«Obrigado a exilar-se, o povo judeu permaneceu fiel ao país de Israel durante todas as suas dispersões, sempre rezando para que voltasse, sempre com a esperança de ali restaurar a sua liberdade nacional. Motivados por esse apego histórico, os judeus esforçaram-se, ao longo de séculos, para voltar ao país dos seus ancestrais.»
Declaração de
independência do Estado de Israel, 1948
«Como resultado da
catástrofe histórica na qual Tito, imperador romano, destruiu a cidade de
Jerusalém e exilou Israel da sua terra, eu nasci numa dessas cidades do exílio.
Mas, o tempo todo e desde sempre, me vi como se tivesse nascido em Jerusalém.»
Shmuel Yosef Agnon,
durante a cerimónia de entrega do prémio Nobel, 1966
A INVENÇÃO DO EXÍLIO
Aqueles israelenses que,
porventura, nunca conheceram o preâmbulo histórico da sua “Carta de
Independência” já tiveram certamente nos seus bolsos, pelo menos uma vez, uma
nota de 50 shekels, sobre a qual estão gravadas as comoventes palavras
que Shmuel Agnon pronunciou por ocasião da cerimónia de entrega do Prémio
Nobel. O célebre escritor, assim como os redactores dessa declaração
pronunciada na criação do Estado e a maioria dos cidadãos de Israel, sabia que
a “nação judaica” havia sido exilada no momento da destruição do Segundo
Templo, em 70 d.C., e que desde então passara a vaguear pelo mundo, tendo no
coração uma única aspiração: “a esperança, velha de 2 000 anos, de se
tornar novamente um povo livre” na sua antiga pátria.
O desenraizamento e o exílio
estavam profundamente arraigados na tradição judaica ao longo de todas as suas
transformações. Mas, na verdade, o seu significado evoluiu ao longo da história
da religião, e os conteúdos laicos que foram insuflados na era da modernidade
não eram comparáveis aos dos períodos anteriores. Como o monoteísmo judaico
começou parcialmente a cristalizar-se nas elites culturais - que foram expulsas
à força no tempo da destruição da Judeia no século VII a.C. - os ecos das
percepções do exílio e da errância já repercutiam, de maneira metafórica ou
directa, em importantes trechos do Pentateuco, assim como no livro dos Profetas
e dos Hagiógrafos. Da expulsão do Jardim do Éden às tribulações de Abraão em
marcha para Canaã e da partida de Jacó para o Egipto até às profecias de
Zacarias, ou às de Daniel, o judaísmo foi
pensado à luz da errância, do desenraizamento e do retorno. No Pentateuco
já se encontra a frase: «O SENHOR vos dispersará entre todos os povos de uma
extremidade à outra da terra; ali servireis a deuses de madeira e de pedra, que
nem vós nem os vossos pais conheceram.» (Dt 28,64). A
destruição do Primeiro Templo foi associada à expulsão, e essa lembrança de natureza literário-teológica
reflectiu-se, depois, em toda a elaboração da sensibilidade judaico-religiosa
(Sobre o conceito de “Exílio” na tradição judaica, ver Eisen, Arnold M.,
«Exile», in Cohen, Arthur A. & Mendes-Flohr, Paul (orgs.), “Contemporary
Jewish Religious Thought: Original Essays on Critical Concepts, Movements, and
Beliefs», Nova York, Free Press, 1988, pp 219-225, bem como o livro de Eisen,
Arnold M., «Galut: Modern Jewish Reflexion on Homelessness and Homecoming»,
Bloomington: Indiana University Press, 1986).
No entanto, um exame mais
detalhado do acontecimento histórico que levou à “segunda expulsão” após o ano
70 d.C. e a ‘investigação das fontes’ do conceito de “exílio” e da sua
percepção no judaísmo tardio indicam que a
consciência nacional histórica resultava de uma reconstituição de fragmentos de
acontecimentos disparatados e de diversos fragmentos da tradição. Só assim é
que o “exílio” se pôde estabelecer como mito fundador capaz de sustentar a
armadura da identidade “étnica” dos judeus modernos. O meta-paradigma da
expulsão respondia à necessidade de elaborar uma memória de longa duração na
qual um povo-raça imaginado e exilado se situaria na continuidade directa do “povo da Bíblia” que o havia precedido. O “Mito do Desenraizamento e da Expulsão”,
mantido, como se verá mais adiante, no património espiritual cristão e, a
partir deste, novamente infiltrado na tradição judaica, transformou-se de
seguida n’«A Verdade Absoluta» gravada na história nacional.
Shlomo Sand, «A invenção do
povo judeu», Benvirá 2011, São Paulo BR, pp 233-235, ISBN 978-85-02-13477-5
EPÍLOGO E CONCLUSÃO
de «A invenção de
Deus», por Thomas Römer
A nossa investigação - sobre as origens de Yhwh, a sua adoção como o deus de
Israel, a sua ascensão como deus tutelar dos reinos de Israel e Judá, a sua
transformação em um deus ‘uno’ sob Josias, e depois em um deus ‘único’ após o
colapso da realeza davídica e a fragmentação geográfica do "povo de
Yhwh" - cobriu aproximadamente um milénio, ou seja, desde o final do
século XIII antes da era comum (a.e.c.) até à era helenística. Encerrámos o
nosso passeio referindo a tradução da Torá para o grego no século III, o que
marca a conquista do mundo ocidental por Yhwh, um deus que a partir desse momento
é chamado de "kúrios", "Senhor". Poderíamos ter
continuado a pesquisa, é claro, através dos séculos seguintes, mas o nosso
objetivo era acima de tudo descrever a invenção
do monoteísmo, sobre a qual o judaísmo, com suas diferentes correntes
e sensibilidades, e mais tarde o cristianismo e o islamismo, foram construídos.
Vamos delinear, a título de epílogo, a evolução histórica do judaísmo até aos
tempos romanos.
