reveladas” atribuem-lhe a ‘função de excluir’ (a fé monoteísta permite distinguir as religiões bíblicas das outras).

Depois do nascimento dessa expressão constata-se, então, uma dupla compreensão da ‘coisa monoteísta’: a ‘exclusiva’ e a ‘inclusiva’. Estas duas tendências também se encontram no discurso sobre Yhwh. Como já vimos atrás, a escola deuteronomista desenvolve um discurso segregacionista, ao passo que a escola sacerdotal preconiza um tipo de monoteísmo inclusivo.

 

10.UM MONOTEÍSMO ANTERIOR À BÍBLIA?

Podemos falar de monoteísmo antes da Bíblia? As religiões mesopotâmicas produziram grandes épicos que influenciaram muito os autores bíblicos, o que mostra que as fronteiras entre monoteísmo e politeísmo são permeáveis: na Epopeia de Gilgamesh, os relatos da criação e do dilúvio serviram de modelo para os autores bíblicos, que pegaram nesses grandes temas e os reinterpretaram numa perspectiva monoteísta.

Para citar apenas um exemplo, nos relatos mesopotâmicos do dilúvio, que nos chegam desde os tempos sumérios (terceiro milénio aC), os papéis são divididos: os deuses "maus" decidem exterminar a humanidade, enquanto um deus "bom", amigo dos homens, avisa o seu eleito da catástrofe que está para vir e, assim, permite que a humanidade sobreviva. No livro do Génesis, Yhwh, o deus de Israel, e desde então o Deus único, assume os dois papéis: decide aniquilar a humanidade, salvando Noé e a sua família. Deste modo, o Deus único integra os lados obscuros e incompreensíveis da vida. Contudo, tal experiência não é estranha aos politeísmos assírios e babilónios. De fato, há vários textos em que um indivíduo se queixa de ter sido abandonado pelo seu deus tutelar ou de ser perseguido por ele, antecipando e prefigurando o livro de Jó[67].

Embora a cultura mesopotâmica seja marcada por um politeísmo muito elaborado, notamos, no entanto, certas tendências para um "henoteísmo", um apego mais especial a um único deus, sem negar a existência de outras divindades. Nabucodonosor I (1125-1104 a.e.c.) deseja fazer do deus Marduk, a princípio o deus tutelar da cidade da Babilónia, o deus central do panteão babilónico. Quanto a Nabonido (556-539), ele quer fazer do deus da lua, Sin, o principal deus do Império Babilónico. Este último episódio não deixa de lembrar a reforma cultual empreendida pelo faraó Akhenaton (Amenhotep IV, 1353-1337), que é frequentemente apresentado como o primeiro monoteísta da humanidade. No sexto ano de seu reinado, o faraó deixa Tebas e funda uma nova capital, Akhenaton (Tel EI-Amarna), consagrada exclusivamente à veneração de Aton, o disco solar. O rei põe em marcha um grande empreendimento iconoclasta que visa, antes de tudo, apagar qualquer vestígio de Amon, deus de Tebas e principal divindade do panteão egípcio até então, mas também o vestígio dos outros deuses. O hino a Aton[68] mostra uma espécie de monoteísmo cósmico, que prefigura o deísmo de alguns representantes do Iluminismo: Aton-a-luz é o único Deus, que "cria milhões de formas (os raios do sol), permanecendo em sua unidade". A nova religião continua a ser poderosamente marcada pela ideologia real: Akhenaton é filho de Aton e o único que conhece o Deus. Outros textos e representações dão mesmo a impressão de que o casal real, conjuntamente com Aton, formou uma “trindade divina”, semelhante à que existia nos panteões tradicionais.

Com frequência, houve quem tentasse fazer da revolução de Akhenaton, que logo foi apagada pelos seus sucessores, a origem do monoteísmo bíblico, fazendo de Moisés um discípulo do faraó iconoclasta ou identificando os dois personagens. Acontece que o monoteísmo bíblico manifesta-se de maneiras muito distintas. Por um lado, nasceu mais ou menos oito séculos depois, sem nenhum fio cronológico a ligá-lo ao anterior. Por outro lado, o monoteísmo Yahvista não está enraizado na ideologia real, mas trata-se de uma reação ao desaparecimento da realeza e ao colapso da religião nacional tradicional. Não há, portanto, relação de parentesco entre os dois monoteísmos. De acordo com o egiptólogo Jan Assmann, não há ligação causal entre a revolução monoteísta de Akhenaton e o monoteísmo Yahvista[69].