Por volta de 200 a.e.c., a Palestina
ficou sob o controle dos selêucidas, enquanto Roma começou a estender o seu
poder a todo o Mediterrâneo. Antíoco IV Epifânio, na realidade já vassalo de
Roma e apoiado por uma parte da aristocracia judaica, empreende a helenização
de Jerusalém. No ano 167 a.e.c. impôs a transformação de Jerusalém numa pólis
grega, e quis dedicar os templos de Yhwh em Jerusalém e Samaria a diferentes
manifestações de Zeus, sem dúvida identificadas com Yhwh. Alguns anos depois,
ele entrou no Templo de Jerusalém, aparentemente para levantar o dinheiro
necessário para pagar o seu tributo aos romanos. Os distúrbios, que tal atitude
causou, dão origem à literatura apocalíptica, da qual a Bíblia hebraica
preservou poucos vestígios. O livro de Daniel, que é o seu melhor exemplo,
reflete o período turbulento sob Antíoco IV; foi redigido no ano 164 a.e.c.,
pouco antes da morte deste último.
O “apocalipse” (um termo que
significa “revelação”) é um género literário que está enraizado no profetismo e
também na sabedoria do Próximo Oriente. Seu objetivo é instruir os destinatários,
servindo-se da pseudonímia[1],
sobre os eventos que se devem desenrolar antes do Fim dos Tempos. Esses eventos
são apresentados como uma vitória de Deus contra as forças do Mal. No livro de
Daniel, o Fim corresponde a um julgamento de toda a humanidade, após o qual os
justos, que não foram recompensados durante sua vida terrena, serão
ressuscitados. É o primeiro testemunho claro da ideia de que Deus trará os
mortos de volta à vida. No capítulo 7 do livro de Daniel, o deus de Israel
aparece como um “Ancião” sentado num trono sobre rodas[2]
e acompanhado por outra figura celestial, chamada “Filho
do Homem”, que recebe do Ancião a soberania sobre toda a terra. Esta
constelação divina lembra, de modo assombroso, o casal “El” e “Baal” em Ugarit, onde “El” também é descrito como um
homem velho que deixa o seu filho “Baal” administrar os assuntos do mundo. A
figura do “Filho do Homem” desempenhará então um papel importante nas
expectativas messiânicas, onde a expressão passa a designar o Messias, o Rei ideal, que virá. Na
literatura apocalíptica, Yhwh não está sozinho no céu. O livro de Daniel
menciona Miguel, comandante do exército de Yhwh, que é chamado de “príncipe de
primeira ordem”; está, portanto, entre os arcanjos. A especulação sobre um céu
povoado por todo o tipo de anjos é bem desenvolvida no primeiro livro de Henoch[3],
o qual não foi integrado no Canon, mas cujas primeiras partes são provavelmente
contemporâneas da época em que o livro de Daniel foi escrito, ou mesmo antes[4].
A parte denominada “Livro dos Vigilantes” (do Livro de Henoch) contém a lista
mais antiga dos sete arcanjos[5].
Tal como no livro de Daniel, o livro
de Henoch
também descreve um Julgamento (Juízo Final) no qual não intervém apenas Deus,
mas todo o tipo de ‘seres celestiais’. A ideia de uma luta final do bom deus e
seu exército contra as forças do mal e das trevas é um elemento constitutivo da
comunidade de Qümran; um desses escritos, o “Pergaminho da Guerra”, retrata o
combate dos «filhos da luz» contra os «filhos das trevas». O mesmo roteiro
reaparecerá no Novo Testamento, principalmente no Apocalipse de João, que
descreve o combate do exército celestial contra Satanás (em grego, “Diabo”) e
seu exército, um combate que levará a uma nova criação[6].
Essa visão dualista, segundo a qual Deus deve enfrentar as forças do mal nas
descrições da luta futura, termina, no entanto, com a vitória do exército
divino sobre o exército das trevas, uma concepção partilhada pelos autores do
livro de Daniel. Este último veio do mesmo ambiente que o dos Macabeus, os quais
empreenderam uma luta armada contra a helenização e conseguiram, em 162 a.e.c.,
tomar a cidade de Jerusalém e purificar o Templo, que segundo eles havia sido
manchado por Antíoco IV e o grupo helenístico. Ao nível
religioso, a luta dos Macabeus foi uma tentativa de retornar a um
judaísmo não helenizado, um empreendimento que logo se mostrou impossível. Assim,
a dinastia dos Asmoneus, que emergiu dos Macabeus, acabou por
adoptar a cultura e a ideologia helenística combatidas anteriormente pelos
Macabeus. Sob esta dinastia existiu um Estado judeu independente que, sob Alexandre Janeu (103-76), corresponde mais ou menos à extensão do território
que os relatos bíblicos atribuem a David ou a Salomão. A independência do
estado dos Asmoneus, no entanto, era relativa; o seu reino foi tão somente tolerado
pelos romanos, porque desempenhava o papel de um contrapoder aos selêucidas e isso interessava a Roma.
No ano 63 antes da era comum (a.e.c.),
essa tolerância finda: Pompeu toma Jerusalém, entra no Templo e descobre que o
templo está vazio. Os Asmoneus são substituídos pelos Herodianos, os quais são idumeus (ou
seja, são habitantes da região de Edom) convertidos ao judaísmo e helenizados,
a quem Roma apoiou. Herodes, o Grande,
ampliou o templo em Jerusalém entre os anos 27 e 20 a.e.c., mas os judeus detestavam-no por causa de sua origem e da sua
submissão a Roma. No limiar da era cristã, o judaísmo aparece,
segundo o historiador Flávio Josefo, dividido em quatro correntes ideológicas
que refletem quatro conceitos religiosos diferentes. Os Saduceus[7],
que constituem a aristocracia sacerdotal ligada ao templo de Jerusalém,
são, por um lado, bastante abertos às influências gregas, mas no que diz
respeito às práticas religiosas, eles defendem apenas a autoridade da Torá
(Mandamentos e imolações de vítimas), do Pentateuco; rejeitam, portanto, novas
doutrinas, como a ressurreição dos mortos, e defendem uma doutrina de
retribuição segundo a qual todo homem é recompensado ou punido por suas ações
durante sua vida terrena. Encontram-se, assim, em conflito com os fariseus[8],
corrente que nasceu em oposição à helenização do judaísmo. Ao
contrário dos saduceus, cuja religiosidade está centrada no Templo, os fariseus
concentram-se no estudo e em pôr em prática a Torá na vida quotidiana[9].