No entanto, existem "vestígios de memória" do monoteísmo de Akhenaton, traços que podem ter influenciado os autores bíblicos quando escreveram a história fundadora do êxodo do Egito e a revelação no Sinai. Podemos pensar que a associação das figuras de Moisés e Akhenaton pode ser rastreada até Manetho, um sacerdote egípcio helenizado que escreveu no século III aC. Em sua história do Egito, Manetho evoca um sacerdote chamado Osarsip, que na época de Akhenaton se teria tornado o chefe de uma comunidade de leprosos forçados a trabalhar e teria dado a essa comunidade leis contrárias aos costumes do Egito, proibindo acima de tudo o culto aos deuses. Manetho especifica no final de seu relato que esse líder dos impuros "mudou seu nome e tomou o de Moisés"[70] (70). Assim, esse Osarsip pode ser entendido como uma caricatura de Akhenaton, o que mostra que esse "trauma akhenatoniano" durou mais de um milénio. A visão de Manetho, que apresenta Moisés como um egípcio incompreendido pelo seu povo, abre caminho para uma concepção que conta com Sigmund Freud entre os seus adeptos mais conhecidos[71].

É claro que a Bíblia hebraica se apresenta a nós, em suas três partes, como um "documento monoteísta", mas os autores e editores bíblicos também preservaram traços politeístas, como no livro de Jó ou em numerosos salmos, onde Yhwh aparece cercado por sua corte celestial. Há, portanto, pelo menos parcialmente, uma integração da herança politeísta no discurso monoteísta. Por outro lado, tanto os autores do Novo Testamento quanto os do Alcorão terão que enfrentar o mesmo problema, ou seja, a gestão de uma pluralidade na confissão de um único Deus. O monoteísmo bíblico, portanto, não é uma doutrina, é plural e convida à reflexão sobre a difícil relação entre unicidade e diversidade.

 

11.O ADVENTO DA TORÁ E O ESTABELECIMENTO DO JUDAÍSMO COMO A "RELIGIÃO DO LIVRO"

A pequena província de Yehud dificilmente atraiu a atenção dos persas. As nossas informações sobre esta região vêm principalmente de relatos bíblicos, que refletem a ideologia da elite judaica durante o período persa[72]. De acordo com a introdução dos livros de Crónicas e Esdras, logo após sua vitória sobre a Babilónia em 539 a.e.c., o rei persa Ciro emitiu um decreto autorizando os exilados a retornar à Judeia e incentivando-os a reconstruir o templo em Jerusalém. Esta é, sem dúvida, uma construção ideológica[73], que visa mostrar que os persas se importavam com a comunidade judaica exilada. No entanto, essa construção é baseada no facto comprovado de que os primeiros reis persas alegaram ter restaurado os cultos locais e reinstalado os exilados nas suas terras. Embora essas declarações correspondam à ideologia real, parece claro que a política religiosa dos persas era diferente da dos seus antecessores. Podemos até especular sobre uma espécie de sincretismo persa, que permitiu aos persas identificar as divindades locais como manifestações de Ahura Mazda.

Durante o período babilónico, a sede provincial do antigo reino de Judá, que estava integrado no Império Babilónico, ficava em Mispá; não sabemos quando ou por quê Jerusalém se tornou a capital da província (“medina”) de Yehud[74]. É bastante claro que a reconstrução do templo e outras obras de construção em Jerusalém sob Neemias[75] atestam a sua crescente importância durante o período persa. Um dos primeiros governadores de Yehud ("pehah") parece ter sido Zorobabel, um deportado de ascendência real davídica nomeado pelos persas, que sem dúvida pensou que o seu pedigree real convenceria a população nativa a colaborar com ele. É possível que sua chegada a Jerusalém tenha provocado esperanças e tentativas de restauração da dinastia davídica[76], mas não há vestígios de qualquer revolta anti-persa, como às vezes é alegado[77]. O súbito desaparecimento de Zorobabel na Bíblia sugere, no entanto, que os persas o removeram do cargo para evitar expectativas messiânicas. Alguns dos seguintes governadores são conhecidos por relatos epigráficos, mas não sabemos se eram todos judeus ou se também havia governadores persas[78]. O poder real em relação aos assuntos domésticos parece ter pertencido às elites sacerdotais e leigas reunidas em torno do templo de Jerusalém.

Não possuímos informações precisas sobre as fronteiras nem sobre a população de Yehud durante a época persa.

O número de 42 000 exilados que regressaram da Babilónia a Judá, segundo Esdras 2 e Neemias 9, é claramente pouco realista. Durante o período persa havia muito menos habitantes em Yehud[79]. Actualmente existe um intenso debate acerca da população de Jerusalém na época persa. Algumas estimativas minimalistas chegam a 200-300 pessoas, enquanto outras optam por uma população de 1000 habitantes[80]. É possível que Jerusalém tenha sido principalmente o local do Templo, e Ramat Rahel, um lugar importante já nos tempos assírios e babilónicos, o da administração persa.

Tal como já assinalámos, os membros da “golah” babilónica [diáspora judaica na Babilónia] não tinham pressa em regressar a Jerusalém. Os arquivos babilónios da família Murashu referem um grande número de nomes judaicos e um possível testemunho epigráfico de uma «cidade dos judeus» («Al-Yâhûdu») perto de Nipur[81] sublinha igualmente a importância da diáspora judeo-babilónia durante o período persa.  Os judeus que voltaram da Babilónia, eventualmente por pressão e incitamento dos persas, mantiveram fortes laços com ela. É evidente que o poder económico e ideológico estava nas mãos desta ‘golah’ que tinha regressado ao país e que era ela quem controlava a cidade restaurada de Jerusalém.