Os essénios[10],
a princípio aliados dos fariseus, estão na origem de fraternidades (comunidades), cujo exemplo mais conhecido
é Qümran; seguem Regras muito rigorosas, rejeitam a cultura sacrificial do
Templo de Jerusalém, têm um calendário religioso muito particular e esperam a
chegada de um, ou de vários, messias,
bem como o fim deste mundo.
Pensou-se que os essénios tivessem desaparecido após a destruição do Templo no
ano 70, mas é possível que ainda existissem alguns grupos durante os séculos II
e III[11].
Os zelotes[12]
eram um movimento de resistência armada contra os romanos. Segundo Flávio
Josefo, que os qualifica de «quarta seita», os zelotes estariam próximos dos
fariseus,
“à excepção de que, aqueles que o
professam, sustentam que somente Deus deve ser reconhecido como senhor e rei.
Eles têm um amor tão ardente à liberdade que os tipos mais extraordinários de
morte, as torturas mais atrozes que eles próprios sofram ou deixam infligir aos
que lhes são mais queridos, os deixam indiferentes, desde que não tenham de
conferir a nenhum homem o título de senhor e mestre.[13]”
Este grupo, que está na origem da
revolta contra os romanos, persegue um ideal teocrático e não reconhece nenhum
poder terreno ao governo divino, prefigurando assim outros movimentos radicais,
inclusivamente fanáticos, que podemos observar ao longo de toda a história das
três grandes religiões monoteístas. A revolta do ano 70 da era cristã saldou-se
com a destruição de Jerusalém. Ao contrário daquilo que aconteceu com a
destruição do primeiro templo no ano de 587 a.e.c., perdurou uma instituição, a
saber, as sinagogas, as quais passaram a ser definitivamente o lugar onde o
judaísmo encontra a sua identidade.
Uma última revolta nos anos de 132 a
135, a revolta de Bar Kochba que se apresenta como o messias,
termina com uma nova derrota. Os judeus, expulsos de Jerusalém, tornam-se então
definitivamente uma minoria na Judeia e passam a instalar-se por toda a bacia
mediterrânea. As tendências saduceias, essénias e zelotas desaparecem ou passam
a ser minoritárias. Por conseguinte, o judaísmo
farisaico passa a impor-se e,
mais tarde, converter-se-á no judaísmo
«rabínico» («rabi» significa Mestre, aquele que ensina). Para
definir a identidade deste judaísmo, mas também como reacção ao cristianismo
nascente, os fariseus decidem, durante o século II, definir com rigor quais
eram os livros que deveriam ser considerados sagrados para o judaísmo. É nessa
época que nasce a Bíblia tripartida, ou seja, uma Bíblia composta por três
livros: o Pentateuco (Thora), os Profetas (Nebiim) e os Escritos (Ketubim). Recordemos, contudo, que, para o judaísmo, ao contrário do
que ocorre no cristianismo, estas três partes não têm a mesma autoridade. O
Pentateuco constitui o centro, o qual é de “leitura integral” obrigatória
durante o culto sinagogal, enquanto que os Profetas e os Escritos são
considerados «complementos» da Thora. Ou seja, para o judaísmo, Deus revela-se
sobretudo através dos 613 Mandamentos da Thora que foram transmitidos ao povo por Moisés. Ou
seja, é sobretudo a prática e a busca do sentido dos mandamentos divinos que
caracteriza o judaísmo e o seu deus, cujo nome nunca se pronuncia e cujo
encontro com Israel é comemorado lendo o Pentateuco. É precisamente o
Pentateuco aquele que conservou os traços da memória de um deus que,
originariamente, era bem diferente do deus único e transcendente que as
religiões monoteístas hoje confessam.
•
O objectivo da nossa
investigação consistia em rastrear o caminho do deus de Yhwh, o qual, de um
deus guerreiro do deserto, se converteu no deus único. Em jeito de conclusão,
recordemos os resultados mais importantes da nossa análise, sublinhando,
entretanto, e ao mesmo tempo, o seu carácter hipotético. O simples facto de o
deus bíblico ter começado por ter um nome próprio – Yahû, Yahô ou Yahvé – quer dizer que no
começo não era considerado como um ‘deus único’, mas como mais um deus entre os deuses venerados pelos povos do
Próximo Oriente antigo.
Por outro lado, os
relatos do livro do Êxodo sugerem que este deus nem sempre foi o deus de um
grupo chamado Israel, grupo cujo nome contém o nome divino «El» e não o nome
«Yhwh». Segundo os dois relatos de vocação de Moisés, Moisés não conhecia o nome do deus que se queria
converter no deus de Israel. Com efeito, existem alguns textos
bíblicos que evocam uma certa proveniência de Yhwh a partir do Sul e que também
sugerem que Moisés é natural de «Seir» ou do «monte Paran». Dois
textos até parecem identificar Yhwh com o Sinai, sem que possamos dizer exactamente
onde essa montanha de Yhwh estava localizada para os autores desses textos[14].
A identificação com uma montanha talvez também se reflicta no facto de que os textos
egípcios do último terço do segundo milénio a.e.c. mencionarem os nómadas Shasu, alguns dos quais são
caracterizados por um termo egípcio que provavelmente corresponde ao nome de
Yhwh que talvez designe uma montanha. Teríamos aqui, então, o primeiro
testemunho do nome do deus que se tornou o deus de Israel.
A origem «estrangeira» de
Yhwh reflecte-se também no facto de que, segundo o capítulo 3 do Livro do
Êxodo, Yhwh se revelar a Moisés quando este se encontrava na terra de Madiã, ao
serviço do sogro, que era um sacerdote. Daí a ideia de Yhwh ter sido adorado
primeiro na terra de Madiã, e provavelmente também na terra de Edom. Por outro
lado, a nossa investigação encontrou uma série de indicações de que Yhwh foi primeiro um deus tutelar dos edomitas, antes de
se tornar o deus de Israel. Além
disso, o culto de um “Yhwh do Sul” continuou, pelo menos até o século VIII
a.e.c., tal como foi confirmado pelo Carbono 14 em Kuntillet Ajrud, que
menciona um Yhwh de Teman, ou
melhor, do sul[15]. A entrada tardia de Yhwh no território de Israel
também é atestada pelo facto de quase nenhum nome Yahvista surgir nos nomes das
cidades localizadas em Canaã, as quais, por outro lado, evocam muitas vezes
outras divindades: Carmel («vinha de El»), Baal Hazor («povo de Baal»), Anatot
(nome vinculado à deusa Anat), Jericó (lembra o nome do deus lunar) e outras
mais.
A chegada de Yhwh ao
território de Israel ocorreu, talvez, graças ao encontro
de um grupo nómada - que adorava esse
deus - com uma federação de tribos
chamada Israel. Quanto a este encontro, não possuímos nenhum
testemunho fora da Bíblia. O texto poético do capítulo 33,1-5 do livro do Deuteronómio [«33 - Benção das tribos: 1Esta foi
a bênção com que Moisés, homem de Deus, abençoou os filhos de Israel, antes de
morrer. 2Ele disse: «O SENHOR veio do Sinai, amanheceu para eles no
horizonte de Seir! Resplandeceu do monte Paran, chegou de Meribá de Cadés, com
a sua direita deu-lhes uma lei ardente. 3Ele ama as suas tribos;
todos os seus santos estão na sua mão; eles deitam-se a seus pés, levantam-se à
sua palavra. 4Moisés deu-nos a Lei, património da assembleia de
Jacob. 5E houve um rei em
Jechurun[16],
quando se reuniram os chefes do povo e se juntaram todas as tribos de Israel.»]
talvez reflicta a adopção de Yhwh por Israel.
O mesmo poderia ter ocorrido com o estabelecimento de uma Aliança entre Yhwh e
«o seu povo», relatado no capítulo 24 do livro do Êxodo; ainda que, na sua
formulação actual, este texto seja fruto de uma fixação muito recente, não é
impossível que represente uma encenação desse encontro inicial.
Tudo leva a crer que Yhwh
esteja ligado ao estabelecimento da monarquia israelita, já que os relatos do
livro de Samuel atribuem a vitória de Saúl sobre os filisteus à intervenção de
Yhwh. O carácter guerreiro de Yhwh, que também era o deus do trovão, fazem dele
um deus especialmente apto para exercer a função de um deus protector do
primeiro rei de Israel. No entanto, quase com toda a certeza, Saúl também
venerava outros deuses, já que um dos seus filhos tinha o nome de Isbaal,
«homem de Baal» − a não
ser que «baal», uma expressão que significa antes de tudo «amo» ou «senhor», se
entenda aqui como um título de Yhwh. Quando David se apodera de Jerusalém, Yhwh
acompanha-o numa arca, num cofre, maneira de Yhwh se manter sempre presente
junto do exército do seu povo. Isto sublinha, mais uma vez, o seu carácter
militar, tal como o título de Yhwh Sabaoth, «Yhwh dos exércitos».
Curiosamente, David, a quem
a Bíblia considera como o fundador da dinastia davídica eleita por Yhwh,
não ergue nenhum templo ao seu deus tutelar. De acordo com o relato dos livros
de Samuel, Davi transporta a arca para Jerusalém, mas é Salomão quem é
apresentado como o construtor do templo em Jerusalém. Uma análise do relato da
construção nos capítulos 6 a 8 do primeiro Livro dos Reis, bem como a
comparação do texto massorético com o texto grego, sugerem que não é realmente
uma nova construção, mas sim a renovação de um
santuário pré-existente. O texto grego da dedicação do templo parece
indicar que inicialmente Yhwh não era a única divindade que nele seria adorada.
Talvez ele tenha coabitado primeiro com uma divindade solar, Shamash, cujas
funções ele gradualmente assumiu.
Para compreender plenamente
a ascensão de Yhwh nos primeiros séculos do primeiro milénio antes da era comum,
devemos inverter a apresentação dos autores bíblicos, os quais escrevem a história de Israel e de Judá a partir da
perspectiva de Judá (a do Sul) e promovem uma ideologia segundo a qual o único santuário legítimo de Yhwh teria
sido o templo em Jerusalém. A nossa investigação revelou a
importância de Yhwh no reino do norte de Israel, tal como ficou atestado pela estela do rei moabita Mesa, que prova a existência de santuários dedicados a Yhwh em territórios moabitas
anexados por Israel. Havia vários santuários yahvistas em
Israel, de entre os quais, o mais importante era Betel, ao qual se
acrescentaram um templo na capital da Samaria e quiçá, já no século VIII, um
templo em Dan. No Norte venerou-se Yhwh sobretudo como um «baal», um deus do trovão. Segundo parece, Omeri e os seus
sucessores preferiram um baal fenício (Melkart?) ao baal Yhwh, o que
desencadeou um golpe de estado yahvista conduzido por Jeú, que,
mesmo assim e de seguida, faz-se vassalo dos assírios. No reino de Israel, a
veneração de Yhwh foi marcada por influências fenícias e aramaicas, enquanto que
no Sul são observados motivos e conceitos religiosos provenientes do Egito. Na
Samaria, Yhwh foi representado principalmente sob a forma bovina, como
confirmam as polémicas contra o “bezerro da Samaria” contidas no livro de
Oseias. No entanto, Yhwh continuava a ser “o deus que os salvou [que os fez
sair] da terra do Egipto”. Segundo 1 Reis 12, 25ss,
Jeroboão I seria o primeiro a caracterizar a função das estátuas bovinas dessa
maneira, mas é possível que esta seja uma retroprojeção de uma iniciativa de Jeroboão
II, sob quem Israel experimentou várias décadas de prosperidade no século VIII.