No entanto, não devemos esquecer a província da Samaria, mesmo que os escritos bíblicos a mencionem pouco e, sobretudo, de forma negativa. Escavações arqueológicas tornaram muito plausível que houvesse um templo yahvista no monte Garizim já no século V a.e.c.[82], o que significa que na época da promulgação do Pentateuco havia na verdade dois santuários dedicados a Yhwh: em Jerusalém e em Garizim. Consequentemente, os samaritanos devem ter desempenhado um papel muito mais importante durante a promulgação do Pentateuco do que os escritos bíblicos teriam admitido. Pesquisas futuras certamente especificarão o seu envolvimento a esse respeito. É claro, no entanto, que o Pentateuco, embora mantenha a ideia de um único santuário (no capítulo 12 do livro de Deuteronómio) nunca menciona o nome de Jerusalém. O Génesis alude a isso, especialmente no capítulo 14, quando Abraão encontra o misterioso rei e sacerdote de Salém, porém, no final de Deuteronómio, o Monte Garizim aparece como o local do sacrifício[83]. Assim, o Pentateuco, que foi aceite por judeus e samaritanos como o documento fundador, permite dois locais diferentes de um santuário. Este ponto pressupõe evidentemente um compromisso, não apenas entre diferentes correntes ideológicas do judaísmo, mas também entre judeus e samaritanos.

Foi provavelmente entre 400 e 300 a.e.c. que os escritos sacerdotais, o livro de Deuteronómio e outras tradições, como a história de José (Génesis 37-50), foram reunidos para formar o Pentateuco - a TORAH - que a princípio excluía os pergaminhos proféticos e a história da conquista até ao exílio babilónico (ou seja, os livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis). Esta exclusão reflecte duas situações: (1) a desconfiança da elite religiosa e secular em relação ao profetismo, sobretudo porque alguns textos proféticos anunciavam a restauração da dinastia davídica - o que não agradava nem aos oficiais do Templo nem às autoridades persas - e (2) a importância em envolver os samaritanos, para quem os livros de Samuel e Reis - que afirmavam que o verdadeiro santuário de Yhwh estava em Jerusalém - eram inaceitáveis.

O Pentateuco termina, no capítulo 34 do livro de Deuteronómio, com a morte de Moisés às portas da Terra Prometida [no cimo do Monte Nebo]. Moisés torna-se, assim, um símbolo para os judeus da diáspora, sinalizando, com a sua morte naquele sítio, que pouco importa permanecer numa terra estrangeira desde que se mostrem fiéis aos mandamentos divinos transmitidos por Moisés. Além disso, o judaísmo nascente tem outra peculiaridade: no Próximo Oriente são os reis que recebem das suas divindades tutelares as leis que devem ensinar aos seus povos; isso é muito claro na estela que contém o código de Hamurabi, onde o governante babilónico é desenhado na frente do deus Shamash, o qual passa para as mãos do governante as suas leis. Agora, na Bíblia hebraica, nenhum rei recebe uma lei; esse papel foi transferido para Moisés. É outra maneira de definir o judaísmo como uma religião que não precisa de legitimação real ou estatal. O Pentateuco substitui as instituições políticas, mas também a terra, e assim torna-se para empregar uma famosa expressão do poeta Heinrich Heine uma “pátria portátil”, o que permite ao judaísmo venerar Yhwh mantendo as leis encontradas na Torá e esta ser lida em qualquer lugar onde haja uma sinagoga.

O livro de Esdras atribui a promulgação do Pentateuco ao escriba e sacerdote Esdras, que se apresentara munido de uma carta de acreditação do rei persa para facilitar a aceitação da "lei do deus do céu" e da lei do rei. A partir desses textos e de outros documentos, Peter Frei elaborou a hipótese de que teria havido uma autorização imperial segundo a qual a própria administração persa teria ordenado que as diferentes populações do Império publicassem as suas tradições religiosas e depois as submetessem à aprovação do poder aqueménida[84]. Esta teoria é muito frágil[85] pois todos os exemplos que Peter Frei propõe não podem ser diretamente relacionados com a Torá, pois são documentos curtos que muitas vezes dizem respeito apenas aos detalhes de um culto local. A edição da Torah é antes de tudo uma realidade que apenas diz respeito a judeus e samaritanos ainda que também com uma forte implicação da “golah” que provavelmente se reconhecia na figura de Esdras, ao mesmo tempo que se legitimava a si mesma encenando uma benevolência persa em relação à promulgação do Pentateuco.

Com a Torá, o judaísmo passa a ser definitivamente uma religião móvel para a diáspora. Yhwh deixa de ter necessidade de templo, mas mantém uma relação específica com o seu povo, que vive conforme as prescrições da Torá.

 

12.YHWH, DEUS ÚNICO, INVISÍVEL, TRANSCENDENTE E UNIVERSAL

Defendemos até aqui a tese de que o primeiro templo de Jerusalém tinha uma estátua de Yhwh que, ao que parece, nunca foi posta em causa durante a Reforma de Josias. O mandamento primitivo, mais tarde integrado no Decálogo, "Não terás outros deuses diante de mim", apontava, a princípio, para a presença de estátuas de outras divindades diante da estátua de Yhwh. Quando se reconstruiu o Templo, por alturas do começo da Era Persa, com certeza que terá havido discussões acerca da edificação de uma (nova) estátua de Yhwh. Quando o autor denominado «Deuteroisaías» anuncia o regresso de Yhwh da Babilónia à Terra Prometida, deparamos com esta afirmação: «Ouve: as tuas sentinelas gritam, cantam em coro, porque vêem olhos nos olhos o regresso de Yhwh a Sião» (Isaías 52,8). Caso nos puséssemos a imaginar a chegada de uma estátua de Yhwh a Jerusalém, esta descrição seria perfeitamente compreensível. É por isso que o autor do capítulo 4 do Deuteronómio insiste no facto de o povo não ter visto nenhuma «forma», nenhuma representação durante a revelação de Yhwh a Israel: «15Tomai muito cuidado convosco, pois não vistes imagem (“temunah”) alguma no dia em que Yhwh vos falou no Horeb do meio do fogo. 16Portanto, não vos deixeis corromper, fabricando para vós imagem esculpida (“pesel”) de qualquer representação (“temunah samel tabnit”) […]». Esta passagem pode, de facto, ser lida como um texto programático contra a construção de uma estátua de Yhwh na época persa[86].

O aniconismo judeu passou a ser um sinal identitário, o qual, num contexto helenístico e romano, intrigava deveras. Quando Pompeu entra no Templo de Jerusalém, por volta do ano 63 a.e.c., descobre com estupefação que o templo está vazio[87], realidade inconcebível[88] para ele. Outro aspecto que sublinha a transcendência de Yhwh é a decisão que o judaísmo tomou, por volta do século IV a.e.c., em deixar de pronunciar o nome de Yhwh e em substituí-lo, tal como vimos no primeiro capítulo deste livro, por «o Senhor» ou «o Nome». Esta decisão, que precede a tradução do Pentateuco para a língua grega, de algum modo também é explicada pelo novo credo monoteísta: se o “nome próprio” costuma servir para distinguir uma pessoa ou uma divindade dos, e das, demais, o deus único não necessita de nome próprio; caso tivesse um nome próprio, isso equivalia a pactuar com o passado, com o velho politeísmo em que o deus Yhwh seria um entre outros.

A tradução do Pentateuco para o grego fez definitivamente de Yhwh um deus universal. Segundo a Carta de Aristeias, a tradução grega teria sido feita em Alexandria por volta do ano 270 a.e.c., no tempo de Ptolomeu II, e por setenta sábios (razão porque o Pentateuco adquiriu o nome da versão “Septuaginta”, sendo esse nome conferido também a todas as versões em língua grega da Bíblia hebraica completa); esses setenta sábios trabalharam isoladamente, ou seja, em total isolamento entre si, tendo, apesar dessa circunstância particular, chegado, no fim, ao mesmo texto. Ainda que este relato seja fictício hoje em dia sabemos que os diferentes livros do Pentateuco não foram traduzidos de uma só vez nem pelos mesmos tradutores – é bastante plausível que esta tradução tenha começado no século III a.e.c. Com esta tradução, Yhwh, ou melhor, “kúrios” ou “theós”, dá-se a conhecer ao mundo grego e passa, definitivamente, a ser o deus universal. O seu culto estende-se a toda a bacia do mediterrâneo (fruto da disseminação e fixação dos judeus, bem como da difusão de sinagogas), despertando intriga e, ao mesmo tempo, despertando a curiosidade de numerosos não-judeus que passam a sentir-se atraídos. Eis como Yhwh se converte num deus que supera o marco semítico, ao mesmo tempo, que o judaísmo, até hoje, confessa o seu particular vínculo a este deus.

 

Thomas Römer, La invención de Dios, Sígueme 2022, cap. 12 «Del Dios “uno” ao Dios “único”», pp. 241-276.

 

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[1] Tal como o faraó fez com Joaquim, o rei babilónio muda-lhe o nome, procedimento que simboliza a manifestação do seu poder sobre ele.

[2] O. Lipschits, «Demographic changes in Judah between the seventh and the fifth centuries B.C.E.», in O. Lipschits – J. Blenkinshopp (dirs.), “Judah and the Judeans in the Neo-Babylonian Period”, Winona Lake 2003, 323-376.