Os relatos da mudança de
nome do patriarca Jacó para “Israel” (Gn 32) e da sua “descoberta” do santuário
de Betel (Gn 28) reflectem a transformação da tradição de Jacó numa tradição
nacional israelita, e a recuperação do santuário de Betel por Yhwh. No Norte,
Yhwh mais tarde adquiriu os traços do Baal-shamen, o “baal do céu” conhecido na
Síria e na Fenícia. A princípio é um título para o deus do trovão, deus da
tempestade, que mais tarde se torna numa divindade autónoma. É possível que, no
Norte, o Baal Yhwh também tenha integrado características que, por exemplo, em
Ugarit, são atribuídas a «El». A tendência de Yhwh para assumir as funções de
outros deuses, no Norte, não produziu uma monolatria, já que, quando os
assírios no ano 722 a.e.c. põem fim ao reino de Israel, deportam uma parte da
população, mas, segundo se diz, deportam também «os deuses em quem eles
confiavam», provando assim que na Samaria havia diversas divindades. Os textos
bíblicos não fornecem nenhuma informação sobre a história do antigo reino de
Israel durante os séculos que se seguiram, mas não há dúvidas que o culto a
Yhwh se manteve aí, pois a arqueologia comprova a existência de um templo de
Yhwh no monte Garizim durante os séculos V ou IV.
No reino de Judá existiam
também, ao lado do de Jerusalém, vários santuários, especialmente em Láquis e
Arade, bem como os “altos” [lugares], santuários ao ar livre mais modestos e
sem dúvida mais frequentes que atendiam às necessidades de populações menos
numerosas. Nos livros dos Reis, os santuários de Láquis e Arade não são
mencionados, e os ‘lugares altos’ são condenados, apesar do facto de serem
santuários nos quais Yhwh era venerado, provavelmente na companhia de outras
divindades. A visão dos editores bíblicos já pressupõe a ideia, desenvolvida no
final do século VII, de uma centralização do
culto e de uma centralização do poder político em Jerusalém. Antes dessa época, a adoração de
Yhwh assemelhava-se à dos deuses tutelares dos vizinhos a Este e a Norte.
Ainda que aos redactores
dos textos bíblicos e a alguns teólogos lhes custe, Yhwh tinha uma companheira,
a «deusa Asherá», também denominada «Rainha do Céu». Também é provável que
houvesse uma estátua de Yhwh no templo em Jerusalém, talvez de um Yhwh sentado
em um trono de querubins, à maneira de «El», em Ugarit. Tal conjunto está
subjacente à visão do profeta Isaías, e provavelmente também à descrição do
trono de Yhwh no primeiro capítulo do livro de Ezequiel. A existência de uma
estátua de Yhwh é também confirmada por certas proibições contidas
em textos do período persa, conferindo legitimidade à pergunta: “Porquê proibir
algo que nunca existiu?” Nos "lugares altos" e talvez também no
santuário de Arad, o deus Yhwh e a deusa Ashera eram adorados na forma de duas estelas
verticais ou então uma estela e uma árvore estilizada simbolizando
a deusa. Durante os séculos IX e VIII, Yhwh
assumiu definitivamente o “panteão celestial” e assumiu as funções de outros
deuses, como o deus sol, que também era o deus juiz. De fato, há uma série de salmos que transferem
para Yhwh características e funções do deus sol.
Yhwh, que inicialmente era considerado filho de «El»[17],
mais tarde assumiu as funções de chefe do
panteão cananeu e tornou-se, como
«EI», o deus criador do céu e da terra.
A evolução do Yhwh de Judá,
ou mesmo ‘de’ Jerusalém, para a divindade mais importante adorada pelo povo da
Judeia, acelerou após a queda de Samaria em 722. A derrota do irmão mais velho
do Norte convenceu o clero e os altos funcionários de Jerusalém de que o “verdadeiro” Yhwh era o Yhwh de Jerusalém
(do Sul). O cerco (abortado) da cidade pelos assírios em 701 reforçou ainda
mais a convicção de que Yhwh defenderia para sempre Sião, a sua montanha, em
Jerusalém. Apesar do facto de que, como resultado da política anti-assíria de
Ezequias, o reino de Judá ter sido amputado pelos assírios, que também haviam
deportado parte de sua população, o relato bíblico transformou essa derrota em
vitória. Os acontecimentos do ano 701 estão na origem da ideia de que existe
uma ligação indissolúvel entre Yhwh e Jerusalém.
Esse vínculo foi fortalecido durante a reforma de Josias, por volta de 620
a.e.c. Após e como consequência da
derrota de Samaria, Jerusalém cresceu muito e tornou-se a cidade do rei. A
política de centralização do rei Josias e seus conselheiros fez do templo da
capital de Judá o único santuário legítimo,
o que significava exercer o poder para autorizar a prática de sacrifícios “profanos”
em outro lugar, com a condição de que pagassem as taxas ao Templo de Jerusalém.
Aproveitando o enfraquecimento assírio, o templo foi esvaziado de estátuas e
símbolos que reflectiam as práticas religiosas assírias. O slogan da reforma de
Josias era "Yhwh é UM", conforme declarado no versículo 4 do capítulo
6 de Deuteronómio, que serviu de preâmbulo à primeira edição do livro. Essa
ideia significa que existe apenas um Yhwh, ou seja, o Yhwh de Jerusalém.
Aparentemente, também foi feita uma tentativa de erradicar o culto popular da “rainha
do céu”, ou seja, a deusa Ashera. Mais tarde, quando Jerusalém foi destruída,
alguns de Judá entenderam essa catástrofe como uma manifestação da ira da
deusa, a quem haviam deixado de venerar. Por trás da reforma de Josias está o
desejo de estabelecer um culto monolátrico (tentativas semelhantes são
observadas em outras partes do antigo Oriente Próximo), no qual a existência
das outras divindades não é negada, ainda que apenas um deus devesse ser
adorado. Embora a reforma de Josias não tenha sido imediatamente bem-sucedida,
ela representa um momento-chave na trajetória do deus Yhwh e estabelece, com a
ideia de centralidade em Jerusalém e a veneração exclusiva de Yhwh, um dos
fundamentos sobre os quais o judaísmo será construído mais tarde. Recordemos
também que foi certamente sob Josias que se pôs em prática uma verdadeira
actividade literária, que deu origem às primeiras edições dos livros do
Deuteronómio, de Josué, de Samuel e dos Reis, da história de Moisés e de outros
textos.