[3] Por exemplo, 2 Reis 25,21: «SAQUE DA CIDADE DE JERUSALÉM «[1]No nono ano do seu reinado, no dia dez do décimo mês, Nabucodonosor marchou com todo o seu exército contra Jerusalém. Acampou diante da cidade e levantou trincheiras em redor dela. (…) [10]E as tropas que acompanhavam o chefe da guarda, destruíram o muro que cercava Jerusalém. [11]Nebuzaradan, chefe da guarda, levou cativos para Babilónia, os que restavam da população da cidade, os que já se tinham rendido ao rei da Babilónia e o resto da população. [12]O chefe da guarda só deixou ali alguns pobres para cultivarem as vinhas e os campos. (…) [20]Nebuzaradan, chefe da guarda, prendeu-os [vários sacerdotes, Sofonias, três porteiros e um eunuco conselheiro do rei] e levou-os ao rei da Babilónia, em Ribla. [21]Este matou-os em Ribla, na região de Hamat. Assim, Judá foi levado cativo para longe da sua terraQuanto ao mito do “país vazio”, cf. H. M. Barstad, «The Myth of the Empty Land: A Study in the History and Archaeology of Judah during the “Exilic” Period», Oslo 1996.

[4] D. V. Edelman, «Die Saulide-Davidic rivalry resurface in early Persian Yehud?», in J. A. Dearman – M. P. Graham (dirs.), «Teh Land that I Will Show You. Essays on the History and Archaeology of the Ancient Near East in Honour of J. Maxwell Miller», Sheffield 2001, 69-91.

[5] Sobretudo, no que diz respeito aos da primeira deportação, no ano de 597 a.e.c.

[6] Flávio Josefo, «Antiguidades Judaicas» XV, 1, § 2.

[7] Esta coleção provém do «mercado cinzento», ou seja, de comerciantes de antiguidades.

[8] F. Joannès – A. Lemaire, "Three cuneiform tablets of west-semitic onomastics (col. Sh. Moussaïeff) (Pls. I-II)": Transeuphratene 17 (1999) 17-27 e 33.

[9] Expressão usada pelos exilados (na Babilónia) que se estabeleceram no país para onde foram deportados.

[10] Segundo as indicações que o livro de Jeremias proporciona, as populações pobres teriam, inclusivamente, beneficiado de uma certa redistribuição de terras que pertenciam aos exilados.

[11] O texto de 2 Reis 24,14.16 não menciona explicitamente que entre os deportados também estivessem sacerdotes. Segundo 2 Reis 25,18-20, os sacerdotes mais importantes tinham sido mortos aquando da destruição de Jerusalém. É possível que existissem alguns membros da classe sacerdotal que tenham ficado para trás em Judá e que asseguraram algum tipo de culto sacrificial, como sugere Jeremias 42,5: «Eles disseram a Jeremias: «Que o SENHOR seja testemunha fiel e verdadeira contra nós, se não fizermos tudo o que o SENHOR, teu Deus, te mandar dizer-nos!»

[12] A. Steil, «Krisensemantik: Wissenssoziologische Untersuchungen zu einem Topos moderner Zeiterfahrung», Opladen 1993.

[13] Por outro lado, essa delimitação cronológica é enganosa, pois, embora a queda do Império neobabilónico tenha significado que as populações de Judá exiladas pelos babilónios puderam retornar à sua terra, muitos dos exilados permaneceram na Babilónia e no Egipto, dois lugares que se tornariam centros intelectuais do judaísmo.

[14] Para mais detalhes, cf. T. Römer, «La Première Histoire d’lsrael. L'École deuteronomiste à l’œuvre», Genève 2007.

[15] O hebraico «berît» é geralmente traduzido como “aliança”. Na verdade, abrange o mesmo campo semântico que o assírio «adê», “tratado” ou “juramento de fidelidade”.

[16] Cf. Introdução desse livro, N.1

[17] Esta célebre expressão («wie es eigentlich gewesen») talvez ficasse melhor traduzida por «como basicamente aconteceu»; cf. R. J. Evans, in «Defence for History», London 1997, 17.

[18] Tal como o demostrou Rolf Rendtorff, «Die Erwahlung Israels als Thema der deuteronomischen Theologie», em J. Jeremias - L. Perlitt (dirs.), «Die Botschaft und die Boten. Festschrift Hans Walter Wolff zum 70. Geburtstag», Neukirchen-Vluyn 1981, 75-86.

[19] Dt 10, 16 e 30, 6 enfatizam o motivo da "circuncisão do coração"; isso poderia levar a uma controvérsia contra a tentativa sacerdotal de transformar o ritual da circuncisão em um sinal distintivo do judaísmo nascente.

[20] O. H. Steck, «Gottesknecht und Zion. Gesammelte Aufsätze zu Deuterojesaja», Tübingen 1992.

[21] Para uma versão inglesa, cf. www.britishmuseum.org/collection/object/W_1880-0617-1941

 ou então www.livius.org/sources/content/cyrus-cylinder/cyrus-cylinder-translation/

 (última consulta Th. Römer: 30.9.2022).

[22] Esta expressão «El», neste contexto, possui unicamente o sentido de um «deus» vulgar.

[23] J. D. Macchi, «”Ne ressassez plus les choses d’autrefois”. Ésaïe 43,16-21, un suprenant regard deutéro-ésaïen sur le passé»: Zeitschrift für die Alttestamentliche Wissenschaft 121 (2009) 225-241.

[24] A vitória de Yhwh sobre os babilónios é descrita com as mesmas imagens da derrota do Faraó e do seu exército no livro de Êxodo.

[25] Quanto a este assunto, cf. D. V. Edelman, «Proving Yahwh killed his wife (Zechariah 5,5-11)»: Biblical Interpretation (2003) 335-344.

[26] A expressão «ris’ãh» pode ser interpretada provavelmente como um jogo de palavras a partir do nome da deusa Asherá («’ãserãh»).

[27] A trasladação da deusa para a Babilónia reflecte, sem sombra de dúvidas, a ideia de que a deusa (Ishtar) era originária da Mesopotâmia, aonde, segundo Zacarias 5, é imperioso que regresse para sempre.

[28] O sentido exacto do verbo que aqui se utiliza é «parir envolto em dores», verbo que está redigido no particípio masculino.

[29] M.-T. Wacker, «Figuration des Weiblichen im Hosea-Buch», Friburg-Bâle-Vienne 1996.

[30] M. Nissinen, «Prophetie, Redaktion und Forstchreibung im Hoseabuch: Studien zum Werdegang eines Prophetenbuches im Lichte von Hos 4 und 11», Kevelaer-Neukirchen 1991, 268-276.

[31] J. Wellhausen, «Die Kleinen Propheten. Skizzen und Vorarbeiten 5», Berlin 1963 (31889), 134.

[32] Tal é facilmente dedutível já que o autor de Génesis 1 utiliza a expressão «Elohim», a qual tanto pode ser tomada no singular como no plural.

[33] Encontramos um fenómeno comparável no Egipto, onde a «ma’at», conceito que exprime a ordem justa do munto (“A Sabedoria”), se transforma numa jovem deusa adornada com uma pluma, símbolo da ma’at.

[34] Mais tarde, uma evolução semelhante é observada no judaísmo em relação à ideia de “shekinah”, que primeiro significa a presença divina entre os homens, mas que às vezes também assume a forma de uma hipóstase. 

[35] No marco narrativo que compreende os capítulos 12 e 42, os sofrimentos de Jó são consequência, são fruto de uma aposta entre Yhwh e o Adversário («satã»), que faz o papel de um agente provocador da Corte Celestial, ao qual voltaremos mais adiante.

[36] M. Leuenberger, “«Ich bin Jhwh und keiner sonst»: der exclusive Monotheismus des Kyros-Orakels Jes. 45,1-7”, Stuttgart 2010.

[37] Refere-se ao rei persa Ciro.

[38] Esta expressão que usualmente é traduzida por «paz» significa “ordem justa”, significa que tudo está no seu equilibrado lugar, num estado de perfeição; assim nada nem ninguém perturbará.

[39] Só o livro do Eclesiastes (Qohelet) irá no mesmo caminho e aconselhará os seus leitores: «No dia da felicidade, sê alegre; no dia da desgraça (ra’ah), reflecte, pois Deus fez uma a par da outra, a fim de que o homem não descubra o que depois lhe irá acontecer.» (Ecl 7,14)

[40] C. Nihan, «From Priestley Torah to Pentateuch: A Study in the Composition of the Book of Leviticus», Tübingen 2007, 340-378. [Edição Kindle]

[41] A teoria desta ideia encontra-se na versão sacerdotal da revelação de Moisés no livro do Êxodo cap. 6: «2Deus falou a Moisés, dizendo-lhe: «Eu sou o Yhwh. 3Apareci a Abraão, a Isaac e a Jacob como El Shaday [Deus supremo], mas pelo meu nome “Yhwh”, Eu não me dei a conhecer por eles.» Este texto remete para Génesis 17, que também é relato de tipo sacerdotal no qual Yhwh se revela a Abraão como «El Shaday». Os redactores sacerdotais, antes desta revelação a Abraão, utilizam a expressão «Elohim».

[42] A. de Pury, «Gottesname, Gottesbezeichnung und Gottesbegriftt. “Elohim als Indiz zur Entstehungsgeschichte des Pentateuch”», in J. C. Gertz – K. Schmid – M. Witte (Dirs.), “Abschied vom Yahwisten. Die Komposition des Hexateuch in der jüngsten Diskussion”, Berlin-New York 2002, 25-47.

[43] E. A. Knauf, «El Saddai der Gott Abrahams?»: Biblische Zeitschrift 29 (1985), 97-105.

[44] Esta proximidade é encenada também na narração sacerdotal da instituição da circuncisão em Gn 17, 1-14, apresentada como sinal da aliança entre Yhwh e Abraão. A circuncisão afeta não apenas Isaque, mas também Ismael, o que reflete que o autor sacerdotal estava ciente dessa prática nas tribos árabes. O fato de Ismael (v. Gn 17, 25) ser circuncidado aos treze anos e Isaque (Gn 21, 4) aos oito dias de nascimento indica a evolução, no judaísmo, de um rito de passagem ligado à puberdade para um ritual que marca a entrada do recém-nascido numa comunidade.