O acontecimento decisivo
para que «Yhwh, o deus Uno» se tornasse em «Yhwh, o deus Único» foi a
destruição de Jerusalém em 587 e a dispersão geográfica dos povos de Judá,
primeiro através da Palestina, da Babilónia e do Egipto, regiões às quais se
juntaram logo a Ásia Menor e a bacia mediterrânica. A ausência de um rei, um
templo em funcionamento e um país autónomo tornava impossível a veneração de
Yhwh como um deus nacional ou guardião da realeza. Como mostra a segunda parte
do Livro de Isaías, muitos de Judá pensaram que o “braço de Yhwh” era muito
curto[18]
e que outros deuses a quem eles teriam que se confiar deveriam ser procurados.
Foi nessa situação de crise que, paradoxalmente, diferentes grupos do clero e
ex-funcionários da Suprema Corte elaboraram vários modelos explicativos para
superar a crise e inventar uma nova maneira de entender a relação entre Yhwh e
Israel.
O grupo dos
«deuteronomistas» compõem um enorme fresco histórico que abarca os livros do
Deuteronómio, Josué, Samuel e os Reis. O objectivo que esta história persegue
consiste em mostrar que a destruição de Jerusalém e o exílio não aconteceram
por causa da fraqueza de Yhwh, mas o próprio Yhwh foi quem causou essa
catástrofe; ele usou a Babilónia para punir o seu povo e reis, que não
respeitaram os mandamentos divinos registrados no livro de Deuteronómio.
Portanto, se Yhwh pode fazer uso dos babilónios, é porque ele os controla e,
portanto, é mais poderoso do que os deuses babilónios. Desta forma, a ideia monoteísta
é preparada como aparece nos capítulos 40
a 55 do livro de Isaías, capítulos que insistem no facto de que
Yhwh, identificado com «El», é o único deus verdadeiro, e que as estátuas das
outras divindades nada mais são do que quimeras, feitas por mãos humanas.
O texto sacerdotal, que
abrange o tempo das origens, defende, ao contrário do pensamento
deuteronomista, um monoteísmo inclusivo;
assim, ele afirma que todos os povos, sem o saberem, veneram o mesmo Deus, cuja
verdadeira identidade só Israel conhece, o que o torna um povo à parte. De facto, a ideia monoteísta
também levanta a questão da relação específica entre o único deus e o único
povo. Essa relação é explicada em vários livros bíblicos, e especialmente em
Deuteronómio, pela ideia de eleição. Yhwh,
de todos os povos, escolheu Israel para fazer dele a “sua parte pessoal”. A
controvérsia contra as estátuas e imagens dos outros deuses certamente levou à
invenção de um culto anicónico de Yhwh e à ausência de uma estátua no templo
reconstruído em Jerusalém. De fato, as sinagogas puderam desenvolver-se ao lado
do templo, provavelmente desde os tempos persas, nos quais o culto de Yhwh não se baseava mais no clero e nos
sacrifícios sangrentos, mas na leitura da Torá. Esta Torá - o
Pentateuco - foi publicada numa primeira versão em meados do período persa, por
volta de 400-350 a.e.c. Reúne os escritos sacerdotais, parte dos textos
deuteronomistas e alguns outros, e encontra a sua coerência no facto de conter
todos os mandamentos divinos transmitidos ao povo por Moisés no Sinai. Isso
significa que se pôs fim à necessidade de
realeza e de terra (o Pentateuco pára antes da conquista do país: Deuteronómio 32, 48-52), enquanto condições obrigatórias, para se conhecer
as disposições de Yhwh.
De algum modo, podemos
dizer que o judaísmo nascente inventa a separação entre o poder político e a
prática religiosa e entre uma prática religiosa
e um território específico permitindo-lhe que ele funcione como uma espécie de
«religião da diáspora». A
transformação de Yhwh em deus único culmina com a recusa, por parte do povo, em
pronunciar o nome do seu deus, mas sobretudo com a tradução da Torah do
hebraico para o grego, o que permite ao mundo inteiro (‘inteiro’, bem
entendido, numa perspectiva greco-romana) descobri-lo e eventualmente aderir a ele.
POSFÁCIO
de «A invenção de
Deus», por Thomas Römer
É possível inventar Deus?
Muitos especialistas das religiões diriam que sim, enquanto os teólogos
resistiriam a tal. No entanto, nos começos da Reforma, o teólogo Martinho
Lutero perguntava no seu «Catecismo Maior»: «O que é um deus?». E respondia:
«Aquele a quem o teu coração adere e confia: esse é o teu deus». Nesta
definição podemos ler o reconhecimento de que é possível, ao ser humano,
inventar deuses.
Desde 2014 que procuramos,
com este livro, a origem e o processo de desenvolvimento do deus bíblico,
aquele deus que acabou por ser convertido no «deus único». Falar de “invenção”
em relação às religiões, politeístas ou monoteístas, não é algo óbvio. Embora em muitas religiões o clero e os teólogos definam
a versão oficial do seu culto e crenças, e concebam mandatos divinos, a questão
da origem dos deuses escapa (quase sempre) à ideia de uma invenção “ad hoc”.
O historiador, por outro lado, pode basear a sua investigação em documentos -
egípcios, assírios, babilónios, etc. - em textos bíblicos, em arqueologia e em
epigrafia. Usando essa metodologia, tracei as origens do deus Yhwh, o início de
sua veneração por “Israel” e o seu caminho rumo ao “deus único”.
As hipóteses que eu
apresento sobre uma origem meridional e não israelita do deus Yhwh são baseadas
no corpo de documentação disponível hoje. Obviamente, as minhas conclusões são
conjecturais e dependem de interpretações dos dossiês textuais e arqueológicos.