[45] Para uma primeira iniciação, cf. G. Widengren, «Les Religions de l’Iran», Paris 1968; M. A. Dandamaev – V. G. Lukonin, «The Culture and Social Institutions of Ancient Iran», Cambridge 1989; J. Wiesehöfer, «Das antike Persien. Von 550 v.Chr. bis 650 n.Chr., Düsseldorf-Zurich 2005 (1993).

[46] Quanta a estas inscrições, cf. P. Lecoq, «Les Inscriptions de la Perse achéménide», Paris, Gallimard 1997, 217.

[47] L. L. Grabbe, «Ezra-Nehemiah», London- New York 1998, 160.

[48] Neste sentido, cf. H. Niehr, «Religio-historical aspects of the “early post-Exilic” period», in B. Becking – M. C. A. Korpel (dirs.), “The Crisis of Israelite Religion. Transformation of Religious Tradition in Exilic and Post-Exilic Times”, Leyde-Boston-Köln 1999, 228-244, 243. Não há dúvidas que a historicidade da figura de Esdras levanta muitas questões e dúvidas; a de Neemias parece mais plausível.

[49] Para mais detalhes, cf. A. de Pury – T. Römer, «Terres d’exil et terres d’accueil. Quelques réflexions sur le judaïsme postexilique face à la Perse et à l’Égypte»: Transeuphratène 9 (1995) 25-34, 29-30.

[50] Tal como mostra o alto-relevo e as inscrições de Beistum, as quais descrevem as conquistas de Dario.

[51] Neste relato, «satanás» não é (ainda) um nome próprio: designa apenas uma função

[52] É por demais evidente que os versículos que representam o face-a-face entre Deus e Satanás foram adicionados após a história original, na qual Yhwh foi diretamente responsável pelos infortúnios de Jó. De facto, o primeiro capítulo de Jó pode ser lido sem as cenas da Corte Celestial, tanto mais que os pronomes-sufixos do versículo 13 (“os seus filhos e filhas”) não podem referir-se ao versículo precedente (“Satanás retirou-se da presença de Yhwh”); são apenas compreensíveis como continuação do versículo 5 ("assim fez Jó todas as vezes"). Além disso, o epílogo do capítulo 42 não contém alusão a uma aposta entre Deus e Satanás, mas passa a um acerto de contas entre Yhwh e os amigos de Jó. A inserção posterior de satanás na história de Jó pode, portanto, ser entendida como uma tentativa de colocar o mal fora de Deus e "personificá-lo".

[53] Os livros das Crónicas são mais recentes que os livros de Samuel e foram compostos no final da época persa ou no princípio da época helenística.

[54] C. Briffard, «2 Samuel 24. Un parcours royal: du pire au meilleur»: Études théologiques et religieuses 77» (2002) 95-104.

[55] Recordemos o dualismo defendido pela Comunidade de Qümran, a qual aguardava um combate escatológico que oporia os «filhos da luz» aos «filhos das trevas». Na época de Jesus existia, ao nível popular, uma demonologia muito mais complexa.

[57] J. Briend, «Malachie 1, 11 et I'universalisme», en R. Kuntzmann (dir.), “Ce Dieu qui vient. Mélanges offerts à Bernard Renaud”, Paris 1995, 191-204.

[58] Pierre Grelot, «Documents araméens d’Égipte», Paris 1972, 95, documento 10.

[59] Sétimo mês do calendário egípcio; corresponde ao Tishri babilónico.

[60] Moeda persa que corresponde a 10 siclos; o siclo era equivalente ao didracmo dos gregos.

[61] P. Grelot, «Documents araméens d’Égipte», 383, documento 89.

[62] Este papiro encontra-se em Berlin. Para uma consulta:

http://cojs.org/the_elephantine_temple-_bce/

[64] P. Grelot, «Le monothéisme est três difficile à pensar!»: Le Monde de la Bible 124 (2000) 50-51.

[65] Cf. G. Ahn, «”Monotheismus”-“Polytheismus”. Grenzen und Möglichkeiten einer Klassifikation von Gottesvorstellungen», in M. Dietrich – O. Loretz (dirs.), “Mesopotamia-Ugaritica-Biblica (Festschrift Kurt Bergerhof)”, Neukirchen-Vluyn 1993, 1-24, 5-6.

[66] Para mais detalhes e bibliografia, cf. Fritz Stolz, «Einführung in den biblischen Monotheismus», Darmstadt 1996, 4-22.

[67] Samuel Terrien, «Job: the Poet of Existence», Genève 22005, 60-62.

[68] Houve quem quisesse ver traços deste hino no Salmo 104, porém os paralelos são muito ténues.

[69] Jan Assmann, «Le traumatisme monothéiste»: Le Monde de la Bible 124 (2000) 29-34.

[70] Para os fragmentos de Manetho, cf. G. P. Verbtugge – J. M. Wickersham, «Berossos and Manetho Introduced and Translated. Native Traditions in Ancient Mesopotamia and Egypt», Ann Arbor 2000. Cf. também J. Assmann, «Exodus und Amarna. Der Mythos der “Aussätzigen” als verdängle Erinnerung der Aton-Religion», in E. Staehlin – B. Jaeger (dirs.), «Ägypten-Bilder. Akten des «Symposiums zur Ägypten-Rezeption», Augst bei Basel, vom 9.-11. September 1993, Fribourg-Göttingen 1997, 11-34; P. Borgeaud, «Aux origines de l’histoire des religions», Paris 2004, 97-102.

[71] Sobretudo em S. Freud, «El hombre Moisés y la religión monoteísta», Madrid 2015 (1939).

[72] Trata-se sobretudo dos livros de Esdras, Neemias, Ageu e Zacarias.

[73] J. Briend, «L’édit de Cyrus et sa valeur historique»: linha 11 da base-de-dados Transeuphratène 11 (1996), 33-34.

[74] É costume dizer que, no início do período persa, Yehud não era autónomo, mas fazia parte de uma província maior, cuja capital teria sido Samaria. Yehud não se teria separado da Samaria até Neemias. Essa ideia deve ser abandonada. Na verdade, há mais evidências a favor da existência de um Yehud como uma “província independente” desde o período neobabilónico.

[75] Segundo a apresentação bíblica e a opinião tradicional dos especialistas, o templo foi reconstruído durante os anos 520-515 a.e.c. No entanto, Diana V. Edelman defendeu que seria mais verosímil correlacionar a reconstrução do templo com as actividades de Neemias a partir do ano 445 a.e.c. Isso parece-me mais sensato, à luz das importantes mudanças que se operaram na província de Yehud sob o reinado aqueménida de Artaxerxes (465-424 a.e.c.). Cf. Diana Vikander Edelman, «The Origins of the “Second” Temple. Persian Imperial Policy and the Rebulding of Jerusalem», London 2005.

[76] Neste sentido, veja-se o capítulo 2 do livro de Ageu; veja-se também a importância de Zorobabel nas visões que estão no livro de Zacarias.

[77] F. Bianchi, «Le rôle de Zorobabel et de la dynastie davidique en Judée du VIe siècle au IIe siècle av. J.-C.»: Transeuphratène 7 (1994) 153-165.

[78] A. Lemaire, «Administration in the 4th century B.C.E. Judah in light of epigraphy and numismatics», in O. Lipsichits – G. N. Knoppers – R. Albertz (dirs.), «Judah and the Judeans in the Fourth Century B.C.E.», Winona Lake 2007, 53-74.

[79] É muito difícil oferecer uma indicação precisa quando ignoramos a extensão do território da Yehud persa. C. E. Carter, «The Emergence of Yehud in the Persian Period. A Social and Demographic Study», Sheffield 1999, 246-248, estima que a população que vivia neste Yehud seria de 20 000 a 30 000 pessoas.

[80] Cf. O. Lipschits, «Demographic changes in Judah between the seventh and the fifth centuries B.C.E.; Israel Finkelstein, «The territorial extent and demography of Yehud/Judea in Persian and early Hellenistic periods»: Revue biblique 117 (2010) 39-54.

[81] L. Pearce, «New evidence for Judeans in Babylonia», in O. Lipschitz – M. Oehming (dirs.), “Judah and the Judeans in the Persian Period”, Winona Lake 2005, 399-411.

[82] E. Stern – Y. Magen, «Archeological evidence for the first stage of the Samaritan temple on Mount Gerizim»: Israel Exploration Journal 52 (2002) 49-57.

[83] No Deuteronómio 27 o texto massorético afirma que o altar deve ser construído no topo do monte Ebal, ao passo que o Pentateuco samaritano fala de Monte Garizim. Na verdade, esta última versão é a versão original, que ademais é confirmada por um fragmento de Qümran. Cf. C. Nihan, «Garizim et Ébal dans le Pentateuque. Quelques remarques en marge de la publication d’un nouveau fragment du Deutéronome»: Semitica 54 (2011) 185-210.

[84] Peter Frei, «Zentralgewalt und Lokalautonomie im Achämenidenreich», in P. Frei – K. Koch, «Reichsidee und Reichorganisation im Perserreich», Fribourg-Göttingen 21996, 5-31.

[85] Jean Louis Ska, «Le Pentateuque et la politique imperial perse»: Foi & Vie 103, Cahiers bibliques 43 (2004) 17-30.

[86] M. Köckert, «Die Entstehung des Bilderverbots», in B. Groneberg – H. Spieckermann (dirs.), “Die Welt der Götterbilder”, Berlin 2007, 272-290.

[87] Tácito, «Historias V,1».

[88] Tal reacção fez com que se inventasse todo o tipo de discursos antijudaicos, como por exemplo, que no templo de Jerusalém existia um asno ou uma cabeça de burro venerado como deus pelos judeus. Cf. P. Bourgeaud, «Moïse, son âne et les Typhoniens. Esquisse pour une remise en perspective» [Moisés, o seu burro e os Tifonianos. Esboço de uma perspectiva], in “T. Römer (dir.), «La Construction de la figure de Moïse. The Construction of the Figure of Moses”, Paris 2007, 121-130.


FIM