Por outro lado, a tese segundo a qual Yhwh era
originariamente um deus do deserto, provavelmente também venerado na
região que mais tarde passou a ser chamada “Edom”, é
questionada sobretudo por investigadores das universidades de Berlim e
Göttingen[19].
Para estes últimos autores, Yhwh foi desde sempre uma divindade israelita
autónoma e os textos que o situam no deserto e no Sul seriam apenas invenções
de escribas, os quais, após a destruição do Templo de Jerusalém, o passaram a
viver (e, por conseguinte, a referir) como sendo um deus do deserto.
Essa hipótese, que refuta
acima de tudo a antiguidade dos textos que evocam uma origem de Yhwh no Sul, é
desmentida por várias evidências. Primeiro, não
há nome de lugar em Israel ou Judá que contenha o elemento teofórico “Yhwh”,
o que é surpreendente para quem quiser defender a hipótese de que esse deus era
uma divindade indígena. Em segundo lugar, as ligações entre Yhwh e os países de
Madiã e Edom não podem ser entendidas como invenções recentes, pois em textos
do período persa (século V a.e.c.) os madianitas e, até certo ponto, também os
edomitas, passaram a ser inimigos de Israel.
Acrescentemos outra
observação que não incluí no meu livro, mas que é importante: é a figura de Caleb, que, segundo o seu nome como «quenicita»,
é edomita, e em Números, Deuteronómio
e Josué é apresentado como «aquele que segue
fielmente Yhwh» (expressão que
lhe é reservada em toda a Bíblia). Pois bem, este yahvista está ligado à
conquista da região de Hebron e mais tarde é identificado como pertencente a
Judá. Este personagem reflete uma estreita relação entre Yhwh e o país de Edom,
o que é atestado pela menção de "Yhwh de Teman" nas inscrições
Kuntillet Ajrud. Parece-me, portanto,
que a melhor hipótese continua a ser a de que a
origem de Yhwh se situa nesses territórios, ao sul do Neguev.
O objetivo de “A Invenção
de Deus” é oferecer uma investigação completamente histórica para explicar a
origem do judaísmo, a religião monoteísta na qual o cristianismo e o islamismo
se baseiam. Hoje, quando o obscurantismo e as “verdades alternativas” estão
ganhando cada vez mais terreno, parece necessário lembrar que esses três monoteísmos
têm mais convergências em comum do que divergências, e, para além disso, têm o
mesmo fundamento. Nos ambientes não crentes, as religiões monoteístas costumam ser
mal recebidas. São censuradas por engendrar intolerância, violência e
fanatismo. O presente parece confirmar essa avaliação. Muitos conflitos e
ataques terroristas contêm componentes ideológicos. Em nome do ‘Deus único’
mata-se, exclui-se, prega-se o ódio e a intolerância. No entanto, durante
séculos, o advento do monoteísmo foi considerado como representando um
progresso intelectual e filosófico na história humana. Não fora o monoteísmo moisaico
- o qual está na origem do judaísmo e sem o qual nem o cristianismo nem o
islamismo existiriam - a humanidade nunca teria abandonado a divinização da
natureza e nunca se teria libertado de uma submissão supersticiosa aos
elementos cósmicos. Daqui se concluiu que o monoteísmo favoreceu a autonomia do
ser humano e da sua capacidade para controlar as forças naturais e cósmicas.
Não é em vão que o primeiro capítulo da Bíblia afirma que o homem foi feito à
imagem e semelhança de Deus e que sobre os seus ombros repousa a
responsabilidade de cuidar do mundo e de tudo aquilo que nele existe. Será que
o monoteísmo acabará por ser, então, o primeiro passo para o abandono do
pensamento religioso por parte do Homem – tal como alguns filósofos[20]
afirmam? E será também o monoteísmo o grande responsável pelas catástrofes
ecológicas que os humanos não param de multiplicar desde que os humanos puseram
em marcha a revolução industrial, bem como as «guerras de religião» que hoje em
dia ocorrem? Pelo que me toca, ao rastrear o advento do monoteísmo procurei
mostrar que ele contém em si um componente
segregacionista e um componente universalista.
Em numerosos relatos do
Pentateuco, Moisés surge como violento. Na história do bezerro de ouro, ele é
um iconoclasta: ele destrói a obra de seu irmão Aarão, que representava Yhwh em
forma bovina, e assim anuncia o culto anicónico do templo de Jerusalém
reconstruído na época persa, no final do século VI a.e.c. Porém, também
massacrou uma grande parte do povo, que venerava esta estátua de Yhwh. Moisés
torna-se assim o campeão de uma religião yahvista intransigente. Em algumas
passagens de Deuteronómio, como por exemplo os capítulos 4 e 7, Moisés
apresenta Yhwh de facto como o “deus único” que criou os céus e a terra, porém, com uma
relação específica com Israel pelo simples facto de o ter «eleito» como
propriedade privada, razão pela qual Israel
deve manter-se separado das outras nações. Este discurso
deuteronómico, colocado assim na boca de Moisés, corresponde a um monoteísmo
excludente.
No entanto, juntamente com
o discurso segregacionista, também encontramos textos
que reflectem uma posição de coabitação religiosa. Por exemplo,
Moisés, que havia fugido para Madiã, casa-se com Séfora, madianita e, também,
filha de um sacerdote. Da mesma forma, José, que em seu exílio egípcio torna-se
chanceler do faraó, casa-se com a filha de um sumo sacerdote e não tem nenhum
problema em ter discussões teológicas com o rei do Egito. A tendência inclusiva
do monoteísmo é apresentada de maneira ainda mais forte no relato da
vocação de Moisés, escrito por um grupo de sacerdotes. Neste relato (Êxodo 6), os
sacerdotes desenvolvem a ideia de uma revelação divina em três etapas. Toda a
humanidade conhece Deus como Elohim, um nome que é plural e singular; para
Abraão e seus descendentes - que incluem as tribos árabes, os edomitas e outros
povos a leste do Jordão - Deus dá-se a conhecer como El Shaddai («deus dos
campos»); e revela o seu
«verdadeiro» nome, YHWH, exclusivamente a Israel – por intermédio de
Moisés –, nome que logo de seguida passa a ser tabu no
Judaísmo. Segundo esta lógica, TODOS OS POVOS
VENERAM O MESMO DEUS, inclusivamente aqueles povos que possuem
panteões. Ou seja, não há motivo algum para que os seres humanos se enfrentem
em nome de deus.
Assim, na Bíblia hebraica coabitam dois
monoteísmos diferentes. Deste modo cria-se uma tensão entre inclusão e
segregação, entre coabitação e confrontação. No plano psicológico podemos
sublinhar que toda e qualquer identidade assenta sobre dois pilares e ergue-se
a partir desses dois pilares. Porém, no plano histórico e político há que
assinalar que as religiões monoteístas favoreceram sempre mais a versão
exclusiva, e com muita frequência guerreira, do monoteísmo.
Está na hora de a lembrar e de falar desta
vertente pacifista, bem como de a
explorar no contexto actual, o qual, mais uma vez, está dominado por uma
retórica belicosa, seja ela religiosa ou laica.
Thomas Römer, “La invención
de Dios”, Sígueme 2022, 277-294
[1] Por exemplo, o livro de Daniel, escrito por volta do
ano 164 a.e.c., está atribuído a um sábio e visionário que teria vivido durante
o cativeiro da babilónia, contexto que reforça a autoridade das suas visões
quanto ao Fim dos Tempos. Em algumas visões, facilmente decifráveis,
encontramos uma sucessão de Impérios até à época de Antíoco IV. Se esta visão
se revelou histórica e cumprida, então muito provavelmente tudo o que ele diz
quanto ao Fim do tempo presente possui um fundo de verdade.
[2] O que faz lembrar a visão do profeta Ezequiel no
capítulo 1 do livro que lhe é atribuído.
[3] O texto completo deste livro apenas se preservou
completo em alguns manuscritos etíopes da Idade Média. Com a descoberta de
fragmentos deste livro na primeira parte do livro de Qümran, fica provada a
antiguidade de algumas partes deste livro, que, originariamente, fora redigido
em aramaico.
[4] A parte do livro denominada «livro dos vigilantes»,
por vezes, é datada do século III a.e.c.
[5] Uriel, que
vigia o trajecto das estrelas e os anjos do Tártaro; Rafael, que protege os espíritos dos humanos e conhece as
moradas dos mortos; Raguel, que castiga o mundo
das luminárias; Miguel, chefe do exército celeste; Sarakiel, encarregado dos
espíritos malvados; Gabriel, que vigia o Paraíso e os querubins, e que também
desempenha o papel de mensageiro da vontade divina; e Ramiel, encarregado dos ressuscitados.
[6]
Ao nível da história das religiões, observamos que este é o mesmo tema do
segundo milénio a.e.c. aquando da civilização Mesopotâmica: o deus criador deve
derrotar um ou mais monstros aquáticos
(cobra ou dragão), que simbolizam o caos,
a fim de colocar em movimento a criação do
mundo. [PB: Este “caos” pode ser visto de modos diferentes
consoante a época histórico-política em que se esteja; tal como a expressão
“suíno”, ela pode ser uma designação insultuosa cifrada - sigilosa -
para referir a ocupação estrangeira (romana) e sua espoliação tributária, a
qual Jesus enfrentou - cf. Mateus
8,28-34 - e às mãos da qual deu a sua vida; os
suínos - os romanos infiéis - são ‘mar’ ou seja são ‘o caos’.
A referência aos porcos que se precipitam no mar o comprova]
[7]
O nome, atestado pela primeira vez em 1 Mac 12,18, procede provavelmente de
“Sadoq”, o qual aparece nos livros de Samuel e mais tarde no livro de Ezequiel
como o nome de um sumo sacerdote.
[8]
Este nome procede de um verbo hebraico que significa «pôr de lado», «apartar».
[9] De alguma maneira, os saduceus e os fariseus são,
respectivamente e por esta ordem, os sucessores das correntes
‘sacerdotal’ e ‘deuteronomista’.
[10] As informações acerca deste grupo provêm sobretudo de
Flávio Josefo, «Antiguidades Judaicas» 13, 171-173; 15, 371s; 18, 11-25.
O seu nome (essénios) deriva eventualmente de uma raiz aramaica que significa
«puro», «santo».
[11]
Émile
Puech, «Khirbet Qumrân et les Esséniens»: Revue de Qumrân 25 (2011)
63-102.
[12] O nome vem do grego e significa «zelo».
[13] «Antiguidades judaicas» XVIII, 2.
[14] Lembremo-nos de que o local do atual Sinai se
baseia numa tradição cristã do século IV.
[15] Em algumas inscrições de «Teman» o nome de Yhwh está precedido por um “artigo definido”,
o que sugere que o nome é encarado não como “nome próprio”, mas como um
substantivo.
[16] Nome poético para Israel…
[17] Cf. as nossas observações acerca da versão original
de Deuteronómio 32,8, onde Yhwh surge como um dos filhos de «El».
[18] Com efeito, nos capítulos 40 até ao 55 de Isaías,
surge, em várias ocasiões, uma afirmação que é colocada na boca de Yhwh: «Não,
o meu braço não é curto».
[19] Cf. sobretudo, H. Pfeiffer, «Jahwes Kommen von Süden:
Jdc 5, Hab 3, Dtn 33 und Ps 68 in ihrem literatura- und
theologiegeschichtlichen Umfeld», Göttingen 2005; M. Köckert, «YHWH in the
Northern and Southerner Kingdom», in R. G. Kratz-H. Spieckermann (dirs.), “One
God, One Cult, One Nation. Archeological and Biblical Perspectives”, Berlin-New
York 2010, 357-394; R. Müller, «Die frühe Jahweverehrung im Spiegel der
ältestan Psalmen»: BThZ 30 (2013) 89-113.
[20] E. Bloch, «L’Athéisme dans le christianisme. La religion de
l’exode et du royaume», Paris 1979 [«Ateísmo en el cristianismo», Trotta 2019]; Marcel Gauchet, «Le Désenchantement du monde. Une histoire politique de
la religion», Paris 1985.